26 de abril de 2024

A memória intelectual, a vida após a morte e outras teses tomistas


O conhecimento é a absorção que o conhecedor faz da ideia que está contida no conhecido. Este ponto de união entre ambos é precisamente o ser. O conhecedor só é capaz de dar-se conta de si mesmo plenamente na medida em que se preenche totalmente pelas ideias. O princípio da consciência não está em sua estrutura, mas no imediato dar-se-conta do outro, do não eu.

É que para o meu pensamento se dobrar sobre si mesmo, requere-se, indirectamente, a ação do universo. Pois a consciência que tenho de mim mesmo é resultado duma excitação, e por conseguinte duma disparidade. Portanto só me reconheço “eu” quando me torno outro. Em suma faço-me “eu” fazendo-me tudo. Quando o sono me corta parcialmente a comunicação com o mundo, corta-me também proporcionalmente a comunicação comigo mesmo, e cortar-me-ia completamente se não fosse a parte do mesmo mundo que durante o sono comigo conservo. Restabelecido o contacto com o que existe, torno a sentir-me aquele que existe. [...] É o não eu, como dizem os filósofos no seu calão próprio, que se manifesta imediatamente à consciência, e não as condições internas desta representação. Portanto o que se conhece é o objecto e não a imagem ou suporte da imagem do objecto. No facto do conhecimento sou passivo; o ataque vem-me de fora. [...] E não havemos de admirar-nos de que seres à primeira vista tão estranhos entre si manifestem esta capacidade de se expandirem indefinidamente, até se tornarem, em certo modo, todas as coisas? Conhecer é de facto, com toda a propriedade, mudar-se em. Só conhecerei, se de alguma maneira me converter naquilo que quero conhecer. O acto de conhecer contudo permanece em mim, pois é alguma coisa de mim mesmo, uma vez que é perfeição minha; como diz S. Tomás, o conhecimento enquanto ser é uma perfeição daquilo que existe. [...] Como é que a consciência que tenho deste objecto poderia brotar da consciência que tenho de mim mesmo, como forçosamente tem de suceder? O facto do objecto se me propor do exterior, poderia acaso explicar alguma coisa? E que se me propusesse interiormente, se não passa disso, se o não assimilo, desconheço-o absolutamente. Requer-se um ponto de união, de ajuste, ou como diz Bergson, um ponto de sutura, uma película.

Tenho um determinado campo de existência fora do qual não posso sair; e o objecto tem o seu donde também não sai; por conseguinte se não houver compenetração no ser, será impossível qualquer acto de consciência.

Por isso, tanto insiste S. Tomás na afirmação de que o conhecer na sua origem é um ser. Os objectos conhecidos modelam-nos verdadeiramente à sua imagem, em alguma coisa que é nossa, comunicando-nos a sua forma de ser (species).

[...]

[E]ntre o conhecedor e conhecido se dá uma compenetração no ser; que o pensamento encerra, em certo modo, o ser, e por conseguinte pode ajudar-nos a defini-lo.

Não será por esta razão que S. Tomás escreveu a este respeito afirmações tão admiráveis como as seguintes? – que entre os diversos modos de possuir uma coisa, o conhecimento é o mais perfeito e íntimo de todos; que a contemplação é o grau mais sublime da vida; que a contemplação de si suspende qualquer outra actividade da vida, admitindo-a apenas com meio para se continuar a expandir.

[...]

E agora pergunta-se: qual o meio em que se baseia essa compenetração? [...] Sentimo-nos assim na necessidade de supor qualquer coisa em comum, superior a estas duas existências [conhecedor e conhecido], que se reúna numa só vida especial e homogênea. E que coisa será esta? [...] Responde-nos S. Tomás que é a forma de existência do objecto conhecido que se comunica; não como forma natural encarnada numa matéria, mas intencionalmente, isto é, como ideia ou intenção de natureza.

[...]

Desta análise segue-se que o real sendo cognoscível, visto que de facto o conhecemos, deve ser fundamentalmente constituído por aquilo mesmo que o torna capaz de ser conhecido; por outras palavras, o real tem de ser ideia. Ora a ideia fora de Deus e de nós é coisa; e a coisa em Deus e em nós é ideia [“ideia” tomada no sentido mais amplo (species, intentio)].

[...]

Como fugir à conclusão: - a realidade é ideia; o real é inteligibilidade adaptada à inteligência. [...] Sim, a alma humana é, de facto, na sua capacidade receptiva, toda ideia e toda ser. Aquele seu vazio insaciável é uma sede ardente que reclama a ideia e o ser, por amor à própria vida.

[...]

A inteligência é o facto capital dentre todos os que ela examina e classifica; é uma estrela no céu da natureza como prenúncio dum novo mundo. Melhor: é o olhar da natureza, o olhar que se ergue para o céu, olhar já penetrado de céu, olhar celeste que é um céu, pela sua substância e poder, pelo seu tesoiro de luz celestial; e que só é da terra pelos meios orgânicos de que lança mão.

[...]

O que é individual atingimo-lo só por uma potência meio cega e meio inconsciente, que é a sensibilidade; nunca chegamos porém a dominá-la; até mesmo a nossa própria individualidade, só superficialmente a atingimos e por meios não intelectuais.

Este último facto é sem dúvida o que mais nos surpreende: porque uma vez que a nossa individualidade está no íntimo do nosso ser, parece que não devia ser preciso esforço algum para atingi-la. E todavia por mais que a busquemos, nunca conseguimos apreendê-la na sua essência, nunca conseguimos agarrá-la.

[...]

Os nossos conceitos, expressões parcelares da realidade, não nos vêm por intuição, mas pela abstracção que nos obriga a retalhar o que é uno, a fixar o que é sucessivo, a imobilizar o tempo, e a esquartejar a substância; em suma, fazemos da natureza viva um montão de destroços.

Daqui provém aquele andar claudicante do espírito, de claridade em claridade, de aspecto em aspecto, até que as diversas tentativas de combinações com o nome de juízos e raciocínios avancem para uma luminosidade mais ampla, mas sempre limitada.

* * *

A intervenção de Deus no mundo não é por modificação, mas por actualização. Deus é Deus, e não um Demiurgo.

Descrevemo-la [a providência] assim, segundo a bela definição que S. Tomás tomou de Boécio: “a mesma razão divina que, colocada lá no mais alto cume dos seres, dispõe tudo”. De facto, a ideia de providência implica a de disposição, mas disposição dentro do próprio pensamento, disposição prévia aos factos; isto é, a ideia de providência é antes de tudo um plano. Mas reparemos que se trata dum plano a realizar, dum plano que não é meramente concebido pela inteligência, mas intimado como as ordens dum chefe. Portanto o que acontece, acontece segundo o que foi estabelecido e dentro da acção das suas causas temporais, embora este plano exista só na mente divina. A realização na ordem dos factos e a produção pela acção das causas, pròpriamente, já não são efeito da providência, ao menos na terminologia tomista, mas efeito do governo divino.

Logo, Deus é providente porque “dispõe tudo”, isto é, a ordem das coisas procede dEle do mesmo modo que a substância das coisas. E esta ordem supõe, por um lado, a orientação de cada ser para os fins particulares que lhe convêm ou aos quais deve servir como meio, e por outro, a orientação de todo o universo para o fim absolutamente último que é, como sabemos, a manifestação do Bem supremo.

[...]

A única coisa que se pode perguntar é como há lugar para o male para os erros nesta ordem divina. [...] [É] pela inevitável imperfeição do ser criado, ou até pela sua perfeição, como sucede quando a manifestação ou expansão da perfeição e um ser se faz à custa do mal de outro. Dentro desta ordem, podemos afirmar que é da infinita bondade de Deus que deriva a existência do mal; pois esta bondade, antes de mais nada, tem em vista o bem do universo, e já provámos como o bem do universo não só não exclui o mal, mas até o exige, tanto na ordem real como na do possível; e por conseguinte, este há-de sobrevir em muitos casos.

[...]

O Ser absoluto ao descer ao relativo, degrada-se; torna-se múltiplo e graduado; e daí nascem todas as oposições e interferências, e destas, por sua vez, o mal.

[...]

Os que, em nome da liberdade ou do acaso, pretendem subtrair a Deus alguma coisa, vão a caminho de O negar. [...] Nada portanto se exime do seu governo e, “para dele se eximir era preciso eximir-se do ser”. (Contra Gent. III, 1).

[...]

Da mesma maneira que participamos do ser primeiro, participamos da acção suprema; e como participamos do Ser divino sem lhe ajuntar nada, assim temos parte na acção divina sem a modificar nos seus resultados nem entrar com ela em qualquer composição.

Falta agora explicar os limites deste mistério. Porque o é de facto e ninguém pretende desvendá-lo. Tanto num caso como noutro [ser primeiro e ação suprema], o mistério é exactamente o mesmo; é que para Deus, o criar, é originar o ser com todas as suas manifestações.

[...]

As coisas não subsistentes, como a acção, dizem-se “concriadas”, isto é, criadas juntamente; o sujeito agente é criado como tal, isto é, como agente e também como sujeito; e a sua acção é também criada; é uma participação da Acção primeira, como o sujeito é participação da Substância primeira: duas coisas idênticas. Nelas se esconde o mistério das participações, o mistério da aliança e da conciliação entre o Ser absoluto e os seres participados, entre o Infinito e o finito.

[...]

A conciliação dos dois [acaso e providência] está no facto da subordinação, mas subordinação transcendente; por outras palavras, o acaso é um elemento do relativo, a providência um aspecto do absoluto; e este é quem lhe serve de base e o estabelece na sua natureza própria, sustentando-lhe. [...] O que a providência tem em vista no mundo não são ùnicamente os efeitos, mas também, e sobretudo, uma ordem em que as relações das causas aos efeitos entram com elemento principal.

Portanto, a direção impressa por Deus dentro do absoluto da acção criadora, longe de suprimir a contingência, deve até assegurar-lhe o êxito. É que a soberania de Deus é suficientemente alta para não forçar a liberdade das suas obras; Deus é um soberano que pode dar aos súbditos toda a liberdade, pois é tal o seu governo que tem as próprias liberdades como elementos. Não violenta as suas obras, mas investe-as de poder; e assim, entre elas pode uma sair vitoriosa à custa de outra, pois duas causas criadas postas em concurso, ou se unem ou se repelem. A acção de Deus porém nem compõe com a nossa nem se lhe opõe; ela que é origem de tudo, tudo respeita; por conseguinte, quando exerce o seu influxo, nem por isso o efeito tem de ser colocado na ordem do necessário; é simplesmente colocado no ser, necessário ou contingente, segundo a determinação que lhe impõe a vontade divina.

A ilusão nasce de se ver Deus uma causa com qualquer outras, apenas mais poderosa, um Demiurgo cuja acção reúne em si as acções criadas, actuando no mesmo plano que elas e somando-se-lhes, secundando-as ou contrariando-as, dentro da mesma ordem delas. Nestas condições, se Deus não intervém, podem de facto as causas criadas conservar a sua espontaneidade natural; se porém se dá a intervenção de Deus, a eficácia omnipotente do seu poder arrebatará a si tudo, e já não haverá contingência, nem acaso, nem sequer liberdade.

[...]

A ver se nos explicamos ainda doutro modo. Deus não modifica nada; actualiza; actualiza o livre na sua liberdade; actualiza o necessário na sua necessidade; actualiza o homem como sujeito, o homem livre, o homem que age livremente, e por conseguinte, o acto de liberdade; mas entre estes elementos não se intromete nenhuma intervenção modificadora; a influência divina, que está subjacente, sustenta tudo, dá actualização a tudo sem lhe mudar a natureza. Portanto, como o ser de Deus subjacente ao nosso, o não absorve nem o impede de ser autônomo, assim a acção de Deus, subjacente à nossa, não lhe tira a liberdade nem a torna necessária.

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O poder da alma limita-se ao corpo apenas parcialmente; Tomás conjectura que a alma possa influenciar o meio para além dos limites impostos pelo corpo

A alma humana tem perfeição suficiente para subsistir por si mesma, como o anjo; mas não, para se caracterizar individualmente e agir sem a cooperação do corpo. Este serve-lhe para captar as vibrações cósmicas e para lhes responder pelas suas reacções. Só por meio do corpo nos é dado conhecer, não digo já a matéria, mas também o espírito; pois toda a ideia, até mesmo a de Deus, radica primitivamente nas coisas, as quais só através dos sentidos entram em nós (omnis cognitio a sensu).

[...]

Até onde vão os poderes da alma? Até onde vai a nossa parcial identificação com o meio. Ora o nosso corpo é precisamente este meio, enquanto em parte se identifica connosco. Nada prova contudo que a zona de identificação parcial, assim estabelecida, se não possa alargar mais. E, na medida em que se alargasse, teríamos a faculdade de modificar o nosso meio por actos imanentes, conscientes ou não, segundo o modo como nos modificássemos a nós mesmos. E nesse caso dar-se-ia a magia, a exteriorização da sensibilidade, os êxtases, a telepatia etc., etc., fenómenos que S. Tomás chegou a conhecer ou a conjecturar, e que nem sempre atribui à intervenção diabólica.

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Pensar o pensamento equivale ao raciocínio, que é apenas uma subida de função, não uma intuição intelectual, que, por sinal, não existe no tomismo

A intelecção, descrevemo-la por comparação, com a sensação e com as condições em que esta se dá; e a sensação, descrevemo-la em proporção com a acção e paixão, como, por exemplo, quando dizemos que os objectos movem os sentidos. Com esta diferença apenas, que a acção e paixão da sensação são para nós objecto de intuição: sentimo-nos sentir; ao passo que a acção e paixão intelectuais, só por analogia proporcional se podem considerar como tais. Normalmente não se dá intuição intelectual. Pensar o pensamento, não é voltarmo-nos sobre o nosso objecto próprio, mas subir no sentido das suas condições; condições necessárias e portanto definíveis, como funções, não porém em si mesmas. Dá-se uma coisa parecida ao que afirmámos do conhecimento de Deus; é uma espécie de álgebra; mas na álgebra também há verdade.

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A imaginação e a cogitativa. A experiência, por collatio, pode proteger o indivíduo pouco intelectualizado das más influências exógenas.

A imaginação é uma potência diferente, mas conexa com a anterior [sentido comum]. Os sentidos próprios e o comum recebem impressões, que a imaginação conserva, associa e combina. Desta primeira elaboração, resulta uma espécie de juízo, ainda inteiramente instintivo e determinado apenas pelas leis da espécie e não pela iniciativa do sujeito. No animal, este instinto é puro de qualquer mistura e deixado a si mesmo; no homem porém, está compenetrado com a razão, donde lhe vem o nome de razão particular ou cogitativa. Diz-se razão particular, para notar que o universal, ainda não elaborado, não entra em jogo; que o sujeito passa apenas dum caso particular a um caso semelhante, ou de vários casos particulares a um caso novo, mas da mesma espécie, sem que intervenha um princípio. Daqui nasce a experiência, que “consiste na aproximação consciente (collatio) dos casos singulares da mesma espécie, conservados na memória”; aproximação de que resulta uma regra empírica de acção, que ainda não é ciência nem arte, mas que no homem é já prenúncio delas. Convém notar que essa experiência não é puramente individual, mas que toma uma forma social. Pela hereditariedade, educação, influência mútua, a criança e o adulto chegam a formas de experiência muito superiores às que um indivíduo poderia atingir; a contribuição dos séculos decorridos permite-lhes agir sàbiamente sem sabedoria, engenhosamente sem engenho pessoal, artisticamente sem arte.

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A “memória intelectual” é a conformação e os vincos que o intelecto ganha ao contemplar e absorver as ideias. A importância de ter um intelecto rico em ideias para que a “memória intelectual” lhe sirva para que continue amealhando novas e maiores experiências após a morte.

É questão que tem sua importância, o saber se as ideias extraídas da experiência sensível interna, dos fantasmas, se conservam no entendimento ou se apenas reaparecem nele, quando se reproduzem as condições cerebrais que as originaram. Na opinião de S. Tomás, a resposta era de consequências graves; porque se a ideia se não conserva em si mesma, se o que permanece é a mera capacidade de reviver quando se der nova iluminação dos phantasmata, que será dos nossos pensamentos e da recordação deles, quando a alma, separada do corpo, já não tiver à sua disposição recurso algum cerebral, nem experiência dum mundo que se extinguiu.

É certo, como adiante diremos, que a alma adquirirá então urna nova experiência, superior à primeira; mas o superior não supre inteiramente o inferior; estamos de tal maneira ligados aos nossos pensamentos que, se desaparecessem, deveriam ser substituídos por um equivalente estranho, de valor infinitamente mais elevado que o deles. E enfim, a doutrina da alma exige ser completada numa matéria que se apresente necessàriamente ao espírito. No comentário às Sentenças (IV, dist. L, q. 1, a. 3) S. Tomás toma neste ponto uma atitude bastante dúbia. Mais tarde a sua opinião torna-se mais firme embora certas expressões e, segundo se diz, certos incidentes da vida manifestem ainda uns restos de dúvida. A razão para afirmar que as ideias se conservam na inteligência é que, se uma potência espiritual é capaz de receber uma nova conformação, uma caracterização, deve também ser capaz de a conservar; e além disso não é nada provável (non videtur probabile) que a mudança espiritual, com o nome de ideia, venha a acabar num produto ontológico menos estável do que as imagens materiais. Estas conservam-se no meio do fluxo incessante de que é sede o órgão animado: a fortiori deve conservar-se a forma adquirida pela evolução do conhecimento, em iguais circunstâncias, para requerer para o seu exercício as condições orgânicas universalmente reconhecidas como necessárias.

Não esqueçamos que conhecer é ser, isto é, ser outro por uma adição de acto; o acto do conhecido que se insere na actualidade anterior do sujeito. Ora, entre a pura potência para ser outro, e a posse actual deste enriquecimento, que é um acto segundo, há lugar para o acto primeiro, que é a ideia adquirida, mas ainda não vivida; estado dum ser formado inconscientemente à imagem de outro (informatus) e prestes a tomar consciência disso, desde que se realizem as condições exigidas para o conhecimento actual. Parece portanto (videtur) que qualquer ideia adquirida se conserva no tesoiro da alma, indefinidamente, pois aqui, no domínio do imaterial, o fluxo das mudanças materiais não poderá atingi-la. E assim todo o enriquecimento de ideias vale também para a outra vida onde todavia será relativa a sua utilidade. Não é porém isto, como já dissemos, o que se chama própriamente memória. Esta diz sempre relação ao passado como passado. E assim, pensar urna coisa sem incluir nesse acto esta condição de distância temporal, ainda que se pensasse pela segunda ou terceira vez, não seria lembrar-se. Ora o tempo é a numeração do movimento que é uma condição das coisas materiais. Corno a ideia diz relação apenas ao universal, portanto ao imaterial e ao imóvel, não inclui em si nenhuma condição de tempo, e por conseguinte pode representar o que é passado, mas não o passado na sua forma própria; na sensibilidade é que o passado como passado, deixa marcados os seus vestígios; o nosso corpo é que é a potência em que se regista o passado. Reencontramos o que já passou, mas que ainda nos atinge, por um movimento de regressão a que S. Tomás dá o nome de reminiscência (acto de se relembrar). Ora nesse acto intervém o contínuo, logo também a matéria.

Por consequência, na alma separada do corpo, as ideias abstractas que nela permanecem, se de facto permanecem, não lhe são certamente inúteis; constituem uma disposição especial que condiciona o uso das ideias vindas de mais alto, determina a sua generalidade a certos objectos, fazendo assim que a alma torne a pensar o que outrora pensou, com consciência de que o pensa. E isto, de algum modo, é de facto lembrar-se. Mas em todo o rigor e segundo a terminologia filosófica ordinária, continua verdadeira a afirmação de Aristóteles: dissolvido o corpo, já a alma se não pode recordar de nada. Em suma, falando, com toda a propriedade, não há memória intelectual.

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A alma após a morte

Resta o problema da sobrevivência da alma que, uma vez admitida com S. Tomás, contra todas as formas de Platonismo, a doutrina do composto humano, se põe ainda em termos bastante delicados.

Não podemos morrer completamente; as ideias cativas divinas, são como reféns contra a brutalidade da morte. A alma, por ser imaterial, não poderá sofrer a divisão a que está sujeito o corpo, nem a dissociação em seus elementos, nem a destruição. Como poderíamos por conseguinte perecer com a imortalidade dentro de nós?

É verdade; mas precisamente esta fórmula dá origem a uma dúvida. Se em nós há imortalidade, é sinal de que em nós nem tudo pode morrer; mas não de que não morreremos. O homem é composto de corpo e alma; portanto, destruído o corpo, deixa de existir o homem; e já nem sequer o nome de homem se lhe pode dar, como adverte engenhosamente S. Tomás. Afirmar a sobrevivência do homem, seria regressar ao idealismo de Platão, e admitir que a alma intelectual, constitui só por si o homem, em vez de o conceber como uma emergência num ser entregue parcialmente ao fluxo da matéria.

A esta dificuldade responde a fé com a doutrina da ressurreição da carne, doutrina inteiramente natural, dado que o estado natural da alma é existir na carne; a filosofia porém não possui este recurso; verifica que o homem morre e não pode dizer que reviverá; deve contentar-se com afirmar que nele não morre tudo, ajuntando que visto a alma ser em nós a parte principal e o principal se tomar vulgarmente pelo todo, se pode sob este aspecto afirmar, com aproximação, que nós somos imortais. E isto já não será seguir a Platão, que falava com rigor, e concebia a união do espírito com a matéria, apenas sob forma acidental.

Dificuldade, porém, mais grave, é a seguinte. Para que serve à alma, depois da morte, conservar o ser, se perde as suas funções? Pois nenhuma função parece possível fora do corpo, ou melhor, fora dum estado excelente do corpo. A enfermidade atinge a inteligência, podendo mesmo chegar a suprimir-lhe inteiramente o exercício, ao impedir as condições orgânicas de que dependem os sentidos, a imaginação, a memória, suporte da inteligência.

A resposta é um pouco embaraçosa; tem de sê-lo, e os adversários medievais de S. Tomás tinham, neste ponto, óptima oportunidade para lhe censurar o seu aristotelismo.

Se o sujeito pensante não é pensante em acto, senão sob a condição de imagens interiores; se as imagens supõem o organismo e o organismo o meio cósmico, como é que, dissolvido o organismo e não comunicando a alma mais com o meio por este intermediário, como poderá esta operar, mesmo para tomar consciência de si própria? “Existir, é sentir o seu corpo”, escreve Maine de Biran. Se a alma não sente mais o próprio corpo, também não poderá saber de modo algum que existe. O sono sem sonhos, será portanto a realidade da morte? Mas nesse caso, sem falar no que há de constrangedor numa tal suposição, como imaginar, dentro do plano da natureza, esta sobrevivência inconsciente e inerte? Não ser para si nem para outrem, será de facto existir ainda?

Daí a supor que, mesmo nesta vida, o intelecto separado da matéria não é inteiramente pessoal; que é uma influência comum; que esta luz, provisória para cada um de nós, ilumina durante algum tempo, e depois abandona e deixa cair na noite estas migalhas de humanidade, estes efémeros que nós somos, não havia mais que um passo. Averróis franqueou-o, pretendendo apoiar-se em Aristóteles. Quem sabe ?... Contudo, os comentários de S. Tomás sobre o Tratado da Alma subsistem do mesmo modo que o admirável estudo da Unidade do Intelecto, contra os Averroistas. Não se compreende menos a dificuldade, sob o ponto de vista positivo, em afirmar uma sobrevivência que se vê ser totalmente indescritível, a partir dos dados da psicologia terrestre.

Contudo, o caso não é tão desesperado como parece. Encontramos certa ajuda nesta verificação: que o papel actual do intelecto passivo, isto é, a sua receptividade ideal sob a invasão do mundo sensível, portador de ideal, não esgota a sua potência. É um receptáculo de ideias; importa pouco à sua natureza, que estas ideias lhe venham do sensivel. É esta a sua condição actual, mas não condição necessária. Uma vez que a sua natureza separada (quer dizer, independente da matéria) o torna inacessível à morte, e a sua natureza receptiva sem limitação modal, faz possível a sua informação ou determinação cognoscitiva debaixo doutras condições - a imortalidade consciente e activa nos seus elementos.

Demais, a alma, ideia real, é, como sabemos, ela mesma um inteligível. Se ela não tem nesta vida a intuição de si mesma, é, sem dúvida, porque a sua união ao corpo a orienta para os objectos do corpo, a circunscreve aos meios do corpo. Separada, colocada de novo no puro contacto de si mesma, porque não desempenharia ela o seu papel de inteligível inteligente e, por esse meio, conhecendo-se, não estenderia ela o seu conhecimento a tudo quanto diz respeito à própria natureza, tocando o ser e as causas do ser? Isto pode ir longe, sem qualquer auxílio exterior. De resto, universalmente receptiva, pode receber do alto o que não recebe de baixo; do espírito o que não recebe da matéria. Psicologicamente pode-o; se moralmente o deve, tudo irá bem; o homem com suas aspirações, o moralista preocupado com os seus postulados, o cristão dominado pela sua fé, podem satisfazer-se.

A resposta de S. Tomás é, portanto, esta. As funções que dependem do corpo perecem: tais os sentidos, a imaginação, a experiência sensível, a memória propriamente dita, as paixões; mas as funções racionais não perecem nunca. Unicamente mudam ponto de apoio. O agir é da natureza do ser. Actualmente, a alma, ainda que transcendente ao corpo e independente dele no seu ser, tem o próprio ser ligado ao corpo, como a um suporte, e ao sujeito que a recebe. Consequentemente, a sua própria operação, que é a operação intelectual, embora não dependa do corpo, no sentido em que ela se exerceria por um órgão corporal, não deixa de encontrar no corpo o seu objecto, que é a imagem mental (phantasma), de tal sorte que, enquanto estiver no corpo, a alma não pode pensar sem imagem, e não se pode lembrar senão por um novo apelo à imagem, por meio da cogitativa e da memória sensível. Daqui se segue que, devido a este modo de funcionamento, o poder de pensar e de se lembrar não pode sobreviver à destruição do corpo. Mas o ser da alma separada, a ela sómente pertence, independentemente do corpo; por conseguinte, se a operação é da natureza do ser, a operação própria da alma, isto é, o pensamento, não se exercerá sobre objectos que tenham a sua existência em órgãos corporais, como as imagens mentais; mas a alma pensará por ela mesma, como sucede às substâncias totalmente separadas dos corpos, e destas substâncias superiores poderá receber mais do que agora a influência, afim de pensar mais perfeitamente”.

Como se deduz destes textos, S. Tomás refere-se, para interpretar a sobrevivência, a uma faculdade de intuição que a alma possui desde agora, mas que está ligada por uma espécie de fascinação corporal, de obsessão pela matéria conjunta. Esta faculdade está em nós, dirá Lachelier, “como a faculdade respiratória durante a vida intra-uterina”. Chegado o nascimento imortal, este poder manifestar-se-á como a criança recem-nascida respira num grito.

Há, porém, em tudo isto, uma dificuldade. Se a alma pode desta maneira agir por si mesma e fora do corpo, podemos perguntar por que motivo foi ela unida a um corpo e se isto é realmente “para seu bem”, como o declara S. Tomás contra Origenistas e Maniqueus que viam nisso uma decadência e um castigo. S. Tomás responderia: a alma pode agir sem o corpo, mas o corpo não é para o seu exercício uma coisa inútil. Situada no degrau mais inferior das inteligências, ela não poderia, reduzida a si mesma, participar da verdade mais do que em pequena escala. O corpo é para ela fonte de informação, graças às janelas dos sentidos, abertas sobre o mundo. Dissolvido o corpo, a alma volta a si mesma, e por este título só adquire pouco; mas o mundo superior, de que ela não tinha nesta vida mais que reflexos, entrega-se-lhe em abundância; ela beneficia duma descida de inteligível, em vez da ascensão exclusiva das formas a partir da matéria: Luz directa que sucede à filtração laboriosa da abstracção. “A alma humana está nos confins de dois mundos, no horizonte do tempo e da eternidade: quando ela se retira do inferior, aproxima-se do supremo, e, completamente separada do corpo, será plenamente semelhante às substâncias separadas, recebendo delas a verdade com maior abundância”.

Em poucas palavras, a alma, ao desabrochar no corpo, é degradada na sua substância espiritual; depois da separação pela morte é reconstituída e engrandecida na sua mesma espiritualidade, graças a uma colaboração superior. A posse do nosso corpo dá-nos os direitos e vantagens dum espectador do mundo e dum cidadão activo da natureza; perdido o corpo, não perdemos mais que o nosso lugar nesta escola de príncipes; em contrapartida, abre-se-nos o reino definitivo, e o palácio paternal tem mais claridades que o nosso albergue provisório. O corpo alimenta o espírito, mas como o carcereiro alimenta o prisioneiro na cela; fornece-lhe o sensível e encarcera-o no sensível; consola e perpetua ao mesmo tempo a sua detenção. O caminho do progresso decisivo, para nós, não é em direcção ao cosmos, mas para o nosso interior, ligado ao seu Princípio, posto ao nível deste mundo do espírito, em comparação do qual o mundo da matéria não é mais que o reino das sombras.

Lembremo-nos que a matéria é um precipitado do espírito, um desfalecimento, um fumo de espirito; uma vez unidos ao mundo espiritual, os objectos de que actualmente vivemos não nos parecerão mais do que simples sombras. Sombras repletas de reflexos, que são as formas originadas do Espírito criador; mas em todo o caso, sombras. E o nosso mesmo corpo não será mais do que uma sombra, destinada a receber mais tarde, ao reviver, a luz do espírito.

Vê-se, como segundo o pensamento de S. Tomás, se reparte para nós o conhecimento, através dos domínios que devemos sucessivamente habitar. Na terra, tudo tiramos da experiência, isto é, da penetração do mundo em nós, da invasão das formas incarnadas que a abstracção intelectual desencarna. Mas desde agora, operando por esta forma, comungamos com o mundo do espírito. A fonte da luz das coisas está no alto; a forma é divina; através da natureza comunicamos, sem o saber, com a Fonte ideal; a visão em Deus”, neste sentido, é uma verdade: nós não podemos haurir a verdade senão em Deus, no Qual reside; duma maneira ou doutra, é preciso que Deus se misture ao pensamento, e que a nossa ciência, a nossa arte, ou qualquer outra coisa que implique inteligibilidade, seja uma colaboração divina. As nossas ideias vêm do alto, ao mesmo tempo que vêm de baixo, como a imagem do sol, no mar, vem realmente do sol, ao mesmo tempo que vem do mar. O nosso pensamento é um reflexo ideal, como os seres são um reflexo real, dum absoluto ao mesmo tempo ideal e real.

Mas então, noutras condições, franqueadas as barreiras deste mundo, o Absoluto e seus sucedâneos superiores podem reflectir-se em nós, sem o intermediário do real que nos rodeia. O mundo inteligível, de que a alma, rotas as cadeias, fará parte, alimentará o pensamento, restituindo-lhe superabundantemente o que ela parecia ter perdido. Em vez de contemplar as ideias por um reflexo, recebê-las-emos da sua fonte e contemplá-las-emos em nós, connosco mesmos na nossa essência inteligível. Deus, os Anjos, e nós, transparentes a nós mesmos; mas Deus em tudo e em todos: tais serão os nossos recursos.

Fonte: Antonin-Dalmace Sertillanges, As grandes teses da filosofia tomista, Livraria Cruz, Braga, Portugal, 1951. 

24 de abril de 2024

Filioque ortodoxo


Visão convencional Ocidente-Oriente cristão

Estas tradições são, afirma ela [Catherine LaCugna em God for Us: The Trinity and Christian Life], separadas por um grande abismo: “em quase todos os pontos doutrinários significativos […] as diferenças entre o Oriente e o Ocidente são decisivas e provavelmente irreconciliáveis”. O Ocidente vê as pessoas da Trindade como relações dentro da essência, enquanto o Oriente, depois de Palamás, restringe as pessoas divinas à essência imparticipável. Em ambos os casos, a criação está separada da Trindade imanente. Ela não se interessa pelos méritos relativos do palamismo e do tomismo, permitindo que sejam “dois sistemas de pensamento legítimos, embora divergentes”. […] Não deveria ter passado despercebido que a visão de LaCugna do Oriente e do Ocidente é estranhamente semelhante à de Lossky e Meyendorff: Palamás e Tomás de Aquino apresentados como os picos gêmeosh de suas tradições mutuamente opostas, com o Ocidente contaminado pelo essencialismo e o Oriente (pelo menos até Palamás) mais sensível à distinção de pessoas.

Filioque ortodoxo

Sabe-se que Palamás foi um ferrenho oponente do Filioque latino e parece muito estranho encontrá-lo abraçando algumas das imagens-chave ou Agostinho, o principal progenitor dessa doutrina. Em seus Tratados Apodíticos distintamente antilatinos (c. 1336), Palamás de fato insiste, em termos inequívocos, na processão somente do Pai. Mas, olhando mais de perto, Palamás revela-se muito mais do que um monopatrista inflexível, incapaz de pensar além da missão puramente temporal ou do envio do Espírito pelo Filho. Perfeitamente consciente de que alguns textos patrísticos gregos, como o Thesaurus de Cirilo de Alexandria, envolvem de alguma forma o Filho na eterna processão do Espírito, Palamás apresenta uma abordagem notavelmente construtiva para o problema como um todo.

Palamás insiste que é inadmissível a processão da hipóstase do Espírito a partir da hipóstase do Filho. O Espírito tem seu modo particular de ser apenas a partir da hipóstase do Pai. Afirmar o contrário, como fazem os latinos, é fazer uma única hipóstase de Pai e Filho. Mas podemos falar que o Espírito vem do Pai e do Filho, ou do Pai através do Filho, em termos de natureza. Por causa da consubstancialidade do Pai e do Filho, pode-se dizer que o Espírito provém “naturalmente do Filho e da sua essência”, manifestando assim a própria consubstancialidade do Espírito com o Pai e o Filho. Este eterno movimento divino tem sua contraparte temporal: 'O Espírito flui eternamente do Pai para o Filho e se manifesta nos santos do Pai através do Filho.' Da mesma forma, ‘o Espírito Santo é natural e eternamente do Pai e no Filho, e é manifestado do Filho aos santos’. Palamás tem o cuidado de sublinhar que esta manifestação temporal pertence à energeia incriada do Espírito Santo, e não à sua natureza ou hipóstase.

A distinção entre essência divina e energeia divina (energia, atividade, operação) acrescenta uma dimensão importante ao que poderíamos chamar de “Filioque ortodoxo”. Visto que, para Palamás, a energeia pertence à natureza e não à hipóstase, existe necessariamente uma única energeia do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A consubstancialidade do Deus triúno é assim expressa e revelada na operação divina. Certamente podemos falar do Espírito advindo do Pai e do Filho, ou do Pai através do Filho, quando falamos da extensão aos seres humanos da graça incriada do Espírito. Há uma ordem a ser observada aqui: a energeia divina pode ser única, mas não é indiferenciada. Existe, sustenta Palamás, um sentido real em que podemos falar do Pai e do Filho “dando” o Espírito, se entendermos por isso não a natureza ou a hipóstase, mas a energeia incriada de Deus comunicada no e através do Espírito Santo.

Assim, o Espírito procede somente do Pai, segundo a hipóstase, mas está unido essencialmente ao Filho, 'repousando nele, que lhe é próprio, e permanecendo nele eternamente, porque ele é o dispensador do Espírito'. Assim, não é “nenhuma novidade” dizer que “o Espírito procede do Filho e da sua natureza”. Concomitante com esta processão a partir da natureza do Filho, o Espírito também é 'dado, enviado, derramado e sai' 'através e do' Filho para os dignos. A respeito desta missão temporal do Espírito, Palamás usará até o verbo “proceder de”. Este é, obviamente, o termo usado para o Espírito no Credo Niceno-Constantinopolitano e geralmente reservado por Palamás para a processão eterna do Espírito a partir da hipóstase somente do Pai. O facto de ele estar preparado para usar um termo tão central e “carregado” para a processão temporal do Espírito a partir do Filho serve apenas para sublinhar o fato de que, para Palamás, a processão temporal e a processão eterna estão inseparavelmente, embora inescrutavelmente, ligadas.

Embora pouco simpático (ou, na verdade, mal-informado sobre) a posição latina contemporânea sobre o Filioque, Palamás, no entanto, oferece nos seus Tratados Apodíticos uma abordagem ortodoxa muito construtiva sobre esta questão controversa. Ele permite um ‘Filioque ortodoxo’ tanto no que diz respeito à vida divina eterna quanto à manifestação da energeia divina entre as criaturas. Mas ele permanece inflexível ao afirmar que a hipóstase do Pai é o único princípio originário da divindade. Embora certamente seja inadmissível adicionar a palavra ofensiva ao Credo, ou de aceitar o Filioque em termos de origem, a capacidade de Palamás de abraçar a co-processão nos planos eterno e temporal terá preparado o terreno para a recepção notavelmente positiva do ensino trinitário de Agostinho evidente em obras subsequentes, como a Capita. O Capita 36 é, em suma, perfeitamente congruente com o corpus palamita no seu tratamento da co-processão do Espírito, apesar de ter abordado alguns temas distintamente agostinianos.

A recepção do tomismo após São Gregório Palamás

Outra forma pela qual a oposição entre Oriente e Ocidente é comumente apresentada é em termos de incompatibilidade metodológica. Esta dicotomia particular tem Gerhard Podskalsky como seu principal expoente. Para Podskalsky, o triunfo do palamismo representa o escanteamento da razão e a derrota de qualquer abordagem da teologia propriamente sistemática ou mesmo coerentemente ordenada. A teologia bizantina torna-se, na melhor das hipóteses, uma resposta ad hoc a problemas particulares baseados na experiência monástica. Mais comumente, consiste em pouco mais do que a reunião de testemunhos patrísticos, não raramente orientados para afirmações patrióticas de identidade nacional. Confrontados com a tradição teológica latina mais sofisticada, os bizantinos tinham apenas duas opções diante deles: espanto paralisante ou rejeição pura e simples.

Fonte: Marcus Plested, Orthodox Readings of Aquinas, Oxford University Press, Oxford, Reino Unido, 2012.

20 de abril de 2024

Como tirar proveito de seus inimigos



[A]penas observe seu inimigo e veja se, apesar de ser, em muitos aspectos, nocivo e difícil de manejar, ele não lhe oferece, de uma maneira ou de outra, meios de conquistá-lo e usá-lo como ninguém mais, e isso pode ser de grande proveito para você. [...] Assim, os tolos estragam até suas amizades, enquanto os sábios são capazes de fazer um uso adequado inclusive de suas inimizades.

* * *

Assim como as pólis, que são castigadas pela guerra de fronteira e pela contínua campanha, se contentam com a boa ordem e um governo sólido, também as pessoas que foram obrigadas, por causa de inimizades, a praticar uma vida sóbria, a guardar-se contra a indolência e o desprezo e a deixar algum bom propósito a cada ato, são insensivelmente levadas pela força do hábito a não cometer erros e são ordenadas em seu comportamento, mesmo que a razão venha pouco em seu auxílio. 

* * *

Se você deseja afligir o homem que o odeia, não o insulte como lascivo, efeminado, licencioso, vulgar ou mesquinho, mas comporte-se realmente como um homem, mostre autocontrole, seja sincero e trate com bondade e justiça aqueles que têm que lidar com você. E se você for levado a injuriar, afaste-se o máximo possível das coisas pelas quais você o atribui. Entre no âmago de sua própria alma, olhe em volta para ver se há alguma podridão lá, para que algum vício dentro de você sussurre as palavras do poeta trágico: Você quer curar os outros, cheio de feridas você mesmo?

* * *

Sempre que Platão se encontrava na companhia de pessoas cuja conduta era imprópria, ele costumava dizer a si mesmo: É possível que eu próprio seja como eles? Se o homem que insulta a vida alheia examinar cuidadosamente a sua própria vida e refletir, orientando-a e desviando-a para o caminho oposto, terá ganho algo útil com essa injúria. 

* * *

Pois há muitas coisas que um inimigo percebe mais rápido do que um amigo (pois o amor é cego em relação àquilo que ama, como diz Platão), e inerente ao ódio, junto com a curiosidade, é a incapacidade de segurar a língua.

* * *

Desta maneira, então, nos é possível mostrar as qualidades de gentileza e tolerância em nossas inimizades, e também franqueza, grandeza de espírito e bondade melhor do que em nossas amizades. Não é tão honroso fazer o bem a um amigo, mas é vergonhoso não o fazer quando ele está em necessidade; até mesmo renunciar a se vingar de um inimigo, quando ocorre uma boa oportunidade, é uma coisa bonita de se fazer. Mas no caso de um homem mostrar compaixão por um inimigo em aflição, ajudá-lo quando estiver em necessidade e mostrar alguma preocupação é zelo em favor de seus filhos e assuntos domésticos quando eles precisarem, digo que quem não sente afeição por tal homem por causa de sua bondade, ou não elogia sua bondade, tem um coração negro forjado de aço ou de ferro.

* * *

Mesmo que nossos inimigos por lisonja, artifícios, suborno ou traição pareçam colher sua recompensa na forma de influência desonrosa e sórdida na corte ou no governo, eles não serão motivo de aborrecimento, mas sim de alegria para nós, quando comparamos nossa própria liberdade e a simplicidade de nossa vida isenta de ataques indecentes. Pois todo o ouro que está sob e sobre a terra não vale tanto quanto a virtude, como diz Platão. [...] Mas como o amor é cego em relação àquilo que ama, como diz Platão, é são nossos inimigos que, por sua conduta imprópria, nos dão a oportunidade de ver as nossas condutas, não devemos deixar de lado nossa alegria por seus fracassos nem nossa tristeza por seus sucessos, pois devem ser empregados para algum propósito.

Fonte: Plutarco, Como tirar proveito dos seus inimigos, Editora Vozes, Petrópolis, Brasil, 2023.

18 de abril de 2024

Todos odeiam Tomás


Tomismo essencial

A exemplo de Mário Ferreira em suaFilosofia Concreta, o filósofo brasileiro Daniel Scherer também adota a experiência fundamental do ente como o ponto de partida para expor os elementos essenciais da filosofia de Tomás de Aquino e dos tomistas que a ele se seguiram, com especial ênfase ao filósofo argentino Álvaro Calderón.

Ente é, segundo Scherer, tudo aquilo que é ser (ou tudo aquilo que tem ser). Trate-se do primo cognitum, do princípio ontológico absoluto, e duvidar desse princípio implica forçosamente em afirmá-lo ao mesmo tempo.

No entanto, se o ente é aquilo que é ser, então poderíamos concluir, de maneira um tanto óbvia, que o ente é ser. Sim, mas a coisa não é tão simples assim. O ente é ser, é verdade, mas o ente não é o ser. O ente recebe seu ato de ser do Ser, ou seja, de Deus. Para usar os termos latinos de Tomás de Aquino, o ente recebe seu actus essendi do Ipsum Esse Subsistens (o Próprio Ser Subsistente, uma expressão tomista também usada por Edward Feser em sua quarta prova da existência de Deus). Em suma, nas palavras de Scherer, “a essência do ente é atuada por um ato de ser que lhe é participado pelo Ser”. Ao homem só lhe resta chegar ao Ser mediante o ente, e nisso reside uma das principais, senão a principal, síntese da filosofia tomista.

Quanto ao complexo tema da distinção entre ser e existência, melhor reproduzir excertos de Scherer e de Carlos Nougué, a quem, aliás, dedica sua obra:

O ser é aquilo por que algo é. A forma é aquilo por que o ente opera e que (conjugada à matéria nos entes sensíveis, e sem ela nas substâncias separadas) lhe dá seu modo específico de ser. O ser é dado ou participado à coisa por meio da forma, que é como um instrumento do ser.

[...]

A existência é o ser enquanto predicado a algo; destarte, pode ser dito que [a existência é] o ser alcançado pelo juízo, mediante “a composição de uma proposição, à qual a alma chega unindo um predicado a um sujeito” – não, por óbvio, no sentido de que a existência está apenas no juízo, dentro da mente humana, mas no sentido de que a alcançamos pelo juízo. [...] Quando dizemos, por exemplo, “este cão é”, tal “ser” que lhe predicamos é sua existência. Essa existência nós a tocamos com os dedos – é concreta – e podemos distingui-la apenas gnosiologicamente (e não in re) da essência do ente, porque quando abstraímos a essência “cão” a separamos (abstrativamente, e apenas assim) da existência sensível do animal.

[...]

O primeiro modo pelo qual se pode dizer ser significa o ser como ato de ser (actus essendi); o segundo modo significa o ser como ser em ato (in actu esse) ou fato de ser – isto é, significa aquilo a que, para todos os entes, menos (tecnicamente) Deus, também chamaríamos existência. A distinção entre essência e ser (esse) – diferentemente da distinção entre essência e existência – não é de razão, mas perfeitamente real. O ser é aquilo que, participado por Deus mesmo, à criatura, atua sua essência e lhe dá, como decorrência, existência. A essência do artefato tem ato de ser na mente de quem a pensa; este cão tem ato de ser nele mesmo – e de modo específico, dado por sua essência, mediante sua forma.

[...]

Como os entes criados variam quanto à forma (e, pois, quanto à essência, que a inclui, nos entes compostos), segue-se que os vários entes criados se distinguem quanto ao modo de ser (modus essendi). [...] Já a existência é uma decorrência indistinta para todos os entes criados de seu ato de ser. Todos os entes criados, independentemente de seu modus essendi, existem igualmente.

E de Carlos Nougué:

Pois bem, em geral, diferenciam-se o ser com ato de ser e o ser que se encontra no juízo. NOS ENTES CRIADOS, ademais, o ser com ato de ser é o que se distingue realmente da essência, distinção que não é cognoscível senão para os sapientíssimos; e o ser como ser em ato [por contraposição do ser com ato de ser] ou como fato de ser (o qual está para o ser que se encontra no juízo como a causa para o efeito) é o que não se distingue da essência senão secundum rationem (ainda que com fundamento in re), distinção que porém é evidente para todos. Em português, não é inconveniente que o segundo – ou seja, o que se encontra ao responder a questão na sit (se é) – se traduza também por existir, e seu abstrato por existência: trata-se aqui, insista-se, do fato de ser (ou seja, o fato de ser real e não irreal nem somente possível), não do ato de ser, de que decorre tal fato. Sucede porém que com respeito a Deus é sempre inconveniente usar existir ou existência: porque falando propriamente, só os entes criados ex-sistem (“provém de”), justo enquanto são ex-causas, ao passo que Deus é incausado. Em resumo, Deus é, mas não ‘existe’. – Ademais, nem sequer quanto aos entes criados se pode traduzir sempre o VERBO esse por ‘existir’. Por exemplo, o verbo ser em “ser cão é ser mais que ser erva” não é comutável por ‘existir’: com efeito, não é possível um “existir (como) cão é existir mais que existir (como) erva.

a) A essência será a resposta à pergunta inaugural da Filosofia: quid est? Essa resposta se desdobra em aspectos essenciais:

1) substância (é o ente enquanto tal, aquilo que existe em si mesmo) e acidentes (é o ente de um ente, aquilo que existe na substância e é percebido pelos sentidos). As substâncias podem ser de dois tipos: primárias (este homem) ou secundárias (gênero animal e espécie humana). Os acidentes podem ser de nove tipos: quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição/situação, hábito/estado, ação e paixão. São em total - substância mais os nove tipos de acidentes - as dez categorias aristotélicas.

2) distinção numérica

3) distinção específica

4) distinção genérica

b) A seguinte pergunta a ser lançado ao ente é quomodo est? A resposta serão os atributos ou aspectos do ente. Não estamos falando das qualidades, mas das propriedades do ente. A questão quomodo est divide-se consequentemente nas seguintes questões:

1) Quid est. Mas desta vez estamos interessados na natureza da propriedade, não na natureza do ente.

2) Quia. É a questão acerca da existência da propriedade desse ente. Chama-se assim porque, caso efetivamente pertença ao ente, diz-se quia ita est (porque é assim).

3) Propter quid. Por que razão. É a questão acerca da causa da propriedade. Este é o ponto de partida da ciência: a causa está no sujeito e a propriedade pertence a essa causa, portanto a propriedade pertence ao sujeito. A causa é um termo médio desse silogismo, ou seja, é um meio copulativo entre o sujeito e a propriedade. Como há uma relação de necessidade entre o sujeito e suas propriedades, segue-se que só pode existir a ciência do necessário.

Mas nem só de ciência vive o homem. Ele também precisa da arte, ou seja, ele também necessita manipular certas coisas para determinados usos. Aqui cabe apontarmos a diferença entre ciência e arte. A definição clássica de ciência é que ela é o conhecimento das coisas por suas causas. Em outras palavras, a ciência investiga tudo o que possa ter uma relação de necessidade na coisa, seja em suas partes e propriedades, seja em suas causas e efeitos. As ciências se dividem em dois tipos: (1) ciências especulativas (Filosofia da Natureza, Matemática e Metafísica – são as ciências propriamente ditas porque contemplam a ordem das coisas ao passo que não se preocupam em ordenar nada, ou seja, o intelecto se torna “plástico” ante o sujeito da ciência assim como a matéria é “plástica” ante a forma) e (2) ciências práticas (ciências morais e artes mecânicas).

Por outro lado, arte é “fazer” algo com retidão. Se nas ciências há uma relação matéria-forma entre o intelecto e o sujeito da ciência, nas artes a relação é mais de agente-fim entre a arte e o sujeito da arte. Elas podem ser de três tipos: (1) artes servis (ordenam os atos do corpo – são as artes propriamente ditas), (2) artes liberais (ordenam os atos da razão) e (3) prudência (ordenam os atos dos apetites).

Observa-se que há uma zona de solapamento entre ciência e arte. A Matemática, por exemplo, é uma ciência especulativa e uma arte liberal. A Engenharia Eletrônica, por outro lado, é uma ciência prática e uma arte servil. Como isso é possível? Ocorre que toda arte, embora sirva a um fim, também aplica uma forma a uma matéria. Por isso, há artes que apresentam um aspecto científico, e há ciências que apresentam um aspecto artístico, embora todas elas pendam mais para ciência ou mais para arte.

No entanto, há uma exceção: a Lógica. Ela é perfeitamente arte (porque sua matéria é universal, e não particular, como a Prudência, por exemplo) e perfeitamente ciência (porque, novamente, sua matéria é universal, e não particular, como a Metafísica, por exemplo). Tais distinções entre ciência e arte são importantes para que Scherer, com Santo Tomás e Calderón em punhos, possa traçar uma ordem das diversas disciplinas. E, claro, a primeira disciplina a ser aprendida tem de ser a Lógica, que será posteriormente encarnada, uma vez dominada, nas demais disciplinas (Filosofia Natural, Matemática, Metafísica etc.). A Lógica é a “alma das ciências”. Chama-me especial atenção a maneira como Calderón descreve a Filosofia: ela seria uma arte que “dispõe as ‘paixões da alma’”, ou seja, ela adequa as concepções do intelecto às coisas. Em outras palavras, as concepções do intelecto são “imagens” ou “representações” das coisas e, a partir daí, torna-se viável dispor (ordenar) as paixões da alma.

Dizíamos que a matéria da Lógica é universal. De fato, tal matéria não é outra coisa senão as próprias operações do intelecto. São elas: (1) intelecção ( conceito), (2) juízo (proposição) e (3) raciocínio (argumento/silogismo). As operações (1) e (2) são simples e intelectuais, enquanto a (3) é complexa e propriamente racional. Participam das operações da Lógica, além de sua matéria, os entes de razão, que são as intenções que a razão descobre nas coisas (gênero, espécie etc.) e que são propriedades não das coisas, mas dos conceitos.

Por falar em propriedades dos conceitos, há certas propriedades que designam modos ou aspectos do ente. São os famosos transcendentais. Enquanto gênero, espécie etc. são modos especiais do ente, os transcendentais são modos gerais que se aplicam a todos os entes. Chamam-se assim porque transcendem as já citadas dez categorias aristotélicas. São 5 em total, e se dividem em dois tipos (1a) transcendental negativo que se aplica ao ente em si (uno, pois não é múltiplo), (1b) transcendental positivo que se aplica ao ente em si (coisa, pois tem uma essência), (2a) transcendental negativo que se aplica ao ente em relação a outros entes (algo, pois não é outro), (2b) transcendental positivo que se aplica ao ente em relação a outros entes (verdadeiro, segundo o intelecto, e bem, segundo a vontade). Os transcendentais sublinhados são os clássicos, os mais estudados pelos filósofos.

Quanto à clássica doutrina da analogia entis, tão intensamente combatida pelo Pe. John Romanides, trata-se de um princípio basilar do tomismo. Cita Tomás de Aquino o Apóstolo Paulo nesse sentido: Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se veem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis (Romanos 1:20). Em suma, o que é por essência (i.e., Deus) é causa de tudo o que é por participação (i.e., as coisas criadas). Tomás chega a dizer que “a pedra imita Deus”.

Citamos acima a “Filosofia Natural”, às vezes também chamada de “Física Geral”. No entanto, não se trata da Física conforme a entendemos hoje. A Física moderna é uma espécie de “matematização da Cosmologia”, ou seja, uma subespecialização da Física Geral. O sujeito da Física Geral (ou Filosofia Natural) é o ente móvel, ou seja, o ente com mescla de potencialidade e atualidade. Não é o ente enquanto tal (o que os tomistas preferem chamar de ente simpliciter), cujo sujeito é próprio da Metafísica. Há 4 tipos de mudanças, de acordo com Tomás e Aristóteles, às quais correspondem as 4 partes da Filosofia Natural: (1) geração e corrupção, ou seja, criação e destruição de substâncias (→ Química), (2) alteração, ou seja, mudança na qualidade (→ Psicologia), (3) aumento e diminuição, ou seja, mudança na quantidade (→ Biologia) e (4) translação, ou seja, movimento de lugar (→ Cosmologia). A Psicologia, alerta Scherer, é uma ciência “anfíbia” e tanto faz parte da Física Geral (quando tem a ver com a “parte corporal” da alma) quanto da Metafísica (quando tem a ver com a “parte espiritual” da alma). Aqui Scherer observa que um dos traços característicos da modernidade, e que tem causado grande confusão e desperdício de tempo, é promover o divórcio radical entre as ciências modernas e a Filosofia da Natureza. Dado o que vimos acima, ou seja, que a questão propter quid do ente, ou seja, a busca de sua causa (ou de suas causas, se invocamos as famosas 4 causas aristotélicas), que inaugura a ciência, tem uma relação de necessidade e, portanto, de inerrância, em relação à essência das coisas. Negar o caráter científico à Filosofia Natural significa, ao mesmo tempo, negar cientificidade às ciências modernas. Nas palavras de Scherer: “As ciências particulares são espécies do gênero Física Geral [ou Filosofia Natural], e as espécies se seguem não per se, mas per accidens da qualidade genérica; portanto, alterações naquela não afetam esta”.

Scherer discorre sobre os elementos essenciais da psicologia tomista, mas não cabe aqui revisá-la uma vez que já temos estudos anteriores sobre isso (cf. Brennan, Ameal e Echavarría).

Cabe-me apenas citar alguns excertos que me parecem cruciais:

O conhecimento raciocinativo é incomensuravelmente menos perfeito que o conhecimento intelectivo. Santo Tomás chega a dizer que ‘a razão é algo defeituoso no intelecto’ (Summa contra Gentiles, I.1, cap. LVII, 8).

A abstração, operada pelo intelecto agente, da species intelligibilis a partir das imagens contidas na imaginação ou fantasia, fecunda o intelecto possível, que expressa interiormente, no verbum mentis ou verbum cordis, a essência da coisa conhecida – e isso nos dá o conceito. A inteligência capta a dimensão mais profunda do real, alcança aspectos absolutos e necessários da realidade, o que lhe permite transcender o imediato – o umwelt (mundo circundante) em que estão arrojados os animais – e obter uma visão desinteressada e não utilitarista das coisas. A inteligência é crucial para a felicidade.

No âmbito do intelecto possível, há três modalidades de abstração: (1) abstração do todo (típico da Filosofia Natural ou Física Geral), quando, por exemplo, abstrai a essência específica “homem” da matéria segunda, ou seja, da matéria assinalada pela quantidade, do indivíduo sensorial Sócrates; (2) abstração da forma (típico da Matemática), quando, por exemplo, abstrai “humanidade” de “homem”, ou seja, abstrai a forma da matéria sensível comum; e (3) abstração a modo de composição e divisão (típico da Metafísica), quando alcançamos a própria universalidade do ente. As abstrações (1) e (2) são negativas, no sentido de que “retiram” a concretude do ente, e por isso a Filosofia Natural e a Matemática são menos concretas do que o ente material. A abstração (3), no entanto, é positiva, no sentido de que “destacam” precisamente aquilo que de mais concreto tem o ente, e por isso a Metafísica é mais concreta do que o ente material.

Os indivíduos têm certos hábitos – que por serem disposições estáveis do indivíduo são estruturalmente de seu caráter – que desconhecem, total ou parcialmente. Quer dizer: não nos conhecemos bem à partida; podemos crescer em “autoconhecimento”. Por amor-próprio, podemos não reconhecer aspectos pouco elogiosos de nosso caráter. Santo Tomás fala mesmo de uma cegueira da mente (caetitas mentis), que se aproximaria da “repressão” ou “recalque” da psicanálise, mas com muita vantagem. Trata-se de um hábito mau causado por uma disposição contrária à verdade, uma anulação da atividade contemplativa – fruto, no fundo, da soberba (como mais tarde também Adler perceberia) e, mais particularmente, da luxúria. [...] Refletindo sobre as potências sensitivas, o intelecto ordena as paixões, que estão ligadas aos chamados “apetites”, nos quais se inclui toda a dimensão afetiva do ser humano.

O amor é a primeira e mais fundamental das paixões; mais que isso: é a causa de todas as outras. Santo Tomás o define como “o princípio do movimento que tende ao fim amado”. O amor causa o desejo, que, quando alcança o objeto e repousa, causa o gozo. Escreve Tomás: “O amor é o princípio de toda a afeição. Não há prazer e desejo senão quanto a um bem amado, como tampouco há temor e tristeza senão quanto a um mal que contraria o bem amado, e todas as afeições se originam destas.

As potências apreensivas precedem as potências apetitivas precisamente porque, como diz Santo Tomás, “a potência apreensiva apresenta à apetitiva seu objeto”. A apreensão, sensitiva ou intelectiva, de um objeto é o que fornece às potências apetitivas, sensitivas ou intelectivas, o telos em direção ao qual se movem. Isso é assim tanto para os homens como para os animais. [...] Já nos homens, a existência da vontade, que é o apetite racional, altera o quadro, porque os apetites sensitivos passam a participar da racionalidade, e são regulados por ela. Os apetites inferiores não movem se o apetite superior não consente. Nesse processo a cogitativa ou razão particular tem papel de destaque, já que é por ela que a mente regula os apetites sensitivos. Por isso, Cornelio Fabro não hesita em dizer: “A faculdade-chave da gnosiologia tomista é a cogitativa”. O apetite superior move pelos inferiores, mas estes não movem se aquele não o permite. [...] O poder que a razão e a vontade têm sobre os apetites é “político”, e não “despótico” (como o poder que a alma intelectiva tem sobre os membros do corpo, por exemplo), porque as potências apetitivas têm um poder próprio.

Sobre a questão do ordenamento de suas paixões, Scherer apresenta quatro tipos de homem: (1) O homem virtuoso, ou seja, aquele que tem virtus (força) sobre si mesmo, que tem autodomínio. As virtudes só podem ser desenvolvidas com o auxílio da graça. Sim, claro, é possível resistir aos movimentos da sensualidade de maneira isolada, mas por períodos curtos e descontínuos. (2) O homem continente é aquele que pontualmente contém uma ou outra paixão, mas a muito custo e de maneira incerta. As paixões como um todo ainda se encontram desordenadas nele. (3) O homem incontinente, ou seja, aquele que sabe o certo e o errado e, mesmo desejando o certo, não consegue conter-se. No entanto, a incontinência ainda não é vício. (4) O homem vicioso, ou seja, aquele no qual os vícios não têm conhecimento de si mesmos. Aqui cabe enumerar dois tipos de vícios: (a) vícios humanos (p.ex., desejar sexualmente uma mulher casada, que é algo natural) e (b) vícios patológicos ou “bestialidades” (p.ex., desejar sexualmente uma cabra, canibalismo, comer tijolo, roer as unhas etc.); podem ser causadas por uma constituição corporal defeituosa ou por maus costumes. É claro que todos os vícios, sejam 4a ou 4b, são redutíveis à noção de pecado. E qual a causa dos pecados? Diz Tomás: “O amor desordenado de si é a causa de todos os pecados”. No entanto, esse amor desordenado de si é, na verdade, um ódio de si mesmo porque o homem julga ser principalmente o que é segundo a natureza corporal e sensitiva. Por isso, ama-se segundo o julga ser, mas odeia-se naquilo que principalmente é, ou seja, sua mente (mens), e acaba desejando coisas contrárias à razão. O homem se esquece que não é ele quem criou sua vida e o fim último dela. A ideia tão em voga hoje em dia da educação para a responsabilidade não é senão a ideia de que a liberdade é a essência do homem. É o velho canto da sereia.

Nominalismo: os ingredientes do Modernismo e do Pós-Modernismo

Embora seja um termo muito inexato, uma das doutrinas do averroísmo é a ideia da unidade do intelecto. Criam os averroístas que o intelecto é uma substância separada do corpo segundo o ser, ou seja, que o intelecto em si é uma unidade. E, pior, que o intelecto possível é único para toda a humanidade (monopsiquismo). Há como que um “supraeu” coletivo no qual o homem individual não propriamente pensa, mas é “pensado” por ele. O dilema dos averroístas é que, se o intelecto fosse a forma do corpo, então uma vez morto o corpo, o intelecto forçosamente deveria morrer também. No entanto, o que os averroístas não captaram é que a forma é que dá o ser ao composto humano, e não o contrário. Graças à ideia central da metafísica de Tomás de que o ser é o actus essendi participado às criaturas mediante sua forma é possível compreender o intelecto como imortal.

No entanto, para harmonizar as doutrinas do averroísmo com a fé cristã, os averroístas adotaram a tese da dupla verdade, ou seja, pela razão o intelecto é uma unidade, mas pela fé o intelecto não é uma unidade.

Obviamente nada disso poderia ser tolerado pelos defensores da fé, mas ocorre que, ao reagirem em sua defesa, alguns autores jogaram a água do banho fora com criança e tudo, ou seja, acabaram abalando a doutrina tomista em seus fundamentos.

Dietrich de Freiberg: Ele negava a distinção entre ser e essência. Ele a considerava meramente gnosiológica, mas não ontológica. As consequências, à primeira vista inocentes, são gravíssimas: se a distinção é meramente gnosiológica, ou seja, se o ser apenas expressa gnosiologicamente um ato (e não é ontologicamente um ato), isso significa que o ser deixa de predicar analogicamente (ele perde a analogia entis) e passa a predicar univocamente (ele é reduzido à existência, que é algo que todo ente possui indistintamente). E mais: Dietrich esforça-se em pensar o ser como uma substância ao invés de pensá-lo como ato, ou seja, ele pensa no ser como uma “coisa”. Já vimos em Frederick Wilhelmsen as consequências de tal pensamento, embora claramente Wilhelmsen confunda ser com existência, o que tampouco corresponde à doutrina tomista padrão. Por exemplo, segundo Scherer:

O erro desse raciocínio é o seguinte: de uma essência pode deduzir-se a existência, mas não o modo de ser do ente. Dada uma essência, por óbvio não temos o nada; logo, temos um ente. Mas que tipo de ente? Qual é o modo de ser desse ente? Essa essência o é de um ente de razão, de um ente quimérico ou de um ente real, por exemplo? Está claro que não o sabemos. O ente real e o ente de razão existem igualmente (univocamente), mas não do mesmo modo.

Como Dietrich diferencia Deus e os entes criados, dado que não há diferença entre ser e essência? Em outras palavras, como é possível que Deus esteja em um “patamar” distinto do patamar dos entes criados se não há distinção entre o Ser divino (Ipsum Esse Subsistens) e o ser das criaturas (esse comum)? A saída que propõe é estabelecer uma hierarquia dos entes, ou seja, os entes se distinguem por suas relações recíprocas. Mas evidentemente isso não explica a diferença entre Ser divino e ser das criaturas. Embora Dietrich insista que Deus é o Criador, mas Ele teria criado o mundo mediante uma interior transfusio (transbordamento interior), e não ex nihilo. Em outras palavras, a criação não seria ad extra, mas faz parte de um universitas, um como que “pano de fundo metafísico”, no qual Deus e as criaturas estão inseridos. A inspiração em Plotino e Proclo parece clara.

Duns Scot. Ele negava a analogia, ou seja, para Scot somente há predicação unívoca e equívoca, e tudo que é supostamente análogo é, na verdade, “totalmente distinto”, isto é, equívoco. Na prática, Scot negava a analogia entis e o ser, para ele, é sempre unívoco. É sua famosa tese da univocatio entis. Note que negar a distinção entre ser e essência leva, inevitavelmente, à univocatio entis. Ora, se não há os dois patamares que mencionamos há pouco (Ipsum Esse Subsistens e esse comum), então não há analogia entre ambos e, portanto, “ser” teria de ser necessariamente uma predicação unívoca.

Mas, muito pior que isso: se não há nada além do ser, ou seja, não há um Ser ao qual os seres dos entes criados são análogos, então Ser e ser são unívocos: é o panteísmo. Isso ocorre porque, se o ser é unívoco, necessariamente se reduzirá a um gênero que necessita ser diferenciado por diferenças extrínsecas a ele. Lembre-se: o ser perdeu sua analogia e, portanto, não pode derivar sua diferença do Ser. Scot insiste que ente não é gênero, mas é transcategorial (Tomás também ensinava isso). Assim como o ente, há outros transcategoriais, as chamadas determinações transcendentais, que se aplicam ao ente. Entre elas estão não apenas os transcendentais convertíveis (por exemplo, o ente e o bem são convertíveis porque, para algo ser bom, é necessário antes de tudo ser), mas, segundo Scot, também os transcendentais disjuntivos (infinito/finito, necessário/possível etc.). São esses transcendentais disjuntivos que Scot aplica ao Criador e às criaturas a fim de distingui-las. E é ao estudo dos transcendentais que Scot atribui o objetivo da Metafísica. O problema, aponta Scherer, é que os transcendentais disjuntivos não fundam distinções no modo de ser dos entes (leia novamente o excerto acima em que Scherer menciona os modos de ser). Os transcendentais disjuntivos significam apenas a intensidade intrínseca do ente, ou seja, Deus se diferencia das criaturas apenas porque tem uma intensidade intrínseca específica. Há uma diferença enorme de grau entre Deus e as criaturas, mas apenas isso, de grau, e não de tipo.

Outro recurso que Scot lança mão é a distinctio formalis (distinção formal). Vimos algo sobre isso brevemente na exposiçãode Edward Feser. A ideia de Scot é que, no plano gnosiológico, há uma terceira faixa da realidade, que não é lógica nem real, mas formal. Essa realidade formal é composta de supostos “conteúdos intencionais” necessários para o conhecimento. Mas para Tomás, “a forma na mente representa a forma na coisa porque ela é uma semelhança da própria forma da coisa, que enquanto causa formal atua nossa potência cognitiva”. Em outras palavras, a forma na mente não é uma forma. “Entre o intelecto e a realidade interpõe-se o campo minado dos ‘conteúdos intencionais’, o qual deve ser palmilhado com o auxílio de uma crítica do conhecimento humano, e não sem o risco de que essas minas representacionais explodam o caráter objetivo do mesmo conhecimento. Sem o artifício da distinctio formalis, o idealismo moderno não poderia surgir”. O hilemorfismo perde força e abre espaço para a “hecceidade”, que, em lugar da matéria, é o que supostamente explicaria a individuação dos entes.

A consequência do escotismo é uma espécie de “sublimação” da fé natural e o desvanecimento da teologia racional em favor de uma teologia fideísta, ou seja, potencializa-se o voluntarismo em detrimento do intelecto. No entanto, para Tomás, Deus não quer simplesmente porque quer, mas quer porque o que quer é bom. É a própria bondade de Deus que causa Seu querer. Isso é importante entender para deixar claro que Deus difunde na criação, na medida do possível, Sua bondade por semelhança. Se Deus, como querem os escotistas, age simplesmente porque quer, então somos levados a suspeitar que neste mundo podem não ser realizados os conteúdos conhecidos por Deus, o que abre a possibilidade para mundos possíveis. Este mundo pode ser um de muitos mundos. Aliás, Deus pode não apenas querer o bem, mas querer o mal. Eis uma das chaves que abrirá a caixa do liberalismo. Scot, por exemplo, defendia que a alma de Cristo era pecável.

Guilherme de Ockham: Ele resolveu a “querela dos universais” propondo o nominalismo, ou, mais precisamente, que os universalia sunt post res. Os universais seriam meros nomina ou flatus vocis (sopros vocais). Ockham renuncia às coisas e fica apenas com os seus símbolos: não existe ser, unidade, ordem, verdade, necessidade, bondade ou justiça. Tudo isso seriam realidades criadas pelo homem. O homem passa a se ver como um ser “absoluto”, ou seja, solto e apartado da ordem real. É um ser exilado em si mesmo, como diz Scherer.

[N]esse ambiente, cresce o fenômeno do devocionalismo, de caráter sentimental e antilitúrgico. O culto tradicional consiste em aconher a intervenção salvífica de Deus que se completou em Cristo e é atualizada sacramentalmente. O devocionalismo consiste em colocar a intensidade dos próprios sentimentos como sinal de salvação, à margem da mediação sacramental. O sentimentalismo das devoções, pela sua liberdade e ruptura com o culto externo, foi uma saída atraente para muitos. Porém o devocionalismo, por sua carência teológica, era um abrigo para toda sorte de superstições.

E segundo Christopher Dawson:

[...] ’A Reforma Luterana’, escreveu Nietzsche, ‘em toda a sua extensão e em todo o seu escopo, foi a indignação do simples contra algo complicado. Foi a ‘revolta espiritual dos camponeses’. Consequentemente, o trabalho religioso de Lutero de reforma e de simplificação equivaleu à desintelectualização da tradição católica.

Racionalismo e antirracionalismo: modo de preparo da Modernidade e da pós-Modernidade

Racionalismo Modernismo

O objetivo da filosofia de Bacon, segundo o próprio, é “estender o poder e o domínio do gênero humano sobre todo o universo”. A meafísica antiga, para ele, é inútil porque é especulativa ao invés de pragmática. A experiência tem de ser substituída pelo experimento, ou seja, a experiência direta do real tem de ser substituída pelo experimento científico. Abaixo a Metafísica, viva as técnicas e as ciências. A realidade não é de confiança e, portanto, tem de ser reordenada pelo novo método que se inaugura.

Mas será Galileu Galilei o principal expoente da matematização do real. Ocorre que a medição é apenas um recorte do real e, portanto, é apenas uma ficção humana. O que Galilei chamava de “qualidades primárias” eram, na verdade, as partes mensuráveis do real e, portanto, arbitrariamente elevadas à condição de “objetivas”. A ordem se inverte: o recorte passa a ser real enquanto a realidade passa a ser mera ilusão. Eis o mito sobre o qual se assenta as ciências modernas.

Descartes, por sua vez, elevará o pensamento humano de garantidor da verdade para garantidor da existência individual. Seu pensamento é mais evidente que sua existência (cogito ergo sum). Ademais, Descartes avançou formidavelmente a matematização do real.

No entanto, será Kant que dará o golpe de misericórdia na Metafísica. Ele eleva a ciência resultante desse método à condição de imagem da realidade, mas não só: essa imagem será, em verdade, a própria realidade. Se há uma realidade para além do que se conhece cientificamente, não a conhecemos. É apenas uma hipótese. Segundo Scherer, para Kant, “O ente não se nos apresenta tal qual é, mas apenas tal qual se nos afigura depois de ser formatado pelas formas puras da intuição sensível, quais sejam, o tempo e o espaço. É nossa constituição subjetiva o que determina a forma do fenômeno; a coisa, tal qual é em si mesma, é-nos inacessível”. Ademais, “Kant estabelece que todo conhecimento depende da unificação de nossas representações feita a partir de uma esquemática racional a priori”. Tal esquemática é composta fundamentalmente por conceitos puros, isto é, as famosas categorias originárias ou primitivas do entendimento: unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causa, comunidade, possibilidade, existência e necessidade. A coisa-em-si, coitada, está totalmente fora do alcance do conhecimento. O que conhecemos é o que nossa constituição subjetiva, perfazendo a unidade transcendental, fornece. A unidade do real perdeu-se nas coisas-em-si. Scherer conclui sobre Kant: “A Filosofia de Kant é um atentado ao senso comum; um ataque à tessitura da experiência humana mais básica do universo”. Somente o mundo dos fenômenos é real. A ordem do real tal como entendida pelos aristotélicos-tomistas é produto da mente humana.

A esta altura está claro que não é o intelecto que deve moldar-se docilmente à realidade (adaequatio intellectus rei), mas, agora, é o intelecto (“razão”) que tem a tarefa de ativamente ordenar a realidade que lhe é apresentada. No âmbito do racionalismo, o elemento garantidor da verdade não pode mais ser a realidade, já que a coisa-em-si é incognoscível, mas passa a ser a concordância inter pares de uma mesma fantasmagoria racional a priori.

Schopenhauer assume os postulados de Kant e chama o fenômeno de “representação” e a coisa-em-si de “vontade”. Explica Scherer:

Se o mundo do fenômeno, raciocina [Schopenhauer], é a seara da razão e da causalidade, a coisa-em-si, é claro, só pode ser o que escapa a essa dupla determinação. O noumenon, portanto, é o caldo alógico e irracional em que boiam nossas representações científicas. Enquanto não é conhecido, o mundo é uma força puramente volitiva, cega, bruta e sem finalidade, um esforço sem repouso que se revela nos corpos. A vontade é o elemento primordial de tudo, verdadeira essência do mundo, e a base do ser do homem. [...] Frágil como uma pluma, infinitamente perecível, o indivíduo importa à natureza apenas como instrumento de manutenção da espécie, por cujo serviço, ademais, só recebe, à guisa de paga, a morte certa e inevitável. A maior perfeição do homem representa apenas um aperfeiçoamento de sua capacidade de sofrer. A consequência de tais ideias só poderia ser um pessimismo tão radical que considera todo otimismo não apenas absurdo, mas ‘impiedoso’.

Antirracionalismo Pós-Modernismo

Se Francis Bacon pode ser considerado o precursor do racionalismo, Michel de Montaigne pode equivalentemente ser considerado o precursor do antirracionalismo. Diz ele que a razão é incapaz de captar a essência das coisas. Ou seja, nem os sentidos, nem a razão são capazes de garantir o que quer que seja. A Filosofia é mera poesia sofística. A saída para lidarmos com a realidade é o gesto estético, isto é, o desfrute sensualista. A virtude se alcança pela desordenação da alma. Privar-se dos prazeres é “exagerada virtude”: a receita de vida de Montaigne são o ócio e os prazeres.

No entanto, foram os três grandes empiristas que se encarregaram de sistematizar algo que pudesse se contrapor ao racionalismo: Locke, Berkeley e Hume. Este último alcançará o ápice do ceticismo ao propor que as percepções da mente humana se dividem em duas: os pensamentos (ou “ideias”) e as impressões. A diferença entre ambas é mera questão de vivacidade: as impressões são mais vívidas que as ideias. É óbvio que Hume concluirá que nenhum conhecimento é seguro. Nem mesmo o “eu” possui realidade substancial.

Rousseau aprofunda o antirracionalismo de Montaigne enquanto, na Filosofia, Fichte elege o “eu transcendental” como a suprema realidade e abole a coisa-em-si.

Liberalismo: o prato está pronto

O subjetivismo (se moderno ou pós-moderno não importa) tem uma consequência prática: o liberalismo. Mas não exatamente o que chamamos atualmente de liberalismo, aquele que grassa nos movimentos políticos – ele também está incluído aí, claro – mas um liberalismo fundamental. Esse liberalismo fundamental é a doutrina acerca dos fins do homem e da sociedade.

O liberalismo fundamental, apoiado firmemente sobre o subjetivismo do qual versamos acima, estabelece que a liberdade é a faculdade humana de eleger o bem e o mal. O liberalismo não mais é entendido como a potência para a escolha do bem, como ensinava Tomás de Aquino. Segundo a doutrina tradicional, a liberdade deve libertar o homem dos grilhões das paixões. Mas só há “grilhões” se há um mundo real no qual o Ser se atualize. Uma vez que o mundo real não existe, então o sujeito humano não vê sentido em escolher o bem. Ele precisa agora blindar sua nova liberdade de eleger para si o que é bem e o que é mal. Tal blindagem virá do capitalismo, do socialismo, do fascismo, do autoritarismo, não importa. O que verdadeiramente importa é blindar seu novo mundo subjetivo de quem quer que ameace introduzir um bem objetivo e universal ao qual terá de curvar-se necessariamente.

É possível libertar um homem das grades de uma prisão, mas não de sua forma entitativa. Isso seria como querer libertar um triângulo de sua triangularidade, o que obviamente seria destruí-lo. Só há liberdade na obediência à forma. [...] É verdadeiramente livre quem ama seus limites entitativos, porque entende que são eles os que lhe dão contornos; são eles os que o livram do caos da desumanidade.

Fonte: Daniel Scherer, A raiz antitomista da modernidade filosófica, Edições Santo Tomás, Formosa, Brasil, 2021.