26 de janeiro de 2015

A subclasse


Um espectro assombra o mundo ocidental: a “subclasse”.

Essa subclasse não é pobre, ao menos pelos padrões que prevaleceram ao longo de grande parte da história humana. Existe, em graus variados, em todas as sociedades ocidentais. Como todas as outras classes sociais, beneficiou-se enormemente do grande aumento geral da riqueza dos últimos cem anos. Em certos aspectos, de fato, desfruta de comodidades e confortos que dariam inveja a um imperador romano ou a um monarca absolutista. Também não é politicamente oprimida: não teme dizer o que pensa nem tem medo de ser surpreendida por forças de segurança durante a madrugada. Sua existência, no entanto, é miserável, de um modo especial de miserabilidade que lhe é próprio.

Por ter trabalhado anteriormente como médico em alguns dos países mais pobres da África, bem como em comunidades pobres do Pacífico e na América Latina, não hesito em dizer que o empobrecimento mental, cultural, emocional e espiritual da subclasse pobre ocidental é maior que o de qualquer outro grande grupo de pessoas que já tenha conhecido em qualquer outro lugar.

O comportamento humano não pode ser explicado sem fazer referência ao significado e às intenções que as pessoas dão aos próprios atos e omissões; e todos possuem um Weltanschauung, uma visão de mundo, saibam ou não disso.

A ideia de que a pessoa não é agente, mas uma vitima indefesa das circunstâncias, ou de grandes forças ocultas sociológicas ou econômicas, foi propagada incessantemente por intelectuais e acadêmicos que não acreditam nisso no que diz respeito a eles mesmos, é claro, mas somente no que concerne a outros em posições menos afortunadas. Há nisso um elemento considerável de condescendência: algumas pessoas não chegam à condição plena de humanos.

Na verdade, a maioria das patologias sociais apresentadas pela subclasse tem origem em ideias filtradas da intelligentzia. O clima de relativismo moral, cultural e intelectual – um relativismo que começa como um modismo de intelectuais – foi comunicado de maneira exitosa para aqueles menos capazes de resistir aos seus devastadores efeitos práticos. O relativismo linguístico e educacional ajuda a transformar uma classe em casta – quase em uma casta de intocáveis.

Os intelectuais dizem não existir alta ou baixa cultura: a própria diferença é a única distinção reconhecível. Esse é um ponto de vista disseminado pelos intelectuais ávidos por demonstrar entre si opiniões abertas e democráticas.

A falta de sinceridade dos elogios que os intelectuais fazem à baixa cultura é óbvia para qualquer pessoa que tenha um conhecimento mínimo da grandiosidade dos feitos humanos. O fato é que a cultura aviltada recebe tamanha atenção e elogios sérios que ilude seus consumidores, levando-os a supor que não existe nada melhor que aquilo que já conhecem e de que gostam. Tal adulação é, portanto, a morte da aspiração, e a falta de aspiração é, certamente, uma das causas da passividade.

Será que o destino dessa subclasse importa? Se a miséria de milhões de pessoas importa, então, certamente, a resposta é sim. Mesmo se estivermos satisfeitos em confiar o destino de tantos cidadãos ao purgatório da vida nos bairros pobres, esse não seria o fim da questão.

No mundo moderno, más ideias e suas consequências não podem ficar confinadas ao gueto. O relativismo cultural se alastra muito facilmente. Os gostos, a conduta e os costumes da subclasse estão se infiltrando na escala social com surpreendente rapidez. No que diz respeito à moda do vestuário, dos adornos corporais e da música, é a subclasse quem, de modo crescente, imprime o ritmo. Nunca antes aspirou-se alcançar níveis culturais tão baixos.

O padrão desastroso de relações humanas que existe na subclasse também tem se tornado comum na escala social mais alta. A violência e posterior abandono são, em geral, muito previsíveis dados o histórico e a personalidade dos homens da subclasse, mas as mulheres que foram tratadas dessa maneira dizem que se abstiveram de julgar o companheiro porque é errado fazer juízos de valor. Se, contudo, não forem capazes de emitir um juízo sobre o homem com quem viverão e com que terão filhos, sobre o que emitirão juízos? “Não deu certo”, dizem, e o que não deu certo foi o relacionamento, que concebem como algo possuidor de existência independente das duas pessoas que o compõem, e que exerce uma influência nas suas vidas como se fosse uma conjunção astral.

Para a subclasse, a vida é sorte.

Fonte: Theodore Dalrymple, A Vida na Sarjeta, É Realizações Editora, São Paulo, 2014, p. 16-23, adaptado.

21 de janeiro de 2015

O inconsciente espiritual


Nos séculos XIX e XX, a noção de inconsciente psíquico foi objeto de teorias desenvolvidas e poderosamente estruturadas (Freud, Jung, Adler etc.) que podem levar a acreditar que se trata de uma descoberta recente.

Na realidade, a existência de um inconsciente psíquico é um fato conhecido desde a mais remota Antiguidade. Platão, por exemplo, faz alusão a isso, pondo em relação o sonho com os desejos insatisfeitos ou a agressividade não expressa e apresentando uma concepção que antecipa a do recalque.

Podemos dizer que existe também um inconsciente corporal que é constituído por tudo o que existe, age ou se produz em nosso corpo mas não tem intensidade suficiente para que o percebamos e dele tomemos uma consciência clara (Leibniz chamava isso de “pequenas percepções”).

Do mesmo modo existe um inconsciente espiritual.

A noção de inconsciente espiritual foi evocada principalmente pela psicanálise existencial, cujos principais representantes foram Igor Caruso, Wilfried Daim e Viktor Frankl. Viktor Frankl consagra ao inconsciente espiritual um breve capítulo em seu livro O Deus inconsciente; mas no que se refere à espiritualidade ele fica em generalidades, o que sem dúvida lhe era imposto por seu projeto de elaborar uma psicoterapia que fosse aplicável aos seres humanos de todas as crenças. Sua tese principal é que toda neurose resulta de uma perda do sentido da existência, e que a única terapêutica adequada é a “logoterapia”, que visa a encontrar o sentido perdido, que reside em Deus. Quanto a Igor Caruso, ele considera que toda neurose resulta de uma absolutização (e portanto de uma deificação) de valores relativos, e que a terapêutica consistirá pois em dar de novo aos valores da existência sua justa dimensão. Seu discípulo Wilfried Daim retomou esta concepção. Segundo ele, o ser humano, constituído por uma relação vital com o Absoluto, desencadeia em si conflitos psíquicos cada vez que confere um caráter absoluto a seres relativos e substitui por ídolos o único absoluto que é Deus.

Como vemos, esses autores permanecem no quadro da psicopatologia, isto é, da parte da psicologia que se interessa pela origem, pela forma, pela evolução e pelo tratamento das doenças psíquicas. Sua referência a Deus, ainda que reivindique judaica no caso de Frankl e cristã no caso de Daim e Caruso, permanece muito geral.

Podemos por isso dizer que o inconsciente espiritual é uma noção que, no próprio quadro da espiritualidade cristã, não chegou até hoje a ser objeto de nenhum estudo sistemático. Entretanto, as referências ou as alusões ao que podemos designar como um “inconsciente espiritual” são suficientemente numerosas nas fontes tradicionais (especialmente nos escritos patrísticos) para que possamos considerar que há na espiritualidade cristã oriental uma concepção subjacente do inconsciente espiritual e que ela pode servir para compreender uma grande parte não somente da vida espiritual, mas ainda, por via de consequência, da psicologia e do comportamento humanos que lhe são relativos, inclusive naqueles que não entendem seu ser e seu modo de existência em relação a Deus ou em relação a uma espiritualidade definida.

Notamos que a relação do ser humano com Deus pode ser positiva ou negativa. A esta distinção correspondem duas dimensões do inconsciente espiritual.

A dimensão positiva do inconsciente espiritual é constituída por tudo o que no ser humano o liga, o une a Deus e o orienta para Ele, sem que ele esteja consciente; por estas razões podemos qualifica-lo de “inconsciente teófilo”. Sua dimensão negativa é constituída por tudo o que desprende, separa, afasta o ser humano de Deus e o orienta em um sentido oposto a Ele, sem que ele esteja consciente; podemos assim qualifica-lo de “inconsciente deífugo”.

Essas duas dimensões do inconsciente espiritual moram juntas em todos os seres humanos, segundo proporções variáveis, relativas a cada um, no grau de consciência que ele tem de uma e de outra, mas também na sua história pessoal pela parte de inconsciente relativa a esta história.

No homem decaído que vive longe de Deus e de toda preocupação espiritual o inconsciente atinge o mais alto grau.

No cristão que leva uma vida espiritual, a vida ascética (no sentido amplo em que a entendemos) permite uma tomada de consciência progressiva e, em consequência, uma redução do inconsciente espiritual em suas duas dimensões. No asceta que atinge a impassibilidade, a dimensão negativa do inconsciente espiritual desaparece, do mesmo modo que sua dimensão positiva, em proveito de uma plena consciência do que ele é em sua relação com Deus.

As duas dimensões do inconsciente espiritual não devem ser concebidas como realidades estáticas, mas como realidade dinâmicas, não somente no sentido de que são suscetíveis de um aumento ou de uma redução em relação à consciência que a pessoa tem, mas igualmente no sentido de que têm uma atividade e um dinamismo próprios quanto à sua forma e ao seu conteúdo.

Essa atividade tem uma influência sobre a vida espiritual da pessoa, mas também sobre sua vida psíquica, na medida em que está é relativa àquela.

O inconsciente teófilo

O inconsciente teófilo pode ser compreendido, de maneira geral, sob quatro aspectos.

a)      A díade logos-tropos

A dimensão positiva do inconsciente espiritual é constituída fundamentalmente, em cada ser humano, pelo logos de sua natureza.

O “logos da natureza” do ser humano é a definição da natureza humana segundo o projeto divino, tal como Deus a concebeu e quis antes dos séculos em Seu Desígnio, e portanto também como Ele a realizou criando-a.

Portanto, é o que define fundamentalmente, caracteriza essencialmente o ser humano ao sair das “mãos de Deus”. É também a natureza humana em sua qualidade de criação ‘boa”, em sua (relativa) perfeição original.

Mas o logos da natureza define também sua finalidade, isto é, o fim que Deus lhe determinou, fim já pontencialmente ou idealmente realizado segundo a ideia-vontade de Deus, que corresponde, pois, para a natureza à norma de sua perfeição, a um ideal de realização ou de acabamento de si mesma, da qual é portadora e para a qual ela tende. Assim, o “logos da natureza” é ao mesmo tempo “uma lei natural e divina”.

Entre todas as faculdades do ser humano dinamicamente orientadas para Deus, o intelecto (noûs) vem em primeiro lugar. Máximo evoca o impulso natural do intelecto para Deus e observa que ele tende, por esse impulso natural, a procurar Deus, sublinhando também a capacidade natural desta faculdade de gozar espiritualmente de Deus no fim desse impulso. De acordo com um modo que corresponde À sua natureza, a razão tem a mesma tendência.

Em segundo lugar vem o desejo. Máximo Confessor observa que temos “um desejo natural de Deus”. E associando as faculdades de conhecer e de desejar ele escreve: “Deus, que fundou com sabedoria toda natureza e que, secretamente, inseriu em cada uma das essências racionais  como faculdade primeira o conhecimento dEle mesmo, deu-nos também, a nós humildes seres humanos, como Mestre generoso, segundo a natureza, o desejo voltado para Ele e o amor [dEle], tendo-lhe associado naturalmente o poder da razão, pela qual nos é possível conhecer facilmente os modos de realização [desse] desejo e de não deixar escapar por erro o que nos esforçamos para obter”.

Em terceiro lugar vem o poder irascível, que Máximo associa à razão e ao desejo, para lhe reconhecer Deus como finalidade de seu uso: “O fim da operação raciocinante da alma é o verdadeiro conhecimento; o fim da operação desejante, o amor, o fim da operação irascível, a paz [...] Daí vem que, naturalmente, tenhamos a capacidade de raciocinar para buscar Deus, que tomemos a faculdade desejante (epithumia) para desejá-lo, só a Ele, e que o poder irascível (thumos) nos seja concedido, a fim de lutar por Ele só”.

A estas faculdades principais que desempenham um papel essencial na orientação dinâmica da natureza humana para Deus, é necessário acrescentar a vontade (thelema, thelesis), que depende, como sublinhou Máximo, da essência ou da natureza e não da hipóstase. Segundo Máximo, a vontade é “uma orientação geral da natureza racional comum para o bem conforme esta natureza, uma harmonia com o que lhe dará seu ser acabado”, isto é, Deus. “Enquanto natural”, a vontade humana não somente “não é contrária a Deus”, mas “quando ela é típica e movida nativamente [isto é, segundo a sua natureza] está em sintonia [com Deus]” e tende para Ele como Aquele em quem a natureza encontrará sua realização. Podemos, pois, dizer que “a deificação [é] o fim supremo ao qual tende a vontade humana”, do mesmo modo que a deificação corresponde à “plena satisfação do desejo profundo do ser humano pelo retorno a seu princípio”.

É aí que intervém, no pensamento de São Máximo, em relação com a de logos, a noção de tropos.

Enquanto o logos refere-se À essência ou à natureza, o tropos é relativo à hipóstase ou à pessoa.

Enquanto o logos define a natureza, os poderes (ou faculdades) desta e as atividades (ou operações) destes poderes, o tropos define a maneira pela qual essa natureza existe e a maneira (ou o modo) pela qual suas faculdades se exercem ou operam. Enquanto o logos é imutável, o tropos varia segundo as pessoas. Ele depende da disposição da vontade (gnome) [7] assim como da escolha (proaireses) de cada um, e as expressa em uma maneira de ser ou em um comportamento (é o sentido elementar da palavra tropos) que toma seu sentido relativamente ao logos; este, como vimos anteriormente, define a norma daquilo que o ser humano é segundo a sua natureza verdadeira, tanto quanto À constituição essencial desta quanto a seu fim ou à sua realização de acordo com a ideia-vontade de Deus. Para São Máximo, é pelo modo de realização da operação natural que “é conhecida a diferença daqueles que agem e das coisas que são efetuadas, a favor ou contra a natureza”, e que é segundo o tropos que “se é justo ou injusto, mais ou menos, como isto ou como aquilo, segundo nos prendemos mais à natureza ou nos afastamos mais dela”.

Enquanto a pessoa leva um modo de existência que contradiz o logos de sua natureza, este logos continua a existir nela e a orientar dinamicamente sua natureza para Deus. Ele constitui um inconsciente espiritual que possui, de algum modo, sua vida e seu dinamismo próprios, continuando a orientar a natureza para Deus, mesmo quando um modo de existência contrário a Deus é levado pela pessoa que vide no pecado, nas paixões e no esquecimento de Deus.

Podemos dizer que o estar mal constitui um recalque ativo e permanente das tendências da natureza por um modo de existência contrário a essas tendências.

Produz-se então, no fundo do ser humano decaído, um conflito, igualmente inconsciente, por um lado entre ao que a natureza aspira profundamente e tende através de todas as suas faculdades e, por outro lado, a atividade que a pessoa dá a estas faculdades, fazendo uso delas em um sentido contrário ao logos da natureza.

Daí que o ser humano se torno assim inimigo de si mesmo, como sublinharam vários Padres, inclusive São Máximo, alimentando pelo pecado e pelo modo de vida que lhe está ligado um conflito entre o que ele quer ser em sua natureza profunda e o que ele escolhe ser em seu modo de existência decaído.

No ser humano que vive no pecado e nas paixões, o livre-arbítrio contradiz e recalca em permanência a vontade de sua natureza. Esta não pode se impor, porque ela depende do livre-arbítrio da pessoa para que possa ou não se expressar e se realizar.

O logos da natureza se expressa, entretanto, por um lado, nas tendências positivas e boas do ser humano, como por exemplo num certo sentido do bem e do mal ou da justiça e da injustiça, no amor experimentado por seus pais, por seus filhos ou por seu cônjuge, na amizade, nos sentimentos de piedade e de compaixão, nas manifestações de ajuda mútua ou de solidariedade, na busca da justiça e da paz etc. Mas, mais frequentemente, essas tendências, não estando mais ligadas conscientemente a seu princípio e a seu fim em Deus, perdem sua qualidade espiritual.

O logos da natureza se expressa, por outro lado, de uma maneira desviada nas atitudes, nos cultos e nos ritos pseudo-religiosos aos quais se entregam, em graus diversos e de uma maneira muitas vezes inconsciente, todos os seres humanos, sem exceção. Poderíamos falar aqui de um “retorno do recalcado”, na medida em que a orientação dinâmica para Deus, que caracteriza fundamentalmente o logos da natureza humana e é, portanto, ativa em todo ser humano, assim mesmo chega a se expressar no nível consciente, mas em uma forma desviada, travestida, deformada, faltando à sua finalidade verdadeira.

b)      A díade imagem-semelhança

A díade logos-tropos, analisada sobretudo por São Máximo Confessor, corresponde , nele e em muitos outros Padres gregos, a uma díade mais conhecida: a imagem (eikon) e a semelhança (omoiosis) de Deus.

Geralmente os Padres consideram que é fundamentalmente por sua alma intelectiva e racional que o ser humano é criado à imagem de Deus.

O ser humano é criado igualmente à imagem de Deus por sua capacidade de autodeterminação, que, como vimos, se identifica, para São Máximo, com a vontade natural.

Entre as propriedade constitutivas da natureza do ser humano que são participações naturais nas propriedades divinas e fazem dele um ser à imagem de Deus figuram, pois, o fato de ser inteligente e razoável, assim como a independência (autodespoton) e a autodeterminação (autexousion).

Algumas dessas propriedades constitutivas da imagem de Deus referem-se ao começo, outras ao fim do ser humano. São Máximo Confesor considera ser a imagem de Deus o logos do ser humano, o qual, como vimos, define as características essenciais do ser humano, mas também o que ele é, ideal e potencialmente, segundo a vontade de Deus, seu fim assim como a tendência a este fim. Figuram igualmente como componentes da imagem de Deus propriedades que da mesma forma permitem ao ser humano realizar seu fim. É assim que Máximo une à imagem o movimento em direção ao ser, a capacidade de buscar Deus e de tender a Ele. São Máximo tem, pois, uma concepção da imagem de Deus no ser humano eminentemente dinâmica. Para ele, mas também para outros Padres gregos, a imagem é um conjunto de capacidades que permitem ao ser humano realizar a semelhança, e ela o orienta já dinamicamente para essa realização.

A semelhança, mesmo que não conheça solução de continuidade em relação à imagem, é de uma outra natureza. Enquanto a imagem refere-se à natureza, a semelhança é relativa à hipóstase. Enquanto a imagem faz parte da constituição natural do ser humano e lhe é dada de imediato pelo Criador, não supondo nenhuma intervenção de sua parte, a semelhança no início só é potencial; ela pede sua participação pessoal para ser realizada e é, neste sentido, tributária de seu livre-arbítrio. De acordo com São Máximo, enquanto a imagem dependo do logos de sua natureza, a semelhança depende de seu gênero de vida, em outras palavras do modo (tropos) de sua existência.

Enquanto Deus possui por natureza as qualidades que correspondem às virtudes, o ser humano é chamado a possuí-las pela participação. Cabe-lhe por disposição querer e por escolha adquiri-las, e isto fazendo-se pessoalmente o imitador de Deus. Enquanto a posse da imagem é imediata, a posse da semelhança é o fruto de um devir, não pode ser adquirida senão no final de um esforço ascético constante pelo qual o ser humano procura se conformar ao Arquétipo divino, e em consequência de um modo de vida habitual conforme às virtudes que a constituem. De fato, pela vida segundo as virtudes, ligada à prática dos mandamentos divinos, o ser humano se torna semelhante a Deus.

c)       A alma naturalmente cristã

Um terceiro aspecto do inconsciente teófilo fará aparecer o caráter não somente religioso mas propriamente cristão da concepção do inconsciente que desenvolvemos.

Muitos Padres afirmam que é à própria imagem do Logos, do Verbo de Deus, que Adão foi criado, e que o próprio mistério da criação do ser humano à imagem do Logos liga-se ao mistério da deificação do ser humano no Verbo encarnado. Não há para o ser humano, desde a sua criação, a não ser um fim normal: a semelhança com Cristo, norma da realização de sua natureza, plena e claramente revelada na Encarnação de Jesus. O ser humano foi criado como ser “lógico” (logikos), isto é, racional, mas mais fundamentalmente como um ser cristológico, significando logikos para os Padres conforme ao Logos, ao Verbo de Deus. E os Padres chegam mesmo a afirmar que o ser humano foi criado não somente à imagem do Logos enquanto Deus, mas mesmo à imagem do Logos encarnado, do Cristo Deus e homem, e que ele tem por destino, desde a sua criação, por causa de sua própria natureza, tender com todo o seu ser a se assimilar ativamente a Cristo. São Nicolau Cabasilas escreve assim: “A natureza humana foi criada desde a origem em vista do Homem Novo, a inteligência e o desejo do ser humano são criados para o Cristo: recebemos a inteligência para conhecer o Cristo, o desejo para que sejamos atraídos para Ele e a memória para carregá-lo em nós. E isto ainda mais que Ele serviu de modelo à nossa criação. De fato, não foi o velho Adão o modelo (paradeigma) do Novo, mas o Novo do antigo (cf. Rm 5,14). Para nós, que o reconhecemos como nosso ancestral, o primeiro Adão passa como sendo o arquétipo da natureza humana; mas para Aquele que tem diante dos olhos todos os seres, antes mesmo que eles existissem, o ancestral é apenas a imitação do novo Adão. Ele foi criado à imagem e semelhança deste último”. Podemos pois dizer que “o ser humano tende ao Cristo não somente por causa da divindade de Nosso Senhor, mas também por causa desta outra natureza [a humana] que Ele possui”. São Gregório Palamás ensina no mesmo sentido: “Já a própria formação do ser humano desde a origem, criado à imagem de Deus, foi em vista do Cristo, a fim de que o ser humano possa, no tempo preciso, compreender nele o Arquétipo”.

(d) A graça

Uma outra dimensão do insconsciente teófilo no ser humano consiste na graça divina da qual ele participa. Esta graça está presente em diferentes graus e sob diferentes formas, se bem que se trata sempre da mesma graça, divina em sua natureza e em sua origem.

A presença ativa de Deus nos logoi dos seres corresponde ao que a teologia ortodoxa chama de energias divinas. Assim, São Máximo Confessor observa que o intelecto, na multidão dos logoi que pode perceber nos seres, se tiver as disposições requeridas, “contempla as energias de Deus”. De fato, explica ele, “em cada logos de cada coisa particular, e semelhantemente em todos os logoi segundo os quais todas as coisas existem, é Deus”, que entretanto não é nenhum dos seres e está acima de todos. “Toda energia divina significa Deus todo inteiro indivisivelmente através dessa energia”; mas, tudo “sendo todo inteiro e comumente em todos e particularmente em cada um dos seres, Deus o é sem parte nem partilha, não estando nem separado diversamente nas diferenças infinitas dos seres nos quais Ele está inerente, portanto nem contraído segundo a existência particular de um só, nem contraindo as diferenças dos seres segundo a única totalidade de todos, mas Ele é verdadeiramente tudo em todos, Ele que não sai nunca de Sua própria e indivisível simplicidade”.

As energias divinas, enquanto são comunicadas, dadas por Deus às criaturas, são comumente chamadas de “graça”.

Essas energias divinas que se manifestam em todos os seres da criação em graus diversos estão presentes no ser humano em um grau eminente, visto que ele ocupa a primeira fila entre as criaturas e é a única das criaturas feita à imagem de Deus. Essas energias divinas estão presentes no logos da natureza humana, mas também, bem entendido, na imagem de Deus no ser humano, que caracteriza fundamentalmente esse logos, e igualmente nas virtudes, que estão presentes na natureza de uma certa forma.

O inconsciente deífugo

São Macário nota o caráter inconsciente, para a maioria dos seres humanos, dos efeitos neles do pecado ancestral: “O pecado que se introduziu [pela desobediência de Adão] e que corresponde a um certo poder espiritual de Satanás e a uma realidade semeou todos os males. Sem ser descoberto, ele age no homem interior e nos seu espírito, e introduz a guerra nos pensamentos. Mas o ser humano ignora que ele age por instigação de uma força estranha. Ele imagina que tudo isso é natural e que se trata de suas próprias reflexões”. João o Solitário, ao ser questionado por Eusébio por que razão os seres humanos cuidam das doenças de seu corpo mas não se preocupam com as doenças de sua alma, responde que, sob o efeito do pecado, “eles se tornam incapazes de ver e de ouvir, mas [são] parecidos com mortos que não sentem nenhuma piedade por seu estado interior”. “Doentes que somos”, constata São João Clímaco, “não podemos diagnosticar [as doenças espirituais que estão em nós], ou por causa de nossa fraqueza, ou porque elas estão muito profundamente enraizadas”.

O ser humano decaído, na medida em que não tem consciência de seu estado doentio, negligencia deixar-se cuidar e afirma que não tem necessidade da cura que lhe propõem. Numerosos são aqueles “incapazes de sentir suas paixões. E como eles não as sentem não se empenham também em curá-las”, constata Santo Isaque. Eles resistem à medicina espiritual. “De fato, como aceitaria ser cuidado aquele que não se deixa convencer de que vive doente ou ferido?”, pergunta São Simeão. Ora, ficando inconsciente de seu estado, ele só o agrava. “A pior das doenças é aquela que consome um paciente sem que ele suspeite disso”, observa São João Crisóstomo, que aliás observa no mesmo sentido que “ignorar a si mesmo é a pior das loucuras e dos frenesis”.

A esse respeito, há assim uma distância considerável entre o pecador que é como um cego a seu respeito e aquele que progride na ascese. Enquanto este as desaloja nos recônditos mais escondidos de sua alma, aquele se crê isento delas desde que não atinjam proporções extraordinárias em relação ao estado de decadência médio da humanidade ambiente. É assim que São Macário observa: “Tanto tempo quanto um ser humano é retido nas coisas visíveis deste mundo, cercado das diversas cadeias da terra, arrastado pelas más paixões, ele não sabem nem mesmo que há um outro combate, uma outra luta, uma outra guerra dentro dele. De fato, só quando um ser humano levanta-se para combater e se libertar de todos os laços visíveis deste mundo [...] e começa a permanecer com perseverança diante do Senhor, esvaziando-se deste mundo, só assim ele pode conhecer o combate interior das paixões que se ergue nele, a guerra interior e os pensamentos maus. Como dissemos, tão longo tempo quanto alguém não luta, não renuncia ao mundo, não se desprende de todo o seu coração da cobiça terrestre, não quer se unir inteiramente e sem reserva ao Senhor, ele não conhece sem as astúcias secretas dos espíritos de malícia, nem as paixões escondidas nele. Mas ele é estranho a si mesmo, não sabendo que traz em si as chagas das paixões secretas”. Notemos que, de todas as paixões, é o orgulho que obnubila mais a consciência do ser humano e o leva a ser inconsciente de suas doenças, tanto das menores ou mais sutis como das mais importantes. “O orgulho”, diz São João Clímaco, “produz um total esquecimento dos pecados”. “A maioria dos orgulhosos”, constata ele ainda, “ignoram a si mesmos e acreditam ser impassivos; somente na hora da morte eles descobrem a sua pobreza”. Aliás, ao orgulho está ligado o que os Padres chamam de “mania de se justificar”, atitude pela qual o ser humano, em presença de seu pecado, recusa-se a reconhecê-lo como seu, recalca a consciência.

Não é apenas por não ser suficientemente desperto espiritualmente que explica o fato do ser humano ser total ou parcialmente inconsciente das paixões que o habitam. Frequentemente, como observa São Máximo Confessor, as paixões estão em um estado de anergesia (anergesia), em outras palavras, de inativação ou de sono. Tal estado pode durar mais ou menos tempo e fazer o próprio espiritual acreditar que está isento ou liberto desta ou daquela paixão, que faz algum tempo não se manifestou ou até mesmo nunca se revelou. Assim, pode se estabelecer na alma um estado de paz na verdade ilusório.

De fato, ao lado do estado de paz autêntico que resulta da impassibilidade (estado que atinge o ser humano no cume da práxis, quando ele está realmente liberto de toda paixão), pode existir, como assinala Evágrio, um falso estado de paz que resulta da retirada dos demônios, sobretudo quando eles estão seguros de possuir mesmo sua vítima, com um outro ponto de vista. É o caso por exemplo quando a vaidade ou o orgulho vêm tomar na alma o lugar de todas as outras paixões.

Pode acontecer também que o ser humano tenha a consciência abafada pelas atividades mundanas múltiplas e febris às quais ele se entrega, que suas paixões lhe sejam veladas por suas preocupações cotidianas que o impedem de considerar seu estado. “Graças a seu corpo”, nota neste contexto São Doroteu de Gaza, “a alma é distraída e aliviada de suas paixões. Mas “que venha um de vocês e que eu o feche em uma cela escura, que ele passe somente três dias sem comer, sem beber, sem dormir, sem ver ninguém, sem salmodiar, sem rezar, sem nunca se lembrar de Deus, e ele verá o que lhe farão as paixões”.

Quando o ser humano renuncia à vida mundana para se comprometer profundamente com a vida espiritual, é normal igualmente que paixões das quais ignorava a existência nele ou que lhe pareciam até então pouco desenvolvidas despertem e revelem-se então com toda a sua intensidade. “Não nos admiremos”, escreve São João Clímaco, “de nos ver mais sujeitos às paixões nos começos de nossa vida monástica do que o estávamos quando vivíamos no mundo. [...] De fato, os animais ferozes já estavam lá, escondidos, mas não se mostravam”. E Santo Talássio observa: “As piores paixões estão escondidas nas almas. Mas aparecem quando as coisas são repelidas”.

Este ensinamento de São João Clímaco evidencia o fato de que a paixão, enquanto não tiver sido totalmente extirpada, não somente subsiste na alma, mas nela se desenvolve sem que a pessoa tenha consciência disso; tomando incremento, ela adquire uma força que exerce uma pressão e a revelará com violência, assim que um objeto que lhe seja conveniente lhe der a ocasião de se expressar, todavia com a condição de que o ser humano esteja bastante desatento para lhe deixar o caminho livre e não a dominar pela força da graça.

É evidente , desde este momento, que uma das primeiras funções da terapêutica posta em prática para curar o ser humano decaído de suas paixões será fazer aparecê-las bem claramente, torná-lo plenamente consciente delas.

Fonte: Jean-Claude Larchet, O Inconsciente Espiritual, Edições Loyola, São Paulo, 2009, trechos selecionados.

7 de janeiro de 2015

"Eu me amo e quero você"


Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:29-30)

Isso não significa que devamos nos mutilar fisicamente, mas que devamos, isso sim, estar dispostos a abrir mão do que quer que nos conduza ao pecado, mesmo aquilo que em si aparente ser perfeitamente bom. Em outras palavras, temos de fazer alguns sacrifícios em prol de nosso bem-estar espiritual. Não existe atalho para a santidade.

Todo esse sacrifício é em última instância feito visando o amor. A autonegação deve ser exercida visando o amor a Deus e ao próximo. Desnecessário dizer que esse tipo de amor não tem a ver com emoções ou sentimentos, mas trata-se de uma doação dinâmica de nossas vidas ao próximo. Jesus disse: "Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos" (João 15:13). Precisamente este é o amor de Deus por nós:

Nisto está o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que Ele nos amou a nós, e enviou Seu Filho para propiciação pelos nossos pecados. Amados, se Deus assim nos amou, também nós devemos amar uns aos outros. Ninguém jamais viu a Deus; se nos amamos uns aos outros, Deus está em nós, e em nós é perfeito o Seu amor. (I João 4:10-12)

Hoje em dia muito se fala sobre o "amor". Todavia, a ideia secular de amor tem a ver com auto-satisfação, não com auto-sacrifício. No mais das vezes, "eu te amo" significa "eu me amo e quero você". Isso não é amor, mas uma paródia demoníaca de amor. Quem quer que pregue um sistema ético baseado num amor que não envolva autonegação e auto-sacrifício prega a doutrina do Anticristo. Não se deixe enganar pelos lobos em pele de cordeiro. O amor que não exige a entrega total de si não é amor. Conforme ensinou São Tiago:

E, se o irmão ou a irmã estiverem nus, e tiverem falta de mantimento quotidiano, e algum de vós lhes disser: Ide em paz, aquentai-vos, e fartai-vos; e não lhes derdes as coisas necessárias para o corpo, que proveito virá daí? (Tiago 2:15-16)

Portanto, o caminho do Cristo é o caminho da Cruz. Não há caminho alternativo à vida eterna que não seja através do sacrifício do amor sofredor.

Fonte: The Faith, Clark Carlton, Regina Orthodox Press,Salisbury, EUA,  1997, pág. 131-132.

Nota: um exemplo de falso sistema ético de amor é o apresentado por José Ortega y Gasset aqui.