Vimos em inúmeras postagens neste blog que
todo aperfeiçoamento espiritual requer um processo fundamental sem o qual o
progresso que se obtenha neste campo não passará de ilusão ou coisa pior.
Trata-se da purificação do coração. Jesus Cristo deixou claríssimo, ao
contrário do que popularmente se acredita hoje em dia, que é do coração que saem
os maus pensamentos, os adultérios, as fornicações, os homicídios, os furtos, a
avareza, as maldades, o engano, a dissolução, a inveja, a blasfêmia, a soberba,
a loucura. Isso é assim porque os homens, por amor-próprio, cultivam sua
imagem, sua grandeza, sua reputação, seu orgulho. Fazem deuses de si mesmos e
assim se autoiludem ao construírem uma torre de Babel em seus corações. Essa
torre, esse ídolo, é o ego. O ego ocupa o coração do homem e é ele quem
produz todo tipo de impureza e maldade.
A purificação do coração é pré-requisito
para o progresso espiritual. Sem ele todo pretenso aprimoramento será apenas e
tão-somente mais um tijolo na torre do ego. Imerso em sua própria ilusão, o indivíduo
assegura que está progredindo espiritualmente quando, na verdade, está
progredindo na estrada da perdição.
É neste contexto que a obra do padre
católico romano Lorenzo Scupoli foi traduzida e editada por São Nicodemos
Hagiorita e posteriormente revisada por São Teófano, o Recluso. Ambos
reconheceram o enorme valor e importância dessa obra para os cristãos
contemporâneos.
* * *
A purificação do coração apresenta três caminhos:
a. Caminho moral: a disciplina da vontade
e do caráter para neutralizar as paixões ao mesmo tempo que enaltece as
virtudes.
b. Caminho contemplativo: a
disciplina do intelecto, pela qual o homem educa os sentidos, a memória
e a imaginação ao mesmo tempo que se educa para perceber Deus em todas as
coisas materiais e Sua ação na história. Um estágio mais avançado incluir
livrar a mente das imagens sensíveis (visão e imaginação) a fim de atingir a gnosis
e a sophia.
c. Caminho noético: a disciplina do noûs,
pela qual o homem, mediante deprecações (súplicas), orações, intercessões,
e ações de graças (1 Timóteo 2:1), comunica-se com Deus para obter o
necessário para atingir a hesychia. Este estágio é o da oração pura, na
qual a imaginação e o intelecto cessam de intrometer-se na comunhão com Deus.
* * *
Eis os destaques dos 53 pontos da guerra
invisível:
1. Somos chamados à perfeição, e a maior e
mais perfeita aspiração dos homens é aproximar-se de Deus e viver em união com
Ele. No entanto, há nos homens vontades e desejos que clamam por satisfação e
que não obstante nada tem a ver com a vontade de Deus. É necessário, portanto, que
os homens lutem incessantemente contra si mesmos e contra tudo aquilo que
desencadeie e insufle suas vontades e desejos. O homem nunca será livre
enquanto for escravo de suas paixões.
Há 4 disposições fundamentais para essa
guerra:
a. Sempre desconfie de você
em tudo.
b. Cultive em seu coração a
confiança única e exclusiva em Deus.
c. Lute sem cessar.
d. Coloque-se constantemente em
estado de oração.
2. Deus quer que tenhamos consciência e
experiência de nossa insignificância. Deus é a fonte suprema de toda boa ação e
bom pensamento. Há 4 atitudes a serem tomadas aqui:
a. Conscientize-se de sua
insignificância. “O fundamento de toda virtude é a conscientização da fraqueza
humana”. (São Máximo, o Confessor)
b. Peça ajuda a Deus em orações
calorosas e humildes.
c. Acostume-se a ser cauteloso e
temer seus inúmeros inimigos.
d. Se cair em alguma transgressão,
rapidamente volte-se à conscientização de sua fraqueza. Deus permite nossas
transgressões para que nos tornemos cônscios de nossa fraqueza. Note, no
entanto, que nem sempre Deus usa este subterfúgio, mas apenas quando as
atitudes a, b e c acima não são seguidas e/ou não surtem efeito. Deus também
faz uso, nestes casos, de “má sorte”, doenças, tribulações perigos,
necessidades.
3. Não devemos simplesmente desconfiar de
nós mesmos e nos desesperar. Não, devemos desconfiar de nós mesmos e confiar em
Deus. É Ele quem sabe o que é realmente bom para nós. A vitória (salvação) lhe
será concedida.
4. O critério que distingue o homem
autoconfiante do homem que confia em Deus é que aquele, quando cai, se lamenta
profundamente e prepara planos para superar a queda e, no futuro, ser
bem-sucedido, enquanto este, quando cai, se lamenta moderadamente e conscientiza-se
da sua falta de confiança em Deus.
5. O homem que se lamenta profundamente é
aquele que se orgulha profundamente, que tem uma opinião muito elevada de si
mesmo.
6. Na guerra invisível somos todos
perdedores, sem exceção. Os únicos que vencem são aqueles que lutam confiando
em Deus. Toda vitória é dEle, não sua.
7. A mente tem de se livrar da ignorância
da seguinte forma: (a) Implorar em oração para que o Espírito derrame Sua luz
divina em nossos corações, (b) procurar sabedoria nos escritos dos homens
santos e entender que a vitória não vem das vitorias no mundo, mas das vitorias
espirituais. Na calúnia e na difamação está a verdadeira glória, no perdoar os
inimigos e fazer-lhes o bem está a verdadeira magnanimidade, no desprezo pelo
mundo está a verdadeira força e poder, na obediência voluntaria está a
verdadeira coragem e força de espírito, na superação de suas más tendências
está o verdadeiro louvor.
8. Não julgue as coisas de maneira
imediata, apenas pelas aparências. É necessário certo desapego, certa
distância, para em seguida julgar as coisas e situações com a mente.
9. O cultivo da mente implica em não se
contentar com a ignorância, mas, por outro lado, também em não a afogar com
conhecimento excessivo, ou seja, com meras curiosidades. O orgulho da vontade é
visível à mente, que pode esforçar-se em corrigi-lo. Mas o orgulho da mente
será visto de que forma? Quem poderá curá-lo? Eis que a mente tem certa
proeminência em relação à vontade, e eis que o orgulho da mente é pior que o
orgulho da vontade.
10. E como fazer a vontade de Deus e não a
sua? (a) Somente com um coração puro é possível discernir quando estamos
fazendo a vontade de Deus ou quando, sub-repticiamente, estamos fazendo nossa
própria vontade, (b) se você é incapaz, ou sente-se inseguro, de perceber se
Deus está movendo as coisas externamente, mas sobretudo internamente, mantenha
pelo menos a disposição de tentar perceber Sua vontade e confie nos mais
experientes, (c) o homem que faz a vontade de Deus nunca “prefere” uma coisa em
relação a outra porque preferir é obviamente introduzir sua vontade na
atividade, (d) o homem deve antes buscar agradar a Deus do que escapar do
inferno ou ganhar o céu (é melhor dar um pouco de dinheiro a um mendigo para
agradar a Deus do que doar uma fortuna para ganhar o céu).
11. Deus mantém os homens vivos a cada
momento, a cada instante, todo o tempo. Ele os criou do nada. Honrar Sua
grandeza e majestade é uma conclusão óbvia a que todos deveríamos chegar.
12. Há duas vontades no homem: a vontade
inteligente superior e a vontade sensorial inferior. O livre arbítrio
fundamentalmente inclina-se para uma ou outra, e um dos objetivos supremos da
guerra invisível é precisamente não se inclinar pelos ditames da vontade
inferior carnal, impetuosa e “apaixonada”. Uma vez que o livre arbítrio se
enrede nos ditames da vontade carnal, aí permanecerá como um cabresto mantém um
burro de carga sob controle. Para livrar-se dessa vontade inferior dos desejos,
a ajuda da graça de Deus é imprescindível. O cristão, que é chamado não apenas
para aprimorar-se, mas para aperfeiçoar-se, deve forçar-se a negar esses
desejos de maneira total. Isso significa não apenas abandonar os desejos mais
enraizados e escravizantes, mas os menores também. O cristão tem de aprender a
amar a guerra invisível.
13. Passo a passo para superar os desejos
(as paixões da vontade inferior): (a) assim que notar seu surgimento, force-se
imediatamente em não as atender, (b) crie um sentimento de raiva contra eles,
(c) peça ajuda e força a Cristo, (d) se possível, faça o contrário do que
sugere a paixão, (e) cultive uma resolução interior que torne impossível
inclinar-se a tais tendências impetuosas como, por exemplo, considerar-se
genuinamente digno de todo insulto e assim acolhê-los com alegria.
14. A luta contra as paixões será
obviamente reforçada pela oposição do inimigo, que vai tentar te convencer de
que a luta é inglória e que a rendição é inevitável. Mas isso é absolutamente
falso: “Deus concedeu a nosso arbítrio um poder tão grande que mesmo que todas
as faculdades humanas, o mundo inteiro e todos os demônios se unam contra a
vontade, não a subjugarão”. Isso significa que não há desculpa, por mais
“plausível” que seja, que justifique inclinar-se a nenhum impulso de nenhuma
paixão. No entanto, entenda que você é apenas um homem, ou seja, você
isoladamente é incapaz de vencer essas batalhas. É necessário reunir em ti a
convicção de sua impotência humana para, a partir daí, pedir em oração a ajuda
de Deus. Persevere, e a ajuda virá.
15. Para uma guerra rápida e vitoriosa,
você deve centrar-se em todas as suas paixões, mas especialmente no
amor-próprio, caracterizado pela autoindulgência e pela autopiedade. No
entanto, não esqueça que o inimigo está nas mãos de Deus, ou seja, a vitória
será retrasada pelo simples motivo de que Deus quer que você lute com todas as
suas forças até o fim. Tenha isso claro: não há homem que esteja livre dessa
guerra, “seja em vida, seja na morte”.
16. Ao acordar de manhã reze a Oração de
Jesus por alguns momentos e ponha-se imediatamente em guarda, sabendo que à sua
esquerda está seu inimigo e à sua direita está seu Comandante, o próprio
Cristo, e Sua mãe, a Santíssima Virgem, e seus santos e anjos. O inimigo
imediatamente ventilará em sua alma impulsos para a autoindulgência e lhe
“garantirá” que ceder será melhor e menos custoso. Neste instante invoque a
ajuda do Alto e, mesmo que lhe cause dor [combater o ego], insista na labuta
espiritual. A vitória, isto é, a coroa que receberá nesta e na próxima vida,
virá mediante incessantes batalhas. Retome o que ensinamos no passo 13.
17. Ataque primeiro aquilo que mais lhe
perturba, ou seja, o maior obstáculo a seu progresso espiritual. A única
exceção é quando algo repentinamente surge no transcurso do dia. Neste caso,
ataque estes eventos insurgentes primeiro.
18. Alguns passos para prevenir os ataques
súbitos: (a) toda manhã antecipe mentalmente as ocasiões favoráveis e
desfavoráveis aos impulsos e irritações, (b) se o impulso surge, procure
“descer” imediatamente a seu coração e isole o impulso, (c) se não lograr
êxito, não expresse o impulso ou irritação nem por palavras, olhares ou gestos,
(d) eleve-se a Deus e procure substituir o mal impulso por um bom impulso, (e)
e o mais importante: elimine as causas dos impulsos.
“No trato com as pessoas, você será
auxiliado lembrando-se de que elas também são criaturas de Deus, moldadas,
assim como você, à imagem e semelhança de Deus e pelas mãos todo-poderosas do
Deus vivo; que elas estão redimidas e regeneradas pelo precioso sangue de Nosso
Senhor Jesus Cristo; que elas também são seus irmãos e membros da mesma
humanidade, as quais é errado odiá-las nem mesmo em pensamento. [...] Lembre-se
especialmente de que, mesmo que supostamente elas sejam dignas de desprezo e
hostilidade, se conceder-lhes suas amizade e amor, você estará assemelhando-se
a Deus, que ama todas as Suas criaturas e não despreza a nenhuma delas”.
19. Quanto às paixões sexuais: (a) Evite
contato com o sexo oposto para combater paixões luxuriosas, (b) preste atenção
à ociosidade e à preguiça, observando de perto seus pensamentos, (c) nunca desobedeça
a seus mestres e pais espirituais, (d) nunca julgue seu irmão quando cair, mas
tome seu exemplo com humildade, (e) não se imagine superior e imune aos ataques
do inimigo.
20. A negligência se forma quando formamos
o hábito de só fazermos o que gostamos. Fazer o que se gosta leva, em última
instância, à paralisia, à inação, à preguiça. Você tem de entender que fazer
uma única vontade de Deus, uma simples genuflexão a Seu favor, vale
infinitamente mais do que todos os tesouros da terra. Combata a negligência
tendo a ciência de que o que quer que faça você enfrentará não muitos, mas
apenas um e o mesmo inimigo, e que ele, por mais forte que você que seja, será
derrotado porque você confia na ajuda de Deus, que é infinitamente superior a
seu inimigo.
21. Evite direcionar seus sentidos externos
a esmo, em busca de prazer e satisfação de seus gostos. Uma técnica para não se
deixar contaminar pelos sentidos é treinar seu olhar a estar convicto de que,
por trás de tudo o que se vê, ouve, cheira, sente etc. está o próprio Deus, que
dá ao que quer que seja sua beleza, bondade, verdade, perfeição. É o conteúdo
interior das coisas que deve impressioná-lo, não seu aspecto aparente.
Lembre-se, você é uma criatura inteligente, não um animal. Encontre nas
criaturas seu Criador.
22. Aproveite para ascender a Cristo e Sua
história na terra quando ouvir, ver ou sentir coisas que O evoquem. Por
exemplo, rochas, mar, pedras, espinhos, martelos, o amor entre Suas criaturas,
sol, água, vinho, vestes, murmúrios, dor, aflição, luto etc. etc.
23. Similarmente, a beleza das coisas, o
sol, os céus, o cantar dos pássaros, a beleza das pessoas: tudo aponta para o
Criador e, mais ainda, tudo isso é palha ante a beleza e o esplendor do Reino
de Deus. Evidentemente, estes métodos não precisam ser usados sempre, mas
quando necessário. A ideia é que você saiba reunir sua mente e seu coração no
Senhor.
24. A virilidade da alma é enfraquecida
ao entregar-se a paixões, belezas, texturas, sons prazerosos etc. Guarde seus
sentidos para fortalecer sua alma.
25. Acima de tudo, guarde sua língua. O que
move a língua é o coração. Os sentimentos que buscam expressar-se em palavras
são em sua maioria egóicos porque expressam a lisonja de nosso amor-próprio e
nos apresentam, imaginamos, sob a melhor luz. Na maioria dos casos, a
loquacidade é sinônimo de conversa vazia. Da conversa vazia vêm as críticas, as
calúnias, as fofocas, as sementes da discórdia, a vaidade, o falar com
superioridade, o autoelogio disfarçado etc. O silêncio é um dos maiores aliados
na guerra invisível. O hábito do silêncio se adquire praticando.
26. Sobre a imaginação. Os
objetos sensíveis e os sentidos externos são com carimbos, e a imaginação a
marca do carimbo. Mas dado que a imaginação é uma força desprovida de razão e
age de maneira puramente mecânica, obedecendo as leis de associação de imagens,
enquanto a vida espiritual é a imagem da pura liberdade, concluímos que a
atividade da imaginação é incompatível com a vida espiritual. A imaginação é um
poder da alma que, por sua própria natureza, é incapaz de adentrar no âmbito da
união com Deus. Os Santos Padres ensinam que a imaginação é como uma ponte da
qual os demônios se aproveitam para atingir a alma, mesclando-se a ela.
Filósofos e pensadores a usam para especular sobre as coisas do Alto, as quais
são inacessíveis à imaginação e à fantasia, mas sem antes purificar sua mente
das paixões e imagens ilusórias do mundo sensível. O resultado é que ensinam
mentiras e não encontram a verdade. Esforce-se em limpar a imaginação de
impressões externas mediante a oração e o recolhimento. Quando estiver cansado,
desfrute da liberdade em reflexões divinas e contemplações, mas somente aquelas
contidas das Escrituras e naquilo que as criaturas de Deus inspirarem; elas são
imateriais e, portanto, afins à mente.
27. O cristão deve evitar que os percalços
da vida agitem o coração: medos, sofrimentos, tristezas e alegrias repentinas,
doenças, ferimentos, mortes de parentes, guerras, incêndios, memórias de
pecados e transgressões passadas etc. A ideia é entender que, no que quer que
lhe acometa ao cristão, ele tem de inserir esse acontecimento em sua vida
espiritual e confiar na Providência. Se algo de bom e positivo lhe acontece,
eis uma oportunidade para arrepender-se. Se algo de mal e negativo, eis uma
oportunidade para cogitar se são meus pecados que estão me conduzindo a tal
situação ou, ainda, Deus está me provando. Não importa o que aconteça ao
coração, o homem tem a virtude e a capacidade de suportar o sofrimento e
reestabelecer a paz em si mesmo contanto que se submeta a Deus.
28. Se acontecer de você cometer alguma
falta pequena, como falar algo grosseiro, perder a calma, um desejo ardente se
acender, um pensamento inadequado se formar etc., não se condene ou se julgue.
Tal condenação ou julgamento vem, ao contrário do que inicialmente poderíamos
supor, de nosso orgulho, de nosso ego. Todos os pecados já foram rasgados na
cruz de Jesus Cristo. Estão já perdoados. Portanto, para que desça a graça é
necessário fundir o sentimento de culpa com o sentimento de perdão em um só
sentimento, aliado à firme decisão de não mais voltar a incorrer nesse pecado.
O inimigo vai tentar convencê-lo de que esse exercício de arrependimento pode
esperar só mais um pouquinho e, de pouquinho em pouquinho, a visão do pecado
torna-se cada vez mais turva até que, com o tempo, o pecado faça parte de seus
hábitos e se normalize.
29. O inimigo não tem uma única tática para
combater o homem. Ele adota diferentes táticas a depender da situação de cada
ser humano.
30. Uma tática muito comum do inimigo é
manter o homem em pecado ao dissuadi-lo dos pensamentos que poderiam trazer-lhe
à consciência sua vida perniciosa e, agindo assim, lhe aprofunda mais no
pecado. No lugar dos pensamentos saudáveis, o inimigo implanta pensamentos insanos.
Quanto mais cego, mais insana se tornará a pessoa e, assim, mais perdida.
31. No entanto, àqueles que de alguma forma
atingiram a consciência de sua vida insana o inimigo insufla pensamentos de
procrastinação (“depois”, “mais tarde” etc.). Lembre-se: o que está nas suas
mãos é o hoje, o agora, o neste momento. O amanhã pertence a Deus. Tome a firme
decisão de mudar agora, de emendar-se agora. O amanhã poderá
distrai-lo mais e a resolução e visão que agora tem poderá perder-se. De novo,
a hora é agora. Somente a prática vai fortalecer a visão que tem e a
decisão que deve tomar. Adiá-la necessariamente irá enfraquecê-la. Isso vale
também para quem leva uma vida decente: a oportunidade de fazer o bem não deve
ser deixada escapar.
32. Outra tática do inimigo é “limpar o
terreno”, ou seja, é sugerir ao cristão que tem avançado na vida espiritual que
ele não precisa de conselhos de fora, de conhecimentos daqueles mais
experientes como santos, staretzi (anciãos), homens sábios etc. A ajuda
externa seria desnecessária. O novato se entrega a seus próprios conhecimentos
e tentativas pessoais.
33. O inimigo também adota a tática de
enviar pedras de tropeço e ciladas para que o cristão tropece.
34. Mais uma tática do inimigo é
lisonjeá-lo, é sugerir que você está no caminho certo, que você atingiu um
grande patamar espiritual etc. Por mais que seja verdade, ou seja, por mais que
você tenha realmente crescido espiritualmente, orgulhar-se disso jogará por
terra todo seu progresso. A chave para evitar essa sugestão diabólica é fortalecer
a convicção de que você é nada. Suas disposições, sua existência, as
leis que regem seu corpo, sua alma, sua essência, as pessoas que cuidaram de
você, as pessoas cuja união possibilitaram sua existência, enfim, tudo o que há
de bom em você tem sua raiz em Deus, no Logos, no Criador. Medite bem e conclua
que orgulhar-se de suas conquistas é um ato profundamente falso, profundamente
egoísta.
35. Algumas armas a serem usados pelos
cristãos na guerra invisível: (a) atacar a paixão que mais lhe prejudica, a que
mais lhe causa derrotas, (b) nunca parar, ou seja, nunca abandonar a guerra
contra a paixão quando atingir algumas vitorias; a guerra nesta vida termina no
fim desta vida, (c) seja sábio e sensato ao atribuir práticas espirituais como
jejuns, orações, trabalhos físicos etc.; faça algo que seja desafiador, mas, ao
mesmo tempo, que não lhe castigue amargamente, (d) ataque a paixão no momento
exato em que surge; o momento da batalha é agora, esqueça o passado e o
futuro, a batalha é agora, (e) transforme-se em um inimigo do conforto,
do prazer, da autoindulgência, (f) comece sua batalha fazendo uma confissão
geral; trata-se não apenas de algo conveniente, mas necessário.
36. Quanto à prática das virtudes,
concentre-se em adquirir uma e, com o tempo, outra, e assim por diante; não
procure adquirir todas, ou mesmo algumas, de uma vez, mas lembre-se que, uma
vez conquistada uma, a seguinte será mais fácil.
37. Atingir uma virtude significa que ao
executá-la emprega-se o mesmo esforço e a mesma prontidão que empregava quando
você não a executava. Em outras palavras, é como se a virtude passasse a fazer
parte de sua natureza, de sua essência. Portanto, de manhã procure prever os
momentos em que enfrentará dificuldades ao executá-la e, à noite, relembre os
momentos em que foi incapaz de executá-la. Prepara-se antes e revise depois,
eis uma estratégia inteligente. E não se esqueça, evidentemente, de pedir ajuda
do Alto, sem a qual nada será conquistado: Deus se regozija quando alcançamos
uma virtude e, ao mesmo tempo, quando o fazemos pelo simples objetivo de
agradá-Lo.
38. O trajeto para a conquista das virtudes
apresenta um aspecto diretamente proporcional ao trajeto que percorremos
fisicamente. Quanto mais caminhamos, mais nos cansamos. No caminho das
virtudes, no entanto, quanto mais avançamos, mais fortes nos tornamos. Isso
acontece porque estar forte no mundo espiritual significa ao mesmo tempo estar
fraco no mundo sensível. Ademais, a ajuda do Alto deposita-se na parte superior
da alma, enquanto a parte inferior, carnal, não recebe nenhuma ajuda.
39. Por isso, uma vez mais, reforçamos a
importância de escapar dos prazeres carnais e da luxúria em geral.
40. (a) Quando uma ocasião favorável se
apresentar, sempre pratique a virtude. Mesmo em situações menores,
praticá-la lhe dará forças quando as situações mais importantes se
apresentarem. Não zombe das oportunidades que Deus lhe dá em resposta às suas
próprias orações. (b) Lembre-se que, apesar de Deus não desejar seu pecado e
das demais pessoas, mesmo eles são permitidos por Ele para nossa admoestação e
humildade; aceitemos esse cálice como vindo das próprias mãos de Deus.
41. e 42. (a) O sinal de que estamos
praticando a virtude é que a exercemos mesmo em momentos de esfriamento e obscurecimento
da alma. (b) Quanto mais fracos forem os impulsos carnais, mais isso quer dizer
que progredimos nas virtudes. (c) Quanto mais fácil for o arranque para a
prática de uma virtude, tanto mais isso significa que fizemos um bom progresso.
(d) Se a mente ascende facilmente a bons pensamentos com pouco ou nenhum
esforço, eis outro sinal de progresso espiritual. (e) Idem para a oração, que
cumpre-se sem perambular em pensamentos e conjecturas. (f) Quando lágrimas
fluírem naturalmente durante um pensamento ou memória, isso também denota
progresso espiritual. (g) Quando pensamentos elevados descem ao coração e ali
permanecem por tempo prolongado, eis outro sinal de progresso.
43. Querer-se livrar de uma aflição é
dar-lhe mais importância do que realmente tem. As aflições têm de ser
suportadas com paciência, com confiança em Deus, com humildade. Elas durarão o
tempo que tiverem de durar. Querer livrar-se delas é uma questão de orgulho, de
petulância.
44. Quando fazemos algum progresso, o
inimigo o tentará fazendo-lhe acreditar que está próximo da perfeição e, assim,
que você deveria exercer ainda mais esforço físico e mental para atingi-la.
Isso acabará lhe atirando no abismo. As mortificações são em geral uma tentação
e uma perdição para os homens. Busque fazer aquilo que é proporcional às suas
condições morais. Não imite os santos externamente, mas os imite nas
disposições da alma e do espírito.
45. O amor-próprio engendra o vício do
julgamento alheio. O problema é que o julgamento alheio não apenas se funda no
orgulho, mas o alimenta, que retroativamente alimenta o julgamento alheio. O
inimigo se aproveita desse fenômeno e abre nossos olhos. Sim, ele abre
nossos olhos, mas não àquilo que fazemos e dizemos, mas àquilo que os outros
fazem e dizem. Prestamos especial atenção aos gestos, palavras, posturas e ações
alheias com o objetivo de encontrar defeitos e, assim, julgar e condenar o próximo.
Para superar esse vício, (1) repila o pensamento de julgamento imediatamente, lembrando-se
das boas qualidades do próximo, (2) lembre-se de seus próprio defeitos e falhas
(“cura-te a ti mesmo” (Lucas 4:23), “tira primeiro a trave do teu olho” (Mateus
7:5)), (3) lembre-se que quando julgamos severamente alguém isso significa que
uma pequena raiz da mesma maldade existe no seu coração, e que é essa mesma
raiz no coração que permite que você faça suposições sobre os outros e os
condene.
46. O que é necessário para que a oração
surta seu pleno poder? (1) Manter sempre vivo a intenção de servir a Deus em
tudo o que fizer. (2) Manter viva a fé de que Deus quer conceder-lhe tudo o que
é necessário para servi-Lo corretamente. (3) Manter viva a intenção de fazer a
vontade de Deus, e não reduzir a vontade de Deus à sua vontade. Nossa vontade
está sempre contaminada em maior ou menor grau com o amor-próprio, o que a
torna suspeita. Se genuinamente não souber qual é a vontade de Deus, peça para
Ele lhe esclareça. E não se esqueça que as virtudes são agradáveis a Deus, mas
elas devem ser exercidas com o intuito de agradá-Lo e servi-Lo, e não motivos
espúrios quaisquer. (4) A oração por virtudes tem de ser feita concomitantemente
com esforços genuínos de sua parte para exercê-las, sob pena de tentar a Deus.
Rezar de maneira negligente, ou pedir a um santo que lhe ajude sem que você
mesmo “se ajude”, é hipocrisia. (5) Combinar na oração os 4 elementos básicos ensinados
por São Basílio, o Grande: (a) glorifique a Deus, (b) dê graças a Ele pelas bênçãos
e misericórdias que lhe concede, (c) confesse suas faltas e transgressões, (d)
peça-Lhe o que necessita, especialmente do que necessita para sua salvação. (6)
Mantenha viva a confiança da generosidade imensurável de Deus, mas também em
Jesus Cristo. E não se esqueça de pedir ajuda à Mãe de Deus, aos anjos, santos,
pastores, mestres, ao anjo da guarda, ao seu santo padroeiro etc. (7) Rezar com
incansável entusiasmo e diligência, ou seja, não esperar que o que pede venha
em curto prazo. Mantenha viva em seu coração a fé em Sua ajuda. Mesmo que não receba
o que pediu, não procure entender o porquê, mas entenda que poderá receber algo
diferente do que pediu ou, mesmo que não receba absolutamente nada, lembre-se
de sua própria indignidade.
47. Quanto à oração mental, ou oração
interior, trata-se da oração feita com a mante (noûs) em silêncio no
coração. É como reunir, ou efetivamente “recordar”, a oração no coração. A
ideia é que o coração sinta (“se afete”) por aquilo que é rezado. Há
ainda a oração perfeita, que é a oração rezada pelo Espírito Santo no coração
do fiel cristão.
48. Rezar com o livro de orações é não apenas
útil, mas necessário. No entanto, é comum que a mente divague enquanto rezemos.
A oração torna-se algo mecânico, frio. A ideia é combinar mente e coração em uma
e mesma direção. Para isso: (1) Reflita ao longo do dia sobre a oração, mas não
no momento da própria oração. Relembre sua importância, seu objetivo, seu
mérito, seu propósito. Dessa forma, no momento de rezar, será mais fácil que a
mente se concentre na oração e o coração responda afetivamente a ela. (2) Decore
a oração para que a mente mais facilmente possa se concentrar-se nela, e não se
lembrar dela. (3) Não se entregue à leitura das orações sem antes se preparar
para ela. A mente tem de estar calma, livre de preocupações, aflições, perigos
etc. (4) Lembre-se que orar significa colocar-se diante de Deus. (5) Leia as orações
com atenção, com a mente no coração. Se a mente divagar, volte a leitura ao
ponto onde a mente começou a divagar. (6) Se durante a oração surgir de repente
algum tema que lhe chame a atenção e sobre o qual necessita orar, pare a
leitura de orações e reze sobre o tema que lhe surgiu até que se encontre
satisfeito. (7) Quando tenha terminado suas orações, não pense que a mente pode
livremente divagar no resto do dia e esquecer-se do Alto. Lembre-se que a mente
sempre tem de preservar um “estado de oração” e não se esqueça que Deus está
sempre presente em todos os lugares. (8) A oração tem de ser feita completa e
sem interrupções, diariamente. Se um dia você reza bem e no outro não, e essa
oscilação se torna um hábito, nunca a oração se estabelecerá e seus frutos não serão
colhidos.
49. A vida de oração deve começar pela
memorização das orações do livro de orações. Quando se enxertarem, então aprenderemos
a rezar de maneira pessoal, ou seja, o coração aprenderá a rezar adequadamente.
Não tente rezar por sua própria conta sem que o coração sinta um impulso e uma
necessidade reais. Por regra geral, as orações espontâneas são egoístas, orgulhosas,
petulantes.
50. Escolha uma oração curta para ser
rezada ao longo do dia e habituar sua mente e seu coração a rezá-la. Recitar
uma oração curta é o ideal, mas de qualquer forma o objetivo aqui é manter a
atenção viva na lembrança de Deus.
51. A Oração de Jesus deve ser rezada não apenas
com palavras, mas com a mente e o coração. Seu conteúdo tem de ser sentido,
repercutido, no coração. Com o tempo e muita prática, as palavras desaparecem e
apenas o movimento da mente (noûs) e do coração permanecem. (1) Reserve em sua
regra de oração um tempo para a Oração de Jesus. (2) Aumente a quantidade de
orações na medida em que desfrutar dela. (3) Não a recite de maneira
atabalhoada, mas com atenção, lembrando sempre que o coração tem de repercutir
seu conteúdo. (4) Insira a oração nos intervalos de seu dia, sempre que possível.
(5) Acrescente uma reverência a cada recitação. Essa prática fortalece o poder
da oração e seus frutos. (6) Leia a Philokalia, especialmente São Simeão, o
Novo Teólogo, São Gregório do Sinai, São Nicéforo, São Calixto e Santo Ignácio.
(7) Ao rezá-la concentre-se na parte no coração físico, ou seja, na porção logo
acima do mamilo esquerdo. Se uma sensação dolorida surgir, mova a atenção para
a parte superior do peito. (8) Tenha um pai espiritual experiente. Não aceite
as insinuações do inimigo de que você alcançou a oração mental. (9) Não estabeleça
uma meta temporal para alcançar esta oração. Isso levará muito, muito tempo. Não
tente controlar o progresso, ele não está sob seu alcance.
52. Mais orientações para rezar. (1) Coma,
durma e descanse com moderação. Não se entregue a comidas e bebidas de acordo
com os impulsos e desejos imediatos. Não dê trégua à carne. (2) Reduza o
contato com o mundo exterior o mais que possível. Quando a oração se
estabelecer, você saberá o que pode ser acrescentado em termos de contato exterior.
(3) Leia livros espirituais e adequados à sua condição. Vá a igreja quando
puder porque simplesmente estar ali já sugere um clima de oração. (4) O
progresso na vida espiritual exige progresso na vida cristã. Purifique-se mediante
a confissão regular. (5) Não omita nenhum tipo de oração, sejam as orações do
livro de orações, sejam as orações livres, sejam os breves apelos a Deus, seja
a Oração de Jesus.
53. A oração é uma arma invencível na guerra
invisível apenas quando tiver se estabelecido incessantemente no coração. Neste
ponto, o coração torna-se impenetrável pelo inimigo. No entanto, até que isso
aconteça, a oração mesmo assim não apenas é valiosa, como é a arma mais
importante na guerra invisível. Assim que uma imagem se formar na alma, seja de
alguém que lhe fez mal, ou de alguma mulher bonita, ou de bens, roupas, o que
seja, resista recorrendo à oração e, em geral, à Oração de Jesus.
Fonte: Lorenzo
Scupoli, editado por São Nicodemos, o Hagiorita, e revisado por São Teófano, o
Recluso, Unseen Warfare, St. Vladimir’s Seminary Press, Crestwood, NY,
EUA, 1997.