Entrevista publicada na revista Road to Emmaus [Estrada de Emaús] no 3º trimestre de 2002.
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Nota editorial: De 8 a 10 de feveiro deste ano [2002], um membro do conselho administrativo de Estrada de Emaús esteve no retiro de fim-de-semana da Catedral Ortodoxa Antioquina de São Jorge, em Wichita, Kansas, EUA. Lá estava o Bispo Calisto Ware [elevado a Metropolita em 2007] de Diocléia na Grã-Bretanha. Há mais de 40 anos, o Bispo Calisto escreveu uma clássica introdução à Ortodoxia que, desde então, nunca foi superada em clareza, profundidade e objetividade: The Orthodox Church. Nas décadas seguintes, além de professor de Estudos em Cristianismo Oriental e pastor da paróquia ortodoxa em Oxford, ele também co-traduziu o Triodion Quaresmal e o Menaion das Festas para a língua inglesa, bem como quatro volumes do maior clássico da espiritualidade ortodoxa, a famosa Filocalia [volumes 1, 2, 3 e 4 -- o 5º e último volume ainda não foi publicado]. A dívida que o mundo de língua inglesa tem por suas explicações claras e concisas e por suas traduções fiéis às fontes e ofícios originais é enorme. Estrada de Emaús acrescenta sua parte a esta dívida, já que Sua Graça se dispôs gentilmente a nos responder algumas perguntas.
EDE: Sua Graça, muitos ortodoxos vieram de famílias católicas, protestantes, e até mesmo agnósticas. Eles em geral sentem que foi o próprio Cristo quem os conduziu à Ortodoxia. Quando nos tornamos ortodoxos, topamos com certo “constrangimento de riquezas” – ícones, ofícios, a tradição patrística, a história da Igreja – de maneira que ficamos tentados em mergulhar de cabeça nisso tudo. No entanto, é muito comum trazermos conosco experiências de cultos muito racionais ou muito emocionais. Como um convertido deve adentrar à Igreja sem que incorra nesses extremos? Não desejamos romper os laços com o passado e com as valiosas lições que aprendemos pelo caminho, mas como proceder para nos inserirmos plenamente na tradição? A Oração de Jesus é uma porta acessível ao recém-convertido?
BISPO CALISTO: Sim. O primeiro ponto que temos de entender, o qual você mesmo já citou, é que quando nos tornamos ortodoxos, devemos encarar este fato como o cumprimento de nosso passado, e não como sua negação. Devemos encará-lo como a afirmação de tudo aquilo que é bom em nossa experiência pregressa. Para mim, é sempre muito triste ver ortodoxos atacando as comunidades cristãs às quais pertenceram no passado. É claro, talvez eles queiram dizer por que se tornaram ortodoxos, ou o que eles encontraram na Ortodoxia que não havia anteriormente, mas eles devem sempre ter em mente que suas antigas comunidades cristãs, se tiveram uma, é o que os levaram à Ortodoxia. Portanto, devemos encarar a Ortodoxia como o coroamento, ou seja, como a afirmação de tudo aquilo que é bom, e não apenas como ruptura.
Dito isto, é verdade que trazemos muita bagagem conosco, e precisamos nos desfazer de parte dessa bagagem. No entanto, a coisa mais importante para uma pessoa não-ortodoxa que se sente atraída pela Ortodoxia – e aqui não importa se ela pertence a outra comunidade cristã ou se é agnóstica – é que ela deve experimentar a Ortodoxia como uma via de oração, como uma comunidade de oração.
A primeira coisa que digo a alguém que esteja interessado na Ortodoxia é: “Aprenda a rezar com a Igreja Ortodoxa”. Isso significa comparecer à Divina Liturgia (sem participar da Santa Comunhão, é claro), mas comparecer à Liturgia todo domingo, caso esteja sinceramente interessado em se juntar à Ortodoxia. Em paralelo, utilize as orações ortodoxas nas suas orações diárias, e aqui a Oração de Jesus tem seu papel. Eu os encorajo, antes mesmo de se tornarem ortodoxos, a começar a rezar a Oração de Jesus de maneira simples, mas séria e consistentemente.
Portanto, a melhor maneira de se aproximar da Ortodoxia é por meio da oração. Sim, devemos ler livros, devemos conversar com outros ortodoxos, mas, acima de tudo, devemos aprender a rezar com a Igreja Ortodoxa. Ora, é claro que isso não eliminará todas as posturas não-ortodoxas, mas, no mínimo, é por aí que devemos começar.
Então, sendo mais específico em relação à sua pergunta, o que significa ser uma pessoa? Possuímos um cérebro que raciocina, e trata-se de um dom de Deus que deve ser usado de maneira plena. Possuímos emoções, e elas também não devem ser suprimidas. Elas devem ser postas a serviço de Deus. Mas temos de reconhecer que a pessoa humana é mais do que apenas faculdades racionais e mais do que apenas sentimentos e afinidades emocionais.
Esse “algo a mais” é exatamente aquilo que a literatura tradicional ortodoxa resume em dois termos: noûs e espírito. Noûs é uma palavra difícil de traduzir. Se disséssemos que é “mente”, seria vago demais. Na tradução que fizemos da Filocalia, optamos em traduzi-la, com muita hesitação, por “intelecto”, deixando claro que “intelecto” não designa em princípio a faculdade racional do homem. [Muitos tradutores contemporâneos têm optado por não traduzir a palavra noûs, deixando-a no original grego - N. do T.] O noûs é a visão espiritual que todos nós possuímos, embora a maioria não a tenha descoberto ainda. O noûs implica em apreciação direta e intuitiva da verdade, na qual a verdade é apreendida não como se fosse a conclusão de um raciocínio, mas simplesmente vemos que algo é assim.
O noûs também é cultivado por meio do estudo, do treinamento de nossas faculdades, mas ele também é desenvolvido por meio da oração, do jejum, e da vida cristã em geral. É isso que, mais do que tudo, precisamos desenvolver enquanto ortodoxos. É algo muito mais importante e elevado do que o cérebro racional e muito mais profundo que as emoções.
EDE: Quando tentamos alcançar esse algo a mais, tudo na Ortodoxia aponta para a Santíssima Trindade e, em especial, para o Senhor, já que ele também era humano. Em sua opinião, qual o melhor caminho para que um convertido possa alcançá-Lo? O senhor mencionou a Oração de Jesus como parte integrante desse caminho. O senhor poderia esclarecer melhor o assunto?
BISPO CALISTO: De fato, a Oração de Jesus é uma via para cultivar a visão espiritual. Não se trata de uma forma de imaginação discursiva, que supostamente nos forneceria novos retratos imaginários sobre como Cristo era; também não é uma forma de imiscuir-se em argumentos teológicos que nos conduziriam a novas idéias sobre Cristo. Na verdade, a Oração de Jesus apela diretamente ao noûs, ao coração, ao espírito. Esta é uma das maneiras de alcançar este nível especial de pessoalidade do qual estávamos falando. Eu não diria que é a única via, além de que a Oração de Jesus existe num determinado contexto. Ela pressupõe que as pessoas que rezam a Oração de Jesus estejam plenamente imersas na vida sacramental da Igreja, sobretudo no sacramento da confissão e da Santa Comunhão. A Oração de Jesus anda de mãos dadas com a vida sacramental.
No entanto, gostaria de mencionar, além da Oração de Jesus e da vida sacramental, a especial importância da leitura das Escrituras. Alguns convertidos não se atentam a este detalhe porque, em geral, se entusiasmam tanto com os ícones, com o incenso, com a riqueza da Divina Liturgia etc., mas também devem refletir como é profundo o elemento bíblico e evangélico na Ortodoxia. Por “evangélico”, refiro-me ao sentido literal de “viver nos Evangelhos”.
Na Ortodoxia, cultivamos um modo todo particular de ler as Escrituras. Era algo comum tanto no Oriente quanto no Ocidente, embora não seja agora muito comum no Ocidente. Devemos ler a Bíblia não necessariamente munidos de um monte de comentários, mas devemos lê-la lentamente – ouvindo-a, lendo-a como se tivesse sido endereçada a mim mesmo. Leia-a cuidadosamente, de maneira reflexiva, meditativa, contemplativa, mas sem desenvolver argumentos, porém com uma postura de simplesmente ouvi-la.
Este é o modo tradicionalmente ortodoxo de ler as Escrituras. Não as lemos rodeados de comentários, embora isso também tenha a sua importância, mas as lemos como parte de nossas orações – não como um estudo racional mas como um ato de oração. Não devemos forçar o sentido das Escrituras de maneira que se conformem artificialmente à nossa própria condição, mas, à medida que as lemos, devemos aplicá-las a nós mesmos, não com exemplos confeccionados a partir da imaginação, mas simplesmente ouvindo-as. Creio que se as Escrituras fossem lidas desta maneira, elas nos ajudariam a cultivar uma relação pessoal com Jesus Cristo.
Quanto à Oração de Jesus, é bom sempre nos lembrarmos que ela não é uma técnica de relaxamento ou concentração. Ela é, isso sim, uma invocação pessoal, são palavras de oração direcionadas especificamente à pessoa de Jesus, nosso Salvador.
EDE: Quando comecei a ler livros ortodoxos, muitos anos atrás, iniciei pelos Relatos de um Peregrino Russo. Tínhamos também, na época, a tradução inglesa da Filocalia. Quando eu descobri que os Relatos se baseavam em livros reais, que a Filocalia existia, comprei-a imediatamente com a esperança de que, “Ahá! Agora sim, vou conseguir rezar como o peregrino”. Porém, assim que comecei a ler a Filocalia, percebi que a leitura era dificílima, que era algo que estava anos-luz à frente das minhas limitadas experiências, mas que também tinha algo a ver com o conceito de “mente no coração”. Depois de uns quatro ou cinco capítulos, a gente percebe que não tem absolutamente nenhuma idéia de como aplicar esse conceito, e fica pensando: “Será que minha mente já está no coração? Como eu chego lá? Será que eu deveria estar fazendo alguma coisa, ou será que Deus vai fazer alguma coisa por mim para que isso aconteça? Será que eu devo pensar, será que eu não devo pensar...?”
BISPO CALISTO: Sim. Em primeiro lugar, a Filocalia não é um livro fácil. De qualquer maneira, as obras da edição grega não estão organizadas por nenhum critério, ou melhor, a seqüência é meramente cronológica, mas não há um arranjo sistemático de tópicos. É até possível que leiamos a Filocalia a fim de saber o que Deus tem a dizer a nosso coração, mas é muito melhor que a leiamos com auxílio e orientação.
Se me pedissem para recomendar textos da Filocalia, eu sugeriria os Cem Textos (a Centúria) de Calisto e Ignácio Xanthopoulos. Eles se encontram no quinto volume da Filocalia, o qual ainda não foi publicado, mas que pode ser encontrado em inglês numa antiga tradução feita a partir de uma tradução russa feita por São Teófano, o Recluso, em Writings from the Philokalia on Prayer of the Heart [Textos da Filocalia sobre a Oração do Coração]. É um excelente começo. Depois, sugeriria que as pessoas lessem Hesíquio, do primeiro volume; do segundo volume, a vida do Ancião Filomeno; e também, talvez, as obras mais curtas de São Gregório do Sinai, que se encontram no quarto volume.
São textos muito úteis para principiantes mas, repito, temos de reconhecer que a Filocalia é um livro difícil. Quiçá, quando terminar o quinto volume, com a graça de Deus, eu possa preparar uma espécie de introdução à Filocalia, a qual conteria os textos mais fáceis organizados por temas. Não seria um substituto à tradução completa, mas uma introdução.
Outro livro que pode ajudar as pessoas, algo mais fácil e simples que a Filocalia, é uma antologia publicada em inglês com o título de The Art of Prayer [A Arte de Rezar], pelo Hegúmeno Chariton de Valamo. Acho que os ensinamentos da Filocalia ficam bem mais fáceis por meio das explicações de São Teófano e Santo Ignácio Brianchaninov.
Quanto à questão da mente no coração, eu não recomendaria que as pessoas começassem a pensar nisso. Eu diria para começarem com a Oração de Jesus em si. Não pense “Onde está minha mente? Será que está no coração?” Não pense “Estou rezando a Oração de Jesus”. Em vez disso, pense em Jesus. O ponto de partida é recitar a Oração de Jesus confinando a mente nas palavras da oração. Temos de estar cientes que estamos falando a Jesus. São palavras vivas de oração direcionadas para outra pessoa viva. Não fique pensando “Onde está minha mente?” Não pense em seu próprio ego, pense apenas em Jesus. Confine sua mente nas palavras da oração: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”. Concentre-se na própria recitação da oração, e todo o resto seguirá como e quando Deus desejar.
EDE: Algumas pessoas, sobretudo monges, rezam certa quantidade de Orações de Jesus por dia; outros rezam por um determinado período de tempo. O que o senhor sugeriria para um iniciante?
BISPO CALISTO: Ambas as formas são aceitáveis. No entanto, eu sugeriria a um iniciante que reserve um período de tempo, sem dar muita importância ao número de orações que conseguir recitar. Na verdade, é possível combinar as duas formas porque você rapidamente descobrirá quanto tempo leva para rezar cem Orações de Jesus. Se eu levo doze minutos, então reservarei, digamos, 25 minutos para rezar 200. Mas isso seria apenas uma sugestão. Comece com a idéia de reservar um tempo para isso. A quantidade de vezes que conseguir rezar a Oração de Jesus é menos importante, mesmo porque há muitas e diferentes tradições. Na Grécia, é comum rezá-la rapidamente, enquanto na tradição russa é costume rezá-la mais lentamente.
EDE: Se temos de rezá-la com atenção e amor, acho que faz mais sentido recitá-la lentamente. Como é possível rezá-la rapidamente, como sugere a tradição grega?
BISPO CALISTO: Eu prefiro a tradição de rezá-la mais lentamente, mas não quero julgar ninguém só porque não recito a Oração de Jesus rapidamente. Se você rezá-la livremente, ao longo do dia, conforme suas tarefas diárias lhe permitirem, é provável que o fará rapidamente, mas não tenha dúvida de que eu recomendaria às pessoas que, no tempo específico que reservarem para rezar, que o façam lentamente.
Ora, os monges frequentemente possuem regras que determinam uma quantidade fixa de repetições. Creio que isso é mais adequado à vida monástica porque ali há uma vida disciplinada, com uma seqüência fixa e elaborada de ofícios litúrgicos, de maneira que a regra de oração acaba se inserindo nesse contexto. É um contexto bem mais estruturado. Ali faz sentido dizer: “Ok, agora você vai rezar trezentas Orações de Jesus com determinado número de metanias, sejam inclinações ou prostrações”.
Quanto aos leigos, no entanto, é muito melhor dizer: “Bem, é razoável que eu reserve tanto e tanto de tempo pela manhã ou à noite”. Pode ser apenas 25 minutos, mas isso já vai fazer uma diferença enorme. Você começa daí, sem se preocupar com quantidades. Conforme ensinava Santo Isaque, o Sírio: “Não quero contar marcos, quero entrar no leito nupcial”.
EDE: Obrigado, Sua Graça, a entrevista foi excelente. Temos uma última pergunta, formulada por uma pessoa do auditório durante sua palestra, e que acho particularmente importante. Como a Oração de Jesus, que aparentemente é direcionada somente a uma pessoa da Santíssima Trindade, participa na liturgia trinitariana e na vida de oração da Igreja?
BISPO CALISTO: A dimensão trinitariana da oração é, de fato, uma questão fundamental. Não há oração verdadeira sem a Santíssima Trindade. Você poderia perguntar: “Ora, a Oração de Jesus é uma oração trinitariana?” De fato, isso faz sentido se nos detivéssemos somente em seu aspecto mais exterior; mas se nos aprofundarmos na oração, encontraremos uma dimensão trinitariana na Oração de Jesus. Primeiramente, a Oração de Jesus, sim, é uma oração direcionada a Cristo, mas falamos de Cristo enquanto Filho de Deus, e aquele que fala do Filho, fala, por conseguinte, do Pai, de maneira que, ao falar a Jesus enquanto Filho de Deus, estamos certamente incluindo em nossa oração a pessoa de Deus Pai.
E o Espírito Santo? Ele não é explicitamente mencionado na oração, mas Ele é, a despeito disso, a atmosfera na qual a oração é recitada. Um dos textos mais importantes da história da Oração de Jesus está em I Coríntios 12:3: Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito Santo. Os santos que versam sobre a Oração de Jesus repetem este versículo das Escrituras muitas e muitas vezes. Embora o Espírito Santo não seja mencionado, Ele está ali. Invocamos Jesus no Espírito Santo. É propósito do Espírito Santo nos levar a Cristo.
Na última ceia de nosso Senhor, Cristo afirma: “Ele não falará de Si próprio, ou por Sua própria autoridade, Ele tomará o que é meu e mostrar-vos-á”. Portanto, precisamente, a função do Espírito na economia trinitariana é levar-nos a Cristo, e Cristo leva-nos ao Pai. Dessa forma, a Oração de Jesus, implicitamente, é uma oração verdadeiramente trinitariana. Uma boa maneira de pensar sobre oração é não achar que eu estou falando com Deus: “Eu, uma pessoa aqui embaixo, estou tendo um diálogo com Deus lá em cima”. Devemos pensar assim: “Eu estou entrando no diálogo de amor que continuamente perpassa por entre as Três Pessoas da Trindade”. Assim, quando rezo, não sou bem eu que estou rezando, mas é como se eu estivesse adentrando em um diálogo que já está ocorrendo. Desde a eternidade, já há um diálogo na Divindade, um diálogo de amor. Desde a eternidade, a Primeira Pessoa diz à Segunda: “Tu és meu Filho amado”. Desde a eternidade, a Segunda Pessoa responde à Primeira: “Abba, Pai, Abba, Pai”. Desde a eternidade, o Espírito Santo sela essa troca entre Pai e Filho. Assim, quando rezamos, não somos exatamente nós que rezamos, mas nós adentramos no diálogo da Trindade. Através do Espírito Santo, somos levados a falar as palavras de Cristo como se fossem nossas. No Espírito Santo, dizemos: “Abba, Pai”, e assim nos tornamos parte do eterno diálogo trinitariano.
É desta maneira que a oração é entendida, particularmente em Romanos 8. Se a lermos com cuidado, constataremos que ali há essa idéia de oração enquanto inserção no diálogo da Trindade. Podemos não sentir isso de imediato, conscientemente, mas é isso que acontece. Tornamos-nos parte do diálogo trinitariano de amor. Através do Espírito, nos tornamos filhos no Filho, e com o Filho dizemos ao Pai: “Abba, Pai”.
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Nota editorial: De 8 a 10 de feveiro deste ano [2002], um membro do conselho administrativo de Estrada de Emaús esteve no retiro de fim-de-semana da Catedral Ortodoxa Antioquina de São Jorge, em Wichita, Kansas, EUA. Lá estava o Bispo Calisto Ware [elevado a Metropolita em 2007] de Diocléia na Grã-Bretanha. Há mais de 40 anos, o Bispo Calisto escreveu uma clássica introdução à Ortodoxia que, desde então, nunca foi superada em clareza, profundidade e objetividade: The Orthodox Church. Nas décadas seguintes, além de professor de Estudos em Cristianismo Oriental e pastor da paróquia ortodoxa em Oxford, ele também co-traduziu o Triodion Quaresmal e o Menaion das Festas para a língua inglesa, bem como quatro volumes do maior clássico da espiritualidade ortodoxa, a famosa Filocalia [volumes 1, 2, 3 e 4 -- o 5º e último volume ainda não foi publicado]. A dívida que o mundo de língua inglesa tem por suas explicações claras e concisas e por suas traduções fiéis às fontes e ofícios originais é enorme. Estrada de Emaús acrescenta sua parte a esta dívida, já que Sua Graça se dispôs gentilmente a nos responder algumas perguntas.
EDE: Sua Graça, muitos ortodoxos vieram de famílias católicas, protestantes, e até mesmo agnósticas. Eles em geral sentem que foi o próprio Cristo quem os conduziu à Ortodoxia. Quando nos tornamos ortodoxos, topamos com certo “constrangimento de riquezas” – ícones, ofícios, a tradição patrística, a história da Igreja – de maneira que ficamos tentados em mergulhar de cabeça nisso tudo. No entanto, é muito comum trazermos conosco experiências de cultos muito racionais ou muito emocionais. Como um convertido deve adentrar à Igreja sem que incorra nesses extremos? Não desejamos romper os laços com o passado e com as valiosas lições que aprendemos pelo caminho, mas como proceder para nos inserirmos plenamente na tradição? A Oração de Jesus é uma porta acessível ao recém-convertido?
BISPO CALISTO: Sim. O primeiro ponto que temos de entender, o qual você mesmo já citou, é que quando nos tornamos ortodoxos, devemos encarar este fato como o cumprimento de nosso passado, e não como sua negação. Devemos encará-lo como a afirmação de tudo aquilo que é bom em nossa experiência pregressa. Para mim, é sempre muito triste ver ortodoxos atacando as comunidades cristãs às quais pertenceram no passado. É claro, talvez eles queiram dizer por que se tornaram ortodoxos, ou o que eles encontraram na Ortodoxia que não havia anteriormente, mas eles devem sempre ter em mente que suas antigas comunidades cristãs, se tiveram uma, é o que os levaram à Ortodoxia. Portanto, devemos encarar a Ortodoxia como o coroamento, ou seja, como a afirmação de tudo aquilo que é bom, e não apenas como ruptura.
Dito isto, é verdade que trazemos muita bagagem conosco, e precisamos nos desfazer de parte dessa bagagem. No entanto, a coisa mais importante para uma pessoa não-ortodoxa que se sente atraída pela Ortodoxia – e aqui não importa se ela pertence a outra comunidade cristã ou se é agnóstica – é que ela deve experimentar a Ortodoxia como uma via de oração, como uma comunidade de oração.
A primeira coisa que digo a alguém que esteja interessado na Ortodoxia é: “Aprenda a rezar com a Igreja Ortodoxa”. Isso significa comparecer à Divina Liturgia (sem participar da Santa Comunhão, é claro), mas comparecer à Liturgia todo domingo, caso esteja sinceramente interessado em se juntar à Ortodoxia. Em paralelo, utilize as orações ortodoxas nas suas orações diárias, e aqui a Oração de Jesus tem seu papel. Eu os encorajo, antes mesmo de se tornarem ortodoxos, a começar a rezar a Oração de Jesus de maneira simples, mas séria e consistentemente.
Portanto, a melhor maneira de se aproximar da Ortodoxia é por meio da oração. Sim, devemos ler livros, devemos conversar com outros ortodoxos, mas, acima de tudo, devemos aprender a rezar com a Igreja Ortodoxa. Ora, é claro que isso não eliminará todas as posturas não-ortodoxas, mas, no mínimo, é por aí que devemos começar.
Então, sendo mais específico em relação à sua pergunta, o que significa ser uma pessoa? Possuímos um cérebro que raciocina, e trata-se de um dom de Deus que deve ser usado de maneira plena. Possuímos emoções, e elas também não devem ser suprimidas. Elas devem ser postas a serviço de Deus. Mas temos de reconhecer que a pessoa humana é mais do que apenas faculdades racionais e mais do que apenas sentimentos e afinidades emocionais.
Esse “algo a mais” é exatamente aquilo que a literatura tradicional ortodoxa resume em dois termos: noûs e espírito. Noûs é uma palavra difícil de traduzir. Se disséssemos que é “mente”, seria vago demais. Na tradução que fizemos da Filocalia, optamos em traduzi-la, com muita hesitação, por “intelecto”, deixando claro que “intelecto” não designa em princípio a faculdade racional do homem. [Muitos tradutores contemporâneos têm optado por não traduzir a palavra noûs, deixando-a no original grego - N. do T.] O noûs é a visão espiritual que todos nós possuímos, embora a maioria não a tenha descoberto ainda. O noûs implica em apreciação direta e intuitiva da verdade, na qual a verdade é apreendida não como se fosse a conclusão de um raciocínio, mas simplesmente vemos que algo é assim.
O noûs também é cultivado por meio do estudo, do treinamento de nossas faculdades, mas ele também é desenvolvido por meio da oração, do jejum, e da vida cristã em geral. É isso que, mais do que tudo, precisamos desenvolver enquanto ortodoxos. É algo muito mais importante e elevado do que o cérebro racional e muito mais profundo que as emoções.
EDE: Quando tentamos alcançar esse algo a mais, tudo na Ortodoxia aponta para a Santíssima Trindade e, em especial, para o Senhor, já que ele também era humano. Em sua opinião, qual o melhor caminho para que um convertido possa alcançá-Lo? O senhor mencionou a Oração de Jesus como parte integrante desse caminho. O senhor poderia esclarecer melhor o assunto?
BISPO CALISTO: De fato, a Oração de Jesus é uma via para cultivar a visão espiritual. Não se trata de uma forma de imaginação discursiva, que supostamente nos forneceria novos retratos imaginários sobre como Cristo era; também não é uma forma de imiscuir-se em argumentos teológicos que nos conduziriam a novas idéias sobre Cristo. Na verdade, a Oração de Jesus apela diretamente ao noûs, ao coração, ao espírito. Esta é uma das maneiras de alcançar este nível especial de pessoalidade do qual estávamos falando. Eu não diria que é a única via, além de que a Oração de Jesus existe num determinado contexto. Ela pressupõe que as pessoas que rezam a Oração de Jesus estejam plenamente imersas na vida sacramental da Igreja, sobretudo no sacramento da confissão e da Santa Comunhão. A Oração de Jesus anda de mãos dadas com a vida sacramental.
No entanto, gostaria de mencionar, além da Oração de Jesus e da vida sacramental, a especial importância da leitura das Escrituras. Alguns convertidos não se atentam a este detalhe porque, em geral, se entusiasmam tanto com os ícones, com o incenso, com a riqueza da Divina Liturgia etc., mas também devem refletir como é profundo o elemento bíblico e evangélico na Ortodoxia. Por “evangélico”, refiro-me ao sentido literal de “viver nos Evangelhos”.
Na Ortodoxia, cultivamos um modo todo particular de ler as Escrituras. Era algo comum tanto no Oriente quanto no Ocidente, embora não seja agora muito comum no Ocidente. Devemos ler a Bíblia não necessariamente munidos de um monte de comentários, mas devemos lê-la lentamente – ouvindo-a, lendo-a como se tivesse sido endereçada a mim mesmo. Leia-a cuidadosamente, de maneira reflexiva, meditativa, contemplativa, mas sem desenvolver argumentos, porém com uma postura de simplesmente ouvi-la.
Este é o modo tradicionalmente ortodoxo de ler as Escrituras. Não as lemos rodeados de comentários, embora isso também tenha a sua importância, mas as lemos como parte de nossas orações – não como um estudo racional mas como um ato de oração. Não devemos forçar o sentido das Escrituras de maneira que se conformem artificialmente à nossa própria condição, mas, à medida que as lemos, devemos aplicá-las a nós mesmos, não com exemplos confeccionados a partir da imaginação, mas simplesmente ouvindo-as. Creio que se as Escrituras fossem lidas desta maneira, elas nos ajudariam a cultivar uma relação pessoal com Jesus Cristo.
Quanto à Oração de Jesus, é bom sempre nos lembrarmos que ela não é uma técnica de relaxamento ou concentração. Ela é, isso sim, uma invocação pessoal, são palavras de oração direcionadas especificamente à pessoa de Jesus, nosso Salvador.
EDE: Quando comecei a ler livros ortodoxos, muitos anos atrás, iniciei pelos Relatos de um Peregrino Russo. Tínhamos também, na época, a tradução inglesa da Filocalia. Quando eu descobri que os Relatos se baseavam em livros reais, que a Filocalia existia, comprei-a imediatamente com a esperança de que, “Ahá! Agora sim, vou conseguir rezar como o peregrino”. Porém, assim que comecei a ler a Filocalia, percebi que a leitura era dificílima, que era algo que estava anos-luz à frente das minhas limitadas experiências, mas que também tinha algo a ver com o conceito de “mente no coração”. Depois de uns quatro ou cinco capítulos, a gente percebe que não tem absolutamente nenhuma idéia de como aplicar esse conceito, e fica pensando: “Será que minha mente já está no coração? Como eu chego lá? Será que eu deveria estar fazendo alguma coisa, ou será que Deus vai fazer alguma coisa por mim para que isso aconteça? Será que eu devo pensar, será que eu não devo pensar...?”
BISPO CALISTO: Sim. Em primeiro lugar, a Filocalia não é um livro fácil. De qualquer maneira, as obras da edição grega não estão organizadas por nenhum critério, ou melhor, a seqüência é meramente cronológica, mas não há um arranjo sistemático de tópicos. É até possível que leiamos a Filocalia a fim de saber o que Deus tem a dizer a nosso coração, mas é muito melhor que a leiamos com auxílio e orientação.
Se me pedissem para recomendar textos da Filocalia, eu sugeriria os Cem Textos (a Centúria) de Calisto e Ignácio Xanthopoulos. Eles se encontram no quinto volume da Filocalia, o qual ainda não foi publicado, mas que pode ser encontrado em inglês numa antiga tradução feita a partir de uma tradução russa feita por São Teófano, o Recluso, em Writings from the Philokalia on Prayer of the Heart [Textos da Filocalia sobre a Oração do Coração]. É um excelente começo. Depois, sugeriria que as pessoas lessem Hesíquio, do primeiro volume; do segundo volume, a vida do Ancião Filomeno; e também, talvez, as obras mais curtas de São Gregório do Sinai, que se encontram no quarto volume.
São textos muito úteis para principiantes mas, repito, temos de reconhecer que a Filocalia é um livro difícil. Quiçá, quando terminar o quinto volume, com a graça de Deus, eu possa preparar uma espécie de introdução à Filocalia, a qual conteria os textos mais fáceis organizados por temas. Não seria um substituto à tradução completa, mas uma introdução.
Outro livro que pode ajudar as pessoas, algo mais fácil e simples que a Filocalia, é uma antologia publicada em inglês com o título de The Art of Prayer [A Arte de Rezar], pelo Hegúmeno Chariton de Valamo. Acho que os ensinamentos da Filocalia ficam bem mais fáceis por meio das explicações de São Teófano e Santo Ignácio Brianchaninov.
Quanto à questão da mente no coração, eu não recomendaria que as pessoas começassem a pensar nisso. Eu diria para começarem com a Oração de Jesus em si. Não pense “Onde está minha mente? Será que está no coração?” Não pense “Estou rezando a Oração de Jesus”. Em vez disso, pense em Jesus. O ponto de partida é recitar a Oração de Jesus confinando a mente nas palavras da oração. Temos de estar cientes que estamos falando a Jesus. São palavras vivas de oração direcionadas para outra pessoa viva. Não fique pensando “Onde está minha mente?” Não pense em seu próprio ego, pense apenas em Jesus. Confine sua mente nas palavras da oração: “Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim”. Concentre-se na própria recitação da oração, e todo o resto seguirá como e quando Deus desejar.
EDE: Algumas pessoas, sobretudo monges, rezam certa quantidade de Orações de Jesus por dia; outros rezam por um determinado período de tempo. O que o senhor sugeriria para um iniciante?
BISPO CALISTO: Ambas as formas são aceitáveis. No entanto, eu sugeriria a um iniciante que reserve um período de tempo, sem dar muita importância ao número de orações que conseguir recitar. Na verdade, é possível combinar as duas formas porque você rapidamente descobrirá quanto tempo leva para rezar cem Orações de Jesus. Se eu levo doze minutos, então reservarei, digamos, 25 minutos para rezar 200. Mas isso seria apenas uma sugestão. Comece com a idéia de reservar um tempo para isso. A quantidade de vezes que conseguir rezar a Oração de Jesus é menos importante, mesmo porque há muitas e diferentes tradições. Na Grécia, é comum rezá-la rapidamente, enquanto na tradição russa é costume rezá-la mais lentamente.
EDE: Se temos de rezá-la com atenção e amor, acho que faz mais sentido recitá-la lentamente. Como é possível rezá-la rapidamente, como sugere a tradição grega?
BISPO CALISTO: Eu prefiro a tradição de rezá-la mais lentamente, mas não quero julgar ninguém só porque não recito a Oração de Jesus rapidamente. Se você rezá-la livremente, ao longo do dia, conforme suas tarefas diárias lhe permitirem, é provável que o fará rapidamente, mas não tenha dúvida de que eu recomendaria às pessoas que, no tempo específico que reservarem para rezar, que o façam lentamente.
Ora, os monges frequentemente possuem regras que determinam uma quantidade fixa de repetições. Creio que isso é mais adequado à vida monástica porque ali há uma vida disciplinada, com uma seqüência fixa e elaborada de ofícios litúrgicos, de maneira que a regra de oração acaba se inserindo nesse contexto. É um contexto bem mais estruturado. Ali faz sentido dizer: “Ok, agora você vai rezar trezentas Orações de Jesus com determinado número de metanias, sejam inclinações ou prostrações”.
Quanto aos leigos, no entanto, é muito melhor dizer: “Bem, é razoável que eu reserve tanto e tanto de tempo pela manhã ou à noite”. Pode ser apenas 25 minutos, mas isso já vai fazer uma diferença enorme. Você começa daí, sem se preocupar com quantidades. Conforme ensinava Santo Isaque, o Sírio: “Não quero contar marcos, quero entrar no leito nupcial”.
EDE: Obrigado, Sua Graça, a entrevista foi excelente. Temos uma última pergunta, formulada por uma pessoa do auditório durante sua palestra, e que acho particularmente importante. Como a Oração de Jesus, que aparentemente é direcionada somente a uma pessoa da Santíssima Trindade, participa na liturgia trinitariana e na vida de oração da Igreja?
BISPO CALISTO: A dimensão trinitariana da oração é, de fato, uma questão fundamental. Não há oração verdadeira sem a Santíssima Trindade. Você poderia perguntar: “Ora, a Oração de Jesus é uma oração trinitariana?” De fato, isso faz sentido se nos detivéssemos somente em seu aspecto mais exterior; mas se nos aprofundarmos na oração, encontraremos uma dimensão trinitariana na Oração de Jesus. Primeiramente, a Oração de Jesus, sim, é uma oração direcionada a Cristo, mas falamos de Cristo enquanto Filho de Deus, e aquele que fala do Filho, fala, por conseguinte, do Pai, de maneira que, ao falar a Jesus enquanto Filho de Deus, estamos certamente incluindo em nossa oração a pessoa de Deus Pai.
E o Espírito Santo? Ele não é explicitamente mencionado na oração, mas Ele é, a despeito disso, a atmosfera na qual a oração é recitada. Um dos textos mais importantes da história da Oração de Jesus está em I Coríntios 12:3: Ninguém pode dizer que Jesus é o Senhor, senão pelo Espírito Santo. Os santos que versam sobre a Oração de Jesus repetem este versículo das Escrituras muitas e muitas vezes. Embora o Espírito Santo não seja mencionado, Ele está ali. Invocamos Jesus no Espírito Santo. É propósito do Espírito Santo nos levar a Cristo.
Na última ceia de nosso Senhor, Cristo afirma: “Ele não falará de Si próprio, ou por Sua própria autoridade, Ele tomará o que é meu e mostrar-vos-á”. Portanto, precisamente, a função do Espírito na economia trinitariana é levar-nos a Cristo, e Cristo leva-nos ao Pai. Dessa forma, a Oração de Jesus, implicitamente, é uma oração verdadeiramente trinitariana. Uma boa maneira de pensar sobre oração é não achar que eu estou falando com Deus: “Eu, uma pessoa aqui embaixo, estou tendo um diálogo com Deus lá em cima”. Devemos pensar assim: “Eu estou entrando no diálogo de amor que continuamente perpassa por entre as Três Pessoas da Trindade”. Assim, quando rezo, não sou bem eu que estou rezando, mas é como se eu estivesse adentrando em um diálogo que já está ocorrendo. Desde a eternidade, já há um diálogo na Divindade, um diálogo de amor. Desde a eternidade, a Primeira Pessoa diz à Segunda: “Tu és meu Filho amado”. Desde a eternidade, a Segunda Pessoa responde à Primeira: “Abba, Pai, Abba, Pai”. Desde a eternidade, o Espírito Santo sela essa troca entre Pai e Filho. Assim, quando rezamos, não somos exatamente nós que rezamos, mas nós adentramos no diálogo da Trindade. Através do Espírito Santo, somos levados a falar as palavras de Cristo como se fossem nossas. No Espírito Santo, dizemos: “Abba, Pai”, e assim nos tornamos parte do eterno diálogo trinitariano.
É desta maneira que a oração é entendida, particularmente em Romanos 8. Se a lermos com cuidado, constataremos que ali há essa idéia de oração enquanto inserção no diálogo da Trindade. Podemos não sentir isso de imediato, conscientemente, mas é isso que acontece. Tornamos-nos parte do diálogo trinitariano de amor. Através do Espírito, nos tornamos filhos no Filho, e com o Filho dizemos ao Pai: “Abba, Pai”.