30 de janeiro de 2008

A praga do cientificismo

O físico Wolfgang Smith tem sido muito feliz ao questionar e refutar os principais postulados da ciência profana. Segundo o autor, a ciência moderna traz de maneira embutida uma crença filosófica errônea, popularizada por René Descartes e chamada de "bifurcacionismo" ou, nas suas palavras, de "reducionismo físico". Segundo Smith, a ciência moderna reduz os objetos corpóreos (por exemplo, uma maçã) a meros objetos físicos (uma maçã "molecular"), desprezando as qualidades e formas simbólicas neles existentes. Essas qualidades são tidas pelos cientistas modernos como res cogitans, ou seja, como meras interpretações subjetivas, e não como algo pertencente à realidade objetiva. Daí vem a chamada "bifurcação": o objeto corpóreo é "retirado" da realidade e realocado na mente do sujeito.

Mesmo com o advento da mecânica quântica -- que deveria ter sido encarada como uma pá de cal ao bifurcacionismo -- os cientistas modernos fingem que o mundo cartesiano ainda é válido porque, segundo Smith, é a crença filosófica em si que pretendem defender, e não propriamente os postulados da ciência empírica.

Por fim, Smith avalia os danos inconscientes que esta crença cientificista causa na vida espiritual e religiosa das pessoas, e alerta para a necessidade dos sacerdotes serem instruídos a identificarem o bifurcacionismo que vem enlatado nas explicações das descobertas científicas.

Smith nasceu em 1930 e, com pouco mais de vinte anos de idade, trabalhando para a Bell Aircraft Corporation, distinguiu-se através da pesquisa sobre a aerodinâmica dos campos de difusão, a qual deu a fundamentação teórica à solução do famoso problema da re-entrada de artefatos na atmosfera. Ele é católico romano e tem Ph.D. em Matemática pela Universidade Columbia e exerceu cargos acadêmicos no MIT, na UCLA e na Universidade do Estado de Oregon.

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A praga do cientificismo
Nada é mais incontestável e infalível para a mentalidade contemporânea do que as descobertas da física, da astronomia, da química e, ultimamente, da biologia molecular. Elas são aquelas ciências “difíceis” da era moderna, cuja abrangência e precisão deixam a imaginação estupefata; elas nos aproximam das realidades mais fundamentais que outrora jamais teríamos condições de conceber. E mais: este grupo de ciências foi de certa maneira “validado visivelmente” pelos milagres tecnológicos que nos rodeiam. Ora, quem se atreveria a duvidar – muito menos a negar – suas descobertas? Na verdade, ninguém; partículas e campos quânticos, galáxias e quasares, moléculas e códigos genéticos – são todos fatos inegáveis com os quais doravante somos obrigados a conviver.

Contudo, devemos ter em mente que um fato e sua interpretação não são a mesma coisa. E dado que, subjetivamente, os fatos são invariavelmente associados a uma interpretação, sucede que a ciência, por via de regra, nos apresenta dois fatores díspares: as descobertas positivas, de um lado, e, de outro, uma filosofia a elas implícita cujos termos servem de moldura à sua formulação e divulgação. Na verdade, a ciência nunca será esse tipo de investigação puramente empírica tal como geralmente a consideram, o que significa dizer que pressupostos ontológicos e epistemológicos sempre desempenharão um papel essencial. E mais: a comunidade científica raramente examina esses dogmas filosóficos ou os sujeitam a um escrutínio rigoroso. Esses pressupostos são as idéias fundamentais que absorvemos – quase que por osmose – no decorrer de nossa educação científica; elas pertencem ao que poderíamos chamar de inconsciente científico. E quando um desses enraizados dogmas filosóficos se torna tema de discussão, a resposta típica dos cientistas é apontar, à guisa de validação, para o sucesso das investigações científicas e dizer: “Vejam, funciona!” Ora, nenhuma crença filosófica jamais foi validada por uma descoberta empírica; o fato é que a verificação tanto quanto a falsificação por meios empíricos é algo que se aplica às proposições científicas, e não às filosóficas. Porém, é muito raro que os cientistas sequer tentem distinguir estes dois domínios; somente em tempos de crise extrema, quando os fundamentos da ciência parecem estar realmente abaladas, é possível encontrar gente fazendo esse tipo de questionamento mas, mesmo assim, em quantidade diminuta: é preciso um Einstein ou um Heisenberg para, digamos, descer até o nível fundamental dos axiomas filosóficos. Além disso, o que a maioria dos cientistas comuns absorve desses grandes físicos fica restrito aos aspectos técnicos da investigação: as equações da relatividade ou o formalismo da mecânica matricial são aceitos, enquanto o lado filosófico da moeda é ignorado. Podemos dizer que os homens e mulheres que se dedicam ao cotidiano das pesquisas científicas tendem a não se interessar pelas sutilezas filosóficas; estão, portanto, inclinados a reter os axiomas filosóficos com os quais se acostumaram ao longo dos anos, e que só deveriam ser reconhecidos como tal, para serem depois devidamente expelidos, por meio de uma investigação séria e rigorosa. Assim sendo, o resultado é que na mente dos cientistas coexistem, de maneira inextricável, boa ciência e filosofia inferior; conforme observou John Haught, da Universidade de Georgetown: “Alguns dos mais renomados cientistas são literalmente incapazes de separar a ciência de sua metafísica materialista”.

Dito isto, passo a declarar formalmente a minha tese principal: sustento que, em virtude da confusão supracitada, os cientistas têm promulgado as mais duvidosas opiniões filosóficas como se fossem sólidas verdades científicas e, em nome da ciência, têm forçado um público crédulo e impressionável a aceitar uma cosmovisão superficial que, na realidade, não tem um pingo de respaldo científico. Sustento ainda que os cientistas conseguiram ganhar a confiança e a admiração da sociedade por meio das maravilhas tecnológicas que ajudaram a engendrar e que, enquanto classe, têm usurpado dessa autoridade ao predispor o público contra as verdades religiosas. Não estou aqui sugerindo que eles estão enganando o próximo de maneira consciente, mas sim que, por via de regra, enganaram-se a si próprios em questões que pertencem à filosofia, à metafísica e à religião. Enquanto isso, esses “guias cegos” exercem uma influência incalculável sobre a educação e a opinião pública, com conseqüências desastrosas ao bem-estar humano, tanto agora como no futuro.

Aplicarei o termo “crença cientificista” às opiniões filosóficas travestidas de verdades científicas. Deixem-me dar dois exemplos. O primeiro é o princípio do mecanicismo universal ou, melhor dizendo, o axioma do determinismo físico. A idéia é simples: o princípio afirma que o universo exterior consiste de matéria cujo movimento é determinado pela interação de suas partes. Dada a configuração ou estado inicial dessa matéria, e averiguadas as leis que determinam os efeitos dessas interações sobre o movimento resultante, somos supostamente capazes de calcular a evolução futura do universo nos mínimos detalhes. Dessa maneira, o cosmo é concebido como se fosse um relógio gigante, cujas partes interagem entre si, determinando o movimento do todo. Sabemos que essa idéia começou a tomar forma no século XVI e que desempenhou um papel decisivo na evolução da ciência moderna. De fato, nos tempos no Iluminismo, a idéia chegou quase a ser considerada uma verdade científica universalmente estabelecida. Por exemplo, Hermann von Helmholtz, um dos líderes científicos do século XIX, afirmou com serena confiança: “O objetivo final de toda a ciência natural é reduzir-se à mecânica (sich in Mechanik aufzulösen)”. Porém, o quadro mudou com o advento da teoria quântica: concluiu-se que a nova física não era compatível com as premissas mecanicistas. Todavia, apesar do indeterminismo quântico, não foram poucos os cientistas que continuaram a promulgar o princípio mecanicista. O próprio Albert Einstein, longe de admitir que as descobertas da física quântica desbancassem os postulados clássicos, argumentava justamente o contrário: com efeito, é o princípio do determinismo que invalidaria a mecânica quântica enquanto teoria fundamental. Este caso ilustra muito bem a característica filosófica e a priori do princípio em questão, e o fato de que as proposições deste tipo não podem ser verificadas nem falseadas pelas descobertas empíricas. Porém, o fato permanece ignorado, e o resultado é que até hoje o postulado do mecanicismo universal retém seu status de verdade científica incontestável.

O segundo exemplo pertence a um estrato mais fundamental do pensamento filosófico e, conseqüentemente, é muito mais abrangente em suas implicações. Trata-se do “reducionismo físico” (chamo-o assim por razões que logo ficarão claras). A tese depende de uma suposição epistemológica – um postulado idealista, eu diria – que afirma que o ato da percepção sensorial se encerra numa representação subjetiva, e não num objeto externo como normalmente acreditamos. De acordo com esse critério, a maçã vermelha que percebemos existe em nossa mente ou consciência; é uma imagem subjetiva, uma fantasia que a humanidade há séculos tomou por engano como sendo um objeto exterior. Assim pensava René Descartes, a quem devemos as fundações filosóficas da ciência moderna. Descartes procurou corrigir noções sobre as entidades perceptíveis que ele julgava errôneas, distinguindo entre objeto exterior, que ele chamou de res extensa, e sua representação subjetiva, a res cogitans. O que outrora era concebido como um objeto singular (como na vida cotidiana é invariavelmente considerado) foi dividido em dois; conforme disse Whitehead: “Portanto, haveria duas naturezas: uma é a conjectura, a outra o sonho” (1). É notável que esta diferenciação cartesiana entre a “conjectura” e o “sonho” não apenas vai de encontro às intuições mais comuns da humanidade, mas é bizarra se comparada às grandes tradições filosóficas, incluindo especialmente a tradição tomista. Ora, é justamente esta questionável doutrina cartesiana – a qual Whitehead chama de “bifurcação” – que serviu desde o início como plataforma fundamental da física ou, melhor dizendo, da cosmovisão cientificista, cujos termos são habitualmente empregados para interpretar os resultados da física. E verificamos novamente que os dois fatores díspares – os fatores operacionais da física e suas interpretações usuais – tornaram-se, com efeito, um só. Ou seja, o princípio da bifurcação é realmente uma crença cientificista.

Gostaria de deixar claro que além da bifurcação ir de encontro às mais básicas intuições humanas e às mais veneráveis tradições filosóficas, não há um pingo de evidência empírica que sustente tal postura heterodoxa. E nem poderia haver, pois a física pode ser perfeitamente interpretada em bases não-bifurcacionistas, conforme pude mostrar em uma recente monografia [2]. Ocorre que no momento em que tentamos interpretar a física em termos não-bifurcacionistas, os chamados paradoxos quânticos – que motivaram os físicos a inventarem as mais bizarras ontologias – simplesmente desaparecem. Parece que a física quântica está implicitamente de acordo com a cosmovisão pré-cartesiana.

Resta explicar por que chamo a bifurcação de “reducionismo físico”. A razão se torna clara no momento que retornamos ao Weltanschauung perene. A maçã vermelha que percebemos volta a pertencer ao mundo exterior; digo que se trata de um objeto corpóreo que, por conseguinte, pode ser percebido. Por outro lado, a maçã “molecular”, com a qual os físicos se ocupam, é despojada de qualidades sensíveis, tornando-se, assim, imperceptível. Ela constitui o que chamo de objeto físico, em oposição ao objeto corpóreo. De um ponto de vista bifurcacionista, o objeto físico é tudo o que existe no mundo exterior. Portanto, o objeto corpóreo é concebido como sendo “nada mais” do que o objeto físico. A maçã vermelha – que, do ponto de vista ortodoxo, existe! – é, com efeito, “reduzida” ao físico: ela é identificada como sendo a maçã “molecular”, conforme concebida pelos físicos. O princípio da bifurcação, portanto, resulta no que chamo de reducionismo físico; e o inverso é igualmente evidente.

Em ambas as formas, a tese cartesiana tem sido considerada por cientistas e pelo público educado como um pressuposto. Ela se impregnou na mente científica a ponto de as anomalias quânticas não terem despertado a menor suspeita. Conforme admitiu em privado um filósofo da ciência: “As pessoas que trabalham no campo da física acham quase impossível eliminar o bifurcacionismo implícito em suas obras”. Ora, essa conformação acrítica e habitual à tese cartesiana pelas “pessoas que trabalham no campo da física” só desonra seu status filosófico; e, como todas as crenças cientificistas, poderíamos dizer que o princípio se tornou científico por associação.

É possível deduzir que a bifurcação – ou o reducionismo físico, tanto faz – constitui a mais básica crença cientificista contemporânea, o princípio que todas as demais crenças cientificistas pressupõem. Considere a idéia do mecanicismo universal, por exemplo: ela não depende da bifurcação? Num trecho memorável e amplamente citado, Descartes, com efeito, admite:

Podemos facilmente conceber como o movimento de um corpo pode ser causado por outro, e como pode ser diversificado em função do tamanho, da figura e da situação de suas partes, mas somos totalmente incapazes de conceber como estas mesmas coisas conseguem produzir algo de natureza inteiramente diferente de si próprias, como por exemplo as formas substanciais e as qualidades reais, que muitos filósofos supõem estarem nos corpos [3].

É claro que os filósofos aludidos são os escolásticos, a quem Descartes radicalmente se opunha. O que o sábio francês está nos dizendo – com admirável clareza! – é que a idéia do mecanicismo universal só pôde ser concebida quando o universo foi reduzido ao estado de “matéria quantificada”. E não é exatamente por esta razão que Galileu e Descartes julgaram adequado banir “as formas substanciais e as qualidades reais” do mundo exterior? A bifurcação não foi postulada precisamente para tornar viável uma física “totalista” baseada em princípios mecanicistas?

Os dois exemplos bastam para que o fenômeno da crença cientificista seja apresentado. Não é preciso muito esforço para captarmos a idéia de que se a física, a mais exata das ciências naturais, se associou a noções cientificistas – na verdade, e de um ponto de vista tradicional, ilusórias! –, o que esperar das disciplinas menos rigorosas como a biologia evolucionária, a antropologia física e a psicologia, para não mencionarmos as chamadas ciências sociais? [4] O fato olimpicamente ignorado é que a ciência contemporânea provê tanto verdades como erros: não apenas luzes, mas também trevas. No que concerne o grande público, é bem provável que o segundo efeito predomine; as verdades das ciências “difíceis” são, afinal, acessíveis somente aos especialistas, às pessoas cientificamente proficientes. Isto vale, sobretudo, no caso da física básica; quando a teoria quântica se populariza, o que resta são noções cientificistas. Podemos resumir a coisa assim: À medida que a ciência evolui, seus insights se tornam cada vez mais abstratos, matemáticos e, por conseguinte, desprovidos de imagens sensíveis; tais insights tornam-se um tipo de conhecimento esotérico, ao qual apenas os “iniciados” têm acesso. Além disso, o que é validado pelas descobertas empíricas e, de certa maneira, pelos milagres da tecnologia, é o núcleo do insight esotérico, e não as crenças cientificistas exteriores a ele.

Consideremos agora as implicações destes fatos – deste fenômeno cultural – na vida religiosa e espiritual. Conforme comentei anteriormente, considero extremamente danoso o impacto da crença cientificista sobre a religião. O problema se agravou ainda mais porque teólogos e pastores em geral estão mal guarnecidos para lidar com questões deste tipo, quando não estão completamente convencidos pelas teses cientificistas.

Alguns poderiam perguntar qual é, afinal, a importância disso tudo. E se estivermos enganados sobre a natureza da causalidade, ou sobre onde se encerra a percepção sensorial, ou mesmo sobre a tão-debatida questão da evolução – contanto que estejamos ao lado da verdade em questões religiosas? Eu diria que a questão não é tão simples assim. Não nos esqueçamos que religião – contanto que não tenha se degenerado em convenção social ou mero sentimentalismo – exige o homem por inteiro; santidade e totalidade são inseparáveis. O “primeiro e maior” de todos os mandamentos não impõe que “[Tu] amarás o Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua mente”? O que pensamos do mundo – nosso Weltanschauung – não pode ser legitimamente excluído do domínio da religião. Conforme escreveu São Tomás de Aquino na Summa Contra Gentiles (Livro II, capítulo 3): “É absolutamente falso sustentar, em relação às verdades da fé, que o que acreditamos a respeito da criação não tem maiores conseqüências, contanto que se tenha uma concepção exata sobre Deus; pois um erro sobre a natureza da criação sempre engendra uma falsa idéia sobre Deus”. Eu diria que a propensão contemporânea em acomodar os ensinamentos do Cristianismo com as chamadas “verdades científicas” representa uma impressionante confirmação deste princípio tomista: um caso clássico de erros cientificistas gerando idéias teológicas falhas. [5]

Em suma: o que pensamos sobre o universo tem sim importância em nossa vida religiosa e espiritual. E, além disso, somos responsáveis pelas opiniões que sustentamos neste domínio aparentemente secular. “Com toda a tua mente”: estas quatro palavrinhas deveriam bastar para apreciarmos o fato.

Vou ainda mais longe: a religião míngua no momento em que abre mão do seu, digamos, domínio natural, que hoje é ocupado pela ciência. Creio que a atual crise da fé e a progressiva descristianização da sociedade ocidental têm muito a ver com o fato de que há séculos o mundo material tem sido deixado nas mãos dos cientistas. Isso já foi dito muitas vezes no passado (mas não o suficiente!).

Theodore Roszak, por exemplo, expressou-se sobre esta questão com especial brilhantismo: “A ciência é a nossa religião porque a maioria de nós é incapaz de convictamente enxergar em torno dela” [6]. Além disso, os únicos que têm alguma capacidade de “convictamente enxergar em torno dela” são aqueles que têm um contato mínimo com a autêntica religião. Oskar Milosz (1877-1939) é outro que tem algo notável a dizer sobre a questão: “Se o conceito de universo físico não estiver de acordo com a realidade, a vida espiritual desta pessoa será gravemente avariada, com conseqüências devastadoras em todos os aspectos de sua vida” [7]. Muito bem dito! Com respeito às implicações da cosmovisão cientificista na vida da Igreja, citarei as palavras recentemente publicadas do filósofo francês Jean Borella: “A verdade é que a Igreja Católica tem se confrontado com o mais terrível problema que uma religião poderia enfrentar: o desaparecimento cientificista (disparition scientifique) do universo de formas simbólicas, justamente aquele que lhe permite que se expresse e se manifeste, isto é, que permite que exista”. E ele continua: “Tal destruição foi levada a cabo pela física de Galileu, não, como se costuma dizer, porque destituiu o homem de sua posição central – que, para São Tomás de Aquino, é cosmologicamente a mais inferior e menos nobre – mas porque reduziu corpos, substâncias materiais, ao âmbito puramente geométrico, tornando impossível (ou desprovido de sentido), em uma só tacada, que o mundo pudesse servir como meio para a manifestação de Deus. A capacidade teofânica do mundo foi negada”. [8] Sejamos claros: Borella pôs o dedo na ferida do reducionismo físico: le problème le plus redoubtable qu’une religion puisse rencontrer. O que ele chama de “redução ao puramente geométrico” corresponde precisamente ao que chamo de redução do corpóreo ao físico: é esta disputa cientificista que obliteraria “a capacidade teofânica do mundo”.

É claro que as “formas simbólicas” às quais Borella se refere não são, como se poderia supor, imagens ou idéias subjetivas que outrora os homens projetaram sobre o universo externo até que a ciência veio para nos apresentar à verdade. O caso é exatamente o oposto: as “formas” em questão são objetivamente reais e, na verdade, essenciais ao universo. Podemos concebê-las como as “formas” no sentido aristotélico e escolástico, ou os arquétipos eternos platônicos refletidos no plano da existência corpórea. Em todo caso, constituem a essência mesma dos seres corpóreos. Remova estas “formas simbólicas” e o universo deixará de existir; pois são precisamente estas “formas” que ancoram o cosmo a Deus.

Nem é preciso dizer que a ciência não destruiu realmente estas formas, nem causou seu desaparecimento; porém, a negação cientificista dos seres corpóreos implica em uma negação das formas ou essências substanciais que constituem a ordem do ser, e das qualidades sensíveis pelas quais estas formas ou essências se manifestam ao homem. Assim, a mente cientificisticamente treinada torna-se cada vez mais insensível ao que Borella chama de “universo de formas simbólicas”, a ponto de tal universo lhe parecer praticamente invisível. É neste sentido que a “capacidade teofânica do mundo” tem diminuído a níveis nunca antes vistos.

De qualquer modo, as conseqüências desta diminuição não são outra coisa senão trágicas. Ao negar as essências, o homem cientificista destrói a própria base da vida espiritual. Conforme Borella notou, o homem cientificista obliterou o domínio “que permite à Igreja se expressar e se manifestar” e, portanto, “que permite que ela exista”. A refutação da crença cientificista não é, portanto, algo opcional à Igreja, algo do qual ela pode se privar de fazer; é, pelo contrário, uma questão de urgente necessidade, uma questão de sobrevivência.

Por fim, reflitamos novamente sobre o que São Paulo tem a dizer sobre a “capacidade teofânica do mundo” em sua carta aos romanos. Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis. Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes nas suas especulações se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. (Romanos 1:20-22). Nem é preciso mencionar a enorme relevância destas palavras em tudo o que discutimos até aqui. As “coisas que estão criadas” são, sem dúvida, as de natureza corpórea, os objetos que o homem pode perceber; mas e quanto às “suas coisas invisíveis”: não seriam precisamente as essências eternas, as idéias ou arquétipos? Contanto que o coração do homem não tenha se “obscurecido”, a percepção sensorial das “coisas que estão criadas” lhe despertará uma percepção intelectual – uma “lembrança”, segundo Platão – das coisas eternas, sobre as quais o coração refletirá ou incorporará. São Paulo alude a um tempo ou estado quando o homem “conhecia Deus”, uma referência, antes de mais nada, à condição de Adão antes da queda, quando a natureza humana ainda não havia sido corrompida pelo pecado original. Porém, é preciso perceber que a queda de Adão tem se repetido, em escala menor, através dos séculos, numa série interminável de “traições”, grandes e pequenas. Mesmo hoje, neste avançado estágio da história, somos, cada um de nós, investidos de certo “conhecimento sobre Deus”, ao qual somos livres para responder de diversas maneiras. E é por isso que nós também somos “inescusáveis”, responsáveis que somos pelas opiniões que sustentamos a respeito do cosmo. Todos percebem o universo de acordo com seu estado espiritual: os “puros de coração” o percebem como uma teofania; dos demais, cujos “corações insensatos se obscureceram”, a capacidade teofânica do universo é reduzida proporcionalmente a este obscurecimento.

Quero destacar o fato de que a correspondência entre o estado espiritual e o Weltanschauung aplica-se em ambas as direções, ou seja, nosso estado espiritual afeta não somente a maneira como vemos o mundo exterior, mas, reciprocamente, nossas visões sobre o universo invariavelmente refletem-se sobre este estado espiritual. Este é meu argumento central: A cosmologia importa, e ela tem um impacto decisivo sobre nossa condição espiritual. Mesmo aquilo que pensamos sobre o mundo puramente físico mostra-se crucial; pois “se o conceito de universo físico de uma pessoa não estiver de acordo com a realidade, sua vida espiritual será gravemente avariada...”.

Estas considerações nos trazem, enfim, à questão pastoral: o que pode ser feito, pastoralmente falando, para neutralizar a influência cientificista? O problema maior está em informar os próprios pastores: alertá-los, em primeiro lugar, do fato de que há uma distinção crucial a ser feita entre ciência e cientificismo, e do fato de que a crença cientificista é antagonista de nosso bem-estar espiritual. Não será tarefa fácil, uma vez que ofende a tendência dominante, tanto na sociedade civil quanto na Igreja. Só pela graça de Deus, creio eu, conseguiremos reunir discernimento e ousadia o bastante para livrar-nos do Weltanschauung cientificista e recuperarmos uma cosmovisão cristã. E tal tarefa, esta exigência, diria eu, é em essência espiritual. Ela não pode ser cumprida simplesmente lendo livros, ou pelo processo de raciocínio, mas acima de tudo pela fé e pela oração. O ditado credo ut intelligam aplica-se a nós, e com ainda mais intensidade do que nos inocentes dias de Agostinho ou Anselmo. É imperativo que sejamos tocados e movidos pelo Espírito Santo, o Espírito da verdade, que vos guiará em toda a verdade (João 16:13). Em nossa batalha para transcendermos o cientificismo, estaremos lidando não apenas com um sistema de crenças criado pelo homem, mas com algo formidavelmente mais abrangente; pois aqui também, no fim das contas, não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais (Efésios 6:12). E não poderia ser diferente, pois é a “capacidade teofânica do mundo” que está em jogo: aquilo mesmo “que permite a Igreja se expressar e se manifestar, isto é, que permite que ela exista”. Se o cosmo for realmente aquilo que o cientificismo afirma que é, então nossa fé católica será uma zombaria e nossa sagrada liturgia uma charada vazia. Este fato não pode ser ignorado impunemente.

Notas:

[1] The Concept of Nature (Cambridge University Press, 1964), pág. 30. Embora seja um eminente filósofo e que, juntamente com Bertrand Russel, tenha sido pai da lógica matemática, as censuras de Whitehead contra os axiomas cartesianos despertaram pouco interesse por parte da comunidade científica.

[2] The Quantum Enigma (Peru, Illinois: Sherwood Sugden, 1995). Um providencial resumo do livro foi feito por William A. Wallace em “Thomism and the Quantum Enigma”, The Thomist 61 (1997), pág. 455-467. Cf. também Wolfgang Smith, From Schrödinger’s Cat to Thomistic Ontology, The Thomist 63 (1999), pág. 49-63.

[3] Citado em E. A. Burtt, The Metaphysical Principles of Modern Physical Science (New York: Humanities Press, 1951), pág. 112.

[4] Cf. Cosmos and Transcendence (Peru, Illinois: Sherwood Sugden, 1984), na qual procurei desmascarar os princípios fundamentais da crença cientificista e delinear seu impacto na sociedade contemporânea.

[5] O supremo exemplo da teologia cientificista foi dado pelas especulações de Teilhard de Chardin. Cf. minha monografia Teilhardism and the New Religion (Rockford, Illinois: TAN Books, 1988), na qual lidei amplamente com esta questão.

[6] Where the Wasteland Ends (Garden City: Doubleday, 1973), pág. 124.

[7] Citado em Seyyed Hossein Nasr, Religion and the Order of Nature (Oxford University Press, 1996), pág. 153. Sobre Oskar Milosz, cf. Philip Sherrard, Human Image: World Image (Ipswich: Golgonooza Press, 1992), pág. 131-146.

[8] Le sens du surnaturel (Geneva: Editions Ad Solem, 1996), pág. 74. Cf. também a tradução inglesa The Sense of the Supernatural (Edinburgh: T & T Clark, 1998).

15 de janeiro de 2008

São Paísio Velichkovsky

Eis uma interessante biografia de São Paísio Velichkovsky, redigida pelo Metropolita Lauro, primaz da Igreja Ortodoxa Russa no Exterior, em comemoração ao 210º aniversário do repouso do santo (1992).

São Paísio foi o grande responsável pela renovação monástica russa nos séculos XVIII e XIX, tanto pelo sua atuação como ancião (staretz) como pelas inúmeras traduções e correções dos textos dos Santos Padres, dando origem à Philokalia eslava, a famosa coletânea de textos espirituais ascéticos da Cristandade.

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A Rússia adotou a Santa Ortodoxia e sua cultura com uma facilidade incomum, ainda que com sinceridade e franqueza. É até possível afirmar, sem medo de errar, que a própria Bizâncio não suspeitava que a Rússia e o povo russo fossem sucessores dignos da Santa Ortodoxia. E aconteceu que a Rússia foi levada à fé cristã pela Providência Divina, para que preservasse a verdade da correta teologia, do Cristianismo Ortodoxo genuíno. É possível supor que também pela Providência Divina uma Rússia forte e poderosa foi despertada quando sua população foi convertida ao Cristianismo, ao mesmo tempo em que os cristãos ocidentais abandonavam a verdadeira Ortodoxia, caindo em heresia, e quando o mundo ortodoxo oriental estava sendo ameaçado pelo Islã; a Rússia estava sendo preparada pela Providência Divina para se tornar a guardiã dos verdadeiros ensinamentos da revelação divina, tornando-se o novo povo escolhido para preservar na terra a verdadeira fé ortodoxa.

No começo de nossa história, em Kiev, por meio dos esforços do Santo Príncipe Vladimir e seus herdeiros, a Rússia começou a florescer espiritualmente, a ganhar força, tanto politicamente quanto administrativamente. No entanto, os ataques tártaros e a devastação que se seguiu paralisaram esse florescimento.

Mas apesar das perdas e sofrimentos infligidos por pagãos e heterodoxos, os corações dos russos se apegaram ainda mais à Santa Igreja Ortodoxa, fazendo com que a autoridade da fé ortodoxa atingisse um elevado patamar. Uma nova era de imponência e renovação espiritual tomou conta dos séculos seguintes: os séculos XIV e XV. É a era de São Sérgio de Radonezh e seus discípulos, que fundaram mosteiros por todo o norte russo, com seus povoados em torno deles. Assim, a “Santa Rússia” crescia e se expandia.

No começo do século XVI, quando a Rússia se encontrava separada do oriente ortodoxo e Bizâncio estava sob controle turco, o perfil da batalha espiritual em nossa terra natal começou novamente a mudar. Desavenças e conflitos entre os “possuidores” e os “não-possuidores” começaram a surgir. Foi então que nosso monasticismo mergulhou num período muito ruim: o reinado do Imperador Pedro I. Chegou ao ponto de monges serem perseguidos, especialmente quando pessoas estrangeiras influenciavam nossas imperatrizes. Na segunda metade do século XVIII, uma mudança começou a tomar forma, e o monasticismo russo experimentou um renascimento com o Ancião Schemamonge Paísio Velichkovsky.

Primeiramente, farei uma breve descrição de sua biografia para, então, discorrer sobre suas obras e seu legado espiritual.

O futuro Ancião Paísio, ou São Paísio, como o chamamos hoje, nasceu em 21 de dezembro de 1722, na cidade de Poltava, de uma família de padres: seu pai, seu avô e seu bisavô foram padres. Sua mãe se tornou monge no fim da vida, assim como sua avó e tia. Ele foi batizado com o nome de Pedro. Seu pai, Pe. João, era o pároco da Catedral da Dormição. Sua mãe, Irina, trabalhava com crianças. Pedro era um menino quieto e manso; ele adorava ler, e lia livros espirituais desde a tenra idade, tanto na sua casa como na biblioteca da catedral. Ele lia as Sagradas Escrituras e diversas obras de São João Crisóstomo e São Éfrem, o Sírio.

Seu biógrafo notou que ele era “acanhado e despretensioso”, de maneira que até seus pais raramente ouviam sua voz, e as visitas freqüentemente perguntavam: “Ele é surdo?”

Aos 13 anos, Pedro entrou na Escola Teológica de Kiev, mais tarde renomeada para Academia Teológica, onde o Arcebispo Simão (Todorsky) de Pskov dava aulas na época, juntamente com o Metropolita Arsênio (Matseevich) de Rostov e outros. O Hieromonge Josafá, o futuro Bispo de Belgorod, ainda estava lá. A educação era de alto nível. Havia 1200 estudantes na Academia. Mas Pedro não entrou lá por dcausa isso, pois seu coração estava tomado pelas igrejas, pelos santos mosteiros, pelas cavernas daqueles que faziam votos de silêncio, e pelas conversas que tinha com amigos sobre a vida eremítica. Eles freqüentemente se encontravam em locais isolados e conversavam sobre coisas espiritualmente benéficas. “É melhor”, diziam-se mutuamente, “permanecer no mundo do que rejeitar as dádivas mundanas apenas por exibicionismo e viver uma vida despreocupada e fácil num mosteiro”. Eles juraram nunca serem tonsurados num mosteiro rico, onde seria impossível emular a pobreza de Cristo.

No terceiro ano da escola, o entusiasmo de Pedro foi minguando, enquanto seu desejo pelo monasticismo foi crescendo mais e mais. As férias escolares chegaram, e Pedro foi para casa. Sua mãe, que ficou sabendo de seu desejo de deixar a escola e tornar-se monge, opôs-se categoricamente a esse projeto. Pedro tinha um amigo em Poltava chamado Dmítrio, e eles juraram deixar o país juntos. Mas seus planos falharam, porque Pedro adoeceu e teve de adiar sua viagem a Kiev. Quando ele enfim sarou, sua mãe o acompanhou, supondo que ele iria continuar os estudos. Mas, em Kiev, Pedro começou a repensar seu futuro. Ele decidiu dirigir-se a Chernigov e consultar o Ancião Pacômio, a fim de obter seus conselhos e instruções, bem como sua bênção para seus planos futuros. Após passar alguns dias com o Pe. Pacômio, este lhe disse: “É melhor que você vá a algum mosteiro não muito longe de Lubech, a terra natal de Santo Antônio das Cavernas. Lá você encontrará o Hieromonge Joaquim, que lhe dirá o que fazer”. Pedro seguiu as instruções do Pe. Pacômio. Quando Pedro se aproximou do mosteiro, notou que havia guardas entre a cidade de Lubech e o mosteiro. Pedro ficou com medo de ser barrado, pois não tinha documentos. Na mesma hora, um monge surgiu do outro lado. Parando junto ao guarda, o monge fitou Pedro, que se aproximava, e disse ao guarda quando este chamava o garoto: “Por que você está perguntando quem é ele? Será que você não percebe que ele é um noviço retornando ao mosteiro?” O guarda, então, deixou Pedro passar. E assim, com a ajuda de Deus, ele pôde entrar no mosteiro. Foram-lhe conferidas as obrigações de ekomonos (gerente do mosteiro), lendo as Vidas dos Santos no refeitório e assumindo diversas incumbências. Ele morava próximo ao Ancião Joaquim, que o abençoou para usar a batina, regozijando-se em sua vida pacífica.

Mas Pedro não ficaria lá por muito tempo. Três meses depois, um novo superior foi designado, e por causa de certos problemas que se seguiram, Pedro deixou o mosteiro. Ele vagava pela margem direita da Pequena Rússia, que à época estava sendo invadida por poloneses e uniatas. Ouvindo falar de um eremita que vivia numa ilha fluvial, Pedro apressou-se em conhecê-lo. Seu nome era Isíquio. Ele trabalhava transcrevendo as obras dos Santos Padres. Pedro pediu para que fosse aceito como estudante. Embora a face de Pedro estivesse molhada de lágrimas e súplicas, o ancião foi implacável: “Filho, sou pecador e indigno, e não consigo nem mesmo dirigir minha pobre alma a Deus”.

Deixando o eremita, Pedro logo encontrou um mosteiro chamado Medvedovsky, ao qual se juntou. Ele não tinha destreza, e os irmãos freqüentemente zombavam dele. Foi-lhe dada a incumbência de moer trigo, mas ele acabou cortando seus dedos. Então lhe conferiram a tarefa de carregar água e argila, cortar pão no refeitório, servir comida aos monges e lavar louça. Ele foi designado ao kliros. Neste mosteiro, ele foi tonsurado à rassa com o nome de Platão. Seu pai espiritual deixou o mosteiro algumas semanas mais tarde, e Platão ficou sem pastor, “como uma ovelha perdida”. Ele disse a si mesmo: “Minha alma em minha juventude era muito inclinada à obediência, mas não recebi a divina dádiva [oportunidade] por causa de minha indignidade”.

Tempos depois, este mosteiro acabou sendo atacado pelos uniatas, que o fecharam. Pe. Platão foi à Lavra de Kiev, trabalhando em sua gráfica. Ardendo de desejo pela vida ascética e eremítica, Pe. Platão dirigiu-se a Moldovlachia, onde a vida espiritual estava florescendo, já que os mosteiros de lá se encontravam sob influência da Santa Montanha de Athos. Ele permaneceu três anos nos mosteiros de Moldovlachia, sob a direção dos anciãos Pe. Basílio, Pe. Miguel e Pe. Onofre.

Mais tarde, Pe. Platão empreendeu uma viagem ao Monte Athos, esperando encontrar lá guias espirituais e assumir a vida ascética. Pe. Platão tinha 24 anos à época. Eis o que seu biógrafo relatou sobre sua mudança para o Monte Athos: “Quem pode perscrutar os caminhos do Senhor? Quem conhece Seus desígnios? Pela Sua Divina Providência, Ele o tirou de sua terra natal, levando-o a muitas nações, de maneira que pudesse ajuntar para sua alma grandes tesouros espirituais e distribuí-los entre aqueles que buscassem seu guiamento. O Senhor o fez emular Santo Antônio das Cavernas, que também era nativo de Pequena Rússia. E a exemplo de Santo Antônio, que também peregrinou até finalmente se fixar no Monte Athos, onde assumiu as ordens angelicais monásticas e, depois de muitos anos de trabalho e dádivas espirituais, retornou à sua terra natal para semear e multiplicar a vida monástica; assim também São Paísio obteve tesouros celestiais e retornou à sua Moldávia, renovando as ordens monásticas, restaurando a vida monástica decadente e plantando nela a tripla bênção da obediência, iluminando as trevas da ignorância por meio de seus ensinamentos, concedendo sabedoria por meio da correção e tradução dos textos teológicos dos Santos Padres do grego para sua língua nativa”.

O Hieromonge Tryphon foi à Santa Montanha com o Pe. Platão. Eles chegaram ao Monte Athos no dia 4 de julho, na festa de Santo Atanásio de Athos, que viveu como eremita na Santa Montanha e lá fundou o primeiro mosteiro cenobítico.

Hoje, esse é o principal mosteiro do Monte Athos, o primeiro entre vinte. Descansando alguns dias na lavra de Santo Atanásio, os viajantes se dirigiram ao Mosteiro do Pantocrator, próximo de onde os monges eslavos viviam. A estrada até o Mosteiro do Pantocrator era longa e perigosa. Os viajantes, exaustos, sentaram-se para descansar e beberam um pouco de água gelada. Por causa disso, pegaram resfriado. O Hieromonge Tryphon entrou em delírio, morrendo logo que chegou ao Mosteiro do Pantocrator.

Platão conseguiu sobreviver. Aos poucos, ele começou a conhecer os mosteiros vizinhos, visitando os eremitas e monges locais em busca de um pai espiritual. Foi difícil para ele, pois viveu na pobreza por mais quatro anos. Em 1750, o pai espiritual moldávio do Pe. Platão, o Schemamonge Basílio, foi ao Monte Athos e tonsurou Platão com o nome de Paísio. Em pouco tempo, Paísio recebeu seus primeiros estudantes, Vissarion e Cesário; com o tempo, o número de estudantes subiu para 12. Em 1759, aos 36 anos, Pe. Paísio foi ordenado hieromonge. Como o número de monges estava crescendo, Pe. Paísio solicitou ao Mosteiro do Pantocrator que lhe dessem a cela do Profeta Elias, para que ali instituísse o Esquete do Profeta Elias. Portanto, o Pe. Paísio foi um dos fundadores do atual Esquete do Profeta Elias, na Santa Montanha de Athos. Seu esquete começou a crescer e, em breve, não apenas sua irmandade mas monges de todo o Monte Athos se tornaram seus filhos espirituais. Até mesmo o Patriarca Serafim, que vivia aposentado no Mosteiro do Pantocrator, visitou-o a fim de obter guiamento espiritual. Todos os irmãos faziam artesanatos, e o próprio ancião fazia colheres, passando as noites lendo e reescrevendo os livros dos Santos Padres, dormindo não mais do que três horas por dia.

Mas o inimigo da humanidade invejava o crescimento da irmandade de Paísio, sua vida pacífica e seu sucesso espiritual. Surgiram problemas entre os moradores do esquete, insuflados pelo Ancião Atanásio, que viva nas proximidades. Essa inimizade e os problemas dela resultantes perturbavam Pe. Paísio e seus estudantes.

A irmandade cresceu, chegando a 50 pessoas, mas não havia espaço disponível para todos, de maneira que novas celas tinham de ser construídas. Contudo, não havia fundos para tal. Seguindo a recomendação de vários habitantes do Monte Athos, Pe. Paísio e seus monges se mudaram para o Mosteiro de São Simão Pedro, que estava vazio à época. Eles esperavam assim evitar conflitos com o Ancião Atanásio. Os monges do Mosteiro de São Simão Pedro o abandonaram porque deviam dinheiro às autoridades turcas, e não conseguiam lhes pagar. Em três meses, Pe. Paísio e seus monges também tiveram de deixar o mosteiro, pois os turcos estavam exigindo a liquidação da antiga dívida, e eles também não conseguiam lhes pagar. Eles retornaram ao Esquete do Profeta Elias, mas sua aguda pobreza não lhes permitiu que permanecessem por muito tempo, e eles tinham então de encontrar um novo lar.

Ancião Paísio decidiu mudar-se, juntamente com seus irmãos, para Moldovlachia. Em 1763, após 17 anos no Monte Athos, ele e 64 monges partiram para a Moldávia.

Ancião Paísio contratou duas embarcações: em uma ele ficou com os monges eslavos, e em outra ficaram Pe. Vissarion e os irmãos moldávios. Eles chegaram primeiro ao Mosteiro do Espírito Santo, em Dragomir, Bukovina. O mosteiro lhes foi dado cheio de mato e com todos os impostos vencidos. Embora estivesse em estado deplorável, em pouco tempo, por meio dos esforços dos monges, o mosteiro ficou em boas condições. A regra monástica das cerimônias era a mesma do Monte Athos. Eles celebravam em duas línguas: no kliros da direita, cantavam em eslavo, no da esquerda, em moldávio.

O Ancião exigia que cada monge cumprisse seu chamado com total consciência e severidade, pois um monge não se reconhece pela sua roupa, mas pelo seu espírito.

Às vezes, o Ancião permanecia com os irmãos o dia inteiro; as portas de sua cela ficavam abertas até as 21h. Os monges entravam e saíam para conversar sobre questões práticas e espirituais. A leitura diária que o Ancião fazia dos livros dos Santos Padres, bem como as discussões a respeito, eram de enorme importância para a vida espiritual dos monges. Mas a pacífica vida em Dragomir foi logo perturbada pela guerra entre Rússia e Turquia. Dragomir caiu em mãos austríacas, de maneira que os irmãos tiveram de evacuar para Sekul. Em Sekul, os irmãos começaram a ajudar os refugiados. Problemas começaram a surgir entre os irmãos mas, aos poucos, a vida em Sekul começou a se normalizar. Os estudos do Ancião não cessaram por causa desses contratempos. Então, em 1779, pelas intercessões do Príncipe Constantino e com a bênção do Metropolita Gabriel, foi oferecida ao Ancião Paísio e seus monges a oportunidade de se mudarem para Niametz. Mas o Ancião Paísio não ficou contente com essa proposta, uma vez que tal mudança envolveria grandes complicações, e ele já estava ficando velho.

Após alguma hesitação, o Ancião concordou em se mudar, mas deixou alguns monges em Sekula. Este foi o período final e mais difícil de sua vida, mas foi também o mais frutífero. O número de irmãos chegou a 700. A fama da vida espiritual altiva do mosteiro e de seu ancião espalhou-se por todo o oriente ortodoxo. Com a ajuda do Príncipe, o Ancião construiu um hospital no mosteiro, juntamente com uma casa de misericórdia, e aumentou em muito o número de celas monásticas. Ele instituiu ainda a prática intensiva de transcrições e traduções das obras dos Santos Padres, e reuniu um grande número de assistentes, preparando-os especialmente para seu trabalho editorial. Ele ensinou-lhes grego e, para completar sua educação, enviou-os à Academia de Bucareste.

Graças ao árduo trabalho desse grupo de monges, um grande número de traduções fiéis aos originais dos Santos Padres começou a aparecer, juntamente com diversas transcrições. De acordo com o Prof. A. I. Yatsimirsky, dos milhares de manuscritos conservados na biblioteca de Niametz, escritos em diferentes períodos e em diferentes línguas, incluindo moldávio, grego, latim, italiano, alemão, hebraico, árabe, turco, sírio, búlgaro, polonês, francês e eslavo, 276 deles são do período do Ancião Paísio, e mais de 40 escritos pelas próprias mãos do santo.

A crescente fama de mestre da vida espiritual inspirou muitas pessoas a se corresponderem com Ancião Paísio. O Ancião respondia a essas cartas, às vezes de maneira volumosa. Nelas, o Ancião tocava em diversas questões da vida monástica e eclesiástica em geral, dando instruções e conselhos. Essas correspondências ocupavam grande parte de seu tempo. Em meio a essas tarefas, muitos anos se passaram despercebidos, e aos poucos o santo se aproximava do fim de sua vida.

Seus últimos dias foram eclipsados pelas preocupações causadas pela guerra entre Rússia, Áustria e Turquia. Niametz foi ocupada pelos turcos, mas os austríacos tentaram, com todas as forças, emancipar Niametz, enquanto as tropas russas se aproximavam. O comandante-em-chefe do Exército Russo, Príncipe Potemkin, dirigiu-se a Jassy, juntamente com o Arcebispo Ambrósio da Eslovênia e Poltava. O Arcebispo, desejando conhecer o famoso Ancião Paísio, chegou ao Mosteiro de Niametz e recebeu os cumprimentos dos monges. Isto foi em 1790. Neste domingo, o Arcebispo Ambrósio oficiou a Divina Liturgia, durante a qual o Ancião foi elevado a arquimandrita. O Ancião nasceu em Poltava, e foi o Arcebispo de Poltava quem o ordenou arquimandrita.

Após o fim das operações militares, a vida começou aos poucos a voltar ao normal, enquanto o Ancião continuava a trabalhar como antes: ele fazia traduções, escrevia cartas e guiava os monges. Mas suas forças estavam se esgotando. Pouco antes de ser fatalmente acometido por uma doença, ele parou de fazer traduções. Em 5 de novembro de 1794, ele se sentiu muito fraco, e foi levado à sua cama. No domingo, ele se sentiu melhor e conseguiu ir à igreja comungar. Todavia, sua fraqueza progrediu, e em 15 de novembro de 1794, aos 72 anos de idade, São Paísio repousou em paz.

A notícia do repouso do Arquimandrita Paísio espalhou-se rapidamente, e um grande número de monges e fiéis dirigiu-se a Niametz. Quando o Bispo Benjamin chegou, deu-se início ao funeral na Catedral da Ascensão, seguido de seu enterro.

Verificamos, assim, que a mudança do Ancião Paísio a Moldovlachia, pela Providência Divina, mostrou-se extremamente benéfica. Se ele tivesse permanecido no Monte Athos, sua irmandade não teria crescido por causa da falta de espaço e recursos, e ele não teria exercido nenhuma influência na vida espiritual no monasticismo ortodoxo na Moldávia e na Rússia.

Em São Paísio, a santidade pessoal estava combinada com amor pela educação, habilidade em organizar uma vida monástica cenobítica, habilidade em atrair e ensinar um grande número de estudantes, habilidade em criar uma escola de asceticismo espiritual e, finalmente, talento literário, que o ajudou a completar uma importante e necessária tarefa: corrigir velhas traduções e fazer novas traduções da literatura ascética dos Santos Padres.

São muitas as obras literárias de São Paísio. Ao se deparar com um grande número de erros nas traduções eslávicas dos Santos Padres, ele percebeu a importância de revisá-las com esmero. Assim, ele foi atrás dos originais gregos no Monte Athos. Mas não foi fácil encontrá-los, pois não se encontravam à venda. Por isso, ele teve de transcrevê-las pessoalmente, e pagar para que outros o fizessem. Ele logo percebeu que nem todas as obras dos Santos Padres haviam sido traduzidas para o eslavo. E a segunda parte da tarefa, as traduções em si, ele empreendeu na Moldávia, após ter se mudado para lá com seus monges.

Para termos uma idéia de como esse trabalho era árduo e diligente, basta lembrar que o ancião revisava e corrigia o mesmo texto três ou mais vezes. Mesmo assim, o Pe. Paísio reconhecia a insuficiência disso: “Para minha grande tristeza, vejo que o trabalho está longe da perfeição, e que se o Senhor em Sua misericórdia estender minha vida e me conceder, agora que estou quase cego, a visão necessária, terei de trabalhar ainda mais nessas correções”.

Foi só quando estava próximo do fim de sua vida é que Ancião Paísio conseguiu ampliar o ritmo de traduções e transcrições dos livros dos Santos Padres. Esses livros começaram então a ser disseminados pelos mosteiros do oriente ortodoxo, chegando à Rússia, onde desempenharam um papel excepcional na renovação no monasticismo russo dos séculos XVIII e XIX.

No começo do Cristianismo na Rússia, as sementes da Ortodoxia foram plantadas por Santo Antônio e São Teodósio das Cavernas e seus estudantes, de onde vieram muitos dos primeiros bispos da Rússia; mais tarde, São Sérgio e seus estudantes trabalharam para fortalecer a Ortodoxia; e, finalmente, nos séculos XVIII e XIX, os estudantes de São Paísio Velichkovsky desempenharam um importante papel no renascimento do monasticismo russo e do starchestvo (discipulado).

Os estudantes de São Paísio tiveram grande influência na Santa Montanha, na Moldávia e na Rússia. A Rússia, em particular, foi uma grande fonte de estudantes, sob os quais um amplo renascimento da vida espiritual ocorreu, juntamente com o interesse e o amor pela leitura e pelo estudo; anciãos e superiores tomaram a frente na preservação do legado de São Paísio. É possível distinguir três correntes: a do norte, a central e a do sul. O movimento do norte estava centrado nos Mosteiros de Solovetsky, Valaam, Santo Alexandre Nevsky, Vladimir Guberniya, Optina e, mais tarde, Orlov Guberniya. No sul, nos Eremitérios de Ploshchansky e Glinsky. O círculo de influência de São Paísio era amplo. Na Rússia, influenciou mosteiros em 35 dioceses.

Embora São Paísio tenha vivido no exterior e toda sua atividade tenha ocorrido fora da Rússia, os maiores frutos se deram na Igreja Russa.

É possível detectar um paralelo entre a obra de São Paísio e nosso tempo. Durante a vida de São Paísio, sua obra penetrou na Rússia, onde foi reescrita e publicada – a Philokalia eslava, a obra de Santo Isaque da Síria, e muitas outras. Em condições um pouco diferentes, a mesma coisa acontece hoje. Nossa Igreja Russa no Exterior está levando adiante sua missão, dando frutos na Rússia na forma de obras dos Santos Padres e na literatura eclesiástica em geral, onde há uma carência enorme da Palavra de Deus e de literatura espiritual [este artigo foi escrito em 1992 – N. do T.].

É verdade que há uma grande diferença entre os tempos de São Paísio e o nosso. São Paísio vivia num país ortodoxo, e embora as possibilidades editoriais não existissem na época, era possível transcrever e retranscrever manuscritos e enviá-los à Rússia, a fim de que fossem impressos e disseminados por lá. Hoje, embora vivamos num ambiente heterodoxo, podemos imprimir grandes edições, mas a disseminação da literatura entre nossos irmãos russos é virtualmente impossível. Mas, com a ajuda de Deus, algumas poucas coisas podem ser enviadas daqui, e esperamos que esta pequena quantidade traga frutos multiplicados por mil. Que assim seja, ó Senhor, pelas orações de São Paísio!

Esta é uma pequena biografia das batalhas, lutas e méritos de São Paísio Velichkovsky, o restaurador do monasticismo cenobítico estrito e o fundador do starchestvo no século XIX.

Eis o bem que pode ser feito por uma só pessoa, com a ajuda de Deus. Talvez, entre nossos jovens, encontremos pessoas dispostas a servi-Lo e a servir a Igreja Ortodoxa Russa. Os jovens são necessários, pois nossos mosteiros precisam de sua força, e se a Rússia renascer, ela precisará de pessoas experientes e preparadas. Aos que ouvirem este chamado, respondam!

Este pequeno artigo foi baseado no livro Starets Paisii Velichkovsky [Ancião Paísio Velichkovsky], do Arcipreste Sérgio Chetverikov, e em vários outros artigos.

A glorificação de São Paísio foi levada a cabo pela Igreja Ortodoxa Russa no Exterior, no dia da festa do Santo Profeta Elias, em 20 de julho de 1982, no Esquete Russo de Santo Elias no Monte Athos, fundado por São Paísio.

7 de janeiro de 2008

Fé e ciência III: Ciência e demônios

Esta é a parte III da série Fé e Ciência, do podcast de Clark Carlton. As partes I e II podem ser lidas aqui e aqui, respectivamente.

Vinde, pois, e arrazoemos, diz o Senhor: ainda que os vossos pecados sejam como a escarlata, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que sejam vermelhos como o carmesim, tornar-se-ão como a lã. Se quiserdes, e obedecerdes, comereis o bem desta terra (Isaías 1:18-19).

Olá. Bem-vindos de volta ao programa Faith and Philosophy (Fé e Filosofia). O tópico de hoje é Deus e Ciência, parte 3: ciência e demônios.

Trata-se de uma continuação de minha última conversa sobre a ciência e sua relação com a Ortodoxia. Porém, admito que o tópico de hoje foi inspirado por um filme bem medíocre ao qual assisti na TV a cabo semana passada, O Exorcismo de Emily Rose. À exemplo do livro O Exorcista, de William Peter Blatty, que aliás resultou num filme bem melhor e mais assustador, o enredo foi supostamente baseado em fatos reais.

A morte da personagem do título, Emily, seguiu-se a uma série de tentativas malsucedidas de exorcismo. O exorcista foi então processado por homicídio negligente. A história conta que ele a aconselhou a parar de tomar os remédios que lhe haviam sido prescritos por causa de seus surtos psicóticos de feitio epiléptico. Confiando somente na fé, ao invés da medicina, o padre estava determinado a curar Emily de um mal que julgava ser espiritual, e não físico.

Embora o filme em si seja medíocre, ele levanta algumas questões interessantes sobre a relação entre fé e ciência – neste caso, ciência médica. Nossa fé ortodoxa tem contribuições importantes a dar nesta discussão.

Antes de entrar de cabeça no assunto, eu queria dizer algumas coisas sobre as representações cinematográficas dos demônios. A maioria delas pressupõe um tipo particular de piedade católica romana. Não estou me referindo ao fato de as personagens serem católicas romanas; refiro-me ao fato de que a maneira como as personagens interpretam e respondem aos fenômenos acaba camuflando certo tipo de espiritualidade...e que essa espiritualidade não é ortodoxa.

Em primeiro lugar, há a suposição – às vezes explícita, às vezes apenas implícita – de que se as pessoas acreditarem na existência de demônios, então elas vão acreditar em Deus. Em outras palavras, o demônio se torna uma ferramenta de evangelização. William Peter Blatty chegou a declarar que escreveu O Exorcista para promover a fé. No Exorcismo de Emily Rose, o padre afirma que a história da possessão de Emily faria muitas pessoas acreditarem em Deus. Espero que eu não seja o único a ver algo muito esquisito nisso tudo.

Em segundo lugar, essas possessões quase sempre são apresentadas como sendo de caráter martirizador. No fim do filme, Emily tem uma visão da Abençoada Mãe, que lhe propõe uma escolha: ou o alívio de seus sofrimentos, isto é, a morte, ou a oportunidade de continuar na batalha pelo bem de outras pessoas. Ela bravamente escolhe a segunda opção. No caso real, no qual o filme supostamente foi baseado, muitos acreditavam que a menina estava sofrendo por aqueles que se encontravam no Purgatório.

Francamente, esse tipo de raciocínio é bem mais demoníaco do que contorções, vômitos, cusparadas e obscenidades lançadas contra o padre durante o exorcismo. Esse tipo de espiritualidade vem de Francisco de Assis, que supunha estar sofrendo como o Cristo. Esta não é a espiritualidade cristã autêntica; trata-se de uma ilusão. Prelest é o maior feito da arte do diabo.

Um terceiro aspecto notável da demonologia cinematográfica é quando o demônio se identifica ao padre. A gente descobre que ele tem sido um demoniozinho bem danadinho. Não se trata de um mero servo do Tártaro. Não, esse é o demônio que possuiu Nero e a maioria dos vilões da história, inclusive Hitler.

Repito: há algo muito errado aí. Não é uma explicação apenas simplista; é perigosa. Ela explica o mal do mundo como sendo obra do diabo. Não deveríamos estar mais preocupados com as forças e os eventos históricos que criaram o tipo de ambiente no qual uma pessoa maluca – e talvez possessa – como Hitler teria chegado ao poder? A insanidade e a indecência que foi a Primeira Guerra Mundial. O Tratado de Versailles. A crise econômica resultante de uma política econômica e monetária débil e imoral.

Não, não. É bem mais fácil culpar o diabo. Como dizíamos nos anos 1970: “Não foi culpa minha; o diabo é que me fez fazer isso!”

Ainda mais preocupante do que as características da demonologia cinematográfica é o fato de que tais representações costumam ser a única alternativa à abordagem secular e materialista das ciências médicas modernas. Portanto, somos expostos a uma falsa dicotomia: ou a atividade demoníaca é representada com os traços caricaturais dos filmes de Hollywood ou ela é uma superstição boba do que, em essência, não passariam de fenômenos bioquímicos cerebrais.

Quaisquer respostas ou explicações ortodoxas a esses fenômenos devem, obrigatoriamente, começar com a experiência ascética dos santos. É fato que, na hagiografia, há inúmeras histórias de santos que lutaram espiritualmente com figuras grotescas e demoníacas, mas ler esses relatos de maneira superficial é tão produtivo quanto ler o Apocalipse desse jeito, ou seja, esperando que literalmente uma besta de dez chifres surgirá do mar para governar o mundo.

Para que compreendamos a natureza das batalhas espirituais contra o que São Paulo chamou de “principados e potestades”, é necessário entendermos a natureza do homem e os efeitos da queda.

Já mencionei diversas vezes que os Santos Padres faziam uma distinção entre a razão discursiva (dianoia) e a faculdade da percepção intuitiva (nous). De acordo com São Paulo em Romanos 1, bem como os Santos Padres, a essência da queda está no obscurecimento das faculdades noéticas do homem.

Em particular, São Paulo diz que o fato de o homem ter trocado a glória de Deus pela glória das coisas corruptíveis o tornou “vão em suas imaginações”. Isso não quer dizer apenas que o homem passou a pensar mais em si mesmo do que deveria, embora isso também seja verdade. Creio que São Paulo está tentando dizer que o obscurecimento das faculdades noéticas do homem resultou na perda da habilidade em discernir fantasia de realidade. Não apenas limitamos nosso campo de visão ao mundo material como enfrentamos dificuldades em perceber esse campo corretamente.

Em outras palavras, somos todos psicóticos em potencial, pois todos nós temos uma faculdade de atenção que não funciona como originalmente pretendido. Não se trata de mero subproduto da Queda, mas da essência mesma das criaturas caídas.

Ora, algumas pessoas, seja por causa de disfunções bioquímicas ou hereditárias, são mais propensas a estados psicóticos do que outras. Elas podem ouvir vozes ou ver e imaginar coisas, e essas fantasias se tornam mais reais do que os dados sensoriais imediatos. Na verdade, elas são propensas a aceitar e interpretar essas fantasias precisamente como se fossem dados sensoriais.

Mesmo que a imensa maioria das histórias de possessões demoníacas que encontramos na literatura da Igreja pudesse ser racionalmente explicada em termos de psicose, elas não seriam menos demoníacas em sua natureza. Pois a inabilidade em discernir fantasia de realidade é um dos muitos sinais de nosso cativeiro. O diabo não é apenas um sujeito malvado; e deveríamos nos lembrar sempre disso.

De todos os dons espirituais, o mais útil talvez seja o dom do discernimento de pensamentos. Discernir a realidade e a origem de nossos pensamentos – aquilo que os Padres chamam de logismoi – é um dos sinais mais evidentes de maturidade espiritual.

E não são apenas as pessoas malucas, aquelas que ouvem vozes ordenando-lhes a matar em nome de Deus, que sofrem de logismoi demoníaco. Todos nós sofremos, em diferentes graus. De repente, posso estar dirigindo sobre uma ponte ou viaduto e surgir um pensamento assim: “E se eu virasse o volante para a direita e caísse da ponte?” Ora, eu não tenho tendências suicidas e, portanto, não acho que tais pensamentos sejam produto de um desejo reprimido de me ferir. Um psicólogo poderia opinar que isso tem a ver com o fato de eu não gostar de altura, no que haveria um pouco de verdade. Mas a total irracionalidade do pensamento é que impressiona aqui.

Não consigo vislumbrar qualquer benefício evolucionário em tais pensamentos. Pelo contrário, logismoi não são produtos de seleção natural nem de desenvolvimento evolucionário: eles são produtos da Queda. Eles são a arma preferida do diabo. A verdadeira batalha contra as forças demoníacas encontra-se no âmbito noético. Na verdade, é uma batalha para restaurarmos nossa sanidade, para nos tornarmos a totalidade psico-somática para a qual fomos criados.

Os santos são aqueles que por meio da cooperação com a graça de Deus purificaram seu nous e aprenderam a enxergar si próprios e o mundo de maneira correta. Eles foram “salvos”, que no linguajar bíblico significa que se tornaram íntegros. Nós, cristãos ortodoxos, somos chamados a seguir seu caminho. Eles são o modelo do que a vida humana deveria ser. Ao mesmo tempo, eles nos revelam a real natureza das ilusões demoníacas.

Bem, admito: eu gosto de filmes de terror. Talvez seja por isso que eu não fique horrorizado com o Halloween. Eu gostei do Exorcista e do Omen original [no Brasil, A Profecia – N. do T.], e adoro um bom filme de vampiro. Porém, é absolutamente crucial que não deixemos nossa percepção da batalha espiritual ser contaminada pelas fantasias hollywoodianas, ou pelas correntes mais lúgubres e perigosas da piedade católica romana e pentecostal.

Não lutamos contra a carne e o sangue, diz o Apóstolo. Temos sempre que nos lembrar que nossa batalha espiritual é pelo nous, e nos aproveitar do método terapêutico dado a nós por Cristo em Sua Igreja. Temos de entender também que atingir a verdadeira cura é atingir a verdadeira sanidade.

E que nosso grande Deus e Salvador, Jesus Cristo, que destruiu o poder do diabo e esmagou a morte com a morte, pelas intercessões de Santo Inocêncio do Alaska e do Abençoado Ancião Sofrônio Sakharov, tenha piedade de todos nós e nos conceda uma entrada rica em Seu reino eterno.

Meu nome é Clark Carlton, falando para a Ancient Faith Radio.