23 de fevereiro de 2024

O papel dos logoi nas artes sacras


O principal objetivo da obra de Philip Sherrard foi opor-se ao dualismo metafísico, cosmológico e antropológico. Este tipo de dualismo acabou se automatizando em uma espécie de "estado de espírito geral", e está, segundo Sherrard, na base do fracasso espiritual do mundo moderno. Não sendo uma mera “opção filosófica”, o pensamento dualista funciona como uma patologia da (auto)percepção do mundo. Ele molda a forma como olhamos aos nossos semelhantes, e ao mundo material que nos rodeia, e os tornam recursos a serem explorados a fim de satisfazerem nossas necessidades egoístas. Na raiz da crise do mundo moderno encontra-se um erro no olhar epistêmico do mundo: a ilusão de adquirir conhecimento sem referência ao fundamento metafísico das próprias coisas que contemplamos, que é a única instância que pode realmente investir essas coisas com realidade e, em última instância, com sentido. Assim, um objeto físico não pode por si só legitimar sua existência e seu sentido: não pode haver nenhuma física separada da metafísica, e, sem seu fundamento metafísico (das Ding an Sich), toda a física é uma ilusão epistêmica e ontológica. O homem não pode por si só conferir realidade às coisas exteriores; eis o dilema do evolucionismo.

O conhecimento da natureza é também uma ilusão, que passou a ser dogmatizada pela ciência moderna com o seu imperativo de renunciar a qualquer teoria metafísica; esta renúncia não pode basear-se senão numa mentira, pois a própria existência humana aponta para a esfera metafísica e não pode ser concebida fora dela. A “ciência” moderna também está errada porque postula dois aspectos diferentes do objeto sob sua investigação: um físico, que daria fundamento a um conhecimento acessível a todos os homens dotados de sã consciência, e outro metafísico, cujo conhecimento é supostamente subjetivo e, portanto falso para aqueles que não compartilham da mesma visão. O paradigma do conhecimento universalmente aceitável é, portanto, a matemática, que por sua vez não pode dar fundamento metafísico ao mundo físico, mas que acaba por quantificar o cosmos. Até mesmo Deus, privado de sua relevância metafísica, torna-se o “Grande Matemático”. Assim, tudo, mesmo Deus, é reduzido a mera quantidade, como argumentou anteriormente René Guénon. Se o papel de Deus no mundo for reduzido ao mero ofício de um relojoeiro, o próprio cosmos torna-se um mecanismo gigantesco, que não necessita mais da intervenção do seu próprio Criador, podendo funcionar independentemente dele, e de acordo com “suas próprias” leis mecânicas. Esta ideia está, segundo Sherrard, na base da crise ecológica moderna.

De acordo com Sherrard, existem dois modos opostos de consciência humana: a “consciência utilitarista do ego”, um termo que possivelmente sugere a teoria patrística de que todo mal humano tem sua raiz no “amor-próprio” (philautia) e uma “consciência espiritual”, também chamada de “consciência angélica”. Seus correspondentes órgãos de conhecimento seriam, portanto, a razão discursiva e o intelecto. Este duplo conhecimento representa, no entanto, um condicionamento cultural infundido por dinâmicas específicas na história da cultura ocidental. A responsabilidade por esta divisão epistêmica e (portanto) por este fracasso é, segundo Sherrard, da teoria medieval da dupla verdade, que põe em movimento a autonomização da racionalidade contra a fé e contra a metafísica.

Segundo Sherrard não existe natureza (physis) à parte de Deus, ou seja, não é possível conceber um lugar em que a natureza seja autônoma e separada de Deus. Assim, não pode existir sagrado e profano (e, portanto, nenhum sagrado oculto no profano, como pensava Mircea Eliade), mas apenas diferentes níveis ontológicos de ser, natureza e homem, que portam em diferentes graus a sacralidade imutável do divino. Para Sherrard não há lugar filosófico para a teoria da criação a partir do nada (ex nihilo), exceto no caso em que “nada” seja apenas outro nome (apofático) para o próprio Deus.

Sherrard não teme em usar a noção de panenteísmo para expressar a ideia de que toda a criação está acontecendo em Deus, está em Deus. Segundo ele, esta é a intuição fundamental da pregação de São Paulo no Areópago, quando citou as palavras do antigo poeta Arato (Atos 17:28), bem como em sua epístola aos romanos (Romanos 3:36). Esta visão de São Paulo foi assumida pelos primeiros autores cristãos, que tentaram uma síntese de sua fé (São Justino, o Mártir, Santo Irineu de Lyon, Orígenes), e mais tarde por São Máximo, o Confessor, em seu ensinamento sobre os logoi divinos da criação.

O mistério da criação é evidente, segundo Sherrard, na relação entre a doutrina da Trindade, da criação e da Encarnação, formando uma visão teológica "teoantropocósmica". O Logos divino, que é o Filho de Deus e, ao mesmo tempo, o Filho do Homem, é o mesmo no ato da criação e na sua encarnação. Ele é desde a eternidade e na eternidade o mesmo Cristo cósmico (Deus-homem e Deus-criatura), e a natureza é o próprio Corpo de Cristo, antes mesmo do próprio ato de criação, porque a geração eterna do Logos e a criação são o mesmo ato divino, único e eterno, sem que isso implique que o mundo existiria desde a eternidade, mas levando-se em conta o eterno Plano/Pensamento divino do Deus Tri-Uno. Além disso, o ato da criação não deve ser atribuído à vontade de Deus, como se Deus pudesse ter decidido não criar o mundo, mas deve ser entendido como uma expressão da natureza amorosa de Deus: assim como Deus não pode deixar de amar (!), da mesma forma Ele não pode não ter criado o mundo. Como expressão da sua própria natureza divina, a criação é um nível eterno da autoconsciência do próprio Deus, da sua própria revelação para si mesmo, manifestada em diferentes níveis de autorrevelação. Há neste ponto alguns acentos que aproximam as especulações metafísicas de Sherrard das de René Guénon, especialmente na equivalência entre ser e conhecer, bem como na conceptualização dos diferentes níveis do ser.

De volta ao processo intradivino de desvelamento do ser, Sherrard propõe distinguir entre várias “fases”, correspondendo a diferentes níveis de diferenciações internas do divino. A primeira corresponde à atualização das potências divinas de Deus Pai em seu Logos, no sentido de este se tornar imagem (ícone) do Pai. Essas potências são identificadas com os nomes de Deus, que por sua vez são individualizados em diferentes formas, como logoi divinos ou “imagens-arquétipos” do mundo criado. Esses logoi também representam a realidade divina de cada coisa criada. Estas considerações levarão Sherrard a argumentar em termos sofiológicos a favor da sacralidade da natureza.

A doutrina dos logoi é fundamentada patristicamente nos escritos de São Máximo, o Confessor, mas Sherrard modifica e expande sua visão para muito além do domínio estritamente cosmológico, privilegiado por Máximo, para o domínio dos processos intradivinos. Sherrard minimiza ainda mais o acento cristocêntrico de São Máximo, embora declare a definição cristológica do Concílio de Calcedônia (451 d.C.) como o único modelo real que conceitualiza as várias encarnações dos logoi divinos no cosmos e no homem.

Além disso, as glosas trinitárias de Sherrard relativas aos processos intradivinos de individuação e diferenciação também não são muito consistentes com a noção cristã da Trindade. Por exemplo, mesmo que o Logos desempenhe um papel central na sua exposição, há pouca menção ao papel do Espírito Santo, apesar da relevância teológica da pneumatologia para uma doutrina da criação. Surpreendentemente, outro ponto vital da doutrina ortodoxa, que não é levado em consideração, além de algumas breves declarações, é a doutrina das energias incriadas de Deus.

Philip Sherrard não almejava, de fato, a uma formulação rigorosa da doutrina patrística dos logoi divinos, mas tentava adaptar alguns impulsos patrísticos às suas opiniões pessoais, a saber, a função semelhante à dos logoi das “imagens-arquétipos” e seu papel no processo estético.

A realidade arquetípica dos logoi divinos, como uma espécie de “ponteiro metafísico” imediato de cada coisa visível, é entendida por Sherrard nos termos daquilo que o francês Henri Corbin referiu como mundus imaginalis. Esta expressão é uma tradução do árabe ˁālam al-mithāl (ءالم المثال) nos escritos do místico sunita Ibn ʿArabī (1165-1240) ou do xiita Suhrawardī (1154-1191), termo este usado para designar a realidade ontológica do coisas reveladas, um mesocosmos de imagens e, fenomenologicamente falando, o próprio “lugar” dos acontecimentos proféticos e angélicos da história da salvação. Para aceder a este nível ontológico, os homens são dotados de um órgão sensorial especial – a imaginação –, mas que não deve ser entendida em termos puramente psicológicos, ou seja, como sendo mera “fantasia” e, portanto, mera “ilusão”. As implicações epistêmicas desta noção já são evidentes no trabalho do próprio Corbin, que via o papel deste termo como um manifesto anticartesiano concreto e parte de uma hermenêutica antimoderna.

As maneiras pelas quais Philip Sherrard concebe a identificação das imagens-arquétipos com este mundus imaginalis nunca são explicitamente detalhadas, exceto por algumas escassas referências, mas fica claro em seus escritos que Sherrard pretendia com isso articular alguns contornos fundamentais de uma teoria estética. Assim, já na sua tese de doutorado sobre a poesia grega moderna, Sherrard refere-se ao mundo dos arquétipos como a fonte de inspiração poética por excelência. Nesses seus primeiros escritos, as referências concretas ainda eram apenas a Platão, mas já então a própria possibilidade da arte era descrita em termos do acesso do artista ao mundo dos arquétipos. Para Sherrard, os arquétipos nada tinham a ver com o domínio psicológico e individual da mente humana, e vem daí sua acirrada polêmica com C. G. Jung. Mesmo seu próprio impacto estético original, que está na base da sua conversão à Ortodoxia, é interpretado retrospectivamente por Sherrard como tendo sido uma intuição da realidade ontológica dos arquétipos, como parte da outra mente (greco-bizantina) da Europa. Para este conteúdo filosófico platônico dos arquétipos, o Cristianismo Oriental contribuiria com seu próprio sentido da intuição do próprio Logos oculto na matéria/criação.

Sherrard raramente menciona de que tipo de arte está falando: para ele só pode haver arte sacra, arte que se abre à infusão do reino transcendente. Não só a arte é sacra por definição, mas também outras instâncias como a natureza, a vida, o homem, na medida em que também se abrem e testemunham o transcendente, através do seu logos divino interior. Consequentemente, se entre o divino e a criação existe uma relação simbiótica, então todo o cosmos é apenas um gigantesco sacramento e, de acordo com o princípio da homogeneidade sacramental da natureza, não existe o profano.

No entanto, uma sensação de desconforto acompanha esta visão luminosa da dignidade da natureza: a consciência de que vivemos num mundo caído e de que a natureza sacramental do mundo criado está apenas potencialmente ativa, mesmo que seja em menor grau. Ainda mais do que uma mera potência, o mundo como sacramento designa a realidade numenal das coisas percebidas (as “coisas em si”), bem como o seu telos divino, temporariamente ofuscado pelo pecado. O papel da arte sacra é dar expressão ao mundo divino e inteligível, que está logo atrás das coisas perceptíveis e que representa a própria razão (logos) de sua existência, bem como seu sentido. Isto é possível porque o mundo perceptível é imagem e ícone do inteligível, cópia dos arquétipos divinos.

Esta qualidade icônica da criação é em si uma legitimação da iconografia enquanto arte sacra cristã, dado que o ícone pintado é capaz de representar o mundo tal como ele é em si, na sua dimensão numenal, ou seja, na forma como o próprio Deus o vê. O aspecto numênico da realidade além das coisas quantificáveis do mundo (caído) torna-se visível através da arte sacra do ícone, num processo de desfenomenização do mundo, no qual ele é percebido não como aparece, mas como realmente é. Sherrard arrisca-se mesmo a dizer que, como representações dos arquétipos divinos da criação, os ícones tornam visíveis vários níveis do próprio ser divino, tal como se manifesta nesses arquétipos, e até tornam possíveis várias "encarnações dos arquétipos".

A forma do ícone não pode assim ser historicizada, como mera expressão de uma moda artística (passageira) num determinado tempo e lugar, mas é imposta pelo próprio arquétipo divino à medida que se revela ao artista, que se torna assim ao mesmo tempo um vidente das coisas divinas (um místico) e um profeta. Assim, a originalidade do ícone nada tem a ver com a descoberta de novos modos de expressão artística, mas é apenas determinada pela sua relação com a sua origem (divina).

A arte sacra pressupõe a contemplação das realidades invisíveis e inteligíveis, das razões divinas (logoi) da criação, o que equivale a uma experiência direta do próprio Deus. Sendo uma expressão da contemplação espiritual, o ícone é também uma ferramenta na contemplação de Deus. A própria contemplação só é perfeita quando o conhecedor ou o pintor se identifica com o conhecido, que é Deus, ou seu aspecto divino (arquétipo) responsável por inspirar o ícone pintado, e para isso o pintor deve renunciar e negar a si mesmo, porque sua individualidade pessoal pode ofuscar a revelação do arquétipo divino. É por isso que o iconógrafo não deve autografar seu ícone, como testemunho do fato de não ter deixado sua própria individualidade tornar-se o espaço no qual o arquétipo divino pode manifestar-se plenamente. A vocação do artista é tornar-se um hierofante, ou mesmo tornar-se ele próprio um sacramento vivo, um testemunho da revelação contínua de Deus no mundo percebido. Na verdade, tal vocação do artista dirige-se a todos os seres humanos: todos somos convocados a tornar-nos ícones vivos do grande mestre da pintura, que é Deus, como Ele mesmo planejou e ordenou que fôssemos.

Fonte: Ionuţ Daniel Băncilă, trechos do capítulo Philip Sherrard's Orthodox Esotericism da obra Meeting God in the Other, LIT Verlag, Münster, Alemanha, 2020.

19 de fevereiro de 2024

Cinco provas da existência de Deus


O filósofo americano Edward Feser apresenta 5 provas da existência de Deus apelidando-as de acordo com o filósofo que melhor as representa. Isso não significa que estes filósofos tenham efetivamente desenvolvido as provas nos moldes que Feser as apresenta, mas são os filósofos que, digamos, inspiraram Feser a desenvolvê-las.

1. Prova aristotélica (ou: A existência só pode vir do Ato Puro)

Aristóteles ensinava que toda mudança é a atualização de uma potência. Então, por exemplo, quando um café esfria ele atualiza a frieza que tem em potência. Observe, no entanto, que essa frieza, embora esteja em potência, já é algo. Em outras palavras, a frieza não é exatamente “nada”.

Mas a passagem da potência para o ato não explica a mudança. Por que a potência se atualizaria? Por que as coisas não se mantêm como estão, sem mudanças, sem alterações? Ora, a mudança exige um “mudador”. E mais: esse “mudador” precisa ele mesmo ser atual. No caso do café poderia ser um cubo de gelo, a frieza do ambiente etc. No entanto, se o “mudador” está ele mesmo experimentando mudança, então é necessário, por conseguinte, que haja outro “mudador”. E assim, linearmente (ou seja, temporalmente). Isso, no entanto, não significa que seja necessário um primeiro “mudador” num passado remotíssimo.

No entanto, a ideia de mudança linear nos ajuda a vislumbrar outro tipo de mudança: a mudança hierárquica. Ora, a xicara de café exige que a mesa a sustente, que por sua vez exige que o chão a sustente, que por sua vez exige que a Terra a sustente etc. Isso tudo simultaneamente. Aqui não constatamos a mudança tal como a constatamos no caso da mudança linear, mas a atualização de potências não nos permite negar que há, sim, uma mudança: a xícara tem a potência de estar a um metro do chão que é atualizada pela mesa, e assim sucessivamente. Há uma relação de dependência entre ao membros. A mesa, o chão, a Terra etc. não têm o poder para sustentar nada a não ser que derivem esse poder de algo. Eles são, digamos, meros instrumentos. E aqui uma observação crucial: enquanto a mudança linear não requer um primeiro membro, a mudança hierárquica sim o requer. Ora, se um dos elementos da série hierárquica não cumpre seu “papel”, a xícara deixa de atualizar sua potência de estar a um metro do chão.

O primeiro membro da série hierárquica não precisa ser primeiro no sentido que venha antes do segundo, do terceiro etc., mas primeiro no sentido de que tem poder causal inerente ou incorporado, enquanto os demais têm poder meramente derivatrivo.

Entretanto, a série linear tem de pressupor que haja uma hierarquia. Me refiro à própria existência dos elementos. O que faz com que a xícara de café não apenas esteja onde está, mas que continue a existir? O que sustenta a existência da xícara? Poderíamos apelar à estrutura atômica da xícara, às partículas subatômicas etc., mas isso apenas esconderia a pergunta debaixo do tapete. O que sustenta a existência das partículas subatômicas? Por que elas se atualizam como se atualizam e não de outra forma? O que lhes dá existência às potências que elas têm? Tem de haver um primeiro membro a tudo isso que não seja ele mesmo uma potência, mas um atualizador não atualizado. Um puro ato ou, como diria Aristóteles, um motor imóvel.

É notória a semelhança desta prova com a prova apresentada por Mortimer J. Adler.

2. Prova plotiniana (ou: O composto só pode vir do Uno)

As coisas de nossa experiência são compostas de partes. Um composto depende fundamentalmente (atemporalmente) de suas partes. Uma cadeira depende da existência, em todo e qualquer momento, da adequada disposição de suas partes para existir.

A exemplo do raciocínio que empreendemos na prova aristotélica, a cadeira deve ter sido construída por alguém no passado e assim sucessivamente. É uma série causal linear. Mas todos os elementos que agora, neste instante, compõem a cadeira precisam existir agora, neste instante. Trata-se de uma série causal hierárquica. Aqui pouco importam os princípios metafísicos de forma-matéria ou essência-existência. O que importa é que todo composto tem uma causa que o mantém composto que, por sua vez, é também composta. Novamente, uma primeira causa faz-se necessária para explicar os compostos, mas que seja ela mesma simples, sem partes, nem materiais, nem metafísicas. É o que o filósofo neoplatônico Plotino chamava de Uno.

3. Prova agostiniana (ou: Os objetos abstratos têm de existir num Intelecto)

Os objetos abstratos (universais, proposições, números, objetos matemáticos, mundos possíveis) existem de alguma forma. Eles não existem totalmente independentes do mundo (como o mundo das ideias de Platão) nem totalmente imanentes ao mundo (como no hilomorfismo aristotélico). Feser evidentemente descarta as alternativas nominalista – que nega a realidade dos objetos abstratos – e conceitualista – que admite sua realidade enquanto objetos construídos única e exclusivamente pela mente humana.

A solução é o que Feser chamar de “realismo escolástico”, que nada mais é do que o realismo aristotélico com um “acabamento” platônico. O “terceiro reino” platônico, embora incoerente, serve de inspiração para localizar o reino dos objetos abstratos fora da mente humana e do mundo material. Em concreto, adotando uma famosa tese atribuída a Santo Agostinho, Feser sustenta que tais objetos existem em um intelecto infinito, eterno e divino. O realismo escolástico é um compromisso aceitável, que evita os erros realistas de Platão e Aristóteles. Esses objetos têm de existir no Intelecto divino.

4. Prova tomista (ou: A existência tem de vir da Existência)

O mundo está povoado por uma enorme quantidade de coisas. Apesar da miríade de coisas que há no mundo, sabemos duas coisas distintas a respeito delas: sabemos o que são (a natureza/essência das coisas) e sabemos que são (a existência das coisas). O homem ser um animal racional é saber sua natureza/essência, e que realmente haja homens é saber que existem.

Há vários motivos para defendermos a distinção entre essência e existência. O primeiro motivo foi apresentado por Feser em seu Scholastic Metaphysics. Procure sua explicação sobre a existência de leões, dinossauros e unicórnios. O segundo motivo tem a ver com a contingência das coisas. Elas existem, mas poderiam não ter existido. Se sua existência não fosse distinta de suas essências então, por sua própria essência teriam de existir, ou seja, seriam necessárias, o que é absurdo. O terceiro motivo é que seria impossível que houvesse mais de uma coisa cuja essência contivesse a existência. Ora, se há algo cuja essência não seja distinta da existência então nessa coisa essência e existência são idênticas. Sua essência seria simplesmente sua existência. Essa seria a única coisa realmente existente. Todas as demais não poderiam existir, dado que essência e existência supostamente são idênticas, o que é absurdo.

Portanto, se algo existe então a fonte de sua existência tem de vir de fora. Mas essa existência não se aplica somente quando a coisa começa a existir, mas depois que ela existe e enquanto ela existir. Essa fonte da existência não pode ser ela mesma contingente, mas algo que seja a própria existência. Algo que, nas palavras de Tomás de Aquino, seja “a própria existência subsistente”.

5. A prova leibniziana (ou: Tem de existir um ser necessário)

Trata-se do princípio de razão suficiente. É a ideia de que para tudo há uma explicação para sua existência, para os atributos que apresenta, para a situação em que se encontra. É um princípio difícil de explicar não por ser complexo, mas, ao contrário, por ser demasiado óbvio para que se diga algo a favor ou contra. A própria confiança que depositamos em nossa percepção sensível e nas ciências empíricas nos impede de negar o princípio de razão suficiente. Negar o princípio da razão suficiente é minar a possibilidade de toda e qualquer indagação racional.

Não confundamos a causalidade com o princípio de razão suficiente. Feser relembra o exemplo dado pelo próprio Leibniz. Imagine uma série infinita de livros de geometria sendo que cada um deles foi copiado do anterior. Sabemos a causa imediata de cada livro, mas obviamente não explicamos tudo. Por que livros de geometria? Por que não outros livros? Por que não outros objetos? A mera relação causal não explica uma outra relação que não é exatamente causal, mas existencial.

Não há como evitar a conclusão de que para que exista uma série de seres contingentes tem de haver algo que seja necessário, cuja existência não seja explicada por nada mais.

Fonte: Edward Feser, Cinco pruebas de la existencia de Dios, Ediciones Cor Iesu, Toledo, Espanha, 2021.

11 de fevereiro de 2024

Marte vs. Vênus


A origem dos conflitos entre homens e mulheres está sobretudo na ideia subjacente de que as mulheres deveriam se comportar como homens e, vice-versa, que os homens deveriam se comportar como mulheres. O amor entre ambos só poderá voltar a desabrochar se começarem a entender, e aceitar, que homens e mulheres sentem, pensam e agem de maneiras diferentes.

A mulher quando compartilha seus sentimentos busca empatia por parte do homem, mas o homem, ignorando como pensam as mulheres, pensa que a mulher quer uma solução para os conflitos e problemas que está expondo. Os homens valorizam o poder, a competência, a eficiência e a realização. Os homens em geral fazem coisas para se aprimorarem e ganharem conhecimento e habilidades. O sentido de vida masculino é produzir resultados. As mulheres se voltam mais para pessoas e sentimentos, enquanto os homens se voltam mais para objetos e coisas.

Para os homens, atingir metas e produzir resultados são importantes porque é a maneira masculina de provar seu valor, sua dignidade. Mas para atingir essas metas e produzir esses resultados os homens têm de fazer isso sozinhos. Quando um homem recebe um conselho que não pediu ele presume que a mulher entende que ele, o homem, é incapaz de fazer algo por si mesmo. Pedir ajuda, para um homem, é sinal de fraqueza. É por isso que os homens oferecem soluções para as mulheres: eles entendem que elas, sendo “homens”, ao exporem seus sentimentos e dramas pessoais, estão pedindo ajuda. Não é isso que elas querem. Conversar sobre problemas, para uma mulher, não é pedir soluções.

Para as mulheres, a comunicação, a beleza e os relacionamentos são importantes porque é por meio deles que elas se amparam e se ajudam mutuamente. O sentido de vida feminino é criar relacionamentos. A satisfação feminina vem do compartilhar e se relacionar com os outros. Para uma mulher, muito mais importante do que cumprir metas ou alcançar resultados é expressar sua bondade, seu amor e sua atenção. Quando uma mulher conversa, ela busca aproximação e não necessariamente uma solução.

Quando um homem enfrenta algum problema ao qual não tem solução é comum que se retire para sua “caverna”. Em outras palavras, o homem reduz sua comunicação ao mínimo necessário até que em seu mundo mental ele consiga vislumbrar uma solução, ou pelo menos uma linha de ação, para o problema. Portanto, quando um homem está nessa caverna é irracional exigir que ele saia e se comporte como antes de entrar. Seria igualmente irracional pedir que uma mulher aborrecida seja calma e razoável.

Os homens ficam motivados e fortalecidos quando se sentem necessários. Quando o homem sente que não faz diferença na vida da mulher será difícil para ele se importar com a vida e os relacionamentos da mulher. É difícil ficar motivado quando ele não é necessário.

As mulheres ficam motivadas e fortalecidas quando se sentem acalentadas. Quando a mulher sente que o homem não se importa com seus sentimentos e relacionamentos será difícil para ela se sentir feliz. É difícil se sentir feliz quando ela está sozinha.

Os homens precisam entender que o espírito competitivo, ou seja, o espírito de que eu ganho enquanto você perde, tem seu lugar em diversos aspectos da vida cotidiana. No entanto, o espírito competitivo não pode prevalecer no relacionamento com uma mulher. Por mais piegas que possa parecer, num relacionamento é necessário que ambos vençam.

De maneira geral, quando as mulheres entram na vida adulta se dão conta do quanto ela pode desistir de si mesma para agradar um homem. Por outro lado, quando os homens entram na vida adulta se dão conta do quanto podem servir e respeitar mais uma mulher. Isso significa que quando uma mulher se doa demais a culpa não é do homem. Similarmente, quando um homem se dedica pouco a culpa não é da mulher. Ambas as posturas são uma espécie de tendência natural de cada sexo. As mulheres em especial precisam estar atentas ao que podem dar sem se ressentirem. O ressentimento mais tarde funcionará como um efeito rebote: ela dará menos porque entenderá que o homem não dá o mesmo em troca.

Os homens têm de entender que para as mulheres não é fácil receber. Para elas, receber é sinal de que podem transmitir a mensagem de que são muito dependentes, e isso lhes desperta uma grande culpa. Em geral, as mulheres nutrem a ideia, desde a infância, de que não merecem a ajuda que recebem, e por isso frequentemente a negam. Elas podem desenvolver a ideia de que são “menos” do que os homens e, assim, terem medo de aceitar, muito menos pedir, ajuda. Os homens, por sua vez, se sentem frustrados e desmotivados quando têm sua ajuda rejeitada. Um curioso, e destrutivo, ciclo se forma aí. Precisar dos outros coloca a mulher em uma posição vulnerável.

Os homens têm medo de que não sejam bom o suficiente. Em geral compensam esse medo se esforçando para serem ainda melhores e mais competentes. Se as mulheres têm medo de receber – porque isso lhes traz a sensação de que são um fardo para os homens –, os homens têm medo de dar – porque isso lhes traz a sensação de que correm o risco de falhar com as mulheres. Os homens têm de entender que quando fracassam isso não significa que eles sejam um fracasso. O homem quer ser o herói da mulher e, nessa ânsia, não a ouve.

Ademais, e por consequência das diferenças fundamentais entre homens e mulheres expostas acima, as mulheres tendem a se expressar de maneira hiperbólica, generalista e, digamos logo, exagerada. Quando uma mulher diz a um homem que “você só pensa em você”, isso não significa que realmente pense assim, mas significa simplesmente que ela sente tal intensidade no momento exato em que está falando. Esse uso de figuras de linguagem confunde os homens que, de maneira geral, tendem a ser mais precisos com as palavras e as acabam tomando literalmente.

Muitas mulheres adotam uma estratégia bastante disseminada – e bastante errônea – para conseguir o que querem de um homem: criticar e dar conselhos sem que tenham sido pedidos. É a ideia de que o homem “tem que mudar”. A “mudança” não apenas não virá como o problema original tenderá a piorar.  A grande maioria não sabe como pedir o que quer porque, antes de mais nada, acha que “amar é não precisar pedir”. A mulher tem de aprender a aceitar o homem, e é disso que ele precisa. Os homens precisam encontrar maneiras de mostrar que se importam, enquanto as mulheres precisam encontrar maneiras de mostrar que confiam. A mulher nunca deve ser julgada por precisar de reafirmação, enquanto o homem nunca deve ser julgado por precisar de “caverna” (isolamento).

Gray ensina um mnemônico para entendermos homens e mulheres. Os homens são como elásticos porque têm a tendência a se afastarem das mulheres para depois se reaproximarem delas. As mulheres são como ondas porque seu estado de ânimo cai repentinamente e depois volta a subir. Os homens ingenuamente esperam que seu ânimo esteja sempre em alta, o que é tão irreal quanto esperar que todo dia faça sol. Quando uma mulher não se sente segura em seu estado de baixo ânimo ela tenderá a evitar intimidade e sexo e/ou intensificar vícios como comida, bebida, cigarro, trabalho excessivo etc. Qualquer que seja a estratégia para proteger-se, a mulher tenderá a ficar insensível e incapaz de sentir amor. Os homens discutem pelo direito de serem livres, as mulheres discutem pelo direito de ficarem aborrecidas. Os homens querem espaço, as mulheres querem compreensão.

Teoricamente uma discussão não precisa ser destrutiva. Ela pode ser uma conversa estimulante que expresse diferenças e discordâncias. No entanto, a maioria dos casais comete o erro sutil, mas crasso, de não discutir o é da coisa, mas o como da coisa. Resolver uma discussão requer uma ampliação dos nossos pontos de vista para incluir e integrar um outro ponto de vista. Quanto mais íntimos de alguém mais difícil fica para ouvir objetivamente o seu ponto de vista sem reagir aos sentimentos negativos. Não é o que dizemos que machuca, mas o como dizemos. Na maioria das vezes, o que faz com que o outro resista ao argumento não é o que está sendo dito, mas como está sendo dito. As mulheres, muitas vezes sem se darem conta, aumentam a agressividade da discussão ao criticarem o comportamento do parceiro e, ainda pior, quando dão conselhos não solicitados.

Para evitar discussões, há 4 comportamentos (ou 4 “Cs” como diz Gray) que precisam ser evitados.

(1) Combater. Postura tipicamente masculina, trata-se do impulso de começar a discussão culpando, julgando, criticando e fazendo com que as parceiras pareçam erradas. A intimidação sempre enfraquece a confiança num relacionamento.

(2) Correr. Postura tipicamente masculina, trata-se do impulso de estabelecer uma guerra fria, recusar-se a falar e, por fim, nada se resolve.

(3) Camuflar. Postura tipicamente feminina, trata-se do impulso de fingir que não existe nenhum problema. Há aqui um medo das mulheres em serem sinceras com seus próprios sentimentos. Ela finge que está “tudo bem”.

(4) Curvar-se. Postura tipicamente feminina, trata-se do impulso de ceder artificialmente ao argumento alheio e assumir a culpa e a responsabilidade pelo que quer que esteja acontecendo.

De qualquer forma, toda e qualquer discussão tem por base um único fundamento: a falta de amor. Um dos dois, ou ambos, não se sentem amados e tal carência bloqueia a compreensão, a busca pelo entendimento e a concentração em torno do quê, e não do como.

Para encher o tanque de amor (cf. As cinco linguagens do amor) de uma mulher, o homem tem de entender que mais vale fazer pequenas, mas múltiplas, coisas do que algumas poucas e grandiosas coisas. Por outro lado, a mulher tem de entender que comunicar seu apreço pelo que foi feito é absolutamente fundamental. Dizer “obrigada”, por exemplo, é mandatório mesmo que você ache que ele tenha feito “nada mais do que sua obrigação”. Se o ressentimento feminino a impedir que apreciar o esforço masculino, seu vício por executar apenas coisas grandiosas dificilmente será curado. O ressentimento é especialmente nocivo na mulher, que tende a dar mais que receber e posteriormente se ressentir de não receber na mesma medida de volta. De repente, o “placar” de amor, que originalmente estava, digamos, 40 a 10 em favor da mulher, é reduzido mentalmente por ela a 30 a 0. Ou seja, o homem passa a ser um “zero” quando, na verdade, era ao menos 10. Evidentemente o homem também ficará ressentido. O homem tem de entender que a mulher, quando se dá livremente, subentende que o homem está contabilizando tudo isso a seu (da mulher) favor. Para o homem a coisa não funciona assim. O homem precisa ouvir, literalmente, o pedido de uma mulher. Lembre-se: homens são homens, e não mulheres. Parece óbvio? Sim, mas no dia a dia a coisa não é nada “óbvia”.

Os homens, quando se sentem desamados, ofendidos ou magoados, precisam aprender a perdoar ao invés de dar “pontos negativos” à parceira. Eles têm de se lembrar o quanto de bom elas fizeram. Negar a ela tudo é não apenas injusto, mas é abusivo.

Dissemos acima que homens e mulheres, quando querem apoio, ajuda, conversa etc., precisam pedir. Isso é especialmente difícil para as mulheres porque elas entendem, erroneamente, que “amar é nunca ter que pedir”. Nada mais falso. Homens não são mulheres e, portanto, não sabem instintivamente o que as mulheres querem e precisam. Por mais que pareça frustrando às mulheres, elas têm de aprender a pedir: a ideia de que “se eu tenho que pedir não conta” é completamente fantasiosa. Quando enfim chegam no limite e cedem, as mulheres, em vez de pedir, exigem.

Uma dica às mulheres. Os homens são movidos a apreço. Se não são apreciados desistem de dar. Se você está fazendo muito e ele pouco, faça um pouco menos para que não se ressinta tanto e possa apreciá-lo também. Assim o placar se reequilibra e aumentam as chances de você receber o apoio que precisa e merece. Gray chega ao ponto de declarar que um relacionamento é saudável quando ambos se sentem livres para pedir o que precisam e se permitem dizer “não” se assim escolherem.

Por fim, cabe lembrar que pessoas que se amam muito num dia frequentemente brigam no dia seguinte. Essas mudanças são confusas, mas são comuns e perfeitamente compreensíveis.

“O amor traz à tona nossos sentimentos mal resolvidos. Num dia estamos nos sentindo amados e, no dia seguinte, estamos repentinamente com medo de confiar no amor. As memórias dolorosas de rejeições passadas começam a vir à tona quando ficamos frente a frente para confiar e aceitar o amor da nossa parceira. Sentimentos que antes não conseguíamos expressar no passado de repente inundam nossa consciência quando estamos seguros para sentir. O amor descongela os sentimentos reprimidos, e gradativamente esses sentimentos não resolvidos começam a vir para a superfície durante um relacionamento. É como se seus sentimentos não resolvidos esperassem até que você estivesse se sentindo amado e então vissem à tona para serem cicatrizados. [...] Quando estamos aborrecidos, cerca de 90% do aborrecimento está relacionado com nosso passado e não tem nada a ver com o que pensamos que está nos aborrecendo. Em geral somente 10% do nosso aborrecimento se aplica à experiência presente”.

Tente escrever seus sentimentos, como se fosse uma carta à parceira, e dessa maneira, distante dela, procure lembrar-se quais experiências passadas estão sustentando seu aborrecimento e, assim, escrevendo, talvez você consiga neutralizar a negatividade e ser mais objetivo e, então, encontrará o tom e as palavras certas para dirigir-se à sua parceira quando estiver com ela pessoalmente.

Lembre-se: o amor também é sazonal. Há períodos (ou “fases”) em que ele é mais árduo. O processo de aprendizado não se resume apenas a ouvir e aplicar o que aprendeu, mas também em esquecer e relembrar-se.

Fonte: John Gray, Homens São de Marte, Mulheres São de Vênus, Editora Rocco, Rio de Janeiro, Brasil, 1996.

7 de fevereiro de 2024

Palavras de Cristo



A genial obra Palavras de Cristo do filosofo francês Michel Henry foi traduzida para inúmeros idiomas e é provavelmente seu livro mais conhecido. A estrutura do livro é um pouco confusa, mas é possível agrupar seus ensinamentos em 4 grandes temas. Vejamos:

I) Palavras de Cristo aos homens falando-lhes deles mesmos

Tais palavras são o que comumente chamamos de “sabedoria”. É quando Cristo diz, por exemplo, que o mal que há no mundo não provém do mundo, mas do homem mesmo. Mais especificamente, o mal encontra-se no coração, que é onde o homem prova tudo o que vive e a si mesmo.

E, chamando outra vez a multidão, disse-lhes: Ouvi-me vós, todos, e compreendei. Nada há, fora do homem, que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai dele isso é que contamina o homem. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça. Depois, quando deixou a multidão, e entrou em casa, os seus discípulos o interrogavam acerca desta parábola. E ele disse-lhes: Assim também vós estais sem entendimento? Não compreendeis que tudo o que de fora entra no homem não o pode contaminar, porque não entra no seu coração, mas no ventre, e é lançado fora, ficando puras todas as comidas? E dizia: O que sai do homem isso contamina o homem. Porque do interior do coração dos homens saem os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos estes males procedem de dentro e contaminam o homem. (Marcos 7:14-23)

No entanto, o homem, obstinado que é, insiste em depositar seu interesse no mundo, que é menos do que o homem. Cristo, porém, ensina precisamente o contrário:

Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; e eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé? Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? Porque todas estas coisas os gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas; mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal. (Mateus 6:25-34)

A propriedade constitutiva da vida humana, portanto, segundo Cristo, é provar-se. A realidade do homem, provado no coração, é, portanto, de natureza afetiva. A afetividade é a essência da vida. No coração reside nossa realidade, nossa vida.

Mas Cristo nos apresenta a vida não somente como uma oposição entre o homem e o mundo, mas como uma oposição entre o visível e o invisível. E esta oposição abre a possibilidade do homem viver em meio à hipocrisia, à falsidade, ao fingimento. É na nossa subjetividade invisível que reside nossa realidade efetiva, enquanto o visível é tão-só uma aparência. Portanto, temos de lutar incessantemente contra a hipocrisia.

Cristo ensina que a vida vale mais do que a Lei. E nesta oposição entre visível e invisível Cristo ensina que a vida humana não é uma progressão, um aperfeiçoamento, das relações naturais, mas uma ruptura.

Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra; e assim os inimigos do homem serão os seus familiares. (Mateus 10:34-36)

Cuidais vós que vim trazer paz à terra? Não, vos digo, mas antes dissensão; porque daqui em diante estarão cinco divididos numa casa: três contra dois, e dois contra três. O pai estará dividido contra o filho, e o filho contra o pai; a mãe contra a filha, e a filha contra a mãe; a sogra contra sua nora, e a nora contra sua sogra. (Lucas 12:51-53)

Porque o reino dos céus é semelhante a um homem, pai de família, que saiu de madrugada a assalariar trabalhadores para a sua vinha. E, ajustando com os trabalhadores a um dinheiro por dia, mandou-os para a sua vinha. E, saindo perto da hora terceira, viu outros que estavam ociosos na praça. E disse-lhes: Ide vós também para a vinha, e dar-vos-ei o que for justo. E eles foram. Saindo outra vez, perto da hora sexta e nona, fez o mesmo. E, saindo perto da hora undécima, encontrou outros que estavam ociosos, e perguntou- lhes: Por que estais ociosos todo o dia? Disseram-lhe eles: Porque ninguém nos assalariou. Diz-lhes ele: Ide vós também para a vinha, e recebereis o que for justo. E, aproximando-se a noite, diz o senhor da vinha ao seu mordomo: Chama os trabalhadores, e paga-lhes o jornal, começando pelos derradeiros, até aos primeiros. E, chegando os que tinham ido perto da hora undécima, receberam um dinheiro cada um. Vindo, porém, os primeiros, cuidaram que haviam de receber mais; mas do mesmo modo receberam um dinheiro cada um. E, recebendo-o, murmuravam contra o pai de família, dizendo: Estes derradeiros trabalharam só uma hora, e tu os igualaste conosco, que suportamos a fadiga e a calma do dia. Mas ele, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço agravo; não ajustaste tu comigo um dinheiro? Toma o que é teu, e retira-te; eu quero dar a este derradeiro tanto como a ti. Ou não me é lícito fazer o que quiser do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou bom? Assim os derradeiros serão primeiros, e os primeiros derradeiros; porque muitos são chamados, mas poucos escolhidos. (Mateus 20:1-16)

Quando meditamos as palavras de Cristo, vemos que as relações desconcertantes anunciadas por Ele não são vividas dentro das modalidades da vida, dentro dos sentimentos, dentro do coração. É lá, no coração, e não no mundo, que serão felizes os que choram, os que são perseguidos, os que forem odiados, os que forem expulsos, os que forem insultados, os que forem desprezados. Por outro lado, infelizes são os ricos, os saciados, os que riem, os que são elogiados. E veja que as relações humanas, com base nessa ruptura radical das relações naturais, também são rompidas:

Mas a vós, que isto ouvis, digo: Amai a vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam; bendizei os que vos maldizem, e orai pelos que vos caluniam. Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra; e ao que te houver tirado a capa, nem a túnica recuses. (Lucas 6:27-29)

Aqui Michel Henry desnuda uma característica crucial das relações humanas que é absolutamente desqualificada e condenada por Cristo: a reciprocidade. O que os homens fazem e o que os homens são explica-se a partir deles mesmos, a partir das relações recíprocas que imperam entre eles.

A raça humana já não recebe seu ser da luz do mundo, mas sim da relação interior com Deus. Abre-se, assim, um novo abismo no seio do invisível. Esse novo abismo é caracterizado pela não-reciprocidade. A era do olho por olho, dente por dente, está morta. Esse novo abismo descortina uma nova reciprocidade: a relação interior dos seres vivos com a Vida.

Mesmo quando as relações humanas são pautadas pelo “amor”, esse “amor” vem do coração. Mas do coração provém somente o mal. Portanto, o “amor” desinteressado que se constata nas relações humanas é um “amor” perfeitamente interesseiro, cobiçoso, egoísta. Como diz Henry: “Na ausência de Deus, o amor dissolve-se naturalmente: sou tributário do amor do outro e o amor do outro é tributário do meu, aleatório, do mesmo modo que a reciprocidade à qual deve a sua existência fugaz”.

II) Palavras de Cristo aos homens falando de Si mesmo

A não-reciprocidade significa a imanência da vida absoluta nos seres vivos. Uma nova genealogia, que é divina e não mais humana, se configura nesse novo abismo: não somos mais filhos de homens, mas filhos de Deus. Essa imanência significa que Cristo não apenas conhece e explica as coisas do Reino de Deus, mas Ele mesmo intervém na relação com os homens. A relação dos homens com Cristo, ademais, é revelada como sendo idêntica à relação de Cristo com Deus. Ao relacionar-se com Cristo, os homens cumprem automaticamente as bem-aventuranças anunciadas por Cristo. Cristo, portanto, identifica-Se com o próprio Deus.

Mas quem pode dar testemunho dessa condição de Jesus Cristo? Quem poderia atestar que Cristo é quem diz que é? Esse testemunho só poderia ter vindo, e veio, de uma única fonte: o próprio Pai.

III) Como a palavra de Cristo difere da palavra humana

Aqui Henry faz uma análise magistral das palavras de Cristo. As palavras humanas, dissemos acima, permitem o exercício da hipocrisia, ou seja, permite que o coração e o mal que carrega impere nas relações humanas: elas afirmam o que não existe e negam o que existe. A palavra de Cristo, a palavra da Vida, é incapaz de mentir. 

Veja, por exemplo, o sofrimento. O sofrimento prova-se a si mesmo. O sofrimento só é capaz de falar de si mesmo sofrendo.  Mesmo que eu diga “eu sofro” sem estar realmente sofrendo, essa palavra “sofro” é apenas uma significação do sofrimento, e não o próprio sofrimento. A palavra do mundo fala sobre o sofrimento. Somente a palavra do sofrimento é a palavra da verdade. A autorrevelação da vida permite provar, sem erros, o sofrimento.

Aqui observamos a relação intima e indestrutível entre Verdade e Vida. “Enquanto que a palavra do mundo fala do que se tornou manifesto na indiferença da exterioridade, é no sentimento, neste sentimento em que ela se prova sempre, de modo patético, que fala a palavra da vida”, diz Henry.

Do mesmo modo as palavras de Cristo falam de maneira inegável da Verdade.

IV) Como os homens são capazes de ouvir a palavra de Deus

Os homens são capazes de ouvir Suas palavras, e nelas detectar a verdade inegável, porque é o próprio Deus quem confere este poder aos homens. Quando Cristo diz:

Disse-lhe, pois, Pilatos: Não me falas a mim? Não sabes tu que tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar? Respondeu Jesus: Nenhum poder terias contra mim, se de cima não te fosse dado. (João 19:10,11)

Porque sem mim nada podeis fazer. (João 15:5)

Ele não se refere apenas ao poder dado a Pilatos, mas a todo e qualquer poder. Ora, mas essa não é a experiência que temos. No dia a dia facilmente assumimos que o exercício dos nossos poderes é algo que brota de nós mesmos, de nosso eu, de nossa vida. Nós imaginamos que esse poder nós colhemos de nós mesmos. Imaginamos que se somos a fonte e o fundamento de nosso poder, somos também a fonte e o fundamento de nosso próprio ser. Eis a ilusão das ilusões: “Este eu inultrapassavelmente passivo em relação a si mesmo, sempre já dado a si mesmo na vida, posto nela independentemente do seu querer, ei-lo a seus olhos um Sujeito omnipotente, senhor de si mesmo, princípio de algum modo absoluto da sua condição de vivo, de seu eu, do conjunto das suas capacidades e talentos. [...] É deste coração cego à Verdade, surdo à Palavra da vida, endurecido, preocupado exclusivamente consigo, tomando-se como ponto de partida e término das suas experiencias e das suas ações, é dele que sai o mal”.

É na vida que se encontra aquilo que Henry chama de “autorrevelação patética”. Esta autorrevelação é o que permite, por exemplo, que sintamos o sofrimento. O sofrimento é algo que não fala ao mundo, mas somente ao coração humano. O mesmo podemos dizer da alegria, da angústia, dos desejos, das emoções, dos quereres, dos pensamentos etc. Tudo é sentido ali.

O poder de Cristo é igualmente exercido no coração, onde ocorre uma purificação, uma transformação radical. É Cristo quem dá a vida, é Ele quem a restabelece, é no coração que o faz. Diz Henry: “Escutar a palavra é então consubstancial à natureza humana. Esta identidade da revelação do homem a si, no seu coração, e da revelação de Deus no seu Verbo explica porque é que Deus vê no íntimo dos corações, um dos grandes temas do ensino de Cristo dirigido aos homens. [...] A possibilidade de o homem escutar, no seu coração, a palavra de Cristo é também a possibilidade de compreender as Escrituras”.

Cristo é a Vida. Se a vida é aquilo com que provamos a alegria, o sofrimento etc. o Cristo é o próprio abraço com o qual provamos tudo isso. Nossa vida é a Vida. De novo, provar a palavra é consubstancial a nós.

* * *

Um exemplo característico de como as palavras de Cristo, uma vez que ressoam num coração previamente purificado, são acolhidas como verdade inerrante é o de São Justino Filósofo

Fonte: Michel Henry, Palavras de Cristo, Colibri Edições, Lisboa, Portugal, 2003.

5 de fevereiro de 2024

Metafísica escolástica


Ato e potência

Há três tipos de distinções no pensamento escolástico:

  • Distinção real: reflete uma diferença na realidade extramental.
    • Distinção real maior ou absoluta: reflete uma diferença entre entes, como pessoas, cachorros, árvores, pedras, ou entre duas metades de uma pedra, uma maçã e sua macieira, a pata e a perna de um cachorro, ou entre um pedra e sua cor, ou entre a quantidade e a qualidade de um ente).
    • Distinção real menor ou modal: reflete uma diferença entre os modos de um ente, ou seja, aquilo que não existe à parte do próprio ente (p.ex. um objeto material e sua localização, ou um objeto material e seu estado de repouso ou movimento).
  • Distinção lógica: reflete uma diferença na maneira de pensar a realidade extramental.
    • Distinção puramente lógica: reflete uma diferença lógica meramente verbal, sem nenhum fundamento na realidade (p.ex. a distinção entre “ser humano” e “animal racional”.
    • Distinção virtual: reflete uma diferença lógica que possui algum fundamento na realidade (p.ex. a natureza humana no mundo real é apenas uma coisa, embora possa ser abordada sob o aspecto da animalidade e da racionalidade).
      • Distinção virtual maior ou perfeita: reflete uma diferença lógica virtual na qual os conceitos não incluem um ao outro (p.ex. “animalidade” e “racionalidade”).
      • Distinção virtual menor ou imperfeita: reflete uma diferença lógica virtual na qual os conceitos se incluem, ou se implicam, um no outro (p.ex. “ser” e “substância”, pois “ser” abarca tudo o que existe, inclusive as substâncias, enquanto “substância” é um tipo de ser).
  • Distinção formal (Duns Scot): reflete uma diferença intermediária entre distinção real e lógica (p.ex. para Scot a distinção entre ato e potência é formal, para Tomás é real).

Quanto à potência:

  • Potência real ou potência subjetiva: é propriamente uma potência, e está enraizada em um sujeito real (p.ex. o potencial de uma bola derreter a certa temperatura).
    • Potência ativa ou poder: capacidade de suscitar um efeito (p.ex. a capacidade do fogo derreter a borracha). Para os escolásticos, trata-se de um tipo de ato ou atualidade, uma primeira atualidade, ou seja, um tipo de ato em relação à substância que a possui e um tipo de potência em relação à ação que a fundamenta. A potência ativa pura ou poder puro, isto é, aquele que não se encontra mesclado com nenhuma potencialidade, é pura atualidade e é identificada com Deus (potência ativa incriada). As demais potências ativas ou poderes sempre vêm mesclados com alguma potência passiva ou potencialidade (potência ativa criada).
    • Potência passiva ou potencialidade: capacidade de ser afetado (p.ex. a capacidade da borracha ser derretida). É o que popularmente se chama de “potência”.
      • Potência passiva em relação à coisa que a possui.
        • Potência passiva em relação à essência. Quanto às coisas que contêm matéria:
          • Matéria prima: pura potencialidade para receber uma forma.
          • Matéria segunda: aquela que já recebeu alguma forma substancial, mas está em potência relativa à recepção de formas acidentais.
        • Potência passiva em relação à existência.
      • Potência passiva em relação ao agente que suscita o efeito na coisa.
        • Potência passiva natural: indica um resultado obtido pelas capacidades naturais da coisa e que só pode ser atualizado por um agente que em si é uma mistura de potência ativa e passiva (p.ex. a capacidade de andar, falar, pensar, querer, escrever poemas, dormir, conhecer verdades cientificas, teológicas etc.).
        • Potência passiva supernatural ou obediencial: indica um resultado que não pode ser obtido somente pelas capacidades naturais da coisa e que só pode ser atualizado por um agente divino puramente ativo (p.ex. a capacidade para atingir a visão beatífica).
  • Possibilidade lógica ou potência objetiva: é um objeto de pensamento (p.ex. unicórnio)

Observa-se que “sujeito” e “objeto” para os escolásticos têm sentido praticamente inverso ao usado na filosofia contemporânea.

Quanto ao ato:

  • Ato puro
    • Ato absolutamente puro: somente Deus
    • Ato relativamente puro: anjos, pois suas essências estão em potência em relação à existência.
  • Ato misto
    • Ato operativo. É a operação ou atividade de uma coisa.
    • Ato entitativo. É a coisa estaticamente falando.
      • Ato essencial. O que a coisa é, sua essência ou natureza.
        • Forma substancial (ou “ato primeiro”). O que faz a coisa ser o tipo de substância que é.
        • Forma acidental (ou “ato segundo”). O que modifica uma substância já existente.
      • Ato existencial. Aquilo que é, a existência da coisa.

Observa-se que uma causa eficiente (chamada na filosofia escolástica de “agente”) é o que suscita o surgimento do ser, ou modifica o ser, de alguma coisa. A causa eficiente, portanto, atualiza uma potência mediante o exercício das potências ativas (ou “poderes”) contidos na própria causa. Sou o autor deste texto, ou seja, sou sua causa eficiente, mas isso não significa que eu esteja todo o tempo escrevendo este texto. Meu poder de escrever deve ser distinguido da ação de escrever. Note aqui algo discreto, mas crucial: o possuidor do poder é a causa propriamente dita, enquanto o poder é um acidente da substância, não a substância em si. Os eventos não são “causas”, mas são as substâncias que adentram aos eventos que são causas.

Causalidade

Aristóteles faz uma distinção entre causa eficiente e causa final.

  • Causa eficiente. É chamada na filosofia escolástica de “agente”. É o que genericamente chamamos simplesmente de “causa” na filosofia contemporânea. É aquilo que suscita algo à existência, ou que ao menos modifica esse algo de alguma maneira.
  • Causa final. É o que Aristóteles chamava de “aquilo em prol do que” algo existe ou ocorre. É o fim ou objetivo desse algo. Na filosofia contemporânea geralmente é chamada de “causalidade teleológica”. Há algumas distinções que devem ser feitas nas causas finais:
    • Finalidade intrínseca vs. finalidade extrínseca. A finalidade de um relógio, p.ex., é extrínseca às partes do relógio. Quem lhe dá finalidade não é o relógio em si, mas o fabricante do relógio e o usuário do relógio. A finalidade é como que imposta ao relógio desde fora. A finalidade de uma bolota, por outro lado, é desenvolver-se em um carvalho. É algo que de certa forma faz parte da constituição da bolota. É sua finalidade intrínseca. Os metais do relógio continuam sendo o que são a despeito da finalidade do relógio, enquanto uma bolota deixa de ser uma bolota se ela não é capaz de desenvolver-se em um carvalho. É, a propósito, a diferença entre um artefato e uma verdadeira substância.
    • Fim vs. direcionamento. O fim de algo é sempre extrínseco a esse algo. Dar as horas é o fim, ou pelo menos um dos fins, do relógio, enquanto as partes desse relógio têm o direcionamento de dar as horas. No caso da bolota, o fim e o direcionamento estão ambos na própria bolota.
    • Origem próxima vs. origem distante. A origem próxima da teleologia natural está na própria natureza das coisas, enquanto sua origem distante está no intelecto ordenador divino. A propósito, segundo a filosofia escolástica, os seres vivos são distintos dos seres inanimados porque os seres vivos são capazes de causação imanente (como a digestão p.ex.), enquanto os seres inanimados são capazes apenas de causação transeunte ou “transiente” (como uma pedra que movimenta outra mediante um choque p.ex.).

Está claro para a filosofia escolástica que a causa final é absolutamente necessária para explicar as causas eficientes. Se o efeito B é suscitado pela causa eficiente A, então a necessidade está forçosamente em A. No entanto, para tornar a regularidade dessas causas eficientes em algo inteligível é forçoso atribuir finalidade a essas causas eficientes, ou seja, a finalidade está como que nas causas eficientes. Portanto, não cabe concluir, à moda de Ockham e seus seguidores, que as causas finais são extrínsecas às coisas. As ciências podem, e devem, nos dizer se esta ou aquela finalidade é realmente plausível a esta ou aquela coisa, mas não têm condições de dizer se a finalidade enquanto tal é algo plausível ou não.

Hume chega a duvidar da causalidade e afirma que qualquer “efeito” pode, em princípio, surgir sem uma causa correspondente. Feser entende que em toda a sua filosofia Hume confunde imaginação com intelecção. São atividades essencialmente diferentes, embora os empiristas insistam em fundi-los. A intelecção tem a ver com a apreensão de conceitos, enquanto a imaginação tem a ver com a manipulação de imagens mentais (ou “fantasmas”). Os conceitos se referem a entes abstratos e universais, as imagens mentais se referem a entes concretos e particulares. Os conceitos podem alcançar um caráter determinado e inequívoco que nenhuma imagem mental poderia. Ora, é claro que podemos imaginar um efeito sem causa, mas também tem de ser claro que não podemos inteligir um efeito sem causa. E aqui cabe introduzir o princípio da causalidade (PC). Segundo explica Feser, o PC é a ideia de que “a potencialidade não pode atualizar-se sem a intervenção de um ser que já esteja atualizado”.

Para os metafísicos escolásticos, causa e efeito não são dois elementos ou dois eventos, mas dois elementos de um e mesmo evento. Eis o aspecto da simultaneidade da causalidade, embora, atenção, isso não implique em instantaneidade.

Outra distinção importante entre os escolásticos é uma série causal ordenada essencialmente de uma série causal ordenada acidentalmente. Se uma mão move um graveto que por sua vez move uma pedra, há uma conexão causal essencial entre os membros da série. Se o primeiro membro renuncia a seu poder causal, os demais não serão capazes de propagar a cadeia causal. Por outro lado, se um pai gera um filho, o fato de o pai não estar gerando um filho não anula o poder causal que o filho terá para gerar outro filho (neto do pai). Neste sentido, a relação entre os membros dessa série causal é acidental. E observe: numa relação ordenada essencialmente a simultaneidade é obrigatória, enquanto numa relação ordenada acidentalmente a simultaneidade não é obrigatória. E mais: numa relação ordenada essencialmente a série não pode estender-se para trás infinitamente, enquanto numa relação ordenada acidentalmente a série pode em princípio estender-se para trás infinitamente. Isso se explica porque, numa relação ordenada essencialmente, há uma primeira causa, ou seja, não apenas uma causa que venha antes da segunda, da terceira, da quarta causa etc., mas uma primeira causa que não tenha seu poder causal derivado de nenhum outro ente. A primeira causa é por definição incausada, enquanto as demais têm seu poder causal meramente instrumental ou derivativo.

Quanto ao PC, tudo o que estiver no efeito tem de necessariamente estar na causa total, seja formalmente, virtualmente ou eminentemente. Por exemplo, se tenho uma nota de 20 reais e a entrego a você, eu tenho a “forma” de possuir uma nota de 20 reais e causo você a ter a mesma forma. O efeito está na causa formalmente. No entanto, se tenho 20 reais na minha conta bancária e os transfiro por PIX à sua conta, o efeito está na causa total (eu, a conta bancária etc.) virtualmente. No entanto, se tenho em meu poder uma impressora genuína de notas de 20 reais e imprimo uma para você, então o efeito está na causa total (eu, a impressora etc.) eminentemente. As aplicações desse entendimento à existência de Deus são óbvias.

Substância

Ter uma substância (forma substancial) é ser um objeto “natural” no sentido de algo que “contém em si sua fonte de mudança e de estabilidade”. Um cipó tem substância, mas uma rede de dormir feita de cipós não. Enquanto a matéria prima está privada de substância, a matéria segunda (a matéria que já é água, ou pedra, ou homem, ou cão, ou cipó etc.) tem, sim, substância. É como se a matéria segunda estive “à espera” das várias formas acidentais que complementem sua forma substancial. Portanto, no mundo real a matéria prima só pode vir a existir em conjunto com a forma substancial.

Aqui uma nota importante. Dizemos que a água é composta de hidrogênio e oxigênio. É verdade, mas, segundo o entendimento tomista, o hidrogênio e o oxigênio estão apenas virtualmente presentes na água, mas não realmente presentes. Ora, apenas algumas das (mas não todas as) propriedade do hidrogênio e do oxigênio estão presentes na água. Isso significa que somente a forma substancial da água existe na água, enquanto as formas substâncias do hidrogênio, do oxigênio, dos quarks etc. estão apenas virtualmente presentes. Segundo Feser, “a forma substancial permeia a totalidade da substância que a possui, não apenas horizontalmente em suas partes – há tanta ‘cachorricidade’ no focinho e no rabo do Rex quanto no Rex como um todo –, mas também verticalmente na própria corporalidade do Rex; os elementos químicos existem virtualmente no Rex”. Não é o Rex que pode ser reduzido às suas partículas, mas suas partículas que “se reduzem” aos objetos naturais dos quais fazem parte. As partículas são menos reais do que o todo. A questão, observe, é filosófica, não científica.

Veja que a substância é o subjectum, o substrato, no qual os acidentes são inerentes. Por outro lado, a substância é a coisa que existe por si mesma e não precisa ser inerente em outra coisa.

Quanto ao acidente, chamamos de acidente próprio ou “propriedade” aquele que se segue ou “flui” da forma substancial da coisa. Por exemplo, a capacidade para fazer humor ou o livre arbítrio são propriedades que se seguem ou “fluem” da natureza humana enquanto animal racional. Um acidente contingente é aquele que não se segue ou não “flui” da forma substancial da coisa. Por exemplo, ter pele clara ou ter pele escuro são meros acidentes contingentes dos seres humanos. A cor da pele, portanto, não é uma propriedade dos homens enquanto tal.

A despeito se própria ou contingente, a manifestação de um acidente pode ser frustrada: um ser humano pode ser incapaz de exercitar seu livre arbítrio por portar alguma lesão cerebral ou um cão ser incapaz de andar por lhe faltar uma perna devido a um acidente ou defeito genético. Nada disso significa, porém, que essas coisas deixem de ser acidentes. Isso mostra, na verdade, que a essência de algo não é uma mera coleção de seus acidentes próprios (ou propriedades).

Essência e existência

A essência de uma coisa é aquilo que captamos intelectualmente quando identificamos o gênero e a diferença especifica dela. A essência é portanto a natureza da coisa (cf. FrederickWilhelmsen).

Santo Tomás era uma “essencialista”, ou seja, ele acredita que as essências existem realmente. Os convencionalistas, por outro lado, acreditam que as essências são dependentes da mente, ou seja, não têm existência própria. Mas um momento: se as essências dependem da mente, isso significa que elas pressupõem a existência dessa mente. Se a mente é ontologicamente (se não cronologicamente) anterior às essências, mas para que a mente exista é obviamente necessário que sua própria essência exista, então concluímos que a mente é tanto anterior quanto posterior às essências, o que é obviamente impossível. Portanto, triangularidade, humanidade, vermilhidade etc. são universais que existem independentemente da mente, ou seja, não são meras invenções da mente humano ou artefatos linguísticos. No entanto, um escolástico não entende que as essências existam numa espécie de “céu platônico”, mas que existem imanentemente nas coisas em si e são abstraídas pelo intelecto. Então veja: as essências existem realmente, mas não significa que existam independentemente das coisas que compõem o mundo. Elas não são nem individuais, nem universais.

Os empiristas, à moda de Berkeley, acreditam numa espécie de “imagismo”, isto é, como se os conceitos fossem imagens mentais, ou aquilo que os escolásticos chamavam de fantasmas. No entanto, os conceitos são universais e abstratos, enquanto as imagens não podem ser nem universais, nem abstratas. É verdade que os conceitos provêm do mundo sensível, mas não se pode tolerar a ideia de que os conceitos são meramente imagens.

Similarmente, não se pode tolerar a ideia de que a essência é apenas e tão-somente a reunião das propriedades e das leis que regem uma coisa. Tais atributos derivam da essência, mas não são a essência. As propriedade e leis explicam uma essência, mas, novamente, não são a essência.

Por fim, cabe distinguir a essência da existência de algo. De maneira geral, a essência é a potencialidade da coisa, enquanto a existência é a atualidade da coisa. Observe, por exemplo, que não há nada na essência de uma arvore que implique que ela exista. Para os tomistas, a distinção essência-existência é real. Ora, se você nunca tivesse visto nem ouvido falar de leões, dinossauros e unicórnios, como poderia saber que leões existem, dinossauros existiram e unicórnios não existem nem existiram? Eis uma maneira prática de entender que existência e essência são distintas.

O ser-em-potência, para os escolásticos, é diferente do ser-em-ato. Ambos, ato e potência, tem ser, mas “ser”, neste caso, é um termo análogo, não unívoco nem equívoco. Eis um esquema que ajuda a entender a questão:

1. O ato é real, isto é, tem ser.

2. A potência é real, isto é, tem ser.

3. A potência é realmente distinta do ato.

4. Se a potência tivesse ser no mesmo sentido unívoco que o ato tem ser, então a potência não seria realmente distinta do ato.

5. Se a potência tivesse ser apenas em sentido equívoco, então a potência não teria ser nenhum.

6. O único sentido cabível aqui é o sentido analógico.

7. Portanto, a potência tem ser em um sentido análogo ao ser que o ato tem.

Fonte: Edward Feser, Scholastic Metaphysics, Editiones Scholasticae, Alemanha, 2014.