29 de agosto de 2008

A vida de Ivan Kireyevsky

Esta breve biografia de Ivan Kireyevsky foi originalmente publicada em russo na monumental obra de Ivan M. Kontzevitch Optina Pustyn i Eya Vremya (O Mosteiro de Optina e Sua Era) (Jordanville, Nova York: Holy Trinity Monastery, 1970), pág. 201ff. Muitos anos mais tarde, Valentina V. Lyovina traduziu-a para a língua inglesa, onde foi incluída como apêndice em Elder Macarius of Optina (Platina, Califórina: St. Herman of Alaska Brotherhood, 1995), pág. 291-307, na qual esta tradução portuguesa se baseou. Trata-se do retrato de um homem extraordinário, cuja vida foi fruto sobretudo da relação espiritual com seu staretz, São Macário de Optina, e cuja devoção à essência e à santidade do Cristianismo são particularmente notáveis.

Foto: Ivan Kireyevsky e sua esposa, Natália Kireyevsky.

Leia também: A antropologia e a epistemologia da filosofia de Ivan Kireyevsky e Da necessidade e da possibilidade de novos princípios na Filosofia.

* * *

A iniciativa de tomar para si a tarefa de publicar as obras dos Santos Padres foi de Ivan Vasilievich Kireyevsky e do Ancião Macário de Optina. Graças a eles, academias teológicas, seminários, bispos, reitores e inspetores puderam obter esses livros, enquanto monges e todo o povo russo espiritualmente inclinado ganharam acesso a uma literatura ascética outrora indisponível. A Verdadeira Ortodoxia resplandeceu e fortaleceu-se no combate à invasão dos livros ocidentais que continham falsas orientações espirituais. O surgimento destes manuscritos para o mundo foi um evento cuja importância não pode ser expressa em palavras.

Outra realização de Kireyevsky, conforme atesta a história da filosofia russa, foi o lançamento dos fundamentos para uma filosofia russa independente. Conforme declarou o Prof. Nicholas O. Lossky [pai do eminente teólogo russo Vladimir N. Lossky – N. do T.]: “embora [Kireyevsky e Khomiakov] não tivessem criado um sistema filosófico, eles iniciaram um movimento filosófico-espiritual que produziu as mais originais e valiosas realizações do pensamento russo” [1].

O princípio básico da filosofia de Kireyevsky é o seguinte: “A doutrina da Santíssima Trindade não atrai a mente apenas porque é o foco de todas as verdades sacras que nos foram reveladas, mas porque – conforme pude concluir enquanto me ocupava de um ensaio sobre filosofia – a direção da filosofia depende, antes de qualquer coisa, do entendimento que temos sobre a Santíssima Trindade”. [2]

Ivan Vasilievich Kireyevsky foi filho de pais maravilhosos. Seu pai, Basílio Ivanovich, segundo-major da Guarda Real, era um rico proprietário de terras, dono da vila de Dolbino, a 24 milhas [38,6 km] do Mosteiro de Optina. Basílio era conhecido por ser um homem extraordinariamente gentil. Ele tinha um amor genuíno e intenso pelas pessoas, estava sempre disponível para compartilhar as dores do próximo e a ajudar quem estivesse necessitado. Ele dedicou sua vida, que infelizmente não foi longa, a atos de compaixão. Em 1812, viajando para Orel, uma cidade próxima a uma de suas vilas, ele doou suas duas casas, uma na cidade e outra no campo, para serem usadas de hospitais pelos feridos, refugiados e famílias que fugiam dos distúrbios ao longo da estrada de Smolensk. Ele visitava pessoalmente os doentes, mas acabou sendo acometido por febre tifóide e morreu em Orel em 1º de novembro de 1812, no dia em que se comemoram os Santos Médicos Anárgiros Cosme e Damião, cumprindo até o fim os mandamentos do Cristo.

Além de virtuoso, Basílio Ivanovich Kireyevsky era um sujeito original: ele era anglófilo, estudava química e medicina e comprou as obras de Voltaire só para queimá-las. Ele adorava ler deitado no chão e não ligava para sua aparência. Enquanto vivia em Moscou durante os partos de sua jovem esposa, Basílio passava dias inteiros em livrarias, e em meio às distrações acabou deixando sua esposa sem dinheiro e sem saber como prover sua grande família.

Ele punia seus servos obrigando-os a fazer prostrações. Os funcionários públicos eram punidos da mesma maneira quando Basílio assumiu o cargo de juiz. “Negligência no dever é culpa perante Deus”, dizia.

Sua esposa, Avdotia Petrovna, de família nobre, era culta e educada. Se ele era do tipo moral, ela representava o tipo estético. Dotada de talento literário, ela escrevia e traduzia. Ela adorava flores, poesia e arte, e também pintava. Ela auxiliou V. A. Zhukovsky em suas traduções. Eles eram parentes: ela era filha da irmã adotiva mais velha de Zhukovsky, a qual era também madrinha dele e, de certa maneira, tutora e amiga de infância. Quando Avdotia ficou viúva e se casou com A. A. Elagin, ela mantinha em Moscou um famoso salão onde todas as figuras famosas e de destaque se encontravam para trocar idéias. Foi assim por décadas, até sua morte.

Após a morte de Basílio Ivanovich Kireyevsky, Zhukovsky viveu mais de um ano com sua parenta. A personalidade de Zhukovsky deixou uma forte impressão na alma do jovem órfão Ivan. O relacionamento deles durou por toda a vida.

O padrasto de Ivan, A. A. Elagin, deu a seus enteados uma educação maravilhosa. Eles começaram estudando matemática, línguas estrangeiras (francês e alemão) e leram muitos livros sobre literatura, história e filosofia da biblioteca de seu falecido pai. Em 1822, toda a família viajou a Moscou a fim de que completassem sua educação, onde professores da universidade lhes aplicaram exames particulares. Além disso, Ivan assistiu a palestras sobre ciências naturais proferidas por M. G. Pavlov, um seguidor de Schelling. Seu colega de estudos era A. I. Koshelev. Por essa época, os irmãos Kireyevsky estavam estudando inglês e línguas clássicas. Porém, o conhecimento lingüístico deles não era muito amplo, de maneira que Ivan Vasilievich teve de continuar estudando quando, anos mais tarde, assumiu um papel ativo na tradução dos Santos Padres em Optina. Pouco tempo depois, Kireyevsky fez o exame nacional, como então era chamado, perante o comitê, e começou a trabalhar nos Arquivos da Faculdade para Estrangeiros. A estréia literária de Kireyevsky deu-se em um artigo sobre Pushkin, publicado no Mensageiro de Moscou em 1828, chamado “Uma Nota sobre as Características da Poesia de Pushkin”. Este ensaio foi provavelmente a primeira tentativa em russo de tecer uma crítica séria e um elogio eminentemente artístico de Pushkin, inspirado em Zhukovsky. No ano seguinte, ele publicou um artigo chamado “Uma Avaliação da Literatura Russa para 1829”, no almanaque de Maximovitch A Estrela da Manhã.

No mesmo ano, ele pediu a mão de Natália Petrovna Arbenina em casamento, sem sucesso. Doente, Kireyevsky viajou para o exterior, onde assistiu a aulas em Berlim e Munique sobre teologia, filosofia e história. Entre os professores estavam Hegel e Schelling, com quem manteve relações pessoais. Após um ano, ele retornou à sua terra-natal e começou a publicar a revista O Europeu. Duas edições foram publicadas. A revista era bem-intencionada, mas foi considerada propaganda revolucionária pelo governo. Zhukovsky não pôde salvar Ivan Vasilievich do exílio administrativo. Deste momento em diante, uma sombra negra de suspeitas políticas pairaria sobre Kireyevsky, que, ao longo de toda sua vida, não permitiu que ele demonstrasse seus talentos e potenciais. Em 1834, ele enfim casou-se com a mulher que amava.

Após o casamento de Kireyevsky e durante os próximos doze anos de sua vida em Dolbino, seus deveres civis limitavam-se aos de inspetor da escola pública de Belev, onde foi homenageado por sua postura conscienciosa para com o trabalho. Essa vida calma em uma vila pacata poderia sugerir a um “biógrafo” mal-intencionado que Kireyevsky adentrara numa espécie de sono ou inatividade. Mas estes não foram anos perdidos para Kireyevsky – pelo contrário, foram anos de grande aprofundamento mental e espiritual. Se em sua juventude ele acreditava no progresso europeu e era um ocidentalista (enquanto trabalhava de editor no Europeu), agora ele havia mudado drasticamente seus pontos de vista. Ivan Vasilievich tornou-se o “Kireyevsky” cuja imagem está estampada na história de nossa cultura espiritual. Os anos que passou estudando livros científicos alargaram seus conhecimentos. Nos anos 1840, ele novamente tentou entrar na esfera pública, mas não obteve sucesso. Ele tentou uma cadeira na Universidade de Moscou, mas foi rejeitado. Seu desejo de expressar plenamente as convicções filosóficas que amadureceram em suas contemplações no calmo interior era tão insistente que ele decidiu assumir a editoria da revista O Moscovita, publicada por Pogodin (1844). A censura e o temperamento difícil do editor, porém, compeliram Ivan Vasilievich a pedir demissão após as primeiras três edições.

Há muito o que dizer a respeito do que teria causada e auxiliado Ivan Vasilievich a formar sua visão de mundo. Por um lado, seu irmão Pedro Vasilievich, de quem era amicíssimo, e por outro, sua esposa, Natália Petrovna.

Pedro Vasilievich lutava pela preservação da “russidade” no povo russo. É nisto que residia todo o sentido de sua existência; ele não tinha vida privada. Ele colecionava antigos poemas espirituais e canções folclóricas. O poeta Yazikov o chamava de “o grande sofredor da antiga Rus” e “o iluminado asceta da herança de seu povo”.

“A plenitude da vida nacional só pode existir”, dizia Pedro Kireyevsky, “onde a tradição é respeitada; e onde a tradição encontra espaço, um espaço será dado à vida...”. “Toda imitação é uma concentração de morte. Aquilo que está vivo é original. Quanto mais plena a existência do homem, tanto mais distinta será sua face e tanto menos similar às demais. Aquilo que chamamos de fisionomia humana comum implica em nada mais do que uma face que lembra a de todo mundo, isto é, uma fisionomia vulgar”. É notável a profunda consciência de Pedro Vasilievich Kireyevsky da importância da preservação do modo de vida do povo russo, de suas características singulares, para que não acabe tendo “a mesma face de todo mundo” e não perca sua identidade nacional. Ele estava ciente do profundo trauma infligido no povo russo um século e meio atrás, quando a europeização súbita e violenta foi imposta sobre a vida de todos.

O pensamento de Pedro Vasilievich não foi desperdiçado pelo seu irmão mais velho. Mas no que concerne as questões religiosas, a influência sobre Ivan veio de sua esposa, Natália Petrovna. Ivan Kireyevsky jamais foi ateu. Mesmo durante o tempo que passou na Alemanha, em 1830, ele aconselhava sua irmã a ler o Evangelho diariamente. Mas embora fosse cristão, Ivan Vasilievich não era um membro atuante da Igreja Ortodoxa. Ele estava distante da Igreja, assim como praticamente toda a classe culta daquela época. Sua esposa era de um tipo diferente: ela era filha espiritual do Ancião Filareto do Mosteiro de Novospassky. Quando jovem, ela viajou ao Mosteiro de Sarov e conversou com São Serafim. Por causa disso, o abade da Lavra de São Sérgio-Santíssima Trindade, Arquimandrita Antônio, a chamava de “irmã” em suas cartas [porque o Arquimandrita Antônio era filho espiritual de São Serafim].

Um encontro com o Pe. Filareto de Novospassky foi decisivo na vida de Ivan Kireyevsky: Mas os dias do ancião já estavam contados. Após seu repouso, o Pe. Macário de Optina tornou-se o ancião do casal Kireyevsky.

Kireyevsky escreveu a seu amigo Koshelev: “Mais importante do que qualquer livro ou raciocínio é encontrar um santo ancião ortodoxo que possa te guiar e a quem você possa confessar cada pensamento e ouvir não exatamente sua opinião, por mais inteligente que seja, mas o julgamento dos Santos Padres”. Ele encontrou essa felicidade excepcional na figura do Pe. Macário!

De todos os leigos que freqüentavam o Mosteiro de Optina, Kireyevsky era a pessoa mais próxima a seu espírito. Como ninguém, ele entendia sua importância de pináculo espiritual, onde os maiores feitos espirituais de atividade interior, coroados com abundantes dons da graça pela aquisição do Espírito Santo, eram combinados com dedicação total ao mundo em suas necessidades espirituais e materiais. Em Optina, ele presenciou a sabedoria dos Santos Padres ao vivo. Enquanto filósofo, ele percebeu que o conhecimento superior da verdade está intimamente ligado à integridade de espírito, à restauração da harmonia de todos os poderes espirituais do homem. Essa restauração é alcançada pelo esforço ascético interior, pela atividade espiritual. Kireyevsky, em suas pesquisas filosóficas, sobretudo em seu ensinamento sobre o conhecimento (epistemologia), apontou para a dependência interior (laço funcional) entre as capacidades cognitivas do homem e os esforços espirituais, os quais transformam a condição natural e inferior do poder humano em sabedoria espiritual superior (ligando filosofia com asceticismo).

Na função editorial de Optina, Ivan Vasilievich teve a oportunidade de estudar toda a literatura patrística. Já que havia recebido uma excelente educação filosófica em casa e a havia suplementado durante sua estada na Alemanha, ele estava totalmente familiarizado com a cultura ocidental. Em Kireyevsky, a tradição filosófica ocidental encontrava-se com a tradição da Igreja Oriental. Como esse encontro de dois princípios opostos se resolveu?

A resposta a essa questão estava dada em seu ensaio “Das Características do Iluminismo Europeu e sua Relação com o Iluminismo da Rússia”, impresso em 1852 na Antologia de Moscou, a publicação de um círculo eslavófilo. Esse ensaio incorreu em censura por causa da antologia; mas não havia nada nela contra o Estado. O sentido do ensaio é o seguinte:

Já que estudara no Ocidente e o conhecera bem, Kireyevsky criticava duramente sua cultua. O Ocidente havia entrada em um beco sem saída. A doença espiritual da cultura ocidental é “o triunfo do racionalismo”. É nisto que reside sua essência, conforme testifica o Prof. V. Zenkovsky: “A acusação de racionalismo contra o Ocidente surgiu no próprio Ocidente, no século XVIII, tanto na França quanto na Alemanha”. [3]

Kireyevsky versou em detalhes sobre essa doença européia: “O iluminismo europeu atingiu a plenitude de seu desenvolvimento, mas o resultado desse desenvolvimento foi um sentimento quase universal de descontentamento e esperança traída. O próprio triunfo da mente européia revelara a unilateralidade de suas aspirações fundamentais... A vida em si foi desprovida de sentido essencial” [4]. “A análise fria de muitos séculos destruiu os fundamentos sobre os quais, desde o começo de seu desenvolvimento, o iluminismo europeu se assentou. Consequentemente, seus próprios princípios básicos (isto é, os princípios do Cristianismo) se tornaram estranhos e alheios. Essa análise que destruiu suas raízes – essa faca racional automotora, esse silogismo, que não reconhece mais nada a não ser a si próprio e suas experiências individuais, esse racionalismo despótico, essa atividade lógica – apartou-se dos demais poderes cognitivos do homem” (Vol. II, pág. 232). “O mundo ocidental, assim como o Oriente, vivia originalmente pela fé, mas a própria fé foi arruinada quando Roma colocou os silogismos acima da consciência do Cristianismo” (Vol. II, 285). Kireyevsky mostrou que essa ruína resultou em “primeiramente, no desenvolvimento da filosofia escolástica dentro da fé, depois na Reforma da fé e, finalmente, na filosofia fora da fé” (Vol. II, 284). “A Igreja Ocidental substituiu a autoridade interior da fé pela autoridade exterior de sua hierarquia (quando, arbitrariamente e sem o consentimento do Oriente, alterou o Símbolo da Fé)”. Isso “desembocou...no racionalismo, isto é, no triunfo da razão autônoma”, [5] que, por sua vez, desembocou na inevitável desintegração da unidade espiritual. “O dualismo e o racionalismo são as expressões últimas da cultura ocidental” [6].

O Ocidente negligenciou a sabedoria oriental. Seus acadêmicos tornaram-se especialistas em todas as antigas filosofias: egípcia, persa, chinesa, hindu etc. Mas eles estavam fechados ao misticismo da Igreja Ortodoxa. A Rússia, por outro lado, herdou de Bizâncio grandes tesouros da sabedoria espiritual contida nas obras dos Santos Padres. Por conseguinte, a tarefa histórica da Rússia era construir sobre a rica herança bizantina uma nova cultura espiritual, que se impregnaria em todo o mundo. Kireyevsky apresentou o problema em sua totalidade. De acordo com ele, a filosofia russa deveria ter se apoiado sobre “o profundo, vivo e puro amor à sabedoria dos Padres da Igreja, que é o embrião do princípio filosófico superior” (Vol. II, 332).

“A tarefa da filosofia russa não é rejeitar o pensamento ocidental, mas suplementá-lo com o que é revelado em visões espirituais superiores – a experiência viva do ‘conhecimento superior’ – nas quais a integridade de espírito, perdida na Queda e arruinada pelo triunfo do pensamento lógico no Cristianismo Ocidental, seja restaurada” [7].

O ensaio de Kireyevsky, conforme mencionamos, foi publicado na revista eslavófila Antologia de Moscou. Embora Ivan Vasilievich tivesse abandonando os ocidentalistas e se encontrasse em meio a eslavófilos, entre os quais seus grandes amigos A. S. Khomiakov e sobretudo Koshelev, na nossa opinião, é um erro classificá-lo como “eslavófilo”. Não há absolutamente nada em seus textos e ensaios que justifique classificá-lo dessa forma. Ele lutou, ao lado de seu irmão, pela preservação da identidade russa. Nossas raízes bizantinas, sobre as quais a Ortodoxia fundou-se, lhe eram tão caras quanto para Konstantin Leontiev. No mesmo artigo, ele diz: “Os ensinamentos dos Santos Padres da Igreja Ortodoxa chegaram à Rússia, digamos assim, juntamente com a primeira badalada do sino cristão; por meio deles a mente russa enraizou-se e nutriu-se” [9]. Em um artigo bem anterior (“Uma Resposta a Khomiakov”), ele escreveu: “Esses eremitas, trocando uma vida de confortos pela floresta, estudaram, em desfiladeiros inacessíveis, as obras dos mais profundos sábios da Grécia cristã, e retornaram para ensinar às pessoas que eram capazes de entendê-los”. Palavras semelhantes encontramos em C. N. Leontiev: “O espírito bizantino, os princípios e a influência bizantina, com uma complexidade semelhante a do sistema nervoso, penetrou o grande organismo social russo. A Rússia deve a ela [Bizâncio] seu passado...”. (Bizâncio e os Eslavos). Não é de surpreender, portanto, que os ocidentalistas considerem Kireyevsky um eslavófilo. “Respeito Kireyevsky de toda minha alma”, escreveu Granovsky, “apesar de sua total oposição às nossas convicções. Há tanta santidade, objetividade e fé nele como nunca havia visto em ninguém antes...”. A. Herzen expressou-se com pesar sobre Kireyevsky: “Entre nós encontram-se os muros da Igreja...”. Os irmãos Kireyevsky não se alistaram a uma única corrente ideológica sequer. Herzen também atestara esse fato: “Ele [Kireyevsky] não era íntimo de ninguém: nem de seus amigos, nem de nós. Ao seu lado estava seu irmão e amigo Pedro. Ambos sempre pareciam tristes nos debates e reuniões; é como se as lágrimas ainda não tivessem secado, como se uma grande desgraça tivesse lhes acometido ainda ontem”. Essa tristeza era compreensível: nem à época e nem após sua morte os Kireyevsky foram compreendidos ou valorizados. Eles ainda aguardam um pesquisador sério e desapaixonado... Ambos desejavam a renovação da vida nacional. “O que é vida nacional?”, perguntou Pedro Kireyevsky. “É como tudo o que é vivo, não cativo a qualquer fórmula. A tradição é necessária”. Eles entendiam essa tradição como o fundamento da genuína cultura russa e sua transfiguração no espírito da Ortodoxia.

Em 1856, na antologia russa Conversações Russas, o último ensaio de Kireyevsky foi publicado: “Da Possibilidade e da Necessidade de Novos Princípios na Filosofia”. Foi este o ensaio que traçou os rumos para um pensamento independente na filosofia russa. Muito antes, em 1848, o poeta Khomiakov dedicou os seguintes versos às idéias de I. V. Kireyevsky expressas nesse artigo:

Além do mar da meditação,
Além, como ondas, de teus pensamentos, de teus sonhos:
Um reino de brilhante iluminação,
Beleza transcendente, brilho radiante.

Iça tua vela, destemido viajante,
Como a asa branca de um cisne;
Prepara a jornada, e eis que,
Diante de teus olhos, um novo sol desponta.

Retorne outra vez com preciosos tesouros;
Traga alimento ao coração faminto,
Conceda descanso novo às almas enfadadas,
Transmita força às vontades esgotadas. [10]

Alguns meses após a publicação do ensaio, o autor morreu inesperadamente (11 de junho de 1856). Ivan Vasilievich morreu de cólera em Petersburgo, aonde viajara para congratular seu filho que acabava de se formar no liceu. Seus amigos ficaram chocadíssimos com sua morte. Pedro Vasilievich morreria mais tarde, no mesmo ano.

O escritor francês Gratieux, biógrafo de Khomiakov, termina seu livro com as seguintes palavras: “Ele, como Ivan Kireyevsky, morreu subitamente de cólera. Ele também deixara inacabada a obra que herdara, e esse destino duplo, interrompido pela mesma causa, em busca do mesmo fim, mostra que a verdadeira majestade do homem consiste mais em buscar do que em terminar, mais em tentar do que em alcançar, mais em começar do que em terminar. A preocupação por sua continuação é trabalho do Lavrador. E isso deve servir de consolo ao bom trabalhador que parte para dormir em paz” [9].

O corpo de Ivan Vasilievich Kireyevsky foi enterrado junto à Catholicon (igreja principal) do Mosteiro de Optina, próximo à sepultura do Ancião Leônidas. Ao ser informado disso, o Metropolita Filareto notou a grande honra que o Mosteiro de Optina havia rendido a seu devoto filho.

Notas:

[1] Nicholas O. Lossky (Londres, 1952), pág. 13.

[2] I. V. Kireyevsky, Complete Collected Works, Volume I (Moscou, 1861), pág. 100.

[3] Archpriest V. V. Zenkovsky, History of Russian Philosophy, Volume II (Paris, 1948), pág. 200.

[4] Kireyevsky, Complete Collected Works, Vol. II, pág. 231. (as demais citações serão mencionadas diretamente no texto).

[5] Zenkovsky, History of Russian Philosophy, Vol. I, pág. 230.

[6] Ibid., pág. 232.

[7] Ibid., pág. 230.

[8] “On the Character of European Enlightenment”, Complete Collected Works, Vol. II, pág. 259.

[9] A. Gratieux, A. S. Khomiakov and the Movement of the Slavophiles (Paris, 1939), pág. 194.

[10] Caso o leitor se interesse, a tradução inglesa traz os seguintes versos:

Beyond the sea of meditation,
Beyond, like waves, your thoughts, your dreams:
A realm of bright illumination,
Transcendent beauty, radiance gleams.

Unfurl thy sail, thou trav´ler bold,
Like the white wing of a swan;
Prepare to journey, and behold,
Before thine eyes, a new sun dawn.

Return again with precious treasure;
Bring nurture to the hungry heart,
Granting burdened souls new leisure,
Strength to weary wills impart.

27 de agosto de 2008

O mistério do conhecimento

Nota editorial da versão inglesa. O homem sempre foi fascinado pelas últimas coisas – vida, morte, origem do mundo – mas as descobertas dos diversos campos do conhecimento o têm deixado confiante de que, cedo ou tarde, esses mistérios serão explicados pelo poder do intelecto. Esse orgulho mental, porém, somente acabará por afastar o homem da verdade, a qual, de acordo com a doutrina ortodoxa, é o objetivo e o fundamento de todo o verdadeiro conhecimento. Mas como esse conhecimento é adquirido? Apresentamos aqui uma pequena parte de um longo ensaio do renomado teólogo sérvio de abençoada memória, o Arquimandrita Justino Popovich (+1979), no qual ele analisa os textos de Santo Isaque, o Sírio, sobre a teologia ortodoxa do conhecimento. Em suma, ele explica que o entendimento humano obscureceu-se em função do pecado, aliando-se ao mal, e por causa disso o homem tornou-se incapaz de apreender o verdadeiro conhecimento. O homem só conseguirá apreender esse conhecimento quando sua alma (o trono do entendimento) estiver curada. Isso só será possível mediante as virtudes, sendo que a virtude primordial deste processo de cura é a fé. “Por meio da fé, a mente, que se encontra dispersa em meio às paixões, é concentrada, libertada da sensualidade e enriquecida com paz e humildade de pensamento... É pela ascese da fé que o homem derrota o egoísmo, supera os limites do ego e entra em uma nova e transcendente realidade, a qual também transcende a subjetividade”. Em seções separadas, o Pe. Justino versa sobre oração, humildade, amor e graça, que são requisitos aliados à fé, antes de levar o leitor ao “Mistério do Conhecimento”, que republicamos abaixo com pequenas abreviações.

* * *

De acordo com os ensinamentos de Santo Isaque, o Sírio, há dois tipos de conhecimento: o que precede a fé e o que nasce da fé. O primeiro é o conhecimento natural e engloba o conhecimento do bem e do mal. O segundo é o conhecimento espiritual e é “a percepção dos mistérios”, “a percepção do que está oculto”, “a contemplação do invisível”.

Há também duas fés: a primeira vem do ouvido e é confirmada e provada pela segunda, “a fé da contemplação”, “a fé que é baseada no que foi visto”. Para se adquirir conhecimento espiritual, o homem deve primeiramente libertar-se do conhecimento natural. Isso é tarefa para a fé. É pela ascese da fé que advém no homem o “poder desconhecido” que o torna capaz de conhecimento espiritual. Se o homem permite se enredar na teia do conhecimento natural, lhe será mais difícil libertar-se dela do que de correntes de ferro, e sua vida será vivida “contra o gume de uma espada”.

Quando o homem começa a trilhar o caminho da fé, ele deve lançar fora, de uma vez por todas, seus velhos métodos de conhecimento, pois a fé possui seus próprios métodos. O conhecimento natural cessa enquanto o conhecimento espiritual toma seu lugar. O conhecimento natural é contrário à fé, pois a fé, e tudo o que dela advém, é “a destruição das leis do conhecimento”, isto é, do conhecimento natural.

A principal característica do conhecimento natural é a sua típica abordagem via experimentação e exame. Isto é, em si, “um sinal de incerteza sobre a verdade”. A fé, pelo contrário, segue um caminho puro e simples de pensamento, que está muito distante dos exames metódicos e dos estratagemas do pensamento. Esses dois caminhos levam a direções opostas. O lar da fé é o “pensamento pueril e a simplicidade de coração”, pois está escrito: Glorificai a Deus em simplicidade de coração (cf. Colossenses 3:22) e Em verdade vos digo que, se não vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no Reino dos Céus (Mateus 18:3). O conhecimento natural se opõe tanto à simplicidade de coração quanto à simplicidade de pensamento. Esse conhecimento opera somente nos limites da natureza, “mas a fé possui seus próprios caminhos para além da natureza”.

Quanto mais o homem se dedicar aos caminhos do conhecimento natural, tanto mais será vítima do temor e tanto menos conseguirá se libertar dele. Mas se seguir a fé, ele imediatamente será libertado e “enquanto filho de Deus, terá poder sobre todas as coisas”. “O homem que ama essa fé age como Deus no uso das coisas criadas”, pois é dado o poder à fé “de ser como Deus para fazer uma nova criação”. Por isso está escrito: Tu quisestes, e todas as coisas são apresentadas diante de ti (cf. Jô 23:13). A fé frequentemente “engendra todas as coisas do nada”, enquanto o conhecimento não consegue fazer nada “sem a ajuda da matéria”. O conhecimento não tem poder sobre a natureza, mas a fé tem. Armado da fé, o homem adentra o incêndio e apaga as chamas, permanecendo intocado por elas. Outros ainda andaram sobre as águas como que sobre terra firme. Todas estas coisas estão “para além da natureza”; elas vão de encontro aos modos do conhecimento natural e revelam a futilidade de tais modos. A fé “move-se acima da natureza”. Os caminhos do conhecimento natural governaram o mundo por mais de cinco mil anos, e o homem era incapaz de “erguer seus olhos da terra e entender o poder de seu Criador” até que “nossa fé surgisse e nos libertasse das sombras das obras deste mundo” e da mente fragmentada. Aquele que tem fé “não lhe faltará nada”; quando nada possuir, “possuirá todas as coisas pela fé”, conforme está escrito: Tudo o que pedirdes na oração, crendo, o recebereis (Mateus 21:22) e Perto está o Senhor. Não estejais inquietos por coisa alguma (Filipenses 4:6)

As leis naturais inexistem para a fé. Santo Isaque é bem enfático nesse ponto: Tudo é possível ao que crê (Marcos 9:23), pois com Deus nada é impossível... Ultrapassar os limites da natureza e entrar no reino do supernatural é considerado como algo contrário à natureza, irracional e impossível... Apesar disso, o conhecimento natural, de acordo com Santo Isaque, não é necessariamente falho. Ele não deve ser rejeitado. Ocorre que a fé é superior a ele. Esse conhecimento só deve ser condenado na medida em que se voltar contra a fé. Mas quando esse conhecimento “se junta à fé, tornando-se una com ela, vestindo-se em seus pensamentos inflamados”, quando ele “adquire as asas da ausência das paixões”, então, fazendo uso de outros meios que não os naturais, ele se eleva da terra “para o reino de seu Criador”, para o supernatural. Esse conhecimento é, então, preenchido pela fé e recebe o poder para “elevar-se às alturas”, para perceber aquilo que está além de toda percepção e para “ver o brilho que é incompreensível à mente e ao conhecimento dos seres criados”. O conhecimento é o nível a partir do qual o homem se eleva até as alturas da fé. Quando atinge essas alturas, ele não mais necessitará do conhecimento, pois está escrito: Em parte conhecemos, mas quando vier o que é perfeito, então o que é em parte será aniquilado (I Coríntios 13:9-10). A fé revela-nos a verdade da perfeição, como se estive diante de nossos olhos. É pela fé que aprendemos o que está além do nosso alcance – pela fé e não pela investigação e pelo poder do conhecimento.

Há três modos espirituais nos quais o conhecimento ascende e descende, e pelos quais ele se move e se altera. São eles: o corpo, a alma e o espírito... Em seu nível inferior, o conhecimento “segue os desejos da carne”, preocupando-se com riquezas, futilidades, vestimentas, confortos e sabedoria racional. Esse conhecimento inventa as artes e as ciências e tudo o que adorna o corpo neste mundo visível. Tal conhecimento é contrário à fé. Ele é conhecido como “mero conhecimento, pois está despido de qualquer pensamento sobre o divino e, por causa de seu caráter carnal, confere à mente uma fraqueza irracional, pois a mente é superada pelo corpo e por suas preocupações pelas coisas deste mundo”. Ela se incha de orgulho, pois considera que toda boa obra é sua, e não de Deus. A famosa frase do Apóstolo - O conhecimento incha (I Coríntios 8:1) - refere-se obviamente a este conhecimento, o qual não está ligado à fé e à esperança em Deus, nem ao verdadeiro conhecimento. O conhecimento verdadeiro e espiritual, aliado à humildade, confere perfeição de alma àqueles que o adquiriram, a exemplo de Moisés, David, Isaías, Pedro e Paulo e todos os que, nos limites da natureza humana, foram dignos deste conhecimento perfeito. “Neles, o conhecimento estava sempre imerso em reflexões estranhas a este mundo, em revelações divinas e contemplações sublimes das coisas espirituais e mistérios inefáveis. Do seu ponto de vista, suas próprias almas não passam de cinzas e pó”. O conhecimento que vem da carne é criticado pelos cristãos, os quais o encaram como estando em oposição não somente à fé mas a toda obra virtuosa.

Não é difícil perceber que praticamente toda a filosofia européia, do realismo ao idealismo, e toda a ciência, do atomismo de Demócrito à relatividade de Einstein, estão enquadrados neste primeiro grau de conhecimento inferior do qual versou Santo Isaque.

O homem ascende do primeiro ao segundo grau de conhecimento quando começa a praticar as virtudes do corpo e da alma: jejum, oração, caridade, leituras das Sagradas Escrituras, luta contra as paixões etc. Toda boa obra, toda boa disposição da alma neste segundo grau de conhecimento, é despertada e desempenhada pelo Espírito Santo. O coração é apresentado aos caminhos que levam à fé, embora este conhecimento permaneça “corporal e composto”.

O terceiro grau de conhecimento é o da perfeição, “quando o conhecimento eleva-se acima da terra e das preocupações mundanas e começa a examinar seu próprio interior e seus pensamentos ocultos, ignorando aqueles em que as paixões são engendradas, e seguindo o caminho da fé em interesse pela vida ‘futura’”.

É muito difícil, senão impossível, expressar em palavras o mistério e a natureza do conhecimento. No âmbito do pensamento humano não há uma definição pronta que possa explicá-los completamente. Santo Isaque fornece muitas e diferentes definições de conhecimento. Ele continuamente se exercita nessa matéria, e o problema permanece impávido diante dos olhos deste santo asceta. O santo apresenta respostas a partir de sua rica e abençoada experiência, conquistada por uma longa e dura ascese. Mas a mais profunda e, em minha opinião, a mais exaustiva resposta que o homem pode fornecer a essa pergunta foi dada por Santo Isaque na forma de diálogo: “Pergunta: O que é o conhecimento? Resposta: A percepção da vida eterna. Pergunta: E o que é vida eterna? Resposta: É perceber todas as coisas em Deus. Pois o amor vem por meio do entendimento, e o conhecimento de Deus é soberano sobre todos os desejos. Todo deleite que existe na terra é supérfluo ao coração que recebe esse conhecimento, pois não há nada que se compare com o deleite do conhecimento de Deus”.

O conhecimento é, portanto, a vitória sobre a morte, a união desta vida com a vida imortal e a união do homem com Deus. O próprio ato de conhecimento resvala no imortal, pois é pelo conhecimento que o homem ultrapassa os limites do sujeito e entra no âmbito do trans-sujeito. E quando o objeto trans-sujeito é Deus, então o mistério do conhecimento torna-se o mistério dos mistérios e o enigma dos enigmas. Tal conhecimento é uma trama mística cosida na tecelagem da alma pelo homem que está unido com Deus.

O problema vital do conhecimento humano é o da verdade. O conhecimento carrega em si um ímpeto irresistível ao mistério infinito, e essa sede da verdade, que é instintiva ao conhecimento humano, jamais será satisfeita até que a Verdade absoluta e eterna se torne a substância do conhecimento humano, até que o conhecimento, em autopercepção, adquira a percepção de Deus e, em autoconhecimento, conheça a Deus. Mas isto é concedido ao homem somente pelo Cristo, o Deus-Homem, aquele que é a única encarnação e personificação da verdade eterna no mundo das realidades humanas. Quando o homem recebe o Deus-Homem em si, enquanto alma de sua alma e vida de sua vida, então esse homem será constantemente preenchido com o conhecimento da verdade eterna.

O homem restaura e transforma seus órgãos de conhecimento através da prática das virtudes, que advêm da percepção e do conhecimento da verdade. Para esse homem, fé e conhecimento, e tudo a eles relacionado, são um todo orgânico e indivisível. Eles preenchem e são preenchidos mutuamente, e cada um confirma e apóia o outro. “A luz mental engendra a fé”, diz Santo Isaque, “e a fé engendra a consolação da esperança, enquanto a esperança fortalece o coração”. Fé é a iluminação do entendimento. A fé banha de luz o conhecimento, liberta o homem do orgulho e da dúvida, e é conhecida como “o conhecimento e a manifestação da verdade”.

O conhecimento santo advém de uma vida santa, mas o orgulho obscurece o conhecimento santo. A luz da verdade aumenta e diminui conforme o modo de vida do homem. Terríveis tentações recaem sobre aqueles que buscam viver uma vida espiritual. O asceta deve, portanto, passar por enormes sofrimentos e infelicidades para alcançar o conhecimento da verdade.

Vida perturbada e pensamentos caóticos são frutos de uma vida desordenada, o que acaba obscurecendo a alma. Quando as paixões são apagadas da alma, com a ajuda das virtudes, quando “a cortina das paixões é retirada da frente dos olhos da mente”, então o intelecto consegue perceber a glória do outro mundo. A alma cresce por meio das virtudes, a mente é confirmada na verdade e torna-se inabalável, “equipada para encontrar e destruir qualquer paixão”. A liberdade das paixões advém da crucificação do intelecto e da carne. É então que o homem se torna capaz de contemplar a Deus. O intelecto é crucificado quando os pensamentos impuros são apagados, e o corpo é crucificado quando as paixões são arrancadas. “O corpo que se entrega aos prazeres é incapaz de ser a morada do conhecimento de Deus”.

O verdadeiro conhecimento, “a revelação dos mistérios”, é atingido por meio das virtudes. Ele é “o conhecimento que salva”.

Fonte: Revista Orthodox America.

Epistemologia ortodoxa

Este é o capítulo 6 do famoso Orthodox Psychotherapy, do Metropolita Hierotheos de Nafpaktos, discípulo do Pe. João Romanides.

* * *

A epistemologia é um assunto que pertence a este livro porque está estreitamente relacionada com a cura da alma humana. Os capítulos anteriores mostraram que a queda, a doença e a morte do homem são precisamente a doença de sua alma, seu nous, seu coração e sua razão, os quais são influenciados por pensamentos malignos. A queda é sobretudo a queda do nous. Quando a alma, o nous e o coração são curados, atinge-se o conhecimento de Deus. Na verdade, não é somente quando estão curados que se adquire o conhecimento de Deus, mas também à medida que estão curados. Conforme se curam, atinge-se um conhecimento de Deus que não é constituído de palavras sobre Deus, mas conhece-se o próprio Deus. Em outras palavras, é no coração curado que Deus é revelado e concede conhecimento de Si próprio. Portanto, a epistemologia ortodoxa está estreitamente relacionada com a terapia da alma. O conhecimento de Deus cresce à medida que a cura cresce, e o conhecimento puro de Deus é concedido àquele que foi purificado e curado.

Para que possamos vislumbrar esta questão com mais clareza, convém que nos concentremos nas doutrinas de dois Padres da Igreja: Santo Isaque, o Sírio, e São Gregório Palamás. Primeiramente, versaremos sobre os três graus de conhecimento de acordo com Santo Isaque, o Sírio, e por último sobre o conhecimento de Deus de acordo com São Gregório Palamás.

1. Os três graus de conhecimento de acordo com Santo Isaque, o Sírio

Santo Isaque, o Sírio, desenvolveu o tema dos três graus de conhecimento nos capítulos 52 e 53 de suas Homilias Ascéticas.

Ele começa fazendo um contraste entre conhecimento e fé. O conhecimento humano é marcado pelo fato de que não tem autoridade para fazer nada “sem investigação e exame”, sendo obrigado a investigar se aquilo que deseja é possível (pág. 254). Há uma grande participação da inteligência no conhecimento humano, embora seja sobretudo da inteligência caída, a qual acaba excedendo seus limites naturais; isso quer dizer que a inteligência também domina o nous. A fé, porém, possui outros limites, e é aí que reside seu grande valor e sua diferença em relação ao conhecimento humano. Santo Isaque lembra que a palavra “fé” não quer dizer a mera transmissão de verdades dogmáticas sobre as Pessoas da Santíssima Trindade ou sobre a Encarnação do Cristo, “embora esta fé seja em si muito valiosa”, mas o principal significado daquilo que chamamos de fé é “aquela luz que, pela graça, desponta na alma e fortalece o coração pelo testemunho da mente, tornando-a indubitável pela garantia da esperança”. Essa fé espiritual não aprende os mistérios pela tradição oral, “mas, com olhos espirituais, contempla os mistérios ocultos na alma e as riquezas divinas e secretas que estão escondidas dos olhos dos filhos da carne, mas que são desvelados pelo espírito àqueles que se sentam à mesa do Cristo por meio do estudo de Suas leis” (pág. 262). Isso quer dizer que o conhecimento humano é adquirido pela atividade da inteligência e da investigação humana, enquanto o conhecimento divino é adquirido pela fé. Essa fé é sobretudo aquela que desponta na alma a partir da luz da graça, e, por meio desse poder, aprende-se todos os mistérios que estão escondidos dos olhos do homem carnal. Assim, “a fé é mais sutil do que o conhecimento, assim como o conhecimento é mais sutil do que as coisas tangíveis” (pág. 262). A fé, que é conhecimento divino, é mais sutil que o conhecimento humano.

Santo Isaque explica a diferença entre conhecimento humano e fé. O conhecimento humano é incapaz de aprender sem investigação, enquanto a fé “requer um modo de pensamento mais simples, mais puro e límpido, apartado de qualquer deslize ou invenção metodológica [...] O lar da fé é o pensamento pueril e o coração simples” (pág. 254). O núcleo do conhecimento humano é a inteligência, enquanto o núcleo da fé é o coração simples e ingênuo. O conhecimento humano “confina-se nos limites da natureza” enquanto a fé “viaja para além da natureza” (pág. 254). Ou seja, o conhecimento humano é uma condição puramente natural, que opera dentro de limites naturais, enquanto a fé é uma condição supranatural. O conhecimento humano é incapaz de fazer alguma coisa sem matéria; ele se move no mundo material, enquanto a fé tem autoridade, à semelhança de Deus, para fazer uma nova criação (pág. 254). O conhecimento humano não se atreve nem deseja exceder os limites da natureza, enquanto a fé “os transgride com autoridade” (pág. 255). As vidas de todos os santos demonstram isso. Os santos, pelo poder da fé, “adentraram em chamas, embridaram o poder do fogo e caminharam incólumes por meio dele; e caminharam sobre águas como se estivessem em terra firme” (pág. 255). Todas essas coisas que a fé faz estão acima da natureza e contrárias aos caminhos do conhecimento humano. O conhecimento humano “confina-se nos limites da natureza” enquanto a fé “ultrapassa a natureza” (pág. 255). O conhecimento humano sempre busca meios “para salvaguardar aqueles que o adquiriram”, isto é, sempre procura proteger o homem por meios humanos. Mas a fé deixa isso para Deus. “O homem que reza com fé nunca emprega ou se engaja em caminhos e meios” (pág. 255). O conhecimento humano jamais começa uma obra sem examinar como ela terminará, enquanto a fé diz: “Todas as coisas são possíveis àquele que crê. Pois para Deus, nada é impossível” (pág. 256).

É verdade, segundo Santo Isaque, que o conhecimento humano não é falho em si, mas a fé lhe é superior (pág. 256). O conhecimento é aperfeiçoado pela fé, dado que “o conhecimento é um degrau pelo qual o homem consegue escalar às sublimes alturas da fé” (pág. 257). Quando a fé vem, aquilo que é em parte é abolido. Assim, “é pela fé que aprendemos as coisas que não podem ser compreendidas pelo poder investigativo do conhecimento” (pág. 257). As obras virtuosas da justiça, isto é, o jejum, a caridade, a vigília, a santidade e as “demais obras desempenhadas pelo corpo” e as obras desempenhadas na alma, isto é, o amor ao próximo, a humildade de coração, o perdão “daqueles que pecaram”, a lembrança de boas coisas, a investigação dos mistérios ocultos nas Escrituras, a ocupação da mente com boas obras, o embridar das paixões da alma e as demais virtudes “requerem conhecimento”. O conhecimento “as conserva e lhes ensina sua devida ordem”. E todas essas coisas são degraus pelos quais a alma ascende “às sublimes alturas da fé”. Porém, “o modo de vida da fé é mais exaltado do que as obras da virtude; não são as obras mas o repouso perfeito e a consolação que são consumados no coração e na alma” (pág. 256-7).

Todas essas coisas mostram que, de acordo com a doutrina de Santo Isaque e dos demais Santos Padres, a fé é superior ao conhecimento humano, superior até mesmo ao conhecimento adquirido por meio da prática das virtudes. Pois a fé é uma condição carismática, é comunhão com Deus; é “o entendimento e a visão do coração”; é a vida que se desenvolve na alma a partir do advento da luz da graça divina. Na seção sobre o ensinamento de São Gregório Palamás, analisaremos este conhecimento de Deus que é, em verdade, “comunhão em ser”, é a comunhão e união do homem com Deus. Por isso ele é um conhecimento superior a qualquer conhecimento humano, até mesmo ao conhecimento adquirido pela prática das virtudes, pois nele encontramos o próprio Cristo, que se oculta nas profundezas dos mandamentos.

Santo Isaque, o Sírio, cita três tipos de conhecimento. Vamos examiná-los com mais detalhes, pois creio que assim seremos capazes de diferenciar a tradição ortodoxa da tradição cultural humana, isto é, o conhecimento divino do conhecimento humano.

Há três caminhos possíveis nos quais o conhecimento ascende e descende. Esses caminhos são corpo, alma e espírito (pág. 258). Na verdade, quando os Padres falam de corpo, alma e espírito, eles não se referem às três partes do homem, mas por “espírito” querem dizer o dom da graça, a graça divina com a qual o homem é abençoado. Sem a graça de Deus, o homem é homem da alma ou da carne, enquanto com a graça ele é chamado de homem espiritual. Embora a natureza do conhecimento seja única, ela é refinada e alterada de acordo com as esferas inteligível e sensível (pág. 258). Portanto, assim como há três modos: corpo, alma e espírito, há três tipos de conhecimento que lhes são afins. O tipo de conhecimento que o homem possui demonstrará seu progresso espiritual e sua condição espiritual. Além disso, o tipo de conhecimento que se tem é um indicador da purificação e da cura. Aquele cuja alma é insalubre possui conhecimento corporal, enquanto aquele que está sendo curado possui conhecimento da alma, e aquele que já está curado possui conhecimento espiritual. Este conhece os mistérios do Espírito, que são desconhecidos e incompreensíveis ao homem carnal.

O primeiro conhecimento é adquirido pelo estudo diligente e constante, o segundo conhecimento vem de um estilo de vida bom e puro e da fé mental, e o terceiro conhecimento “é atributo somente da fé. Pois pela fé o conhecimento é abolido, as obras findam e o emprego dos sentidos torna-se supérfluo” (pág. 264).

Com base nos ensinamentos de Santo Isaque, vamos examinar esses três tipos de conhecimento mais analiticamente, procurando identificar neles algo que indique o grau de doença ou saúde da alma humana.

(1) Conhecimento corporal. Alguns dos elementos característicos do conhecimento humano relacionados aos desejos da carne são a riqueza, a vaidade, os adornamentos, o conforto e o apego à sabedoria racional, isto é, à sabedoria aplicável à administração do mundo, às invenções e às artes e ciências (pág. 258). Esse conhecimento é oposto à fé, conforme explicamos acima, porque ele tende a pensar que “todas as coisas existem por sua própria providência” (pág. 258). A sabedoria e o conhecimento das coisas mundanas, na ausência dos outros dois tipos de conhecimento, são inúteis e criam muitos problemas para o homem. Esse conhecimento é superficial e rude, pois está “despido de qualquer preocupação com Deus” (pág. 258). Sua preocupação é com este mundo, e como é controlado pelo corpo, “introduz na mente uma impotência irracional” (pág. 258).

A maior parte dos homens contemporâneos, cujas almas estão insalubres, possui esse tipo de conhecimento e o cultivam sem parar. Toda a civilização contemporânea está nesse estado, o que acaba criando muitas anomalias à alma e ao corpo. Por conseguinte, essa unilateralidade de conhecimento cria grandes problemas. Eis como Santo Isaque os descreve. O homem apegado ao conhecimento corporal é presa da covardia, da tristeza, do desespero, do medo de demônios, da apreensão perante os homens, dos rumores de ladrões e relatos de assassinatos, da ansiedade por causa de doenças, das preocupações com desejos e necessidades, do medo da morte, do medo de sofrimentos, de animais ferozes etc., que, no conjunto, constituem a atmosfera da vida atual (pág. 258). O homem que possui esse conhecimento humano e corporal não sabe como se entregar à misericórdia de Deus, mas tenta resolver os diversos problemas à sua própria maneira. Mas quando se vê incapaz de resolvê-los, então ele “rivaliza com os demais, como se eles impedissem e se opusessem” a esse conhecimento (pág. 258). O homem irrompe com os demais porque eles impedem a posse dos bens do conhecimento corporal.

O conhecimento corporal erradica o amor por completo. Ele faz com que as pessoas examinem os pequenos erros e pecados uns dos outros, bem como suas causas e fraquezas; ele faz com que as pessoas dogmatizem e se oponham mutuamente em palavras, tornando-se maliciosas e motivando-as a desonrar o próximo. Esse conhecimento contém presunção e orgulho (pág. 259).

Está mais do que claro que o conhecimento corporal é característico da civilização contemporânea. Com intuição profética, Santo Isaque apresenta as causas e objetivos desse homem carnal, descreve suas lutas e angústias, e mostra seus terríveis resultados. Distúrbios nas relações pessoais, falta de amor, obstinação e astúcia são algumas das coisas que caracterizam o homem contemporâneo, o qual se encontra doente de alma e apartado de Deus.

(2) Conhecimento da alma. Quando o homem renuncia ao conhecimento corporal e volta-se para os desejos e conversações da alma, então todas as boas obras do conhecimento da alma se seguem. São elas: jejum, oração, misericórdia, leituras das Escrituras, virtudes, luta contra as paixões etc. (pág. 258). Todas elas são aperfeiçoadas pelo Espírito Santo. Elas não surgem pelo poder do homem, mas pela cooperação do homem com o Espírito Santo. Há estágios na aquisição do conhecimento. O segundo grau de conhecimento é aperfeiçoado “quando o homem estabelece suas ações à distância dos homens, lendo as Escrituras e em oração” (pág. 260). Isto é, aquele que possui esse conhecimento vive em quietude, com tudo o que ela implica, conforme descrevemos no capítulo anterior. Ele reza a Deus incessantemente e estuda as Escrituras envolto em uma atmosfera de quietude, para nutrir sua alma, e não para satisfazer sua curiosidade. Nessa categoria estão incluídas as pessoas que estão sendo curadas das úlceras psíquicas e das feridas de suas almas. Essa cura abre as portas para um conhecimento que poderíamos chamar de “estágio preliminar” e “ante-sala” do conhecimento espiritual, o qual a graça de Deus providenciará no coração do homem.

(3) Conhecimento espiritual. Quando o conhecimento humano eleva-se acima das preocupações mundanas e começa a enxergar interiormente “aquilo que está oculto dos olhos”, quando desdenha as coisas “pela qual a perversidade das paixões é despontada”, quando se esforça no desejo em obter as promessas do século futuro, quando se imiscui nos mistérios ocultos, “então a fé absorve o conhecimento, converte-o e engendra um novo conhecimento, a fim de que se torne total e completamente espiritual” (pág. 261).

Dessa maneira, a alma pode voar ao reino dos anjos incorpóreos; ela conhece os mistérios espirituais, o domínio do espiritual e do corpóreo. Ou seja, ela conhece os princípios interiores dos seres. Então, os sentidos interiores despertam e a alma recebe a ressurreição que lhe dará a certeza da ressurreição futura dos homens. Santo Isaque, que possuía esse conhecimento espiritual o qual é a vida de fé, escreveu: “A alma pode, então, pairar nas esferas do incorpóreo e tocar as profundezas insondáveis do mar, meditando nas assombrosas e divinas obras do governo de Deus sobre as criaturas inteligíveis e corpóreas. Ela sonda os mistérios espirituais, os quais são percebidos pelo nous simples e sutil. E depois, os sentidos interiores despertam para os feitos espirituais, de acordo com a ordem que vigorará na vida imortal e incorruptível. Pois desde agora ela recebeu, como em mistério, a ressurreição inteligível enquanto verdadeira testemunha da renovação universal de todas as coisas” (pág. 261).

Esse conhecimento foi possuído por todos os santos de Deus, como Moisés, David, Isaías, o Apóstolo Pedro, o Apóstolo Paulo e todos os santos dignos deste conhecimento perfeito, “no grau possível à natureza humana” (pág. 259). Na verdade, esse conhecimento vem da visão de Deus e da luz incriada, de revelações divinas ou, como diz Santo Isaque, “das diversas contemplações e revelações divinas, das visões sublimes das coisas espirituais e dos mistérios inefáveis...” (pág. 259). Depois, o conhecimento é absorvido por essas visões de Deus e a pessoa sente que não passa de pó e cinzas (pág. 259). Ela adquire o estado abençoado da humildade e da simplicidade. É por isso que o conhecimento espiritual, isto é, o conhecimento de Deus, é fruto da theoria. Ele é recebido pela pessoa que progrediu do conhecimento carnal e do conhecimento da alma ao conhecimento espiritual.

Em suma, podemos dizer que o primeiro conhecimento “confere frieza à alma em relação às coisas de Deus”. O segundo conhecimento aquece a alma “ao nível da fé”. O terceiro conhecimento é descanso do labor, “que é o tipo do século futuro, pois a alma extrai prazer somente na meditação mental sobre os mistérios das boas coisas porvir” (pág. 262).

Esse ensinamento de Santo Isaque é muito relevante para o assunto que estamos tratando, pela seguinte razão. No começo do livro, mencionamos que os membros da Igreja não são divididos entre bons e maus, ou morais e imorais, como se a ética humana fosse o critério, mas entre doentes de alma, os que estão sendo curados e os curados. Estas três categorias correspondem precisamente aos três graus de conhecimento. As pessoas cujas almas estão doentes são pessoas de conhecimento corporal, mundano, as que estão sendo curadas são aquelas que, em diferentes graus, estão adquirindo a sabedoria e o conhecimento da alma, e as curadas são as santas de Deus, que possuem conhecimento espiritual, isto é, o verdadeiro conhecimento de Deus. Hoje em dia, a maioria das pessoas está doente porque não sabe nada sobre o nous e o coração, e, portanto, encontra-se no primeiro conhecimento, o conhecimento carnal. Outras pertencem ao segundo conhecimento porque estão se esforçando para serem curadas pelo método ascético disponível na Igreja Ortodoxa. E os santos, que existem até hoje, pertencem ao terceiro conhecimento porque foram curados de sua doença e, portanto, adquiriram o conhecimento de Deus.

2. O conhecimento de Deus de acordo com São Gregório Palamás
Agora que explicamos o ensinamento de Santo Isaque, o Sírio, sobre os três graus de conhecimento, vamos examinar o que São Gregório Palamás, um santo do Monte Athos, tem a nos ensinar sobre o mesmo assunto. Quando uma pessoa ascende do conhecimento corporal para o conhecimento da alma, e deste para o conhecimento espiritual, ela então vê Deus e possui conhecimento de Deus, que é sua salvação. O conhecimento de Deus, conforme explicaremos a seguir, não é intelectual, mas existencial. Ou seja, todo o ser da pessoa é cheio deste conhecimento de Deus. Mas para alcançá-lo, o coração da pessoa deve ter sido purificado, isto é, a alma, o nous e o coração devem ter sido curados. Abençoados os puros de coração, pois eles verão a Deus (Mateus 5:8).

Examinemos estas coisas mais analiticamente.

Conforme já havíamos mencionado, Barlaam insistiu que o conhecimento de Deus não depende da visão de Deus, mas do entendimento da própria pessoa. Ele disse que podemos adquirir conhecimento de Deus através da filosofia e, portanto, considerava os profetas e apóstolos, os quais viram a luz incriada, como sendo inferiores aos filósofos. Ele ensinava que a luz incriada é, na verdade, sensorial e criada e “inferior ao entendimento”. Porém, São Gregório Palamás, um portador da Tradição e um homem de revelação, defendia uma visão contrária a essa. Em sua teologia, ele apresentou a doutrina da Igreja de que a luz incriada, isto é, a visão de Deus, não é simplesmente uma visão simbólica ou sensorial e criada, nem inferior ao entendimento, mas é a deificação. Através da deificação, o homem passa a ser digno de ver Deus. E essa deificação não é um estado abstrato, mas uma união do homem com Deus. Isso quer dizer que o homem que contempla a luz incriada a vê porque está unido a Deus. Ele a vê com seus olhos interiores, bem como com seus olhos corporais, os quais, porém, foram alterados pela ação de Deus. Consequentemente, theoria é união com Deus. E essa união é conhecimento de Deus. Nesse momento, é concedido à pessoa conhecimento de Deus, o qual está acima do conhecimento humano e acima dos sentidos.

São Gregório explica essa teologia em vários pontos de sua obra. Mas não é nossa intenção fazer uma exposição sistemática de seu ensinamento sobre o conhecimento de Deus e, portanto, nos limitaremos a analisar o ponto central, conforme apresentado em sua obra fundamental “Dos Santos Hesicastas”, conhecida como As Tríades. Cada citação virá acompanhada de sua respectiva referência.

Eis um trecho bem característico: “Aquele que limpou sua alma de qualquer apego a coisas deste mundo, que se apartou de tudo por seguir os mandamentos, e que superou toda atividade cognitiva através da oração contínua, sincera e imaterial, e que foi abundantemente iluminado pela luz inefável em união inconcebível, somente ele, tornando-se luz, contemplando pela luz, na visão e desfrute dessa luz, reconhece verdadeiramente que Deus é transcendentalmente radiante e que está além da compreensão; ele glorifica a Deus não apenas para além do poder do entendimento humano de seu nous, pois muitas coisas criadas estão além disso, mas até mesmo além desta maravilhosa união, a qual é o único meio através do qual o nous se une àquilo que está além das coisas inteligíveis, ‘imitando divinamente os nous supracelestes’” (2,3,57).

O ensinamento central de São Gregório está nesse trecho. Para alcançar a visão divina da luz incriada, a pessoa deve ceifar qualquer conexão entre a alma e aquilo que lhe é inferior e apartar-se de tudo através do cumprimento dos mandamentos do Cristo, transcendendo toda atividade cognitiva “através da oração contínua, sincera e imaterial”. Portanto, ela já precisa ter sido curada, através do cumprimento dos mandamentos do Cristo e da libertação de sua alma de qualquer conexão pecaminosa com as coisas criadas. Ela é iluminada “pela luz inefável em união inconcebível”. Ela vê a Deus através da união. Por conseguinte, torna-se luz e vê pela luz. Ao ver esta luz incriada, ela reconhece Deus e adquire conhecimento dEle, pois agora ela “verdadeiramente reconhece que Deus está acima da natureza e além da compreensão”.

São Gregório também desenvolve este ensinamento em outros pontos das Tríades.

A visão de Deus, a theoria da luz incriada, não é uma visão sensorial, mas uma deificação do homem. Versando sobre a visão divina de Moisés “face a face, e não em enigmas”, São Gregório relembra o trecho em que São Máximo, o Confessor, diz: “Deificação é uma iluminação direta e hipostática, a qual não possui começo mas que desperta naqueles que são dignos algo que excede sua compreensão. É, em verdade, uma união mística com Deus, para além do nous e da razão deste século, quando as criaturas não mais conhecerão a corrupção” (3,1,28;CWS p.84). Portanto, a visão da luz incriada é a deificação do homem. Ele vê a Deus através da deificação, e não através do cultivo da inteligência. A visão da luz incriada é chamada de dom deificante. Não é um dom da natureza humana criada, mas do Espírito Santo. “Por conseguinte, o dom deificante do Espírito é uma luz misteriosa que transforma em luz aqueles que recebem suas riquezas. Ele não apenas os enche com luz eterna mas também lhes concede conhecimento e vida apropriados a Deus” (3,1,35;CWS p.90). Assim, a visão de Deus não é exterior, mas vem através da deificação (2,3,25).

Essa deificação é união e comunhão com Deus. De acordo com São Gregório, “A visão da luz incriada não é uma simples abstração e negação; é uma união e uma divinização que ocorrem misticamente e inefavelmente pela graça de Deus, após a eliminação de tudo o que está aqui embaixo que se imprime no nous; é algo que vai além da abstração (1,3,17;CWS pág. 34f). A contemplação da luz incriada se dá “pela comunhão divinizante do Espírito” (1,3,5;CWS pág .33). “Portanto, a contemplação desta luz é uma união, muito embora não perdure no imperfeito: mas não é a união com essa luz outra coisa senão uma visão?”(2,3,36;CWS pág. 65).

São Gregório fala de êxtase. Mas esse êxtase, na doutrina patrística, não tem nada a ver com o êxtase de Pítia e das demais religiões. O êxtase vem quando, em oração, o nous abandona toda conexão com as coisas criadas: primeiramente “com tudo o que é mau ou ruim, e depois com as coisas neutras” (2,3,35;CWS pág. 65). O êxtase é sobretudo apartar-se das opiniões do mundo e da carne. Em oração sincera, o nous “abandona todas as coisas criadas” (2,3,35;CWS pág. 65). Esse êxtase é superior à teologia abstrata, isto é, à teologia racional, e pertence somente àqueles que atingiram a eliminação das paixões. Mas ainda não é união. Isso quer dizer que o êxtase, que é a oração incessante do nous no qual há lembrança contínua de Deus e não há qualquer relação com o “mundo do pecado”, ainda não é união com Deus. Essa união ocorre quando o Paracleto “ilumina do alto o homem que atinge, em oração, o estágio superior às mais elevadas possibilidades naturais e que aguarda a promessa do Pai, e por Sua revelação arrebata-o à contemplação da luz” (2,3,35;CWS pág. 65). A iluminação por Deus é o que mostra a união dEle com o homem.

Visão, deificação e união com Deus são as coisas que concedem ao homem conhecimento existencial de Deus. O homem passa a possuir conhecimento real de Deus. O dom deificante do Espírito Santo, o qual é uma luz misteriosa, transforma em luz divina aqueles que a atingiram, e não apenas os enchem com luz eterna, “mas também lhes concedem conhecimento e vida apropriados a Deus” (3,1,35;CWS pág. 89). Neste estado, a pessoa possui conhecimento de Deus. Em resposta à doutrina de Barlaam segundo a qual Deus é conhecido pelos maiores contempladores, os filósofos, e que o conhecimento de Deus transmitido “por iluminação noética...não é, de maneira alguma, conhecimento verdadeiro” (2,3,78), São Gregório Palamás declarou: “Deus faz-Se conhecido não apenas por meio daquilo que há, mas também por meio daquilo que não há, por meio transcendente, isto é, pelas coisas incriadas, e também por uma luz eterna que transcende a todas as coisas”. Esse conhecimento, diz ele, é concedido hoje como uma espécie de promessa àqueles que são dignos dele, os quais “são iluminados sem cessar no século sem fim”. Eis porque as visões dos santos são verdadeiras, “e aquele que as considerarem falsas se apartou do conhecimento divino de Deus” (2,3,78). Por conseguinte, aqueles que ignoram e desprezam a visão de Deus são, em verdade, ignorantes de Deus.

Essas coisas mostram que visão de Deus, deificação, união e conhecimento de Deus estão intimamente ligados. Eles não podem ser entendidos isoladamente. Romper essa união distancia o homem do conhecimento de Deus. A base da epistemologia ortodoxa é a iluminação e a revelação de Deus no coração purificado do homem.

Conforme vimos, o conhecimento de Deus está acima do conhecimento humano. A visão da luz incriada supera toda atividade epistemológica e está “além da visão e do conhecimento” (2,3,50). Dado que a visão da luz incriada é concedida aos corações dos fiéis e perfeitos, eis porque “ela é superior à luz do conhecimento” (2,3,18;CWS pág. 63). E não somente é superior à luz do conhecimento humano “dos estudos helênicos”, mas a luz dessa theoria difere-se da “luz que vem das Sagradas Escrituras”, dado que a luz das Escrituras pode ser comparada à “lâmpada que brilha num local escuro, enquanto a visão da luz incriada assemelha-se à estrela da manhã que brilha durante o dia, isto é, o sol” (2,3,18;CWS pág. 63). Por conseguinte, a graça da deificação transcende a natureza, a virtude e o conhecimento humano (3,1,27).

A visão da luz incriada e o conhecimento que dela se origina não são subprodutos do poder racional, não são aperfeiçoamentos da natureza racional, conforme Barlaam afirmava, mas são superiores à razão. É conhecimento concedido por Deus ao puro de coração. Quem quer que afirme que o dom deificante é um desenvolvimento da natureza racional está em oposição ao Evangelho do Cristo. Se a contemplação fosse um dom natural, então todas as pessoas poderiam ser deuses, uns mais, outros menos. Mas “os santos deificados transcendem a natureza”, eles são engendrados por Deus, Deus lhes dá o poder de se tornarem “filhos de Deus” (3,1,30;CWS pág. 85).

A visão da luz incriada, que concede conhecimento de Deus ao homem, é sensorial e supra-sensorial. Os olhos corporais são remodelados, de maneira que possam ver a luz incriada, “essa luz misteriosa, inacessível, imaterial, incriada, deificante, eterna”, esse “brilho da Natureza Divina, essa glória da divindade, essa beleza do reino celestial” (3,1,22;CWS pág. 80). Palamás pergunta: “Tu não percebes que essa luz é inacessível aos sentidos que não são transformados pelo Espírito?” (2,3,22). São Máximo, cujo ensinamento é citado por São Gregório, afirma que os apóstolos viram a luz incriada “por meio da transformação da atividade de seus sentidos, produzida pelo Espírito” (2.3.22).

A visão da luz incriada e o conhecimento que dela se origina transcendem não apenas a natureza e o conhecimento humano, mas também a virtude. A virtude e a imitação de Deus nos preparam para a união divina, mas a união misteriosa é, em si, efetivada pela graça (3,1,27;CWS pág. 83).


Por conseguinte, a deificação, que é o objetivo da vida spiritual, é uma manifestação de Deus ao coração puro do homem. A visão da luz incriada é o que engendra deleite espiritual na alma. Pois, de acordo com São Gregório, a evidência dessa luz é que a alma cessa de entregar-se aos prazeres e às paixões corruptas, adquire paz e quietude de pensamento, repouso e alegria espiritual, desdém pela glória humana, humildade aliada ao regozijo secreto, ódio ao mundo, amor às coisas celestiais, ou melhor, amor somente ao Deus dos Céus, e visão da luz incriada, mesmo que os olhos estejam cobertos ou tenham sido arrancados fora (3,1,36;CWS pág. 90).

Pelo que foi dito, está claro que o fim da cura humana é a visão da luz incriada. Como neste capítulo estamos versando sobre theoria, vale a pena analisar o ensinamento de Palamás de que a theoria possui vários graus. Ele diz que a theoria possui um começo, e as coisas que se seguem a esse começo diferem-se em graus de clareza e escuridão, mas nunca haverá um fim, pois seu progresso, como o da arrebatação na revelação, é infinito. A iluminação é uma coisa e a visão contínua da luz é outra, e ainda outra é a visão das coisas nesta luz, através da qual até mesmo coisas muito distantes são acessíveis aos olhos e o futuro mostra-se enquanto já acontecendo (2,3,35;CWS pág. 65). Há, portanto, graus de theoria e, consequentemente, graus de conhecimento.

Vale a pena examinarmos o ensinamento de São Pedro Damasceno sobre os oito estágios de theoria (Philokalia 3, 108). Os primeiros sete pertencem a este século, enquanto o oitavo pertence ao século futuro. A primeira theoria é o conhecimento dos testes e tribulações desta vida. O segundo é o “conhecimento de nossas próprias falhas e da generosidade de Deus”. O terceiro é o conhecimento das coisas terríveis antes e depois da morte. O quarto é o entendimento profundo da vida experimentada por nosso Senhor Jesus neste mundo e de Seus discípulos e demais santos, isto é, as palavras e ações dos mártires e Santos Padres. O quinto é o conhecimento da natureza e do fluxo das coisas. O sexto é a theoria das coisas criadas, ou conhecimento e entendimento da criação visível de Deus. O sétimo é o entendimento da criação espiritual de Deus, isto é, dos anjos. O oitavo é o conhecimento a respeito de Deus, ou aquilo que chamamos de “teologia”.

Por conseguinte, a theoria possui muitos estágios e graus, e há muito pelo que passar antes da visão da luz incriada, que é “a beleza do século futuro”, “o alimento dos céus”. Entre os graus de theoria estão a lembrança da morte, o qual é um dom de Deus, a oração incessante, a inspiração para cumprir completamente os mandamentos do Cristo, o conhecimento de nossa pobreza espiritual, isto é, o entendimento de nossos pecados e paixões, e o arrependimento que daí se segue. Todas estas coisas só são possíveis por causa da operação da graça divina. A theoria perfeita é a visão da luz incriada, que se distingue em visão e visão contínua, conforme explicou Palamás (3,1,30).

Assim sendo, a purificação que ocorre pela graça de Deus cria as precondições necessárias para se alcançar a theoria, isto é, a comunhão com Deus, a deificação do homem e o conhecimento de Deus. O método ascético da Igreja conduz a este ponto. Ele não está baseado em critérios humanos e não tem por objetivo produzir pessoas “boazinhas”, mas curá-las totalmente e conduzi-las à comunhão com Deus. Se o homem está distante da comunhão e da união com Deus, então ele não atingiu sua salvação. A pessoa espiritualmente treinada que vê a luz incriada está, na linguagem dos Padres, “deificada”. Essa expressão é usada por São Dionísio, o Areopagita, São João Damasceno e, conforme vimos, por São Gregório Palamás (3,1,30;CWS p.85f).

A cura da alma, do nous e do coração conduz à visão de Deus e ao conhecimento da vida divina. Esse conhecimento é a salvação do homem.

Devemos orar fervorosamente para que nos seja concedido alcançar esse conhecimento de Deus. A exortação é clara:

“Vinde, ascendamos à montanha do Senhor, ascendamos até a casa de nosso Deus, e contemplemos a glória de Sua transfiguração, a glória do Unigênito do Pai. Recebamos luz de Sua luz e, de espírito elevado, recitemos eternamente os louvores da Trindade consubstancial”.

Agora levantemos e cantemos:

“Tu foste transfigurado na montanha, ó Cristo, nosso Deus, e mostraste Tua glória a Teus discípulos à medida em que puderam suportá-la. Pelas intercessões da Mãe de Deus, faça Tua perpétua luz brilhar sobre nós, pecadores, ó Doador da luz, glória a Ti”.

(Festa da Transfiguração - Menaion)

Bibliografia:

Gregory Palamas. Triads in Defence of the Holy Hesychasts. Greek text and French tr. J. Meyendorff (Spicilegium Sacrum Lovaniense) 30-31: Louvain, 1973. ET of Triads (selections by N. Gendle), CWS London, SPCK, 1983.

Isaac the Syrian. The Ascetical Homilies. ET Transfiguration Monastery, Boston, 1884.

Orações

a) Em busca de um médico espiritual

“Ó Senhor, Tu que não desejas a morte de um pecador, mas que ele se converta e viva, Tu que vieste ao mundo para restaurar a vida àqueles que estão mortos em pecado e para torná-los dignos de contemplar tua verdadeira luz na medida em que isso é possível ao homem, envia-me um homem que Te conhece, de maneira que, servindo-o e submetendo-me a ele com todas as minhas forças, como a Ti, e fazendo Tua vontade na dele, eu possa agradar-Te, o único e verdadeiro Deus, e para que até mesmo eu, um pecador, seja digno de Teu Reino”.

São Simeão, o Novo Teólogo

b) Por conhecimento de Deus e por amor a Deus

“Torna-me digno, ó Senhor, de conhecer-Te e amar-Te, não com o conhecimento que vem do exercício do nous disperso; mas torna-me digno do conhecimento pelo qual, contemplando-Te, o nous glorifica Tua natureza em visão divina e que rouba a mente do apego ao mundo. Faça-me digno de ser elevado acima do olho perambulante da minha vontade, a qual engendra imaginações, e de contemplar-Te na coação da Cruz, na segunda parte da crucificação do nous, o qual cessa voluntariamente suas imaginações conceituais para repousar na Tua visão contínua, a qual supera a natureza. Implanta em meu coração um aumento do Teu amor, para que ele possa se apartar deste mundo em amor fervoroso a Ti. Desperta em mim entendimento da Tua humildade, com a qual Tu residiste temporariamente no mundo sob o revestimento da carne que suportaste de nossos membros pela mediação da Virgem Maria; que com esta lembrança contínua e leal eu possa aceitar a humildade da minha natureza em regozijo”.

Santo Isaque, o Sírio

18 de agosto de 2008

A doença da religião e sua cura

Este ensaio é parte integrante de um estudo do Pe. João Romanides chamado “Os Sínodos da Igreja e a Civilização”, apresentado na VI Encontro da Comissão Luterano-Ortodoxa, realizado entre 31 de maio e 8 de junho de 1991 em Moscou, Rússia. Eles foram posteriormente revisados e impressos pelo Mosteiro Koutloumousiou do Monte Athos, sob o título de “A Religião é uma Doença Neurobiológica e a Ortodoxia é sua Cura”, na coletânea “O Helenismo Ortodoxo Rumo ao Terceiro Milênio”, volume II, pág. 67-87, 1996.

Leia outros artigos do Pe. Romanides em português: O que é o nous?, Qual o núcleo da tradição ortodoxa? e Conservadores e liberais.

* * *

Prefácio
A principal diferença entre os três Evangelhos dos Apóstolos Mateus, Marcos e Lucas e o Evangelho do Apóstolo João [1] reside nos dois estágios de cura do segundo núcleo da personalidade humana, isto é, do coração (responsável pela circulação do sangue). O primeiro núcleo da personalidade humana encontra-se no cérebro ou intelecto, que é parte integrante do sistema da medula espinhal (responsável pela circulação do líquido cefalorraquidiano, ou “líquor”). É o coração que precisa ser curado pela purificação e iluminação, cuja consumação poderá se dar na glorificação da pessoa inteira. Os Evangelhos dos Apóstolos Mateus, Marcos e Lucas, juntamente com textos do Velho Testamento, sobretudo os Salmos, eram usados como parte do processo de purificação e iluminação dos corações dos catecúmenos, culminando-se na celebração da Paixão e Crucificação do Senhor da Glória, quando eram batizados no Sábado Santo [conhecido no Ocidente como “Sábado de Aleluia”, isto é, o sábado que antecede a Páscoa – N. do T.]. A esses batismos seguia-se a celebração da Ressurreição do Cristo que, por sua vez, era concluída com a Eucaristia da Páscoa, a partir da qual o Evangelho do Apóstolo João começava a ser lido e interpretado, num período de 50 dias, até o Domingo do Pentecostes. Durante este período de instrução joanina, esperava-se que o recém-batizado progredisse do estado de purificação do coração ao estado de iluminação por meio de salmos e orações incessantes, em contraste aos salmos e orações eventuais do intelecto. A esta altura, a pessoa sabia que estava se tornando membro do Corpo do Cristo à medida que a oração no coração estivesse se consolidando e tornando-se incessantemente presente. Caso a pessoa já tivesse tido essa oração mas a perdeu por algum motivo, e, mesmo assim, estivesse satisfeita de já a ter tido no passado, então estaria correndo enorme perigo pois “que ninguém pense que se tornou membro do Corpo de uma vez por todas”. [2]

Pentecostes é o evento no qual as Igrejas do Velho e Novo Testamento tornaram-se o Corpo do Cristo, que passou a incluir todos os antepassados que foram iluminados e glorificados antes da Encarnação de Yahweh. Assim como no Velho Testamento, as pessoas que perseveraram na iluminação de seus corações continuarão em direção às suas glorificações, ou seja, à suas ordenações a profetas. Eis porque São João Batista, já glorificado e ordenado a profeta, foi novamente glorificado, mas, desta vez, experimentou a estranha realidade de estar batizando o próprio Yahweh Encarnado. Seis dias após afirmar que alguns há, dos que aqui estão, que não provarão a morte até que vejam o domínio de Deus vir em poder, Cristo novamente revelou-Se como Yahweh Encarnado aos Apóstolos Pedro, Tiago e João. [3]

Tais realidades bíblicas não podem ser corretamente interpretadas por aqueles que se deixaram contaminar pelas distorções de Agostinho sobre a Revelação de Deus aos profetas do Velho e Novo Testamento. Agostinho se intimidou com a doutrina ariana segundo a qual o Logos é criado porque Ele era visível a todos a quem Se revelava. Em contraste à tradição do Velho e Novo Testamento, Agostinho confeccionou uma doutrina segundo a qual Deus era visto e ouvido pelos profetas e apóstolos por meio de criaturas que Ele trazia à existência para serem vistas e ouvidas e então aniquiladas após serem vistas e ouvidas. A despeito destas repentinas aparições do nada e desaparições para o nada, somente a natureza humana do Logos permaneceria existindo após Sua Encarnação. [4] Exemplos destas supostas criaturas seriam a pomba do Batismo do Cristo, o domínio de Deus (erroneamente traduzida como “reino” de Deus) na Transfiguração, as línguas de fogo no Pentecostes etc.

Esperava-se que, durante este período joanino, o recém-batizado entrasse no estágio de iluminação do coração com salmos e orações incessantes, conforme explicado por São Paulo, especialmente em I Coríntios 12-15:12. Este será o ponto de partida deste estudo, dado que são nestes trechos que encontramos um esboço esotérico da realidade interior da adoração da Igreja primitiva, liderada por apóstolos, profetas e doutores, cujas autoridades emanavam de suas próprias glorificações mutuamente reconhecidas.

Introdução

Todas as fantasias, sobretudo a religião, são causadas por um curto-circuito no núcleo da personalidade humana. Esse curto-circuito é curado na iluminação do coração por meio da oração incessante, em contraposição à oração intelectual e eventual do cérebro. O estudo desta cura será o foco deste ensaio. Mais uma vez, afirmo que quando a iluminação resulta em glorificação, então homens e mulheres são ordenados a profetas. Isto é o que os profetas do Velho e Novo Testamento são, e isto é o que os faz Padres da Igreja. O que os profetas viram além da visão sensorial, em suas glorificações, é o próprio Yahweh, tanto antes quanto depois de Sua Encarnação.

O curto-circuito ocorre entre o coração, que bombeia sangue, e a medula espinhal, que causa a circulação do líquido cefalorraquidiano [líquor]. Todas as fantasias têm sua raiz neste curto-circuito, que não é nada mais do que uma espécie de “curto-circuito elétrico”. Este mal aparta sua vítima da realidade em diversos graus. Por causa deste mal, a pessoa nem sempre distingue entre realidade e fantasia. Talvez a mais perigosa das fantasias sejam aquelas religiões que alegam possuir textos ditados por Deus e entendidos por uma casta de líderes supostamente inspirados. Por causa das fantasias, há homens escravos de forças demoníacas, que se manifestam sobretudo nas religiões. Somente os cegos não enxergam o fato de que as religiões são uma das principais fontes de confusão social.

Porém, na tradição do Velho e Novo Testamento, tais líderes supostamente inspirados constituíam uma distorção daquilo que se aceitava na Igreja primitiva, durante o período de catecumenato, enquanto se passava pelos estágios da purificação e iluminação do coração a caminho da glorificação. A própria iluminação do coração por meio dos salmos e orações incessantes constituía a prova de que se estava no caminho certo para a glorificação. As pessoas que fingiam terem alcançado a iluminação e a glorificação não conseguiam enganar os verdadeiros profetas. Os dois critérios básicos para se detectar um falso profeta são: (1) é impossível expressar Deus e muito menos concebê-Lo e (2) não há qualquer semelhança entre o criado e o incriado. Falsos profetas são facilmente detectáveis pois transgridem estes dois critérios, os quais, a propósito, Agostinho transgrediu repetidas vezes.

Em total contraposição a esses critérios, a maior parte das doutrinas e interpretações bíblicas pertence ao reino da fantasia porque as pessoas foram levadas a crer que suas próprias fantasias são um dom da fé. Seus líderes, que não têm a menor idéia da existência da iluminação do coração e da glorificação, aqui e agora, nesta vida, convencem seu rebanho de que sua fé, em si, é prova de que estão no caminho da salvação. O próprio Movimento Ecumênico para a Unidade Cristã ainda não conseguiu aventar a possibilidade de que a chave para a unidade é a cura por meio da oração incessante no coração e por meio da glorificação.

O curto-circuito em questão minimiza o nível de comunhão com a glória incriada de Deus, que satura e governa e criação. Todos os seres criados participam nas criativas e sustentadoras energias incriadas de Deus, que são coletivamente chamadas de “Sua glória” e “domínio” no Velho e Novo Testamento. Essa é a realidade que subsume o Velho e o Novo Testamento, isto é, o Judaísmo primitivo e o Cristianismo dos Nove Concílios Ecumênicos convocados pelo Imperador Romano, que governou a partir de Constantinopla, a Nova Roma, até sua captura pelos turcos otomanos em 1453. Embora o Império Romano tenha desaparecido, a prática da cura do coração por meio de sua purificação e iluminação até a glorificação não desapareceram, pelo menos ainda. Saberemos que o último glorificado faleceu quando a sociedade humana falecer. E este último glorificado provavelmente não será membro de nenhuma Igreja “oficial”.

1) O curto-circuito

O curto-circuito entre o coração e a medula espinhal é reparado por meio da oração incessante no coração. Somente quando o curto-circuito for reparado a pessoa começará a ser libertada do reino das fantasias, através do qual o diabo governa as sociedades humanas.

A comunhão humana com as energias incriadas de Deus é aumentada pela energia purificadora, iluminadora e glorificadora de Deus. Em contraposição à glorificação bíblica, a tradição platônica e aristotélica ensina que a felicidade é o objetivo maior do homem, quando, na verdade, ela é o próprio inferno, isto é, a satisfação total de seus desejos egocêntricos.

O resultado mais importante da glorificação é a revelação de que (1) não há qualquer semelhança entre o criado e o incriado e (2) é impossível expressar Deus e muito menos concebê-Lo. Em outras palavras, a própria Bíblia não é uma expressão de Deus e nem contém conceitos sobre Deus. Somente nas mãos de um glorificado a Bíblia pode ser usada para guiar pessoas na cura de seus corações por meio da purificação, iluminação e glorificação. Nas mãos de charlatães, a Bíblia leva suas vítimas à destruição.

Para se tornar um membro do Corpo do Cristo, começa-se com a fé de aceitação, durante a fase da purificação do coração. Essa fé tem de se transformar em fé interior à medida que é testificada pela oração incessante. A oração incessante no coração testifica o fato de que se começou a fazer parte do Corpo do Cristo. Porém, chegar ao estado de iluminação e, daí, às portas da glorificação, significa que o Senhor da Glória está levando a pessoa à Sua glorificação para seu própria bem, mas sobretudo para o bem dos outros. Ao ser glorificado, a pessoa volta à iluminação como “homem”. [5]

2) O Anjo Yahweh da Glória [6]

O Primeiro e o Segundo Concílio Ecumênico condenaram o arianismo e o eunomianismo, segundo os quais o Anjo Yahweh da Glória e Seu Espírito são as primeiras criaturas de Deus antes dos séculos. Esses Concílios sustentaram, ao invés disso, que o Anjo do Grande Concílio e o Espírito Santo são consubstanciais ao Pai.

O Nono Concílio Ecumênico de 1341, de acordo com a lei romana, condenou a doutrina agostiniana de Barlaam, o calabrês, sem perceber qual era a fonte dessa doutrina, segundo a qual Deus revela-Se por meio de criaturas que traz à existência (τά γινόμενα) para serem vistas e ouvidas e que as leva de volta à inexistência (τά απογενόμενα) depois que suas missões foram cumpridas. O que estes Padres não sabiam em 1341 é que essa doutrina era a do próprio Agostinho, ensinada por ele repetidas vezes nos livros II e III de seu De Trinitate. Isso significa que o Vaticano há séculos tem aceitado os Concílios Ecumênicos Romanos da Nova Roma em categorias agostinianas. A questão que se nos impõe é se os membros luteranos e ortodoxos deste diálogo seguirão Agostinho, os Padres dos Concílios Romanos ou suas próprias opiniões. [7]

3) Os sínodos enquanto associações de clínicas neurológicas
Temos de ter uma visão clara do contexto no qual a Igreja e o Estado enxergavam a contribuição dos profetas na cura e perfeição da personalidade humana a fim de entendermos tanto a missão dos sínodos quanto a razão do Império Romano os ter incorporado em seu código civil. Nem a Igreja nem o Estado reduziam a missão da Igreja à salvação por meio do perdão de pecados para a entrada no céu após a morte. Isso seria o mesmo que os médicos perdoarem seus pacientes por estarem doentes a fim de que fossem curados após a morte. A Igreja e o Estado sabiam muito bem que o perdão dos pecados era apenas o começo da cura da doença da busca da felicidade. Essa cura passava pela purificação e iluminação do coração, culminando na perfeição da glorificação. O resultado não se resumia à preparação para a vida após a morte, mas também à transformação da sociedade, aqui e agora, de indivíduos egoístas e egocêntricos em indivíduos com amor desinteressado, ou seja, que não buscassem amar a si próprios.

a) Céu e inferno
Todos verão a glória de Deus no Cristo e todos alcançarão o grau de perfeição que escolheram e ao qual se esforçaram. Seguindo São Paulo e o Evangelho do Apóstolo João, os Padres ensinam que aqueles que não viram o Cristo Ressuscitado em glória nesta vida, seja num “espelho em enigma” pelos salmos e orações incessantes no coração, seja “face a face” na glorificação, verão Sua glória em fogo eterno e trevas exteriores na próxima vida. A glória incriada que o Cristo tem por natureza do Pai é céu para aqueles cujo amor egoísta foi curado e transformado em amor desinteressado, e inferno para aqueles que escolheram permanecer incurados em seu egoísmo.

Não somente a Bíblia e os Padres são claros a esse respeito, mas também os ícones ortodoxos do Julgamento Final. A mesma luz dourada da glória na qual o Cristo e Seus amigos estão envoltos torna-se vermelha à medida que desce para os condenados. Essa é a glória e o amor do Cristo, que purifica os pecados de todos mas não glorifica a todos. Todos os homens serão levados pelo Espírito Santo à Verdade, que é ver o Cristo em glória, mas nem todos serão glorificados. Aos que justificou a estes também glorificou, de acordo com São Paulo (Romanos 8:30). A parábola de Lázaro no seio de Abraão e do homem rico em tormentos é clara. O rico vê mas não participa. (Lucas 16:19-31).

A Igreja não manda ninguém para o céu ou para o inferno, mas prepara os fiéis para a visão do Cristo em glória, a qual todos terão. Deus ama os condenados tanto quanto os santos. Ele quer a cura de todos mas nem todos aceitam Sua cura. Isso quer dizer que o perdão dos pecados não é preparação suficiente para ver o Cristo em glória.

Não é necessário dizer que a tradição anselmiana, segundo a qual os salvos são aqueles a quem Cristo supostamente reconciliou Deus, não é uma alternativa válida na tradição ortodoxa. Comentando II Coríntios 5:19, por exemplo, São João Crisóstomo diz que devemos nos “reconciliar com Deus. Paulo não diz ‘Reconcilie Deus a vós’, pois não é Ele quem odeia, mas nós. Pois Deus nunca odeia”.

É neste contexto que o Estado entendia a missão de cura da Igreja na sociedade. As religiões que prometem a felicidade após a morte não são muito diferentes uma das outras.

b) A janela de Paulo [8]

I Coríntios 12-15 é uma janela única através da qual podemos observar a realidade da Igreja enquanto Corpo do Cristo. A participação como membro da Igreja apresenta graus de cura e perfeição em dois grandes grupos: os iluminados e os glorificados. Os membros do Corpo do Cristo estão listados com bastante clareza em I Coríntios 12:28. [E a uns pôs Deus na Igreja, primeiramente apóstolos, em segundo lugar profetas, em terceiro doutores, depois milagres, depois dons de curar, socorros, governos, variedades de línguas]. O processo começa pelos “indoutos” (idiotes) que dizem “amém” ao longo da adoração pública audível. Nesta fase, inicia-se a purificação do coração sob a direção daqueles que já são templos do Espírito Santo e membros do Corpo do Cristo.

Os graus de iluminação começam pelo charisma inicial das “variedades de línguas”, que se encontra em oitavo lugar, até os “doutores”, em terceiro lugar.

Na cabeça da Igreja local estão os “profetas”, em segundo lugar na lista, os quais receberam a mesma revelação dos “apóstolos” (O mistério do Cristo noutros séculos não foi manifestado aos filhos dos homens, como agora tem sido revelado pelo Espírito aos seus santos apóstolos e profetas. Efésios 3:5), que estão em primeiro lugar, e são junto com eles o fundamento da Igreja (Edificados sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas, de que Jesus Cristo é a principal pedra da esquina. Efésios 2:20). Apóstolos e profetas são o fundamento da Igreja, assim como os médicos são o fundamento dos hospitais.

“Variedades de línguas” são a fundação sobre a qual todos os demais charismata edificam-se, mas são temporariamente suspensos durante a glorificação (O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá. I Coríntios 13:8). Enquanto apóstolo, São Paulo coloca-se a si mesmo como o cabeça na lista de membros que Deus apontou para a Igreja. Apesar disso, ele ainda apresenta o charisma das “variedades de línguas”. Diz ele, Dou graças a Deus em línguas mais do que vós todos (I Coríntios 14:18). Isso quer dizer que “variedades de línguas” é algo que se verifica em todos os níveis de charismata no Corpo do Cristo. A pergunta de São Paulo, Falam todos em diversas línguas? (I Coríntios 12:30), é uma referência aos “indoutos” que ainda não possuem o dom de línguas e não são, portanto, membros do Corpo do Cristo nem templos do Espírito Santo. [9]

A iluminação e a glorificação dos membros do Corpo do Cristo não são graus de autoridade conferidos por homens. Eles são a quem Deus prepara e aponta, no seio da Igreja, para avançar a graus mais elevados de cura e perfeição. O fato de São Paulo convocar a todos os que se encontram em graus inferiores de participação no Corpo do Cristo a progredir aos estágios superiores significa que todos são convocados a tornarem-se profetas, isto é, a atingirem a glorificação. Eu quero que todos vós faleis em línguas, mas muito mais que profetizeis (I Coríntios 14:5).

c) Clínica psiquiátrica
A Igreja paulina é semelhante a uma clínica psiquiátrica. Mas seu entendimento da doença da personalidade humana é muito mais sofisticado do que qualquer coisa que a medicina moderna conheça. Para percebermos esse fato, devemos captar em Paulo o conceito bíblico de normalidade e anormalidade humana. O ser humano normal é aquele que foi levado à Verdade pelo Espírito da Verdade, isto é, à visão do Cristo na glória de Seu Pai (cf. João 17). As pessoas acreditam que Deus enviou Seu Filho e que elas também podem ser curadas pelo amor desinteressado porque os apóstolos e profetas foram glorificados no Cristo (ibid.). Os homens que não vêem a glória incriada de Deus não são normais. Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus (Romanos 3:23). Em outras palavras, o único homem que nasceu normal é o Senhor da Glória, que por escolha assumiu paixões das quais era inocente (isto é, fome, sede, cansaço, sono, medo da morte etc.), embora por natureza seja a fonte da glória, que as aniquila.

O outro lado dessa moeda é que Deus não revela Sua glória a qualquer um porque Ele não deseja prejudicar aqueles que não estão preparados para tal visão. A surpresa dos profetas do Velho Testamento de que permaneciam vivos após ver Deus e o pedido do povo para que Moisés intercedesse a Deus para que Ele parasse de mostrar Sua glória, pois estava se tornando insuportável, são claros a esse respeito.

As Igrejas apostólicas não se preocupavam em pensar e especular acerca de Deus, dado que Ele é um mistério ao intelecto mesmo quando revela Sua glória no Cristo àqueles que participam do mistério da Cruz de Seu Filho pela glorificação. Sua única preocupação era com a cura de cada indivíduo no Cristo, levada a cabo pela purificação e iluminação do coração e pela glorificação nesta vida a serviço da sociedade: Se um membro padece, todos os membros padecem com ele; e, se um membro é honrado, todos os membros se regozijam com ele (I Coríntios 12:26). Aos que justificou a estes também glorificou (Romanos 8:30) significa que a iluminação e a glorificação são interdependentes nesta vida, embora não idênticas.

A doença da personalidade humana consiste no desvanecimento da comunhão do coração com a glória de Deus (Porque todos pecaram e destituídos estão da glória de Deus. Romanos 3:23), afundado pelos pensamentos do entorno (Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes em seus discursos se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. E mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, e de aves, e de quadrúpedes, e de répteis. Por isso também Deus os entregou às concupiscências de seus corações, à imundícia, para desonrarem seus corpos entre si. [...] Segundo a tua dureza e teu coração impenitente, entesouras ira para ti no dia da ira e da manifestação do juízo de Deus. (Romanos 1:21-24; 2:5). Em tal estado, a pessoa imagina Deus como sendo à imagem de seu próprio ego ou até mesmo de animais. A pessoa interior (eso anthropos) sofre morte espiritual; por isso que (eph'ho) [10] todos pecaram (Romanos 5:12) ao se escravizarem ao instinto de autopreservação, que deforma o amor por estar cativo à busca egocêntrica por segurança e felicidade.

A cura dessa doença começa quando o coração se purifica de todos os pensamentos, tanto bons quanto ruins, e restringindo-os ao intelecto (Mas é judeu o que o é no interior, e circuncisão a que é do coração, no espírito, não na letra; cujo louvor não provém dos homens, mas de Deus. Romanos 2:29). Para que isso aconteça, o espírito, que se encontra dissipado no cérebro, deve girar em velocidade como uma bola de luz, por meio da oração, e retornar ao coração. A pessoa se livra da escravidão ao entorno, isto é, à auto-indulgência, à riqueza, aos bens e até mesmo aos seus pais e parentes (Quem ama o pai ou a mãe mais do que a mim não é digno de mim; e quem ama o filho ou a filha mais do que a mim não é digno de mim. [...] Se alguém vier a mim, e não aborrecer a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda também a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. Mateus 10:37 e Lucas 14:26). O objetivo não é alcançar algum tipo de indiferença estóica ou falta de amor, mas permitir que o coração aceite as orações e salmos transferidos do intelecto pelo Espírito Santo, e que se energize incessantemente, enquanto o intelecto se ocupa com as atividades diárias ou enquanto dorme. É assim que o amor doente começa a ser curado.

Este é o contexto do Espírito Santo orando no coração ao qual São Paulo se refere. O Espírito Santo intercede por todos os homens com gemidos inexprimíveis (Romanos 8:26). Mas Ele transfere as orações e salmos do intelecto ao espírito humano no coração quando este está purificado de todos os pensamentos, tanto bons quanto ruins. A esta altura, o espírito que está energizado pelo Espírito Santo não faz mais nada além de orar e recitar salmos incessantemente, enquanto o intelecto se ocupa com suas atividades normais diárias, livre do egocentrismo e da busca da felicidade. Assim, portanto, é possível que o espírito da pessoa ore incessantemente no coração e ore eventualmente com o intelecto. É isto que São Paulo quer dizer quando diz Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com o intelecto; recitarei salmos com o espírito, mas também recitarei salmos com o intelecto (I Coríntios 14:15).

São Paulo acaba de nos informar que orar em outras línguas além da própria inclui os salmos do Velho Testamento. Ele não está, portanto, falando de orações audíveis e incompreensíveis, dado que os salmos eram familiares a todos. São Paulo está falando de orações com o espírito no coração, que são audíveis somente àqueles que possuem o mesmo charisma das “variedades de línguas”. Aqueles que ainda não têm este dom não conseguem ouvir as orações e salmos nos corações daqueles que possuem esse dom.

Os coríntios em estado de iluminação haviam introduzido a novidade de conduzir adorações no coração coletivas, na presença de “indoutos”, que ainda não haviam recebido o dom das “variedades de línguas”. Essa prática tornara impossível aos “indoutos” que fossem edificados e dissessem seus “améns” nos momentos certos, já que eles simplesmente não conseguiam ouvir.

São Paulo é claro ao afirmar que ninguém o ouve (I Coríntios 14:2). Se eu for ter convosco falando em línguas, que vos aproveitaria, se não vos falasse ou por meio da revelação, ou da ciência, ou da profecia, ou da doutrina? Da mesma sorte, se as coisas inanimadas, que fazem som, seja flauta, seja cítara, não formarem sons distintos, como se conhecerá o que se toca com a flauta ou com a cítara? Porque, se a trombeta der sonido incerto, quem se preparará para a batalha? Assim também vós, se com a língua não pronunciardes palavras bem inteligíveis, como se entenderá o que se diz? porque estareis como que falando ao ar. Há, por exemplo, tanta espécie de vozes no mundo, e nenhuma delas é sem significação. Mas, se eu ignorar o sentido da voz, serei bárbaro para aquele a quem falo, e o que fala será bárbaro para mim (I Coríntios 14:6-11). Aqueles que não possuem o dom das “variedades de línguas” precisam ouvir o “sentido da voz” das orações e dos salmos para que respondam com seu “amém”. Não se deve orar e recitar salmos com “sonidos incertos” na presença daqueles que não possuem o dom das línguas. Porque realmente tu dás bem as graças, mas o outro não é edificado (I Coríntios 14:17).

Quando São Paulo afirma que o que profetiza é maior do que o que fala em línguas, a não ser que também interprete para que a igreja receba edificação, ele quer dizer que o que fala somente em línguas deve aprender a interpretar os salmos e orações em seu coração em salmos e orações de seu intelecto, a fim de serem recitadas oralmente. Quando aprender a orar e recitar salmos simultaneamente com o espírito e com o intelecto, ele pode então participar na adoração coletiva para o benefício dos “indoutos”, que, dessa maneira, saberão dizer seu “amém”. Por isso, o que fala em língua desconhecida, ore para que a possa interpretar. Porque, se eu orar em língua desconhecida, o meu espírito ora bem, mas o meu intelecto fica sem fruto. Que farei, pois? Orarei com o espírito, mas também orarei com o intelecto; recitarei salmos com o espírito, mas também recitarei salmos com o intelecto. De outra maneira, se tu bendisseres com o espírito, como dirá o que ocupa o lugar de indouto, o Amém, sobre a tua ação de graças, visto que não sabe o que dizes? Porque realmente tu dás bem as graças, mas o outro não é edificado. Dou graças ao meu Deus em línguas mais do que vós todos. Todavia eu antes quero falar na igreja cinco palavras com meu intelecto, para que possa também instruir os outros, do que dez mil palavras em línguas (I Coríntios 14:13-19).

São Paulo jamais pede para alguém interpretar aquilo que outra pessoa está dizendo em línguas. A própria pessoa deve interpretar aquilo que está dizendo em línguas. Em todos os casos em que São Paulo relaciona “falar em línguas” com “interpretação”, sempre aquele que tem o dom de línguas interpreta a si próprio para que seja ouvido pelos “indoutos”. É neste contexto que São Paulo exorta que se alguém falar em língua desconhecida, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua vez, e haja intérprete. Mas, se não houver intérprete, esteja calado na igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus (I Coríntios 14:27-28). Obviamente, o intérprete é aquele que tem o dom de interpretar suas próprias orações de seu próprio espírito em seu próprio coração para seu próprio intelecto, de maneira que se tornem audíveis e edifiquem os demais. Do contrário, deve ficar calado e limitar-se a rezar em línguas enquanto os demais rezam oralmente. Portanto, São Paulo repreende aqueles que possuem somente o dom das variedades de línguas para que não imponham a novidade de orar coletivamente em línguas sobre os “indoutos”.

São Paulo não está falando de salmos e orações recitados pela língua, mas ouvidos diretamente do coração. A iluminação do coração neutraliza a escravidão ao instinto de autopreservação e dá início à transformação do amor possessivo em amor desinteressado. É o dom da fé concedida à pessoa interior, que é sua justificação, reconciliação, adoção, paz, esperança e vivificação.

As orações e salmos incessantes no coração, também chamados de “variedades de línguas” (I Coríntios 12:28), transformam o indouto num templo do Espírito Santo e membro do Corpo do Cristo. Não vos embriagueis com vinho, em que há contenda, mas enchei-vos do Espírito; falando entre vós em salmos, e hinos, e cânticos espirituais; cantando e salmodiando ao Senhor no vosso coração (Efésios 5:18-20). É o começo do fim da escravidão ao entorno, não porque nos retiramos dele, mas porque o controlamos, não de maneira exploratória, mas pelo amor desinteressado. É por isso que a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte [...] Se alguém não tem o Espírito do Cristo, esse tal não é dele. Se o Cristo está em vós, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o espírito vive por causa da justiça. (Romanos 8:2,9-10).

À medida que o amor é curado, a pessoa recebe os charismata superiores listados por São Paulo em I Coríntios 12:18, até que se consumam na glorificação. São Paulo afirma que se um membro é glorificado, todos se regozijam com ele (I Coríntios 12:16) para explicar porque os profetas estão em segundo lugar em relação aos apóstolos e antes dos demais membros do Corpo do Cristo. Ser justificado pelas orações e salmos do Espírito Santo no coração é ver o Cristo num espelho, em enigma (I Coríntios 13:12). A glorificação é a vinda do Perfeito (I Coríntios 13:10) ao ver o Cristo face a face (I Coríntios 13:12). Ao dizer que agora conheço em parte (ibid.), São Paulo se refere a seu atual estado de iluminação ou justificação. Na frase seguinte, mas então conhecerei como também sou conhecido (ibid.), São Paulo quer dizer que ele será glorificado assim como havia sido glorificado. No estado de iluminação, a pessoa é como um menino. Uma vez glorificada, ela retorna à iluminação como homem: Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino (I Coríntios 13:11).

Durante a glorificação, que é revelação, a oração no coração (línguas), o conhecimento e a profecia, juntamente com a fé e a esperança, são abolidas porque são substituídas pelo próprio Cristo. Somente o amor não desaparece. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá. Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos. Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino (I Coríntios 13:8-11). Durante a revelação, palavras e conceitos acerca e para Deus (orações) são abolidos. Após a glorificação, a pessoa retorna ao estado de iluminação. Conhecimento, profecia, línguas, fé e esperança voltam a se juntar ao amor, que não desaparece. As palavras e conceitos usados na oração e no guiamento para levar à glorificação são inspirados e abolidos durante a glorificação.

A visão que São Paulo teve é a do Cristo ressuscitado em glória, que coloca os apóstolos e profetas como cabeças (I Coríntios 12:28) e fundamento (Efésios 2:20) da Igreja. Esse fundamento inclui profetisas (Os vossos filhos e as vossas filhas profetizarão; E tinha este quatro filhas virgens, que profetizavam; Mas toda a mulher que ora ou profetiza com a cabeça descoberta, desonra a sua própria cabeça, porque é como se estivesse rapada. Atos 2:17; 21:9 e I Coríntios 11:5) e é o contexto da afirmação de São Paulo de que no Cristo não há macho nem fêmea (Gálatas 3:28).

A glorificação não é um milagre, mas o estágio final normal da transformação do amor egoísta em amor desinteressado. Paulo e João consideravam a visão do Cristo em glória nesta vida como necessária para a perfeição do amor e da sociedade (João 14:21-24; 16:22; 17:24; I Coríntios 13:10-13; Efésios 3:3-6). As visões do Cristo em glória não eram e não são milagres para convencer os observadores a acreditarem em Sua Divindade. O milagre foi a Crucificação do Senhor da Glória, não Sua Ressurreição. O Cristo ressuscitado surge apenas para a perfeição de amor, mesmo no caso de São Paulo, que alcançou o limiar da glorificação (Gálatas 1:14ff), não sabendo que o Senhor da Glória que ele estava prestes a ver nasceu, foi crucificado e ressuscitou. I Coríntios 15:1-11 são as glorificações que completam o tratamento dos dons espirituais iniciados em I Coríntios 12:1.

Todos os glorificados ao longo da história são iguais aos apóstolos em sua participação no Pentecostes porque eles também foram guiados à Verdade (Atos 10:47-11:18). A Verdade é o Cristo ressuscitado e ascendido, que retornou em línguas incriadas de fogo no Pentecostes para habitar com Seu Pai nos fiéis que se tornarem templos de Seu Espírito, intercedendo por eles em seus corações. Assim, ele fez da Igreja Seu Corpo, contra a qual as portas do inferno jamais prevalecerão.

A glorificação é a participação da alma e do corpo na imortalidade e na incorrupção para a perfeição de amor. Ela pode durar muito ou pouco. Após uma perda inicial de orientação, a pessoa prossegue com suas atividades diárias, vendo tudo saturado pela glória de Deus, que não é nem luz, nem trevas, nem nada semelhante ao criado. As paixões, que haviam sido neutralizadas e tornadas inofensivas pela iluminação, são abolidas. Durante a glorificação, a pessoa não come, não bebe, não dorme nem se cansa, e não é afetada por calor ou frio. Esses fenômenos, que se verificam na vida dos santos (profetas) tanto antes quanto depois da Encarnação do Senhor da Glória, não são milagres, mas a restauração dos homens à normalidade. É neste contexto que devemos entender as declarações do Cristo aos vivos, mas doentes: Eu vim para que tenham vida [em iluminação], e a tenham [em glorificação] com abundância (João 10:10). O Evangelho do Apóstolo João, sobretudo os capítulos 14 a 16, é uma descrição detalhada da cura pela iluminação, enquanto João 17 é a oração do Cristo para a cura por meio da glorificação.

Os gerontologistas dizem que o processo de envelhecimento é uma doença, e estão pesquisando se a própria morte não seria uma doença. A esse respeito, os glorificados e suas relíquias deveriam ser de interesse desses pesquisadores, uma vez que centenas delas há séculos continuam intactas, em um estado intermediário entre corrupção e incorrupção. Um dos exemplos mais antigos é o de Santo Esperidião, na Ilha de Corfu, que foi Padre do Primeiro Concílio Ecumênico, no ano 325. Há também 120 corpos somente em Kiev.

É neste contexto que São Paulo afirma que também a mesma criatura será libertada da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus (Romanos 8:21). Está claro que “a liberdade da glória” é a liberdade da mortalidade e da corrupção. Mas até mesmo as pessoas interiores que já foram adotadas pela iluminação e que já experimentaram a imortalidade e a incorrupção física durante o período limitado da glorificação aguardam a adoção, a saber, a redenção do nosso corpo (Romanos 8:23). Os mortos ressuscitarão incorruptíveis, e nós seremos transformados. [...] Que isto que é corruptível se revista da incorruptibilidade, e que isto que é mortal se revista da imortalidade (I Coríntios 15:52-53). Isto se sabe não por especulações bíblicas, mas pela experiência da glorificação, isto é, pela “liberdade da glória dos filhos de Deus”. A experiência da glorificação, e não somente os textos bíblicos, é a base da crença da Igreja na ressurreição física da parte biológica da pessoa.

d) Não do mundo, mas no mundo

A distinção entre a vida ativa e a contemplativa não existe no Corpo do Cristo. O dom do Espírito Santo dos salmos e orações incessantes no coração torna essa distinção algo impossível. Ela só pode existir fora do Corpo do Cristo.

Ninguém pode dizer “Jesus é o Senhor” no coração exceto pelo Espírito Santo e ninguém pode dizer “Jesus é anátema” pelo Espírito (I Coríntios 12:3). Isso é espiritualidade bíblica e patrística e o poder pelo qual era impossível torturar um templo do Espírito Santo a renunciar ao Cristo. Essa renúncia simplesmente prova que a pessoa não era um membro da Igreja. A missão primordial dos templos do Espírito Santo era trabalhar normalmente em suas profissões enquanto procuravam transmitir sua própria cura aos demais. Eles cumpriam um papel semelhante ao de psiquiatras no seio da sociedade. Mas, em contraste aos psiquiatras, os templos do Espírito não buscavam equilíbrio mental mediante a conformidade a padrões sociais de normalidade. Seu padrão de normalidade era a glorificação. Seu poder de cura não era e não é deste mundo, embora estejam no mundo como parte de sua transformação.

e) Teologia e dogma

Todos os que alcançaram a glorificação testemunham o fato de que é “é impossível expressar Deus e muito menos concebê-Lo” porque eles sabem, por experiência, que não há qualquer semelhança entre o criado e o incriado. Deus é o “motor imóvel” e “móvel”, não é “nem uno, nem unicidade, nem unidade, nem divindade, nem filiação, nem paternidade etc.” na experiência da glorificação. A Bíblia e os dogmas são guias para a glorificação mas são abolidos durante ela. Eles não são fins em si mesmos e não têm nada a ver com metafísica, seja com analogia entis ou com analogia fidei.

Isso quer dizer que as palavras e conceitos que não contradizem a experiência da glorificação e que levam à purificação e iluminação do coração e à glorificação são ortodoxas. Palavras e conceitos que contradizem a glorificação e afastam a pessoa da cura e da perfeição no Cristo são heréticas.

Esta é a chave para entendermos as decisões dos Sete Concílios Ecumênicos Romanos, bem como o Oitavo, de 879, e sobretudo o Nono, de 1341.

A maioria dos historiadores não enxerga essas coisas porque acreditam que os Padres estavam, a exemplo de Agostinho, procurando entender os mistérios de Deus através de meditações e contemplações, ou seja, através de palavras e conceitos. Eles até mesmo alistaram Padres como São Gregório, o Teólogo, no exército dos teólogos latinos, ao traduzirem seus dizeres a respeito de que somente é permissível filosofar sobre Deus aos “mestres da meditação do passado”, ao invés de “àqueles que passaram pela theoria”, isto é, pela visão do Cristo num “espelho em enigma”, pelas “variedades de línguas” e “face a face” na “glorificação”.

Os Padres nunca consideraram a formulação de um dogma como um esforço intelectual para entender o mistério de Deus e da Encarnação. São Gregório, o Teólogo, ridicularizava esse tipo de heresia: “Diga-me o que é a unigenicidade do Pai e eu te explicarei a fisiologia da geração do Filho e da procissão do Espírito, e vamos então nos deslumbrar com os mistérios de Deus”.

Jamais os Padres sustentaram a noção agostiniana de que a Igreja entende melhor a fé com o passar do tempo. Cada glorificação é uma participação na Verdade do Pentecostes, à qual nada pode ser acrescido nem melhor entendido.

Isso quer dizer que a doutrina ortodoxa também é puramente pastoral, uma vez que não existe fora do contexto da cura das doenças individuais e sociais.

Ser teólogo significa, antes de mais nada, ser especialista nos caminhos do diabo. A iluminação e sobretudo a glorificação conferem o charisma do discernimento de espíritos por passarem a perna no diabo, especialmente quando ele tenta ensinar teologia e espiritualidade àqueles que fogem de suas garras.

f) Os mistérios

O resultado mais expressivo da franco-latinização da educação teológica ortodoxa nos séculos XVIII e XIX foi o desaparecimento, nos manuais dogmáticos, da explicação sobre a própria existência da purificação, da iluminação e da glorificação, especialmente nos capítulos sobre os Mistérios. Esses manuais não mencionam o fato bíblico e patrístico de que o charisma do presbitério pressupunha o estado de profecia: Não desprezes o dom que há em ti, o qual te foi dado por profecia, com a imposição das mãos do presbitério (I Timóteo 4:14).

g) Profetas e intelectuais

A criação é totalmente dependente de Deus, embora não haja qualquer semelhança entre eles. Isso quer dizer que não há qualquer diferença entre o culto e o inculto quando ambos estão passando pela cura da iluminação a caminho de se tornarem profetas pela glorificação. O conhecimento superior sobre a realidade criada não confere nenhuma vantagem especial em relação ao conhecimento do incriado. Nem a ignorância sobre a realidade criada representa um obstáculo para o conhecimento superior da realidade incriada.

h) Profetas e papas

Dos cinco patriarcados romanos, os francos conseguiram capturar o de Roma, substituindo os papas romanos por papas germânicos através da força militar, numa contenda que começou em 983 e terminou em 1046. Dessa forma, eles estenderam seu controle sobre a sucessão apostólica como parte de seu plano para dominação mundial. Eles dividiram os Padres romanos em gregos e latinos, identificando-se com estes e inventando a idéia de que haveria duas Cristandades. Para o Islã, o papado ainda é latino e franco, enquanto os patriarcados da Nova Roma, Alexandria, Antioquia e Jerusalém ainda são romanos.

A ignorância a respeito de quem e o que são os glorificados e por que eles são os sucessores dos apóstolos criou um vazio que foi preenchido pela infalibilidade do papa latino.

i) Profetas e Padres

Segundo São Gregório de Nyssa, as heresias surgem nas igrejas onde não há profetas. Ocorre que os líderes das heresias tentam entrar em comunhão com Deus por meio da meditação e da contemplação sobre Ele, em vez da iluminação e da glorificação. Confundir conceitos acerca de Deus com o próprio Deus é idolatria, além de método científico ruim.

São Paulo se refere a apóstolos e profetas quando afirmou: Mas o que é espiritual discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido (I Coríntios 2:15). A razão para isso é que, pela sua glorificação na glória incriada de Deus no Cristo, eles se tornaram testemunhas do fato de que os príncipes deste mundo [...] crucificaram o Senhor da Glória (I Coríntios 2:8). Este é o mesmo Senhor da Glória (o Anjo do Grande Concílio) que se chamou de “o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó”, o Todo-Poderoso, a Sabedoria de Deus, a Pedra que seguia (I Coríntios 10:1-4) e que os profetas do Velho Testamento viram. São João Batista foi o primeiro profeta a ver o Senhor da Glória em carne. É claro que os judeus, que formalmente acreditavam no Senhor da Glória, também O viram, mas se conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da Glória (I Coríntios 2:8).

São Paulo adaptou o ditado As coisas que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que Deus preparou para os que o amam à crucificação do Senhor da Glória do Velho Testamento, que Deus no-las revelou pelo seu Espírito (I Coríntios 2:9-10). Portanto, os glorificados são as únicas autoridades da Igreja Ortodoxa. Eles produzem as fórmulas doutrinais que servem como guia para a cura do centro da personalidade humana e como sinais de advertência contra os charlatães que prometem muito mas não têm nada a oferecer.

j) O Senhor da Glória e os Concílios Ecumênicos [11]

Por “Escrituras”, tanto o Cristo quanto os apóstolos se referiam ao Velho Testamento, ao qual o Novo Testamento foi acrescido. Os Evangelhos dos Apóstolos Marcos, Mateus e Lucas foram editados para servirem de guia pré-batismal durante os estágios de purificação e iluminação da pessoa interior no coração. O fato do Cristo ser o mesmo Senhor da Glória que Se revelara aos profetas do Velho Testamento foi algo atestado em Seu batismo e Sua transfiguração, no qual Ele mostrou a glória e o domínio (βασιλεία) de Seu Pai como sendo Sua própria por natureza. O Evangelho do Apóstolo João foi editado com o propósito de a pessoa continuar progredindo em sua iluminação (João 13:31-16) e seguir em frente à glorificação (João 17), na qual verá em plenitude a glorificação do Senhor da Glória em Seu Pai e dEste em Seu Filho (João 13:31; 18-21). É por isso que o Evangelho do Apóstolo João é chamado de “Evangelho espiritual”. [12]

As pessoas iniciadas no Corpo do Cristo não aprenderam sobre a Encarnação, o Batismo, a Transfiguração, a Crucificação, a Morte, o Enterro, a Ressurreição, a Ascensão e o retorno pentecostal do Senhor da Glória apenas estudando os textos da Bíblia. Eles estudaram, sim, a Bíblia, mas como parte integrante do processo de purificação, iluminação e glorificação de seus corações, no mesmo Senhor da Glória que havia glorificado Seus profetas do Velho Testamento, mas que agora em Sua natureza humana nasceu da Virgem Maria.

É neste contexto que a antiga Igreja identificava o Cristo com o Senhor, Anjo e Sabedoria, por quem Deus criou o mundo e glorificou a Seus amigos, os profetas, e por quem Ele libertou Israel da escravidão, guiando-a até o tempo em que Ele próprio encarnou e encerrou o domínio da morte sobre Sua Igreja (do Velho Testamento): Pois também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela (Mateus 16:18). Apesar de terem sido glorificados, os profetas do Velho Testamento morreram. Mas, agora, se alguém guardar a minha palavra, nunca provará a morte (João 8:52-53). Agora há a primeira ressurreição da pessoa interior (Revelação 20:5) e uma segunda ressurreição (Revelação 20:6), e há também uma segunda morte do corpo (Revelação 20:14).

Até mesmo arianos e eunomianos, condenados pelo Primeiro e Segundo Concílio Ecumênico, aceitavam sem discutir a identidade do Cristo com o Senhor da Glória do Velho Testamento. Porém, eles sustentavam que esse Anjo da Glória era a primeira criação da vontade de Deus, do não-ser antes do tempo e dos séculos, e portanto não co-eterno com o Pai. Eles faziam uso do fato de que o Anjo da Glória era visível aos profetas como prova de que Sua natureza era criada [13], de maneira similar aos gnósticos, que identificavam o Anjo do Velho Testamento com o deus inferior deste mundo supostamente maligno e que havia ludibriado Israel.

Os arianos e os eunomianos também ignoravam ou rejeitavam o fato de que por meio da glorificação é possível tornar-se deus pela graça (theosis) e que, portanto, é possível ver a glória e o domínio (βασιλεία) incriado de Deus no Cristo por meio do próprio Deus. Em jogo estava o fato de que o próprio Deus revela-Se a Seus amigos glorificados, e não por meio de uma criatura, com a única exceção da natureza criada de Seu Filho. Mesmo assim, a graça e o domínio (βασιλεία) da iluminação e da glória que Cristo comunica a Seu Corpo (isto é, à Igreja) são incriadas. A doutrina franco-latina de que a graça seria criada não tem espaço na tradição dos Concílios Ecumênicos.

Os aspectos supracitados dos Concílios Ecumênicos não desempenharam nenhum papel nas histórias dogmáticas dos latinos e protestantes porque Agostinho desviou-se totalmente de Santo Ambrósio e dos Padres no entendimento do aparecimento do Logos aos profetas do Velho Testamento. [14] Seus equívocos tornaram-se o núcleo da tradição franco-latina. As histórias dogmáticas protestante e latina explicam que o equívoco de Agostinho em não aceitar a antiga identificação do Cristo com o Anjo da Glória resultou em sua eliminação da tradição porque os arianos, ao contrário, a defendiam . Porém, essa tradição foi preservada intacta nas Igrejas do Império Romano e continua a ser o coração da tradição ortodoxa. Este é o único contexto dos termos trinitarianos e cristológicos: três substâncias, uma essência e a homoousion do Logos com o Pai e nós. Eles não faziam e não fazem sentido no contexto agostiniano.

Agostinho havia equivocadamente concluído que eram somente os arianos que identificavam o Logos com o Anjo da Glória do Velho Testamento. Ele não estava ciente de que tanto Santo Ambrósio, o bispo que Agostinho alega ter aberto sua mente maniqueísta ao Velho Testamento e de tê-lo batizado, quanto todos os demais Padres também assim concluíam. Os arianos e os eunomianos argumentavam que a prova de que o Logos era criado era que Ele, por natureza, era visível aos profetas, enquanto somente o Pai permanecia invisível. Agostinho não conseguiu compreender as experiências bíblicas da iluminação e da glorificação, que ele acabou por confundir com a iluminação e o êxtase neoplatônicos. Ele relegava a glorificação à vida após a morte, e a identificou com a visão da substância divina que, supostamente, satisfaria o desejo humano de felicidade absoluta. Sua compreensão utilitária do amor tornou-lhe impossível entender o amor desinteressado da glorificação nesta vida. Quanto a isso, ele não era diferente dos arianos que atacava.

Com base em pressuposições neoplatônicas, Agostinho resolveu o problema com a seguinte explicação: as Três Pessoas da Santíssima Trindade, igualmente invisíveis, supostamente revelam a Si e a Sua mensagem aos profetas por meios de diversas criaturas, que são criadas para serem vistas e ouvidas e, depois, são aniquiladas, tais como a glória, a nuvem, o fogo, a sarça ardente etc. Mas Deus continuou permanentemente visível na natureza humana de Seu Filho, por quem Ele comunica mensagens e conceitos. Apesar disso, Ele supostamente continua a revelar visões e mensagens por meios criados, tais como a pomba do Batismo do Cristo, as línguas de fogo do Pentecostes, a glória/luz/domínio (βασιλεία) de Deus revelado na Transfiguração, a nuvem/glória na qual Cristo ascendeu aos céus, a voz do Pai quando anunciou que o Filho Lhe agradava, o fogo do inferno etc.

Esses símbolos verbais, pelos quais os autores do Velho e Novo Testamento expressavam suas experiências de iluminação e glorificação, foram, portanto, reduzidos a objetos temporais e milagres inacreditáveis. [15] Isso acabou se tornando a tradição franco-latina, à qual os latinos e protestantes ainda basicamente aderem.

Um dos efeitos colaterais mais marcantes desses equívocos é o uso da palavra “reino”, que permeia as traduções do Novo Testamento e que raramente aparecem em seu original grego. O termo grego “βασιλεία de Deus” designa o domínio/governo incriado de Deus, e não o reino criado governado por Deus.

k) Não extingais o Espírito (I Tessalonicenses 5:19)

O fato de o Espírito Santo participar no coração com gemidos inexprimíveis (Romanos 8:26) não é em si uma garantia de que se é membro do Corpo do Cristo. Temos de responder com orações incessantes do espírito de maneira que o Espírito de Deus possa testificar em nosso espírito que nós somos filhos, somos logo herdeiros também, herdeiros de Deus, e co-herdeiros de Cristo: se é certo que com ele padecemos, para que também com ele sejamos glorificados (Romanos 8:16-17). Embora essa resposta seja nossa, ela é também um dom do Espírito. É exatamente isso que São Paulo pressupõe ao exortar: Orai sem cessar. [...] Não extingais o Espírito. Não desprezeis as profecias (I Tessalonicenses 5:17-19). São Paulo nos exorta a continuarmos templos do Espírito Santo, preservando a oração incessante no coração, de maneira que nos tornemos profetas pela glorificação. É por isso que Padres como São João Crisóstomo diziam “que ninguém pense que se tornou membro do Corpo de uma vez por todas”.[16]

O batismo nas águas para o perdão dos pecados é um mistério indelével, porque o perdão de Deus é, de fato, o começo da cura. Porém, o batismo pelo Espírito não é um mistério indelével, pois ou se tem, ou não se tem a oração incessante no coração. Quer a pessoa responda ou não, o Espírito Santo está presente no coração de cada ser humano, não importa se ele acredite no Cristo ou não. Em outras palavras, o amor de Deus chama igualmente a todos, mas nem todos respondem.

Aqueles que não respondem não devem se imaginar templos do Espírito Santo e membros do Corpo do Cristo e, dessa forma, impedir que os demais respondam. Aqueles que estão em estado de iluminação oram juntos em suas liturgias enquanto templos do Espírito Santo e membros do Corpo do Cristo, para que os não-membros se tornem membros e os ex-membros se tornem novamente membros, dado que isso não lhes foi garantido pelo batismo nas águas para o perdão dos pecados.

l) O charisma da interpretação

Em um determinado ponto da história da Igreja primitiva, o charisma da interpretação simultânea de salmos e orações do coração para o intelecto, para que a adoração coletiva fosse útil também aos indoutos, foi substituído por textos litúrgicos pré-determinados, com pontos fixos nos quais os indoutos/leigos (idiotes) pudessem responder “amém”, “Kyrie eleison” etc. A oração do coração também foi reduzida a uma oração curta (por exemplo: Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim, um pecador) ou um trecho de um salmo (uma forma utilizada pelos Padres do Deserto, levada ao Ocidente por São João Cassiano). O restante dos charismata permaneceram intactos.

Gregório de Tours chegou a mencionar o fenômeno das orações incessantes e da glorificação. Mas ele não entendeu do que se tratava, e acabou descrevendo-os de maneira confusa, como se fossem milagres.[17] Os francos permaneceram na confusão e, por fim, confundiram a iluminação e a glorificação com o misticismo neoplatônico de Agostinho que, por sua vez, foi rejeitado com justiça pela maior parte da Reforma.

Notas:
1. O início dos meus estudos a respeito das razões catequéticas para se diferenciar entre as duas tradições evangélicas na Igreja primitica está em Justin Martyr and the Fourth Gospel.

2. São João Crisóstomo, Migne, P.G. 60, 23.

3. Marcos 9:1-8, Mateus 16:28;17:1-8, Lucas 9:27-36.

4. Há uma concentração dessas idéias tolas no De Trinitate de Agostinho, sobretudo nos livros II e III. Tive o privilégio de ouvir um sermão sobre o Pentecostes, durante um encontro do Comitê Central do Concílio Mundial de Igrejas, que defendeu essas idéias de Agostinho. Isso quer dizer que o texto desse sermão ou foi tirado diretamente da fonte ou tornou-se parte das tradições franco-latina e protestante. Se esse é o caso, então o abismo entre os Nove Concílios Ecumênicos de 325 a 1351 e as idéias franco-latinas e protestantes é intransponível.

5. I Coríntios 13:11.

6. Esta e as demais sessões do meu ensaio estão incluídos no meu estudo “Os Sínodos da Igreja e a Civilização”, apresentado na VI Reunião da Comissão Luterano-Ortodoxa, entre 31 de maio e 8 de junho de 1991 em Moscou. Eles foram posteriormente revisados e impressos pelo Mosteiro Koutloumousiou do Monte Athos, sob o título de “A Religião é uma Doença Neurobiológica e a Ortodoxia é sua Cura”, na coletânea “O Helenismo Ortodoxo Rumo ao Terceiro Milênio”, volume II, pág. 67-87, 1996.

7. Veja abaixo “j) O Senhor da Glória e os Concílios Ecumênicos”.

8. Esta interpretação de São Paulo baseia-se na tradição patrística, mas também em informações fornecidas durante um diálogo inter-religioso em Bucareste, em outubro de 1979, entre cristãos ortodoxos e judeus. Estes relataram que a iluminação e a glorificação patrística que eu havia lhes descrito eram da tradição hassídica do Velho Testamento. Evidentemente, Cristo, o Yahweh Encarnado, e Seus apóstolos pertenciam a essa tradição.

9. Comentando sobre I Coríntios 12:27-28, São Simeão, o Novo Teólogo, escreveu: “Para que provasse que há diferenças entre os membros e quais seriam elas e quem seriam eles, ele disse: Vós sois o Corpo do Cristo...variedades de línguas. Percebem as diferenças entre os membros do Cristo? Aprenderam quem são Seus membros?”. Livro VI sobre Ética, intitulado “Como unir-se ao Cristo e Deus e como todos os santos uniram-se a Ele”.

10. Para uma interpretação patrística do eph'ho de Paulo em Romanos 5:12, leia o meu Original Sin According to St. Paul.

11. Quanto à identificação do Logos Encarnado do Novo Testamento com o Yahweh do Velho Testamento, leia meu estudo Jesus Christ-The Life of the World.

12. Leia o meu estudo Justin Martyr and the Fourth Gospel.

13. Quanto aos pressupostos filosóficos comuns entre Paulo de Samosata, seus colegas arianos e os nestorianos, leia meu estudo Debate over Theodore of Mopsuestia’s Christology.

14. Leia a bibliografia para uma análise mais detalhada desses desvios.

15. É possível encontrar esse tipo de raciocínio agostiniano em De Beata Vita, Contra Academicos e em várias de suas obras. De especial interesse são as explicações de Agostinho sobre as visões de Deus pelos profetas e apóstolos em seu De Tinitate, sobretudo nos Livros II e III.

16. Migne, P. G. 60, 23: Original Sin.

17. Leia Franks, Romans, Feudalism and Doctrine.