O que há de verdadeiramente interessante na
psicologia de Tomás de Aquino, ainda que lhe falte as grandes descobertas da
psicologia moderna, é seu caráter estrutural, ordenado. Ela combina aquilo que
é necessário, advindo principalmente das ilações da doutrina metafísica de
Aristóteles, com elementos contingentes da vida orgânica, sensorial e
intelectual humanas, advindos principalmente da introspecção e da meditação. O
perfil de tal psicologia é tão elevado, tão genial – no sentido de que todas as
descobertas posteriores poderiam ser interpretadas à luz dessa magnífica doutrina
estruturante – que talvez poderíamos estar tentados a chamá-la de noologia
em vez de psicologia. Parece-me que Mário Ferreira tentou algo nessa direção,
mas esta suspeita a confirmarei mais tarde. Por ora, no entanto, como veremos
ao final deste artigo, a psicologia tomista apresenta um nec plus ultra
que a torna, por mais interessante e útil que seja, imperdoavelmente limitada.
Não obstante, vejamos o que nos ensina Tomás de Aquino antes que possamos expor
o que quer que seja a título de conclusão. Assim, permitamos que um dos melhores
discípulos modernos deste grande santo católico romano nos eduque: Robert
Brennan.
Brennan admite que o método introspectivo
utilizado por Tomás de Aquino, embora seja o mais indicado para estruturar uma
doutrina psicológica digna do nome, pode, e deve, ser aperfeiçoado com as
descobertas da psicologia moderna. Este é, a propósito, o principal liame entre
o que se ensinava na era medieval sobre a estrutura da mente humana e as
descobertas contemporâneas: a introspecção.
Os tomistas costumam dividir a vida humana em três grandes partes ou componentes:
- Vida orgânica
- Vida sensorial
- Vida intelectual
Vida orgânica
Quanto à vida orgânica, há pouco que
possamos acrescentar ao que as ciências biológicas nos vêm ensinando ultimamente. No
entanto, apesar de nos dizerem muito como é a vida orgânica, as
ciências biológicas não dizem o que é a vida orgânica. O que fazem é descrever
o que é vida. A vida, dizem, é um modo de organização encontrado no que
antigamente se chamava de “protoplasma” (atualmente se usa citoplasma ou
citosol, embora haja uma infinidade de termos correlatos na literatura
científica) que se manifesta por possuir algumas propriedades como nutrição,
crescimento, desenvolvimento, reprodução, adaptação etc. Ademais, a disposição
muito especial das partes do ser orgânico permite que haja uma coordenação
dessas funções de modo que as torne algo uno e simples.
O psicólogo não pode se satisfazer com essa
explicação, não por ser incorreta, mas por ser insuficiente. A vida não pode
ser encontrada no próprio organismo, ou seja, no corpo do ser vivo, sob pena de
concluirmos que as propriedades da vida orgânica sejam causadas por si mesmas. A
nutrição se causaria a si mesma e produziria a nutrição. O crescimento ocorre
porque supostamente ele mesmo se faz crescer. Não são explicações, mas um mero
agregado de palavras sem sentido. Entretanto, se tem de haver algo “anterior”
ou “acima” ou “por trás” desses processos todos, o que é? E onde está?
Não há como a explicação ser física, mas
tem de ser necessariamente metafísica. E mesmo assim não será plenamente
satisfatória. Não cabe aqui detalharmos o hylemorfismo aristotélico do qual
Aquino lança mão (leia p.ex. estes artigos),
mas basta por ora reforçarmos a ideia antiga e medieval de que o mundo real proclama
a existência de duas instâncias, ou princípios, imperceptíveis, mas
introspectivamente detectáveis, que explicam a causa dos seres: a forma (morphe)
e a matéria (hylé). Todo ser tem uma forma (fórmula, algoritmo,
estrutura ontológica, determinação...) própria na qual estão reunidas todas as
possibilidades de sua manifestação, e uma matéria (indeterminação,
individuação, ...) pela qual é exibida sua existência. A raça angélica é uma
exceção, mas isso não importa agora. O que importa é que na forma substancial
(e não na forma acidental, muito menos na matéria prima e na matéria secunda)
se encontra o princípio vital (ou “força” vital) a partir do qual os
processos vitais acima mencionados se efetuam. É a essa forma substancial que
chamamos de alma, e é por isso que se diz que “a alma é a forma do
corpo”. Estão na alma todas as possibilidades de “encarnação” do homem, o que
inclui não apenas o corpo, mas tudo aquilo que é “carne”, que é individuado,
como os processos mentais dos sentidos externos, sentidos internos,
sentimentos, emoções, vontade, intelecto. Quanto ao “eu puro”, bem, veremos
mais adiante como, e se, Aquino o trata.
Aqui é impossível não pensarmos na passagem
da potência ao ato porque a alma é, para o corpo, seu “ato puro”, ou seja, o
“ponto de partida” supremo antes do qual, ou acima do qual, não houve uma supra-potencialidade.
[Veremos adiante se as coisas realmente são assim, mas por ora nos contentemos
com o raciocínio de Brennan]. É digno de nota que a enteléquia é o que
varia nos seres inanimados enquanto a matéria permanece (veja uma pedra, por
exemplo), ao passo que a energia é o que permanece nos seres vivos
enquanto a matéria varia (veja os processos metabólicos, por exemplo). Zubiri
explicou muito bem esse processo ao notar que a energia está sempre sendo, ou
seja, é uma atividade difusora, enquanto a enteléquia simplesmente é,
ou seja, é uma atualidade receptora. A energia procura regular-se e,
mais importante, aperfeiçoar-se; é algo intrínseco. A enteléquia não
apresenta essas características; é algo meramente extrínseco.
Vida sensorial
Consciência.
Brennan explica que a diferença entre os vegetais e os animais é a presença da consciência.
Como a origem latina da palavra deixa transparecer (conscire), a
consciência é uma atividade que dá a entender a existência de um conhecido e um
conhecedor. A consciência é mais restrita que a mera vida mental. A consciência
implica que o animal tem uma atenção especial aos processos mentais das
sensações, sentimentos, ações etc. A vida mental inclui não apenas isso, mas
também uma classe enorme de objetos que escapam à consciência, mas, assim
mesmo, fazem parte do universo do animal. Ambas, vida mental e particularmente
a vida consciente, são nada mais nada menos do que uma capacidade de previsão.
Sim, pois elas trazem à vida animal o mundo exterior e, agora de certa forma
interiorizado, podem elaborar, combinar e reagir ante ele.
Senso comum.
É a capacidade da percepção propriamente, pois é a capacidade de perceber os
objetos que estão presentes aqui e agora a nossos sentidos externos. O senso
comum é, portanto, o princípio de todos os sentidos externos, é ele quem faz a
síntese de todos os estímulos recebidos dos sentidos externos. Além disso, o
senso comum é responsável por informar-nos sobre certas características:
espaciais (extensão superficial, forma, solidez, distância, tamanho e
movimento) e temporais (experiência de duração, experiência de ritmo). E a
percepção (i.e., senso comum) apresenta algumas peculiaridades: ambiguidades (o
mesmo estímulo pode produzir efeitos mentais diferentes, como percepção de
proximidade, similitudes, continuidade, inclusividade, familiaridade, percepção
de conjunto), ilusões (agrupamentos de linhas e ângulos, extensão interrompida,
ilusões de contorno, ilusões de contraste, ilusões de perspectiva, ilusões de
movimento).
Imaginação. A
função da imaginação é representar – ou seja, reapresentar – coisas que já
foram percebidas pelos sentidos, mas que não estão atualmente presentes. Ela
complementa o senso comum. A imaginação é, portanto, uma espécie de “armazém”
de impressões sensoriais e, claro, uma revivescência das experimentações
prévias. Obviamente a revivescência será menos vivaz que uma percepção. Em
relação à percepção, a imagem apresenta menos intensidade, estabilidade
e inteireza. Ela se divide em dois tipos: (a) imaginação reprodutiva
(tentativas de cópia das experiências sensoriais), (b) imaginação criativa
(implica propósito, atenção e seleção a fim de recombinar imagens de impressões
sensoriais prévias). Sua importância para a vida mente é: (1) prover
significado à mente através de imagens para posterior elaboração de ideias, (2)
auxílio à mente para resolução de problemas.
Cogitação (“instinto”). Brennan chama de “instinto” a faculdade da cogitação, às vezes
também chamada por alguns medievalistas de “estimação”, embora este seja um termo
mais reservado ao instinto animal. Trata-se da capacidade sensorial de reconhecer
um objeto como agradável/útil/bem ou repulsivo/inútil/mal. É a cogitação que
permite aos homens reagir emocionalmente aos objetos que lhe são apresentados.
No entanto, o mais surpreendente da cogitação está no fato de que há uma
teleologia nela, ou seja, há um caráter finalista, de finalidade, em sua
operação. Isso é surpreendente porque tendemos a atribuir finalidade apenas à
atividade racional e suas operações de deliberação, raciocínio, comparação etc.
A razão é posta em marcha com uma finalidade, mas, estranhamente, a cogitação
também, embora não consigamos conscientemente detectar quais seriam suas
finalidades. Contudo, o caráter altamente plástico da cogitação faz dela alvo
das intervenções da inteligência, que é capaz, ao longo da vida humana, de
moldar a cogitação a ponto de alterá-la, para melhor ou pior, sua ação. Reside
aí a principal diferença entre a estimação animal e a cogitação humana.
Memória. A
memória complementa a cogitação e a imaginação no sentido de que ela também
procura suprir a baixíssima capacidade de retenção do senso comum. A única
diferença entre imaginação e memória é que a memória adiciona o caráter de preteridade,
ou seja, de passado, à imagem (por “imagem” não entendamos apenas o meramente
visual, mas toda uma experiência) que estamos revivescendo na consciência.
Assim como na imaginação, a memória também é dividida em dois tipos, que
correspondem paralelamente aos dois tipos de imaginação: (a) memória simples
(um processo passivo de recordação) e (b) reminiscência (um processo dirigido
pelo intelecto, a exemplo da imaginação criativa e semelhante à inferência, que
é um processo mais elaborado que marca a passagem do conhecido para o desconhecido).
A revivescência na memória simples e na reminiscência obedecem a três
princípios básicos: semelhança, contraste e propinquidade (i.e., aproximação).
De maneira geral, os três princípios são o mesmo: quando um aspecto ou pedaço
de uma memória é evocado, resgata-se por associação mais aspectos ou pedaços
desse passado. O papel da memória na vida mental é evidente no caso do
aprendizado. Sem memória não há sobre o que aprender.
Apetência (sentimentos, emoções;
“paixões”). Se todos os sentidos internos que
mencionamos acima são processos cognitivos, ou seja, a consciência é informada
com o que vem de fora, no caso dos sentimentos e emoções o processo cognitivo
se inverte em um processo apetitivo: é o mundo exterior que é “informado” pela
consciência. Os sentimentos são os dados mais elementares da apetência:
trata-se de um movimento meramente agradável ou desagradável ante o que é
apresentado à consciência e ao organismo como um todo. A emoção é um sentimento
acompanhado de alterações fisiológicas (coração, circulação, ruborização,
respiração, dilatação pupilar etc.). As emoções são cognitivas, ou seja,
palavras ou gestos as podem despertar, e em seguida são apetitivas, ou seja, a
consciência se adere de maneira positiva ou negativa ao objeto ou situação. As
repostas motoras seguem-se a tal aderência. Eis um esquema que resume as
emoções. Já o vimos antes, e melhor, em Martín Echavarría e Magda Arnold.
Vida intelectual
Há duas grandes faculdades ou operações no
intelecto: a inteligência e a vontade. Inteligência significa “ler dentro”, ou
seja, ler para além das aparências, dos acidentes. É uma força capaz de
abstrair elementos invisíveis aos sentidos externos e internos e extrair das
coisas suas substâncias, suas causas, seus fins remotos. Ela possui três elementos
ou etapas: conceito, juízo e inferência.
A vontade é semelhante à apetência
sensorial, mas aqui trata-se de uma apetência intelectual, ou seja, ela é
movida não pelos sentidos internos apenas, mas também pelo que a inteligência
lhe apresenta.
A vida intelectual é composta de 6
elementos. A tabela abaixo resume a operação do intelecto. Observe que a
inteligência é chamada por Brennan de “pensamento”. São, para ele, palavras
sinônimas.
Conceito. Trata-se de um conteúdo individual consciente que representa a essência de um objeto. O que o intelecto faz para extrair o conceito é agudizar uma qualidade superficial ou uma progressão do particular para o universal. Este processo de conceituação é também chamado de abstração. Na teoria tomista este processo é duplo: (1) o intelecto ativo despoja os aspectos materiais do conteúdo dos sentidos internos e revela assim a natureza desnuda que jaz em seu interior, depositado tal revelação em uma species impressa para que (2) o intelecto passivo possa propriamente concluir o trabalho da ideação ao expressar a natureza abstraída à consciência na forma de uma species expressa, ou seja, um conceito.
Importante notar que o tal “conteúdo dos
sentidos internos” é provavelmente o que Tomás de Aquino quis dizer com o fantasma,
ou seja, a síntese do produto perceptivo. O fantasma, no entanto, é um conceito
um tanto críptico na teoria de Tomás de Aquino.
Juízo. Para
abordarmos um objeto ou situação qualquer o intelecto tem de se empenhar em
abstrair seus diversos aspectos. E mais: a impressão inicial produzida por um
objeto é frequentemente imperfeita, o que exige esforços ainda mais intensos e
prolongados do intelecto. Por sucessivos refinamentos, o intelecto começa a
formar juízos. O juízo é, portanto, uma expressão consciente das relações que
existem entre certos objetos. É um contínuo processo de composição e divisão
mental.
Mas para que o intelecto se comprometa com
o juízo é necessário um processo de consentimento, ou seja, de adesão ao
juízo. Há fatores externos que podem impedir, ou compelir, o intelecto ao consentimento.
E é fácil entender o porquê: ao formar o juízo, sua própria contemplação pela
consciência provoca a reação da apetência sensorial, que pode, por exemplo, rejeitar
esse juízo. Ou, pelo contrário, uma apreciação lógica (ou uma preferência, ou
um sentimento de satisfação etc.) pode fazer o intelecto aderir ao juízo.
Inferência. Trata-se
de um processo puramente intelectual de caráter, digamos, “investigativo”.
Agora a percepção sensorial não desempenha mais nenhum papel. O que a
inferência faz diferentemente do juízo é construir novos conteúdos mentais. Mas
ela não faz isso mediante silogismos lógicos, como muitos poderiam supor.
Claro, se a pessoa souber, e puder, lançar mão desse tipo de recurso, ótimo.
Mas o fato é que a inferência é posta em marcha pelo intelecto de maneira
automática, natural, inconsciente. Não se trata de algo calculado, mas sim
espontâneo.
Vontade.
Também chamada volição, trata-se da apetência intelectual. Sua
manifestação característica é a motivação para uma posterior persistência
de ação.
A motivação surge somente depois que o
valor de um objeto ou situação – ou seja, sua vantagem ou desvantagem – for
conscientemente apreciado pelo sujeito. No entanto, ocorre que mesmo que já não
apreciemos um determinado valor, os sentimentos prazerosos associados a ele continuam
a operar por muito tempo depois e, por isso, muitos concluam que os valores não
têm papel intelectual, mas são meros sentimentos de simpatia ou antipatia. No
entanto, frequentemente ocorre que o sujeito vacila em apreciar o valor de
maneira positiva ou negativa, e, portanto, a necessária motivação para a ação
não surge. Assim, o intelecto precisa continuar a atuar e mediante comparações,
eliminações, novos enfoques etc. para que aprecie o valor com clareza. Só a
partir daí a motivação necessária para inclinar-se ou afastar-se do objeto
poderá concretizar-se. É claro, e veremos logo abaixo, que a força do hábito
também pode desempenhar um papel central neste desenrolar.
Depois de ter se decidido por uma linha de
ação, a vontade se exerce para conseguir seus objetivos, o que no seio da
psicologia tomista se chama tendência determinante. Trata-se de um
impulso persistente da vontade – poderíamos até mesmo chamar de um “surto” – para
conseguir seus objetivos. Um exemplo um tanto surpreendente deste fenômeno da
volição se verifica na hipnose: a tendência determinante se prolonga durante a vida
consciente a fim de garantir o cumprimento do objetivo. Casos semelhantes observamos
entre os poliglotas, que passam a falar outro idioma sem estarem conscientes de
suas regras gramaticais, ou entre os músicos, que tocam seus instrumentos inconscientes
dos detalhes da técnica que empregam.
Atenção. Trata-se
de uma direção da consciência a algum objeto ou situação. Não basta um mero “dar-se
conta”, mas uma verdadeira mudança de um estado de receptividade para um estado
de reconhecimento ativo. Aqui cabe fazer uma interessante distinção entre dois
tipos de atenção: (1) atenção sensorial involuntária, que é um mero
dar-se conta causado pela força atrativa do objeto e (2) atenção intelectual
voluntária, que é um ato da vontade propriamente, a qual procura limitar os
sentidos e o intelecto a certas características particulares e apartá-las do
pano de fundo da experiência. A atenção possui as seguintes características: (a)
alcance (ou “amplitude”), que é o limite que acabamos de mencionar, (b)
intensidade (ou “força”), pois a atenção intelectual vem também acompanhada de
atividades especiais da percepção, (c) disposições temporais (“tempo”), ou
seja, a atenção não é um processo perfeitamente contínuo, mas apresenta
flutuações e vacilos.
Associação.
Trata-se da tendência natural em agrupar em constelações os conteúdos dos
pensamentos e imagens. Mas, para além de uma tendência natural e espontânea, a
associação pode ser controlada pela vontade mediante a criação antecipada de
esquemas que funcionem como meta, dentro dos quais o material adequado será
selecionado e/ou eliminado.
Ação. A ação
humana é diferente da ação animal. A ação animal é isolada, enquanto a ação
humana penetra em todos os recônditos da mente e, por esforço volitivo, criar
atitudes e disposições persistentes que influem em todos os movimentos
exteriores. Evidentemente a ação volitiva também se deixa influenciar pelo
ambiente exterior, mas seu exercício contínuo de alguma forma atenua pouco a
pouco essa influência exterior a ponto de tornar-se a ação em algo “natural” ou
“animal” ou “automático”. De modo muito genérico, podem-se dividir as ações em três
grandes classes: (a) reações de defesa (evitar situações desagradáveis), (b)
reações substitutivas (quando não é possível evitá-la, mas ao menos contorná-la
ou compensar seu impacto), (c) solução de conflitos (repressão dos desejos e
instintos sensoriais em favor de um ideal de vida intelectualmente superior).
Hábito. Nas palavras
de Brennan, o hábito é “uma disposição que se desenvolve mediante o exercício experimental
da inteligência e da vontade em virtude da qual estamos preparados a atuar de
uma maneira natural, eficiente e metódica. Isso significa, naturalmente, que o
hábito é um aspecto de nossa vida mental superior, dado que supõe a existência
e o exercício de discernimento e controle”. A criação de um hábito permite a aquisição
gradual de certa prontidão, facilidade e satisfatoriedade de resposta.
A ideia por trás da criação de hábitos é
que o homem é aperfeiçoável, melhorável e, mais importante, que a mente humana é
indeterminada. O homem pode eleger uma meta e concentrar seus esforços mentais
e volitivos na direção de cumpri-la. As características principais dos hábitos
são: (a) uniformidade (tendência a produzir as mesmas ações), (b) facilidade,
(c) propensão, (d) independência da atenção.
A criação de hábitos é fundamental para o
desenvolvimento da vida mental. Sem hábitos não há progresso intelectual
possível.
Caráter. São
os aspectos particulares de um indivíduo que o diferenciam dos demais indivíduos.
Em outras palavras, o caráter é o “princípio de ação inteligentemente regida”. Os três fatores que compõem o
caráter são: (1) ação (movimentos corporais, expressão facial, gestos,
linguagem etc., ou seja, tudo aquilo que responsavelmente o indivíduo faz para
interagir com o cosmos e com os homens), (2) reconhecimento de valores (valor
é isoladamente o fator mais importante do caráter porque o valor é a verdadeira
soma e substância dos motivos e é a razão por trás de toda a conduta humana)
e (3) hábito (como dissemos acima, o cultivo do intelecto e da vontade, ou a
falta desse cultivo, é um traço característico do caráter).
O produto típico do caráter é o ideal.
A primeira fase é constituída pela emulação, ou seja, pela aprovação
interior à pessoa que se erige como ideal. A segunda fase é constituída pela imitação.
Em seguida a compensação, ou seja, as permutas que o homem cogita fazer
em prol de seu ideal e, claro, se o ideal for impossível de cumprir deverá ser
substituído por algo mais viável e prático. Por fim, o ideal se torna um motivo
para agir. Aqui é notória a semelhança entre “ideal” e o conceito de “sentido”
popularizado por Viktor Frankl.
Eu (“ego”). É
a consciência de si mesmo, a consciência de eu. É o elemento de nossa
existência que não é pensamento, nem percepção, nem imagem, nem sentimento, nem
sensação. O eu é o mantenedor de todas as nossas ações. Quem nega a existência
do eu nega sua própria existência.
Há três tipos ou manifestações do eu: (1) eu
social (expressa as relações com o mundo, como quando dizemos “eu moro em
Serra do Salitre”, por exemplo), (2) eu pessoal (designa a estrutura
interna da mente e seus atributos, como quando dizemos “eu sou uma pessoa
solitária”, por exemplo) e (3) eu puro (é o sujeito de toda e qualquer
experiência mental, a raiz de nossas ações, como quando dizemos “eu sinto, eu
vejo, eu conheço etc.”, por exemplo). O eu puro é evidentemente o eu do qual se
fundam os outros dois eus. No entanto, transtornos de personalidade podem
substituir os eu social e o eu pessoal, causando enormes dificuldades ao
indivíduo. Cabe lembrar, por fim, que Tomás de Aquino não se refere ao eu humano
dessa forma, mas o chama de persona.
* * *
Eis um esquema no qual Brennan resume as
faculdades (ou “potencialidade”, ou “capacidades”, ou “potências”) humanas.
* * *
É notória a ausência do noûs e do
coração na psicologia tomista. Para que o ser humano possa conhecer o que quer
que seja acerca de Deus e do mundo transcendente, necessariamente terá de
fazê-lo mediante os sentidos sensoriais e sua dominância pelo intelecto e pela
vontade. Em última instância, a ideia de que Deus comunica-se diretamente com o
homem sem a intermediação da criação é inconcebível no entender tomista. Do
ponto de vista cristão ortodoxo, é no coração que Deus se comunica diretamente com
os homens com a condição de que esteja purificado. E, uma vez que o noûs
não mais esteja disperso, e imerso, nas paixões e interesses do ego, mas
regresse ao coração purificado, ou seja, ao centro da afetividade humana, poderá
ser iluminado pelas energias (logoi) divinas.
É claro que Deus também se comunica
indiretamente por meio da criação. Mas os santos e mestres ortodoxos deixam
claro que tal mediação é débil, distante, intricada e, finalmente, castrada e falível.
A psicologia tomista, portanto, é
certamente interessante e verdadeira, mas limitada. Suponho
que se Tomás tivesse pleno acesso às obras dos grandes santos orientais talvez
sua psicologia fosse ainda mais interessante, iluminadora e verdadeira. Quem sabe alguém tome esta hercúlea tarefa para si e complete a obra tomista com os ensinamentos inerrantes dos Santos Padres.
Fonte: Robert Brennan, Psicología general, Ediciones Morata, Madrid, Espanha, 1953.