28 de maio de 2024

Um breve resumo da obra-prima de Joseph Farrell


Eis um brevíssimo resumo apresentado pelo próprio Joseph Farrell de sua obra-prima God, History, and Dialectic.

(1) O objetivo principal do livro é explicar por que há uma divisão civilizacional entre Europa Ocidental e Europa Oriental. Essa divisão existe porque (a) há uma doutrina fundamentalmente distinta acerca de Deus entre essas "duas Europas", e (b) mais especificamente, há um entendimento distinto acerca da Trindade cristã.

(2) O Ocidente não conseguiu lidar com a pluralidade dentro da Trindade a não ser mediante uma "oposição dialética moral binária". O Ocidente não tolera uma multiplicidade de bens no Bem e, por conseguinte, reduz as categorias essenciais divinas a uma série de equivalências mútuas.

Quando todos os atributos divinos são forçosamente levados a se equivalerem por uma conclusão silogística (por exemplo, quando presciência e predestinação são considerados equivalentes), esses atributos (ou "categorias") não são considerados realmente distintos. Ou seja, a distinção não é "real", mas apenas "mental". Eis, claro, o nominalismo e, concomitantemente, o niilismo.

A única maneira que o Ocidente consegue sustentar a distinção entre as Três Pessoas é reduzi-las a uma oposição mútua. O Pai não é o Filho nem o Espírito etc.

A partir daí surge uma cultura filosófica que reduz as distinções a mútuas oposições. Por exemplo, predestinação vs. livre arbítrio, fé vs. obras, Bíblia vs. tradição etc.

A oposição se torna o método central para a resolução de problemas e conflitos.

O caso do bolshevismo/marxismo, derivado da lógica hegeliana tese-antítese-síntese, é um dos exemplos da reedição da resolução trinitária ocidental Pai vs. Filho vs. Espírito Santo.

Outro exemplo é o governo bizantino, exercido ao modo de symphonia, ou seja, ao modo de certa tensão constante entre o poder temporal (o imperador) e o poder espiritual (o patriarca). No Ocidente, este modelo foi "resolvido" concentrando todo o poder, temporal e espiritual, nas mãos do papa. Nota-se aí a intolerância para com a multiplicidade.

O caso mais importante deste desvirtuamento filosófico é Santo Agostinho. O que ele basicamente fez foi tomar os conceitos desenvolvidos pelos Padres gregos (p.ex. hypostasis), que, embora fizessem uso intenso de conceitos filosóficos, o faziam apenas para tomá-los como ponto de partida "coloquial" para seu desenvolvimento filosófico e teológico cristão (p.ex. hypostasis como pessoalidade, e não "substância"), e despojá-los de seu conteúdo cristão, lançando-os de volta a seus conteúdos filosóficos originalmente abstratos. Neste sentido, Santo Agostinho foi o "primeiro progressista".

Fonte: Kelly Em entrevista Joseph Farrell, A Pious Man Mistranslated a Word and Split Europe, YouTube, 2024.

14 de maio de 2024

Para a reforma do homem interior


Porque [o homem] vendo-se abandonado a si mesmo, assim que teve a experiencia do bem e do mal, sentiu sua pobreza; e este sentimento o levou a querer imitar, mas por uma imitação desregrada e plena de cegueira, a grandeza, a ciência e a beatitude divina que tinha experimentado, às quais estava unido por aquele estado admirável de glória, de luz e de felicidade. O homem torna-se escravo destas três paixões desordenadas, que lhe inspiram sem cessar um desejo ardente de reparar o prejuízo que lhe ocorreu e de recuperar a felicidade desprezada, buscando assim o consolo de sua infelicidade na sombra destes grandes bens, nos quais ele tinha uma verdadeira e perfeita alegria. [...] Certamente não há nenhuma outra espécie de tentação que não esteja incluída dentro da extensão do orgulho, da curiosidade ou dos prazeres sensuais.

[...]

Já que o espírito do homem, infelizmente, perdeu os sentimentos das delícias interiores, dissipou-se nas exteriores, esforçando-se para reter, ao menos pelos sentidos corporais, que são os mais baixos e mais grosseiros de suas potências, aquele prazer celeste que o abandonou, ou de recompensar a perda do prazer celeste com outros prazeres. [...] E assim este movimento desordenado forma nuvens em nosso espírito, não nos capacitando a julgar senão de modo incerto, já que é a necessidade que temos de nossos sentidos que nos conduz ou o encantamento enganador da volúpia que nos arrasta. A alma que é carnal se favorece nesta incerteza, a fim de que satisfaça a paixão pelo prazer somente sob a aparência especial da necessidade.

[...]

É a esta curiosidade sempre inquieta, que foi chamada por este nome devido ao vão desejo que ela tem de saber, que dissimulamos com o nome de ciência. [...] [A] volúpia carnal não tem por fim senão as coisas agradáveis, ao passo que a curiosidade encaminha-se na direção daquelas que não o são, comprazendo-se em procurar, experimentar e conhecer tudo aquilo que ignora. [...] Disto veio o circo, o anfiteatro e toda a vaidade das tragédias e comédias; disto veio a investigação dos segredos da natureza, que não nos dizem respeito de modo algum, que é inútil de conhecer e que os homens só os querem saber unicamente para sabê-los. Disto veio aquela execrável curiosidade da arte mágica, da qual provêm aqueles movimentos de tentar Deus dentro da religião cristã, com os quais o diabo inspira os homens, levando, mesmo as pessoas santas, a solicitar de Deus milagres somente pelo desejo de vê-los e não pela utilidade que deles deve nascer.

[...]

[O orgulho] acontece pelo fato de o homem comprazer-se em triunfar antes do tempo, com se a tivesse vencido plenamente, ao passo que não há nada que possa dissipar suas últimas sombras senão a luz do dia da eternidade. [...] A razão [do orgulho ser o último vício que a alma vence] é que há um desejo de independência gravado no fundo da alma e escondido nos recônditos mais ocultos da vontade, pelo qual ela se compraz de só existir para si e não estar submetida a nenhum outro, nem mesmo a Deus. [...] Sendo visível que [o homem] não desejou outra coisa ao pecar exceto não ser mais dominado por ninguém, já que a única proibição de Deus, que tinha a dominação sobre ele, devia impedi-lo de cometer o crime que cometeu. [...] E assim como os romanos quiseram libertar sua pátria, isto é, libertarem-se de si mesmos da dominação de seus primeiros reis e, em seguida, tornarem-se senhores de outros povos, não considerando ser nada tão vergonhoso quanto obedecer nem tão glorioso quanto comandar, do mesmo modo todos os homens em geral, tendo sacudido o jugo desta verdade e deta vontade onipotente, comprazem-se inicialmente de serem senhores de si mesmos e cada um deles deseja em seguida, se possível, ser o único senhor de todos. [...] É por isso também que Deus permite àqueles que se esforçam para servi-lo humildemente que não tenham sempre o poder de executar, fazer ou cumprir uma boa obra, porém, encontrando-se tanto na luz quanto nas trevas, no prazer ou no desgosto, no ardor ou no resfriamento, saibam que o conhecimento e a força que eles têm nas ações virtuosas não são um efeito de seu próprio poder, mas um dom da liberalidade de Deus, e que pela vicissitude perturbadora e pela calma do espírito eles se curem da doença da vã glória. [...]

[I]sso fez o Apóstolo dizer, com grande razão: Com dificuldade o justo será salvo. [...] O engano e o abatimento que lhes deixam as dificuldades que sentem no combate lhes servem para aspirar com mais ardor em direção à graça.

Fonte: Cornelius Jansenius, Discurso da reforma do homem interior, Editora Filocalia, São Paulo, Brasil, 2016.

13 de maio de 2024

Simpatia pelo diabo (ou, A metafísica do liberalismo)


Enquanto concepção moral e política, o liberalismo promete instaurar uma cosmovisão abrangente e apofática na qual não esteja pressuposta nenhuma metafísica. Daniel Scherer mostra que isso é falso. O liberalismo tem sim uma metafísica identificável mesmo que seus defensores jurem que não.

Como vimos em uma postagem anterior, Tomás de Aquino ensinava que o ser é o actus essendi (ato de ser) participado aos entes pelo Ato Puro, ou seja, o Ipsum Esse Subsistens (Próprio Ser Subsistente, isto é, Deus). Importante notar que o ser não é coisa ou ente, mas é ato. O ser, na verdade, é o que há de mais atual no ente. A essência dos entes é atuada por um ser que não lhes é essencial, ou seja, o ser não faz parte da essência dos entes. Por isso insistem os tomistas na famosa distinção real (e não apenas lógica/mental) entre ser e essência.

No entanto, se esta distinção for esquecida, isso significa que o ser “volta” a fazer parte da essência do ente. Em outras palavras, o ser do ente é atuado por ele mesmo, e a distinção entre ser e essência “volta” a ser meramente gnosiológica (lógica/mental). E mais: como o ser não é mais participado, é forçoso concluirmos que o ser é unívoco (e não mais análogo, como na analogia entis), o que deixa a noção de Ser no mínimo altamente comprometida. Se o ser dos entes é atribuído mentalmente, será igualmente forçoso concluir que o conhecimento dos entes se dará puramente pela atividade mental. A distinção dos entes, embora nominal, reduz-se a apenas e tão-somente mental. Realidade e razão tornam-se codependentes.

Despojar a realidade do ser e torná-lo algo meramente mental tem consequências muito mais profundas do que se poderia supor. Uma delas, e é a consequência que mais interessa ao liberalismo, é o fato de que não há um padrão axiológico (de valores) real. Em outras palavras, a “concepção de vida boa” perde seu contato com a realidade (pois o ser agora é unívoco, e portanto os entes adquirem uma “planicidade” radical entre si). Assim, quem agora estará no centro da personalidade humana não será mais a inteligência, mas a vontade. O bom e o mau, o comportamento adequado ou inadequado, não será mais contrastado pela inteligência com o mundo real nem assentado pela vontade mediante a prática das virtudes, mas será determinado pela vontade. A noesis passa a não mais orientar a praxis.

Em suma, sem a distinção entre ens per participationem e Ens per essentiam o pensamento escorregará cedo ou tarde para algum tipo de imanentismo. Pois note: as essências não comportam gradações entre si. Um cavalo não é “mais” ou “menos” equino, assim como um homem não é “mais” ou “menos” humano. Não faz sentido compararmos as essências de homem e cavalo. Mas faz sim todo o sentido compararmos homem e cavalo quanto ao ser: o homem tem mais ser que o cavalo, que por sua vez tem mais ser que a água que bebe, e assim por diante. A essência é aquilo que diferencia as espécies, enquanto o ser é aquilo que lhes confere comunidade (mesmo que em graus de perfeição variáveis). E não é somente isso: há a comunicação da essência às coisas naturais, que não pode ser empreendida pelas próprias coisas. Pois, nas palavras de Scherer:

O obrar das coisas naturais não se explica completamente sem o obrar divino. A essência das coisas naturais, comunicada por geração, não é causada por elas mesmas, exclusivamente, porque nenhuma delas é causa de sua própria essência, ou seja, nenhuma delas explica por que ela própria tem tal essência. Antes, as essências são causadas por Deus por meio das coisas criadas, atuando estas últimas como que instrumentalmente. E, depois, comunicadas universalmente, as formas específicas são ainda sustentadas ou conservadas por Deus no ser. Deus, portanto, também conserva a capacidade causal das coisas criadas. As coisas criadas são, então, causas segundas, cuja própria causalidade, real e verdadeira, depende, nada obstante, da Causa Primeira. [...] A ideia divina dos vários entes é a causa exemplar das coisas criadas, e também sua causa eficiente e final, porque a operação das coisas criadas é dirigida (finaliter) e conformada (efficienter) pela operação divina.

Alguns filósofos tentam minimizar o risco de imanentismo lançando mão da ideia da criação ex nihilo. Sim, a doutrina da criação do nada efetivamente distingue o Ser dos seres criados, mas não é capaz de evitar a planicidade do ser que citamos acima.

No final das contas, a relação ato-potência é invertida porque as essências criadas passam a ser “sumas atualidades” (não são causadas por nada) e Deus é rebaixado de Puro Ato a Pura Potência, ou até a “Não-Ser”, tornando o homem uma espécie de substituto de Deus. A realidade deixa de ser simbólica, ou seja, deixa de representar intrinsecamente a realidade, e passa a ser diabólica, ou seja, passa a imitar extrinsecamente a realidade. O símbolo como que contém o simbolizado em si mesmo (não é mera alegoria, portanto), enquanto o diabólico como que imita uma realidade fora de si mesmo. O diabólico depende da realidade que imita, mas ao mesmo tempo destrói as condições para obtê-la. Ele promete tudo, mas não entrega nada.

Vê-se, portanto, que é a vontade quem assume o papel de atualizar as essências das coisas. Literalmente, a vontade passa a produzir a atualidade, e não mais recebê-la. A bondade não está mais intrínseca ao objeto, mas agora é a própria vontade que escolhe a bondade do objeto. Mas é claro que a vontade não produz coisa nenhuma: ela tem a total liberdade de determinar o sentido da existência e do universo desde que, obviamente, esse sentido não resulte em absolutamente nada. Invente o sentido que quiser para sua vida, para o universo, para a existência: nenhuma mudança real será produzida na vida de ninguém, nem mesmo na sua. A "pegadinha" fica claríssima quando nos damos conta que não podemos determinar o sentido de um alfinete ou de uma migalha de pão, mas achamos que podemos determinar o sentido de tudo.

Está inclusa na metafísica imanentista a ideia do panenteísmo, ou seja, a ideia de que tudo está em Deus e Deus é mais do que tudo. Embora atraente, o panenteísmo (por mais difuso que seja o conceito) costuma incluir a ideia da centelha divina, da unidade do intelecto e que tais. Os entes não passam de modos, manifestações ou expressões da Realidade Única e Última. É evidente a relação entre panenteísmo e gnosticismo: a ideia de um conhecimento direto e autotransformador (de “alma” a “espírito”) da essência divina. Por outro lado, a tendência a divinizar a matéria, no sentido de atribuir-lhe toda a existência que há no mundo, redunda em panteísmo. Panteísmo ou gnosticismo, ambos são vertentes da mesma metafísica do imanentismo, do antropoteísmo.

Fonte: Daniel Scherer, A metafísica da revolução, Edições Santo Tomás, Formosa, Brasil, 2021.

6 de maio de 2024

Um ortodoxo tomista: São Genádio Escolário


Eis uma oportunidade para observarmos como é possível, dentro do âmbito ortodoxo, e de maneira inteligente e produtiva, fazer uso da teologia e da metafísica desenvolvidas por Tomás de Aquino para elucidar temas difíceis como o da providência divina. Foi o que fez São Genádio Escolário (+1473) ao acolher a distinção real entre esse e essentia descoberta por Tomás de Aquino, bem como a causalidade secundária de São João Damasceno e do próprio Tomás, no seio da tradição cristã ortodoxa. Deixo-os com a tradução de um capítulo de uma recente pesquisa de um scholar dedicado a São Genádio. O autor, a exemplo de Marcus Plested, não aceita a postura anti-intelectual da maioria dos teólogos ortodoxos do século XX, epitomizada pela afirmação de que “não há absolutamente nenhuma similaridade entre criado e Incriado”, segundo o Pe. John Romanides. Não apenas há similaridade (analogia entis), como tal similaridade é útil para a compreensão e desenvolvimento da fé cristã ortodoxa. Nem só de experiência monástica (purificação, iluminação e glorificação) vive a Igreja Ortodoxa.

* * *

Nos dois capítulos anteriores examinei as interações de Escolário com Pletão sobre a questão do destino e da providência. Examinei dois debates a fim de identificar as maneiras pelas quais Pletão desafiou Escolário a fornecer uma explicação ortodoxa e coerente para a providência divina e a liberdade humana. Vimos no decorrer dessas discussões que ambos os pensadores recorreram a Tomás de Aquino, embora nenhum deles admitisse a dívida, e que Escolário estava profundamente preocupado com o desafio de Pletão.

Tem sido afirmado que, após a morte de Pletão, Escolário não estava mais preocupado com o relato do destino de Pletão, ou que a melhor maneira de lidar com este desafio pletônico era por uma espécie de damnatio memoriae, mais claramente exemplificada em sua queima do livro de Pletão (Leis). Ou seja, presume-se que Escolário não tenha dado uma resposta ao desafio de Pletão. Embora seja verdade que após a morte de Pletão em 1454, Escolário não escreveu uma resposta Contra Plethonem sobre a questão do destino, os cinco tratados sobre a providência são certamente, pelo menos indiretamente, uma resposta a Pletão. A maturidade e profundidade do pensamento de Escolário sobre a questão da providência e da ação humana devem-se certamente ao desafio que Pletão lançou e às várias respostas incompletas que Escolário deu na década de 1440 e no início da década de 1450.

A confusão do período após 1453 tornou-se recente e vividamente mais acessível com algumas traduções e estudos importantes de Laonikos Chalkokondyles, um historiador profundamente influenciado por Pletão. Foi no meio dessa confusão, na qual Mehmed II rapidamente capturou as porções restantes do Império Romano e fez conquistas impressionantes nos Bálcãs, que Escolário continuou a pensar na questão da providência e trocou correspondência sobre o assunto. Pouco depois da primavera de 1455, Mateus Kamariotes trouxe consigo sua cópia, talvez incompleta, de seu Contra Plethonem quando retornou a Constantinopla, e Escolário instalou seu ex-aluno no que restava da academia patriarcal. Por causa de sua discussão sobre a causalidade secundária e sua estreita associação com Escolário nesta época, é razoável postular que Escolário encorajou Kamariotes a terminar seu trabalho contra o ensinamento de Pletão sobre o destino. O fato de o próprio Escolário ter escrito um artigo “contra os ateus ou aqueles que acreditam que tudo acontece por acaso, bem como contra os politeístas” algum tempo depois de 1456, expõe a preocupação contínua de Escolário com Pletão e seus seguidores. Nesta obra, Escolário ocupa-se em explicar como Deus guia o mundo. Este trabalho filosófico-apologético estabelece as bases para sua obra-prima teológica sobre a providência, que ele começará dentro de um ano.

Em algum momento entre setembro de 1458 e agosto de 1459, Escolário compôs um tratado sobre a providência que era uma obra independente, mas mais tarde foi expandido e esclarecido por mais quatro tratados. Ele chamou o tratado de Περὶ θείας προνοίας καὶ προορισμοῦ: σπουδαῖον (Sobre a providência divina e a predeterminação: um trabalho sério) e distribuiu o tratado entre seus amigos. Este tratado contém toda a teologia da providência de Escolário e é o assunto deste capítulo.

Como este texto nunca foi traduzido, parece apropriado resumir os seus principais argumentos teológicos, bem como avaliá-lo. Ao longo do caminho menciono fontes ou influências sobre Escolário em pontos específicos. O apparatus fontium na edição crítica é mínimo, limitado à maioria das citações bíblicas diretas e apenas a algumas das outras citações diretas. Há muito que se deseja que estas fontes sejam identificadas. Tentarei, portanto, identificar as principais fontes, bem como discutir, brevemente, o uso que Escolário faz delas. Também identificarei passagens bíblicas fora do padrão. O editor do texto, Martin Jugie, não conseguiu encontrar algumas das passagens bíblicas porque não correspondem a nenhum texto grego conhecido do Antigo ou do Novo Testamento. Muitas dessas passagens gregas não podem ser encontradas porque são traduções da Vulgata Latina para o grego. Especificamente, provêm de textos de Tomás de Aquino, conforme indicado a seguir.

Jugie dividiu o texto de Escolário em vinte e quatro parágrafos. Em minha análise e recapitulação, porém, agrupo esses parágrafos em seis momentos do texto. O primeiro parágrafo de Jugie, seção A (OC, 1:390.1–391.22), apresenta o texto. Na seção B (= Jugie pars. 2–4 = OC, 1:391.23–393.28) Escolário fornece o fulcro metafísico para o resto do tratado. Nesta seção fortemente tomista, Escolário fornece um relato básico do relacionamento de Deus com a criação, do qual depende o restante do tratado. Na seção C (= Jugie pars. 5–8 = OC, 1:393.29–396.4) Escolário dá um relato básico de como Deus conhece e guia vários tipos de criação (criação corpórea não inteligente, seres humanos e anjos). Na seção D (= Jugie pars. 9–17 = OC, 1:396.4–404.29) ele fornece sua teologia completa de como Deus guia os seres humanos e como ele os conhece de antemão e suas ações. Na seção E (= Jugie pars. 18–20 = OC, 1:404.30–408.9) ele fornece uma rica ilustração da teologia da ação humana, cuja tradução apresento abaixo. Na seção F (= Jugie parágrafo 21 = OC, 1:408.10–36), seguindo Tomás de Aquino e João Damasceno, Escolário esclarece o que ele entende da palavra προορίζειν (predeterminar/predestinar). Na seção final, G (= Jugie pars. 22–24 = OC, 408,37–412,18), Escolário examina a questão da oração e da providência, concluindo com o exemplo de Ezequias de 2 Reis.

SEÇÃO A, INTRODUÇÃO: SINOPSE

Escolário inicia o primeiro tratado reconhecendo que, embora seu relato da providência possa de fato ser identificado com o destino, εἱμαρμένη (no sentido de que tudo é predeterminado), ele rejeita o termo porque a forma como geralmente é tomado é como foi usado pelos estoicos.

Tendo estabelecido como objetivo deste tratado o conhecimento tanto dos seres que existem desde a eternidade como das coisas em formação, bem como [seu] arranjo pelo criador de todas as coisas, primeiro rejeitamos o termo destino. Embora seja possível nomear a presciência divina desta forma, não apenas porque a providência existe apenas em Deus antes da existência das coisas que são pré-conhecidas, mas também porque, na medida em que [a providência divina] é sempre aplicada às próprias realidades substanciais, ela os assimila nos logoi eternos que estão em Deus de acordo com sua existência e ordem, no entanto, rejeitamos a palavra destino porque os estoicos não entenderam originalmente o significado deste termo desta forma, mas em vez disso o usaram de uma forma muito descuidada. Em vez disso, os termos providência e predeterminação, que pertencem à escola santa e infalível, são suficientes para nós.

SEÇÃO A, INTRODUÇÃO: ANÁLISE

É surpreendente que Escolário diga que εἱμαρμένη (destino) é uma palavra precisa, embora muitas vezes mal utilizada, para descrever a providência divina. Escolário aqui demonstra uma precisão de pensamento porque quando este termo é mencionado na tradição ὅρος τῆς ζωῆς (período de vida predeterminado), é rejeitado simplesmente por ser pagão e, portanto, não ser realmente verdadeiro, como em Teofilato Simocattes. Escolário, no entanto, quer manter a verdade básica do termo destino, pois ele, junto com a maioria dos pensadores filosoficamente rigorosos na ὅρος τῆς ζωῆς, acredita e argumenta não apenas que a hora da morte é predeterminada, mas também - indo além de seus antepassados teológicos - que todos os contingentes futuros são determinados, mas sem imposição.  Escolário pode muito bem estar derivando sua afirmação de que a palavra destino é essencialmente uma descrição precisa da providência de Deus do corpus ST I.116.1 de Tomás de Aquino, que ele mais tarde cita literalmente em seu ΕΚ ΤΟΥ θΕΟΛΟΓΙΚΟΥ (Resumo da Summa Theologiae) (pós-1464): “Então, podemos postular o destino na medida em que todas as coisas que ocorrem aqui abaixo estão sujeitas à providência divina, no sentido de que são pré-ordenadas e, digamos, faladas de antemão pela providência”. No entanto, Escolário fornece esta afirmação, aparentemente derivada de Tomás de Aquino, com uma explicação muito grega: o destino é verdadeiro quando entendido em termos teológicos gregos tradicionais, derivados de Máximo Confessor, da relação dos logoi eternos em Deus com as realidades substanciais. Ou seja, a providência divina orienta as criaturas que realmente existem (realidades substanciais) segundo os planos que Deus tem. A afirmação de Escolário é de fato nova na tradição teológica grega: não tenho conhecimento de outros teólogos gregos que diriam que o destino (εἱμαρμένη) é de fato verdadeiro, mas foi simplesmente mal utilizado pelos estoicos. O termo foi quase sempre considerado incompatível com a crença cristã. É por isso que o argumento de Pletão a favor de εἱμαρμένη foi considerado escandaloso.

Escolário conclui sua introdução mencionando aqueles que acreditam que tudo existe e acontece por acaso (ὡς ἔτυχεν εἶναί τε πάντα καὶ γίνεσθαι), mas diz que não abordará essas preocupações porque exigiria muito trabalho. Aqui ele parece ter em mente os tipos de preocupações que discuti no capítulo 2, que receberam pouca atenção acadêmica. Em vez disso, Escolário propõe “uma explicação fundamental” sobre a providência, para que os seus leitores possam evitar opiniões ímpias sobre esta questão séria. Ele conclui a sua introdução com duas sugestões sobre o seu método. A primeira é que se concentrará na analogia, e vemos aqui uma sugestão do trabalho sobre a analogia do ser que Escolário fez em sua disputa com Pletão. A segunda é que esta explicação da providência não dependerá diretamente de outras autoridades além da Escritura. Em vez disso, Escolário afirma que é o seu próprio pensamento sobre a questão, juntamente com a colaboração de Deus. É importante notar, contudo, que ele certamente envolve outros teólogos, tanto contemporâneos como da tradição teológica grega anterior, sem nomeá-los.

SEÇÃO B, DEUS E O MUNDO: SINOPSE E ANÁLISE

Na seção B, Escolário fornece uma breve descrição metafísica da ação de Deus no mundo. Toda a realidade da criatura não é, num sentido real, auto-subsistente, mas existe através da participação em Deus. Esta seção é um momento altamente tomista. No parágrafo 2 ele alude à analogia do ser quando explica que “só ele [Deus] existe propriamente” (αὐτὸς μόνος κυρίως ὤν) e que "ele criou as coisas que são chamadas de seres" (ποιεῖ μὲν τὰ ὄντα λεγόμενα). Aqui ele quer mostrar o abismo de Máximo Confessor entre o ser criado e o não-criado, enquanto, com Tomás de Aquino e Dionísio, ele quer mostrar alguma semelhança ou analogia. Uma analogia que Escolário identifica aqui entre os seres criados e Deus é que Deus deu a alguns seres a capacidade de se tornarem eles próprios causas de outros seres: “e desta forma um certo traço divino é estabelecido neles, distinguindo-os de outras criaturas. Assim , no que diz respeito às coisas que são geradas e corrompidas, ele não trabalha sem intermediários para a sua geração ou para a sustentação e orientação do seu ser, mas antes considera mais sensato fazer essas coisas através da ajuda de outros seres.” Na verdade, Escolário argumenta que Deus é a causa primeira, e algumas criaturas têm o potencial de serem causas secundárias, uma lição que ele aprendeu com sua leitura profunda do comentário de Tomás de Aquino sobre a Metafísica, discutido nos capítulos 4 e 5 acima. “Pois [a causa primeira] é aquela que engendra os poderes das causas superiores e a geração da [causa] próxima e final, que traz à existência mediante a própria geração, e sem este poder [da causa primeira = Deus] nada ocorre por nenhuma [das outras causas]. E assim o criador das coisas supremas é Deus de uma forma imediata, e nada menos que Deus, embora os seres inferiores sejam guiados por outras causas”.

Vemos aqui, pelo menos in nuce, uma teologia do concursus ou συντρέχειν (“correr lado a lado”), que será posteriormente desenvolvida no parágrafo 16. Está intimamente relacionada com a teologia da causalidade primária e secundária de Escolário: na verdade, é outra forma de descrever a mesma realidade. Nesta linha de pensamento, especialmente desenvolvida pelos escolásticos latinos, cujas obras Escolário quase certamente conhecia, a ação de Deus é entendida como trabalhando paralelamente a cada ação da criatura. A principal dificuldade para os leitores contemporâneos desta filosofia é que esta discussão da causalidade eficiente não é um jogo de soma zero. Isto é, o pensamento moderno, muito influenciado pelo sucesso impressionante da análise científica da causalidade eficiente no mundo natural, geralmente imagina a ação de Deus no cosmos como uma intervenção num mundo que de outra forma seria independente. Por outras palavras, para a imaginação pós-revolução científica, a ação de Deus só pode ser concebida como em competição com as ações criadas. Isto, contudo, é inconcebível para os monoteístas pré-modernos. Considere, por exemplo, o Salmo 139:7-12:

Para onde me irei do teu espírito, ou para onde fugirei da tua face? Se subir ao céu, lá tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que tu ali estás também. Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, até ali a tua mão me guiará e a tua destra me susterá. Se disser: Decerto que as trevas me encobrirão; então a noite será luz à roda de mim. Nem ainda as trevas me encobrem de ti; mas a noite resplandece como o dia; as trevas e a luz são para ti a mesma coisa.

Tomás de Aquino desenvolve uma explicação particular para a compreensão desta ação divina e criatural, muito relacionada à analogia do ser e da causalidade primária e secundária descrita nos capítulos 4 e 5 acima. Escolário e Tomás de Aquino argumentam que Deus atua em cada ação criatural, mas que a ação de certa forma “corre lado a lado” e sustenta a ação da criatura. Novamente, para ser claro, esta não é apenas uma questão de Deus sustentar cada criatura existente (conservação divina), mas antes de sua operação em cada ato. Embora, antes de Escolário, esta fosse uma preocupação escolástica particularmente latina, não deixa de ter ressonância na tradição teológica bizantina, especialmente entre, mais uma vez, os teólogos de pensamento mais rigoroso, como argumentaram Beck e Pharantos. Pharantos, por exemplo, cita a Fócio, um teólogo muito filosófico, em seu Amphilochia. Como veremos em nossa conclusão, através de Escolário este se torna um tema de grande interesse na teologia dogmática ortodoxa desde o século XV até meados do século XX.

No parágrafo 3, Escolário elabora como funciona essa συντρέχειν (concorrência). Ele esboça um universo dionisíaco de hierarquia e participação no qual Deus fornece continuamente o poder para que causas criadas inferiores também sejam causas. Escolário, como Tomás de Aquino, enfatiza em sua teologia da providência que Deus não produziu essas causas superiores de forma natural (τῷ πεφυκέναι), o que implicaria necessidade, mas como uma escolha consciente (τῷ βούλεσθαι).

No parágrafo seguinte, Escolário esclarece o que entende por causalidade instrumental ou secundária. Aqui ele tenta introduzir um uso escolástico latino, desenvolvido a partir de Aristóteles por Proclo de uma maneira ligeiramente diferente, de volta à tradição intelectual grega, onde havia sido silenciado, se é que esteve presente. Observe que Escolário teve que prefaciar este ensino da causalidade secundária com a afirmação metafísica (bastante tomista) de que Deus é o único ser que existe propriamente falando, e ele conclui dizendo que somente Deus é uma causa criadora, propriamente falando (392.22). Ambas as afirmações podem ser encontradas na Summa contra gentiles, de Tomás de Aquino.

Ora, embora Tomás de Aquino tenha de argumentar contra a filosofia islâmica do ocasionalismo em al-Ghazali (século XII) e incipiente nas escolas franciscanas (durante a vida de Tomás de Aquino) de que as causas secundárias ou instrumentais são efetivamente causas reais, Escolário aqui parece colocar a ênfase em outro aspecto. Isto é, Escolário teve de lutar contra a tendência geral nas teologias gregas da providência, especialmente na literatura pastoral ou ascética, em argumentar que, de fato, Deus está envolvido em todas as ações. As ações ou o papel real das criaturas nas ações não são realmente questionados em Bizâncio como são em algumas interpretações islâmicas de Aristóteles, que à época influenciavam a teologia escolástica latina. Isto será verdade no que diz respeito à tendência geral da tradição teológica grega da providência de Deus e do governo do mundo: é um cenário bem diferente daquele da teologia latina.

Escolário argumenta que não é o caso que, ao criar outra criatura, uma causa criada seja, num sentido real, o poder criativo do efeito criado, mas sim que a causa criada atue como uma causa instrumental. Ou seja, quando considerada da perspectiva divina, a criatura atua como um instrumento da agência divina. Entretanto, quando considerada da perspectiva da criatura, a ação da criatura é uma causa secundária do efeito. Deus, o criador (demiurgo), é a causa de toda a criação, e ele cria diretamente e, ao mesmo tempo, cria através de instrumentos: “No entanto, Deus tem o poder e realmente faz cada coisa sem um instrumento. No entanto, paradoxalmente, também acontece que ele faz essas mesmas coisas através de instrumentos, e ele faz isso por causa da abundância de sua sabedoria e bondade, e isso pode ser visto no caso das criaturas.” Isto é, as causas criadas de outras criaturas atuam como instrumentos de Deus para criar novas criaturas. Escolário parece querer dizer aqui que Deus está envolvido no nascimento de um animal, mesmo que, obviamente, os pais masculinos e femininos também estejam envolvidos, mas o seu envolvimento é, segundo a metafísica de Escolário, instrumental. Os pais dos descendentes não são a causa dos seus descendentes num sentido fundamental ou primário.

Portanto, é aceitável falar tanto dos pais (ou das causas criadas) quanto de Deus como causas criativas, mas, propriamente falando, Deus é a causa primeira e os outros seres são causas secundárias. Isto é, continua Escolário, temos que considerar Deus de uma maneira diferente quando falamos da operação, do poder e da natureza de Deus, ao passo que todos os outros seres podem ser entendidos em termos da mesma ordem e série. Por estas razões, Deus é o fim de todas as coisas, bem como o bem de todas as coisas (393.27–28). O paralelo com o ensinamento de Tomás de Aquino sobre a causalidade secundária, fundado na analogia do ser, é óbvio.

SEÇÃO C, ORIENTAÇÃO DE DEUS PARA A CRIAÇÃO: SINOPSE E ANÁLISE

Tendo apresentado seu tratado e fornecido a estrutura metafísica nas seções A e B, na seção C (parágrafos 5–8) Escolário fornece o esboço da situação especial dos seres humanos em comparação com o resto da criação. Os seres humanos diferem da criação não racional porque os seres humanos, enquanto estão na terra com outras criações, são criados para um fim eterno. Ao mesmo tempo, enquanto estão nesta vida, os seres humanos diferem dos anjos e dos demônios porque ainda não atingiram o seu fim. Deus conhece de antemão as criaturas de acordo com sua natureza, e esse conhecimento prévio é da mesma ordem que a criação dessas criaturas do nada (393.29-30). Deus deseja o bem para cada natureza, e este é o fim de cada criatura. Há uma ordem (τάξις; 393,33) para tudo isso. Há um cursus/δρομή da atividade de Deus em toda a criação, incluindo os seres humanos, que está relacionado à sua participação (μετέχειν ; 394,7) em Deus. Na verdade, Deus ordena diretamente cada ser humano (394.8) e usa outras criaturas não racionais para o bem dos seres humanos racionais, guiando-os em direção à perfeição.

No parágrafo seguinte, Escolário explica que os seres humanos são, em certo sentido, mortais e, em outro, imortais, e usa duas passagens bíblicas para indicar que esta é uma crença cristã básica. Como outros animais, os seres humanos vêm da semente de seu pai, mas Deus cria imediatamente cada alma em cada corpo, assim como criou os anjos – cada um deles imediatamente. Escolário enfatiza que esta é uma espécie de criação de uma alma não sobrecarregada pelo corpo e que é por esta razão que a alma humana pode elevar-se imediatamente a Deus após a morte. Além disso, foi assim que Deus quis, livre de necessidade, criar a humanidade. Escolário conclui: “Pois o fim do ser humano é uma participação no bem final; isto é, é o conhecimento imediato de Deus segundo a sua forma. Pois ele é a primeira verdade e o bem final”. Embora à primeira vista pareça muito tomista falar da visão de Deus como sendo imediata e de acordo com a forma, como de fato é, também é bíblica. Baseia-se na teologia tomista mais profunda da participação discutida no capítulo anterior. Na verdade, esta linguagem de ver Deus de acordo com a forma pode ser um compromisso, uma maneira de tornar a teologia de Tomás de Aquino receptiva à teologia palamita, segundo a qual os bem-aventurados veem Deus em suas energias e não em sua essência ou substância. Pois Tomás de Aquino realmente diz que os seres humanos veem Deus de acordo com a substância em ST I-II.3.8.57. Escolário evita aqui a linguagem da substância.

No início do sétimo parágrafo, Escolário apresenta sua teologia da providência humana in nuce, que ele desenvolverá no restante do primeiro tratado. A presciência de Deus sobre as criaturas irracionais não é eterna, mas é eterna em relação aos seres humanos. Provavelmente, isso ocorre porque os seres humanos têm um fim eterno, ou pelo menos é assim que acontece no pensamento de Tomás de Aquino. Após esta afirmação, Escolário entra numa discussão sobre a salvação que se baseia profundamente na tradição ascética grega e na teologia de Máximo Confessor discutida no capítulo 3. Assim, ele argumenta que os seres humanos são desviados do seu fim por serem demasiado apegados ao corpo (imagens, percepções e desejos), o que por sua vez afeta o logos da humanidade. Mas embora caiba ao indivíduo escolher o bem, ele precisa de Deus para ser libertado desses apuros. Esta separação da condenação e tornar-se digno do seu fim adequado ocorre de acordo com a presciência de Deus.

Tendo distinguido a providência de Deus para os seres humanos da providência para outras criaturas no parágrafo 7, no parágrafo 8 Escolário descreve brevemente a providência de Deus para substâncias separadas, ou anjos. A providência de Deus para eles é mais simples do que para os seres humanos porque os anjos já estão no seu fim (seja o seu fim próprio, o desfrute de Deus, ou uma espécie de inferno para substâncias separadas como demônios). Isto é, Deus não os está guiando ativamente em direção ao seu telos. Aqui Escolário segue o ensinamento de Tomás de Aquino de que os anjos são individuados por sua espécie.

SEÇÃO D, GUIAMENTO E PRESCIÊNCIA DIVINA: SINOPSE E ANÁLISE

Escolário conclui a seção C dizendo: “Devemos investigar seu cuidado pelos humanos separadamente e isso apenas como um esboço” da verdadeira providência e cuidado de Deus pelos seres humanos. Na seção D (pars. 9–17), Escolário fornece uma teologia mais completa da presciência de Deus e orientação dos seres humanos. “Agora, como já foi dito, Deus está extremamente desejoso em adquirir conhecimento prévio da alma humana, para que essa alma humana em particular possa escolher uma vida aqui abaixo que seja mais apropriada e proveitosa. Assim, por exemplo, a alma humana é capaz de viver de acordo com a razão e a lei e [ser direcionada] para o fim que foi estabelecido para ela e para cujo fim essa alma surgiu em primeiro lugar.” Observe aqui que Escolário fala de almas humanas em vez de seres humanos compostos. Isto não é tomista, pois Tomás de Aquino fala da combinação corpo-alma como homo (ser humano). A alma por si só não é o ser humano de acordo com Tomás de Aquino, mas apenas o corpo-alma. Isto pode evidenciar a influência da tradição ascética grega.

Escolário continua dizendo que Deus conhece de antemão toda a natureza desde a eternidade e a guia. Alguns, porém, não são dignos do fim estabelecido pela natureza (397.13). A natureza, para Escolário, deve ser entendida muito mais dentro da tradição patrística grega de uma natureza redimida, do que na construção escolástica latina tardia de natura pura, teórica e a-historicamente separada da graça. Outra ideia patrística grega é evidenciada no uso da palavra “digno” (ἄξιος) por Escolário. Vemos isso repetidas vezes ao longo dos cinco tratados sobre a providência. Isto é bastante diferente da herança latina medieval da ênfase agostiniana paulina na justificação de Deus. Escolário, juntamente com Máximo e grande parte da tradição patrística grega, enfatiza a dignidade de receber a graça ou a cooperação de Deus.

Na verdade, é claro que Escolário opera dentro de uma chave teológica grega quando começa a falar de theosis, argumentando que a vontade e a razão tornam a vida de um ser humano semelhante à vida divina e que, portanto, não seria bom forçar os seres humanos em direção ao bem. Tudo isto, incluindo a escolha do mal, está dentro do alcance divino. Escolário ilustra isto com um exemplo, emprestado de Tomás de Aquino, de uma flecha que é alterada num aspecto significativo. Para Escolário a flecha não só é guiada (por Deus), mas também se guia a si mesma.

Agora, se uma flecha tem a trajetória correta quando é lançada, da mesma forma ela chegará voluntariamente ao alvo ou aonde quer que seja levada a acertar. Aquele que faz tal coisa o realiza como alguém que escolheu e tem capacidade, e tal pessoa é o criador e arqueiro, e sua boa providência é transparente por ter colocado o alvo e por residir no poder da flecha. [397.29] E assim a boa providência envia de bom grado a flecha em direção ao alvo, e gentilmente ajuda a empurrar a flecha adiante se a flecha também estiver disposta a se dirigir sozinha, e se daí for desviada do caminho e não obedecer a aquele que a mandou bem e a está ajudando a empurrá-la e até abrindo-lhe caminho, então ela não atinge seu objetivo; em vez disso, aquela flecha é pisoteada. E, no entanto, tudo isso não é uma espécie de fraqueza da presciência a respeito da flecha, nem de má vontade em relação à flecha.

. . . pois, como disse acima, o ser humano não pode ser forçado a aceitar o bem. Embora o homem seja orientado para isso, ele não é obrigado a aceitar esse bem. Assim, um duplo fim foi preparado para o homem. . . . E é assim que uma pessoa é preparada para as duas terras e modos de vida de acordo com a natureza e é designada para uma das duas pelas ações de sua vida que estavam de acordo com a natureza.

Obviamente uma flecha não se dirige a si mesma, e esta imagem tomista de Escolário é inadequada. Aqui temos um momento em que as duas tradições simplesmente não se alinham. A questão teológica, porém, é clara: Deus conhece de antemão ambos os fins, o céu e o inferno, e não apenas os fins, mas também como e o que suprir a alma no caminho. Escolário acrescenta uma ênfase, porém: o ser humano deve cooperar com Deus para atingir o seu fim.

No parágrafo seguinte, Escolário deixa transparecer a influência da cosmologia e da física de Aristóteles, bem como, possivelmente, dos comentários de Tomás de Aquino. Há também aqui uma influência direta ou indireta de Dionísio. Deus guia a humanidade através de outros seres. O telos da humanidade foi determinado: “O telos dos seres humanos e as coisas que levam a ele foram determinados. Se este não fosse o caso, então não haveria presciência em relação aos seres humanos.” Πρόνοια (presciência), para Escolário, então, requer προορισμός (predeterminação ou predefinição): isto está implícito no sentido básico do conhecimento em Aristóteles. Se um fenômeno não for circunscrito ou definido, ele não pode ser conhecido. Embora em desacordo com a concepção de Anastácio da providência divina, a teologia da providência de Escolário está muito alinhada com a compreensão de Orígenes da presciência de Deus em seu comentário sobre Romanos 8:30, que discuti no capítulo 3. Como veremos, no entanto, Escolário vai além de Orígenes ao afirmar que Deus realmente causa eventos futuros, mas, concordando tacitamente com a leitura de Tomás de Aquino de uma importante passagem de João Damasceno discutida anteriormente, Escolário interpreta a preocupação da tradição teológica grega patrística sobre a predeterminação divina de contingentes futuros como sendo mais uma preocupação sobre Deus forçando uma ação em vez de causá-la. Novamente, a solução para Escolário é a causalidade secundária.

Observe como isso é diferente do sentido latino-paulino de προορίζω traduzido como praedestinare na Vulgata em Romanos 8:29 e recebido como tal pela tradição escolástica latina. Embora Paulo possa muito bem ter significado προορίζω como “predestinar” com a valência de “força”, a valência da palavra grega também permite, e talvez mais fundamentalmente seja, “predeterminar”. É esta outra opção hermenêutica, aberta aos leitores gregos, mas fechada pela tradução latina praedestinare, que a tradição teológica grega, e com ela Escolário, irão prosseguir. Este é o germe da diferença fundamental entre Escolário e Tomás de Aquino, e certamente entre Escolário e o resto da tradição teológica latina. No parágrafo 11, Escolário explica que existem dois fins (πέρατα) para os seres humanos. Um fim, o pretendido pela natureza, é o conhecimento de Deus e a vida eterna, e o outro é errar o alvo, e isso também é determinado para aqueles que vivem contrariamente à natureza. “E assim, portanto, aqueles que são salvos para a vida eterna são determinados desta forma através da boa premeditação da vontade divina, e por essa razão dizemos que aqueles que são dignos dessa salvação são ao mesmo tempo mais adequadamente determinados e são determinados, enquanto aqueles que são castigados não são adequadamente [400.10] determinados para a justiça eterna, mas sim, são rejeitados da vida que foi estabelecida pelo Pai para os seres humanos”.

Tendo explicado no parágrafo anterior, ainda que brevemente, como os fins são predeterminados, no parágrafo 12 Escolário prossegue argumentando que não apenas os fins, mas também os meios utilizados para atingir os fins são predeterminados. Isto é significativo e mais uma vez revela quão “grega” é a teologia de Escolário (ou quão profundamente enraizada ela está na tradição ascética macariana, que influenciou Máximo Confessor e todos os teólogos gregos posteriores). Esta não é uma doutrina de pré-eleição: a graça é dada a todos, e o que decide a questão é como essa graça é cultivada. Ao mesmo tempo, Escolário insiste, contrariamente a Anastácio e Marcos de Éfeso, que tudo está predeterminado.

O parágrafo 13 é tão significativo que cito minha tradução na íntegra.

13. Mas se quisermos falar verdadeiramente, o vício nem é somente a privação da virtude, nem há uma determinação no caminho do vício, mas antes é algo totalmente indeterminado. E assim, se alguma coisa for determinada entre estes seres maus, essa determinação está em oposição ao bem e por conta do bem. Ora, as boas ações e os hábitos acompanham-se pela determinação de forma bem ordenada, e suas privações também se sucedem. A vida também não está verdadeiramente presente naqueles que moldam a sua própria vida de acordo com estas privações, mas antes é como se fosse uma paródia da vida verdadeira. E é assim que o sofrimento que vem depois é pior do que qualquer morte. É racional e apropriado que não alcancem o princípio, porque lhes foi possível aprender antes de chegarem a ele, e assim, tal como escolheram, assim acontecerá. E assim é comumente aceito que a raça humana, tendo esses caminhos sido preparados e vindo de Deus, alcança o bem. Agora, é uma grande preocupação para os pais e para os governantes dos povos como os seus filhos ou os cidadãos vivem de forma adequada à herança que esperam receber dos seus pais. Desta forma, aqueles que obedecem determinam isso por si próprios. Por outro lado, eles aprenderam sozinhos e fizeram essas coisas, e assim buscaram essa vida para si mesmos e então se tornaram dignos dessa vida. É muito mais necessário que Deus determine a felicidade e as coisas que levam a ela para seus filhos, a fim de que, vendo-a, eles possam persegui-la.

Isto certamente pareceria estar em tensão com Agostinho. Observe que o conceito latino de eleição (desenvolvido a partir de São Paulo) não ocupa um lugar significativo na teologia de Escolário. Em vez disso, o relato de Escolário é um desenvolvimento da explicação de Tomás de Aquino, em ST I-II.79.1, de como Deus não é a causa do pecado, direta ou indiretamente. No entanto, porque a privação do bem (= mal) é a negação em um sujeito, e Deus conhece e determina tudo o que é e que é bom, ele conhece e determina o mal negativamente. Isto ocorre porque, em primeiro lugar, Deus, cuja existência é qualitativamente diferente da nossa, existe fora do tempo e, portanto, não existe presciência sensu stricto em Deus. Em vez disso, Deus conhece tudo o que existe no presente. Em segundo lugar, o problema do seu conhecimento do pecado é explicado pela afirmação de que ele sabe de um modo negativo. Assim, por exemplo, se eu escolher livremente pecar amanhã, Deus pode saber que vou pecar amanhã. Ele sabe disso com certeza, mas não me obriga a pecar; isto é, minha ação permanece livre porque Deus conhece o pecado não em si, mas apenas negativamente, porque o conhecimento, tanto na teologia grega quanto na latina, envolve participação: Deus não pode participar do pecado e, portanto, não pode conhecê-lo, mas conhecendo a si mesmo, Deus sabe tudo, porque tudo existe através da participação no ser de Deus. Ou, noutro sentido, tudo o que existe é bom, e o pecado é uma falta de existência, por isso não pode ser conhecido adequadamente. Imagine buracos de vermes em uma maçã. Tudo ao redor desses espaços vazios, ou seja, a polpa da maçã, é bom e conhecido. A falta ou privação da polpa da maçã existe dentro da maçã. O buraco em si não é conhecido porque é um espaço vazio. Mas a própria forma desse buraco, os seus contornos e desvios, podem ser conhecidos. Na verdade, tudo sobre o buraco pode ser conhecido conhecendo a polpa da maçã. Ora, como o mal é uma privação do ser, o ser que fica (e ficará) com buracos ou lacunas é plenamente conhecido – determinado e predeterminado – por Deus. Neste conhecimento e predeterminação do bem, Deus também conhece o mal, ainda que negativamente.

Escolário esclarece esse relato bastante denso e metafísico no parágrafo seguinte, fornecendo vários exemplos de como Deus nos ajuda em nosso caminho para o fim que é a vida eterna. Estas ilustrações da presciência de Deus são essenciais para comunicar como esta teologia funciona na vida real. A vida cristã é uma dinâmica de esforço humano e intervenção divina, caracterizada como ἐπιμέλεια (preocupação amorosa) de Deus. Há um elemento importante de dignidade aqui, como em outras partes deste tratado, como, por exemplo, na questão de como Deus ouve a oração: “E é assim que eles são predeterminados: alguns que oram são considerados dignos, enquanto outros são recusados”.

Então, voltando para expandir e elaborar sua teologia do fim da humanidade, especialmente a partir do parágrafo 11, no parágrafo 15 Escolário declara que Deus de fato sabe eternamente se uma pessoa está predeterminada para a vida ou para a rejeição (ἀποδοκιμασία), mas que isso não é conhecido por nós. Deus não apenas sabe disso, mas também organiza essas coisas: “E não é apenas que ele sabe as coisas como elas acontecem ou como terminam ou não terminam, mas também ele organiza as coisas de tal maneira que elas terminem [de sua maneira predeterminada]. E não só isso! Ele também cumpre a ordem deles, e faz isso por si mesmo, de maneira imediata, bem como por meio de instrumentos, como foi explicado acima.” Deus age através de todo o cosmos visível para o bem da humanidade, pois todo o cosmos visível vale menos do que um único ser humano, porque o fim da humanidade é eterno. Observe aqui que Escolário fala do ser humano composto – corpo e alma, não apenas da alma como acima. Isto é mais tomista do que sua discussão anterior neste tratado. Observe também a influência tomista na afirmação de Escolário de que os corpos celestes apenas influenciam os seres humanos per accidens.

No parágrafo 16, Escolário sinaliza o fim do tratado; em certo sentido, ele descreveu a providência de Deus para os seres humanos, mas alguns aspectos deste relato ainda estão faltando:

E neste capítulo trataremos daquelas coisas que são necessárias para os cristãos piedosos acreditarem no que diz respeito à presciência divina a respeito dos seres humanos. Alguns deles iremos repetir e outros iremos oferecer pela primeira vez. Ora, o fim da geração e da vida dos seres humanos lhes é preparado por Deus de duas maneiras, e ainda assim é necessário que escolham como viver, e não que vivam pela necessidade da natureza.

[402.37] Agora é necessário que todos aqueles que são enviados para o outro lugar cheguem ao lugar que prepararam com a própria vida. Ou seja, ninguém é enviado e compelido involuntariamente. Pois, de fato, tanto a livre escolha quanto a sinergia de Deus acompanham a vida humana, pois nossa vontade, o ato de querer e a prática vêm de Deus, de quem também vem a existência, embora em formas menores de vida, a escolha e a retirada da graça divina são simultâneas. E não apenas alguém é enviado e conduzido ao mesmo tempo para o escathon, mas também toda a sua vida é assim conduzida para o fim último. E desta forma existem certos limites de movimento, e estas são as ações que estão nesta vida. [403.9] Estas ações se organizam juntas em direção ao escathon, e em tudo isso a graça colabora e deixa vestígios. E assim a humanidade cresce, e esta colaboração está em ação, fazendo com que a humanidade cresça em direção ao bem, mesmo que tal trabalho seja difícil. Mas se um ser humano se envolver no mal, o que é muito mais fácil de fazer, a graça o abandonará. Contudo, não é necessário que a graça divina una alguém ao bem ou abandone alguém ao mal. Pois essas coisas são concluídas de uma forma que desconhecemos. [403.15] Contudo, todo impulso da alma, seja dirigido para o bem ou para o mal, brota de si mesmo. E não é apenas para que esta graça divina não atue misturando-se ou abandonando-a quando colabora na própria escolha, mas também para que não haja compulsão para algum ato que alguém não esteja plenamente disposto a praticar. [403.20] E, no entanto, há momentos em que parece que a divindade coopera em uma necessidade, como quando a divindade inclina o abrandamento ou o endurecimento do coração onde ele deseja, de acordo com as escrituras. Nestes casos, a ação da divindade é acrescentada à decisão forçada da alma, mas esta geralmente é deixada de lado, embora não escape à mais sábia atenção de Deus.

No parágrafo 17, Escolário explica que a orientação de Deus para a vida humana é multifacetada. Ele guia os seres humanos através de causas inferiores: anjos e as almas (ou decisões) de outros seres humanos. A vida aqui embaixo pode parecer paradoxal. Às vezes, aqueles que, para a maioria das pessoas, parecem ser os menos dignos são, na verdade, os mais dignos. O Espírito sabe o que faz, e aqueles que vivem piedosamente estão em melhor posição para compreender isso do que outros. Mas não está claro se o fim de uma determinada pessoa (céu ou inferno) pode ser conhecido por outro ser humano: “Pois Deus faz o bem em todos os seus logoi providenciais que dizem respeito a todos, pois claramente ele está atento a todos os tipos de seres humanos e a vida de cada um, e isto de uma forma tão maravilhosa que se cumpre a bondade do seu arranjo ou a sua justiça. Pois ele é tão hábil que, através de uma decisão, pode realizar tais coisas para todos.” Escolário usa aqui a concepção de Máximo dos logoi na orientação divina do mundo. Na verdade, Escolário é um dos primeiros teólogos desde Máximo a fornecer um relato teológico da providência que ousa reivindicar tanto a omnipotência absoluta de Deus como a liberdade humana. Tal como o argumento de Máximo, o de Escolário está intimamente relacionado com a doutrina de Calcedónia, como veremos a seguir.

SEÇÃO E, UMA ILUSTRAÇÃO DA PROVIDÊNCIA DE DEUS SOBRE OS SERES HUMANOS: TEXTO E ANÁLISE

Em seguida à sua digressão sobre a providência, Escolário a profunda com uma ilustração histórica de sua teologia da providência, que merece uma tradução completa. Essa ilustração analisa os méritos e culpas relativos de Herodes e João na história do evangelho sinótico sobre a decapitação de João Batista. Notaremos que, embora Escolário seja em geral fiel à sua teologia da providência esboçada anteriormente no tratado, ele de certa forma tropeça num problema particular. As notas finais identificarão o momento em que Escolário claramente recorrerá à teologia dos logoi de Máximo Confessor. O quadro geral, contudo, continua a ser um tomismo modificado.

18. [404.30]

E assim, prevendo todas essas coisas com certeza, ele as organiza de acordo com sua presciência a respeito delas, e as cumpre. Ora, não é que a presciência divina escolha a particularidade do humano a partir de tal presciência das coisas organizadas em seu arranjo ou em seu resultado, pois isso cabe à vontade e ao livre arbítrio realizar, e eles realizam essas coisas, mas ele mesmo permanece firme em todos esses assuntos. [404.33]

E agora, para que todo o relato possa ficar mais claro através de um exemplo, vejamos como Deus sabia que João, filho de Zacarias, tinha duas opções: 1. João poderia ser ajudado por apenas um momento, já que Herodes foi persuadindo-o e, portanto, seria punido para sempre porque não estaria prestando atenção à clara lei divina de Deus e porque estaria ignorando aqueles que estavam a caminho com Herodes e que poderiam ser vistos (pois nesse caso o exemplo deles seria inútil para ele). Alternativamente, 2. João poderia escolher morrer por causa disso, mas ser coroado para sempre por causa de sua livre escolha de morrer, e ele conseguiria isso apenas com a ajuda das leis justificadoras de Deus. Deus sabia que João escolheria a segunda opção, e sabia disso pela abundância de seu conhecimento que é próprio de um criador. Da mesma forma, Deus sabia o que Herodes faria e também lhe permitiu duas opções. Herodes poderia ter respeito pelas leis divinas e por João, que o estava testando. Então ele estaria se abstendo da poluição e, ao manter-se afastado de João, estaria dando graças. Alternativamente, Herodes poderia ficar irado e regozijar-se com essa raiva, vingar-se de João e prejudicá-lo, contrariando a lei, já que João não havia sido condenado por nenhum crime. Herodes escolheu esta última opção, e essa escolha, entre outras, é a causa do seu castigo eterno.

E assim Deus determinou o que aconteceria com João, e os outros eventos foram conhecidos de antemão à medida que aconteciam, qualquer um dos dois que fosse desejado, pois uma escolha não é feita por pessoas sérias sem uma decisão ponderada - se, por exemplo, uma pessoa deveria enfrentar a morte com virtude, glória e grande esperança ou se, por outro lado, deveria sobreviver mais um pouco com qualidades opostas. E ao mesmo tempo Deus não forçou João a escolher isto ou aquilo, mas apenas colaborou com João para capacitá-lo a preferir o bem pela graça que habitava nele, que de fato habitava nele, pois ele havia se apresentado como digno de receber essa graça. Da mesma forma, Deus não forçou Herodes a fazer uma escolha específica em relação a João e a si mesmo. Contudo, Deus já havia determinado para Herodes um momento apropriado para sua decisão, qualquer que fosse essa decisão.

[405.21] Ora, nem Deus os forçou nem foram de modo algum forçados a uma escolha determinada, mas antes, na sua própria escolha, algo de muito livre é mostrado por eles em relação à sua posição, e assim é manifestado da mesma maneira pela sua escolha; com isso quero dizer em relação à liberdade de seu julgamento [γνώμη] e à natureza da ação em si; pois na escolha das coisas feitas fica manifesto que João escolheu o melhor e Herodes o pior. E assim João escolheu livremente, e o bem que é oferecido de forma absoluta foi assim escolhido. Mas a escolha de Herodes foi em todos os sentidos pior, e tantas coisas ruins aconteceram com ele. [405.29] E essas coisas estão entrelaçadas de modo que se Herodes não tivesse escolhido e feito algo ruim, João não teria alcançado o bem, e se João não tivesse feito o bem, Herodes não teria levado a sua má ação até o fim.

E, no entanto, João não foi bom por causa de Herodes, mas sim por escolha do próprio João, e Herodes não foi mau exceto por si mesmo. O primeiro só é bom por causa do último se este fizer uma determinada escolha. [405.35] E assim cada um escolhe para si aquilo que lhe apetece a si e à sua disposição, como se diz: “Já não faço o mal, mas sim o pecado que habita em mim”. Da mesma forma, o bem é chamado graça naquele que a possui (pois eu sou a causa do pecado, e Deus é a causa da graça), pois ele se apresentou digno de recebê-la. Ora, a graça concorda com tudo e colabora em tudo, de tal maneira que aqueles que a escolhem livremente serão coroados no céu, enquanto aqueles que aqui embaixo não viveram de acordo com a lei recebem uma condenação digna por intemperança, desordem e assassinato.

19. [406.6]102

Ora, as opções que lhes são permitidas são as mesmas, podendo ser escolhidas possibilidades de ação opostas. Ambas as opções são oferecidas a eles da mesma maneira. Ora, como cada um [João e Herodes] fez o contrário, é necessário que o evento não tenha acontecido por sua própria natureza. Em vez disso, por já ter sido realizado, o evento não é contingente nem está em estado atual, assim como antes de surgir ele era contingente e não atual. E assim estas coisas serão tomadas em si mesmas, e assim serão consideradas por nós. Supõe-se que as coisas surgiram por presciência divina, e Deus as conhece antes que ocorram, pois os seres humanos são capazes de escolher as coisas que escolhem, e não é necessário para nenhum deles que os seres sejam seres em si mesmos. Pois cada um escolheu isto e não aquilo, e por isso é conhecido como determinado, e como ele previu que isso acontecerá em tal e tal data, o evento futuro é conhecido de forma necessária.

Ora, o conhecimento divino co-escolhe toda a escolha e ação humana, assim como o faz por si mesmo em relação a tudo, seja o que for, e ao mesmo tempo é levado em direção ao último [escathon]. [406.18] Portanto, é a mesma coisa naquilo que é permitido e da mesma maneira é necessário, pois todas as coisas dependem dela [presciência divina], de tal forma que ela é a causa infinita e comum de todas as coisas. E assim ela não apenas conhece toda a conduta de ambos, mas também coorganiza naturalmente o primeiro na predeterminação divina e o segundo em sua própria operação. Ela ajudou a organizar a graça que foi oferecida a Herodes, mas a graça é excluída deste homem porque a luz da graça não é capaz de habitar nas trevas, nem deveria brilhar sobre aqueles que seriam salvos involuntariamente, em vez de voluntariamente.

E a graça não fez João pensar que o amedrontador não era amedrontador ou simplesmente exultar em morrer, mas antes, a graça fez com que João fosse dado a ver que há algo mais terrível do que aquele que é capaz de matar o corpo, mas não é capaz de tocar a alma, como aconselham as escrituras, e por essa razão [ele foi capaz] de escolher a morte com coragem e com caloroso amor de Deus para entregar a alma por causa dos ensinamentos do Amado.

E assim, ajudado pela graça, de tal maneira que julgou corretamente o que deveria ser escolhido, ele acolheu com todo o seu arbítrio o melhor, e toda a sua vontade foi boa. Pois era nada menos do que a totalidade da graça, fosse ela qual fosse, sem a qual não seríamos capazes de fazer absolutamente nada. E por esta razão diz-se que a própria graça lidera o caminho, devido à incapacidade da criatura de fazer qualquer coisa por si mesma, e por outro lado diz-se que a graça segue e a livre escolha lidera porque a graça não obriga, pois ele quem é capaz e deseja por si mesmo é capaz de olhar para a luz. E, no entanto, João orou para não ser totalmente abandonado, mas sim para ser levado a escolher o bem. Deus ouviu João nesta preocupação e então imediatamente considerou a ação de João que havia sido dirigida a Deus, que sabia de antemão de uma forma necessária que João seria digno de ser ouvido. E João não orou em vão. Mas Herodes considerou cuidadosamente de antemão e criou esta situação da decapitação de João, pois era necessário que Herodes fosse deixado para trás, e não só ele foi deixado para trás, mas a partir disso era necessário que Herodes merecesse ser deixado para trás. E assim, não só o seu mal sofreu isso por si mesmo, mas também não aconteceu ao acaso.

SEÇÃO E, UMA ILUSTRAÇÃO DA PROVIDÊNCIA DE DEUS SOBRE OS SERES HUMANOS: ANÁLISE

Na introdução à edição deste tratado, Jugie viu este episódio como um relato quase molinista. Além de ser suscetível à acusação de anacronismo, esta avaliação divide artificialmente o relato de Escolário em duas ordens: natureza e graça. O problema é que Jugie subestima a ênfase de Escolário na sinergia aqui. O tratado não é fundamentalmente um relato molinista, mas talvez tenha algumas dessas tendências quando Escolário tenta definir como Deus opera o bem nesta situação difícil. E nisto Escolário segue Orígenes. É importante notar, contudo, que Escolário teologicamente tropeça em algo como o Molinismo apenas quando tenta definir com demasiada precisão quem tem o passo inicial numa boa ação: Deus ou a humanidade. A explicação mais teórica de Escolário é, em alguns aspectos, mais satisfatória do que as suas tentativas de ilustrar essa teoria em ação, porque na sua explicação teórica ele permite-se simplesmente dizer que Deus e a humanidade cooperam em todas as boas ações.

Visto que, como ele argumentou nos parágrafos 2-4, todas as criaturas recebem seu ser de Deus, a atividade de Deus na criação é explicada como συντρέχειν, um acompanhamento ou concorrência, uma palavra usada no concílio de Calcedônia para explicar como as duas naturezas de Cristo coexistem. E é esta analogia cristológica da operação simultânea do humano e do divino que é central para a compreensão do pensamento de Escolário e do seu lugar na tradição teológica grega sobre a questão da providência. Escolário estende o relato de João Damasceno sobre a natureza humana de Cristo (na qual a natureza criatural é concebida como um instrumento do divino) ao domínio das ações humanas em geral. Todas as outras causas além de Deus são, segundo Escolário e Tomás de Aquino, causas instrumentais. Além de ser a causa final da criação inteligente – isto é, dos anjos e dos seres humanos, que encontram seu propósito na participação em Deus – Deus também é a causa eficiente de tudo o que acontece. No relato de Escolário, a providência de Deus não é limitada. E a liberdade humana?

A liberdade parece estender-se aos seres humanos porque Deus também compartilha sua causalidade eficiente com os seres dotados de inteligência. Mas isso cria um problema. Quem, então, é realmente responsável por qualquer ação? Um ato maligno, assim como foi para Damasceno e para a maioria dos teólogos filosóficos gregos, é o resultado da escolha humana. Mas quem é responsável por uma boa ação? Se Deus é a causa eficiente – isto é, o agente responsável por tudo no mundo – como podem os seres humanos ser responsáveis por qualquer coisa que não seja o pecado? Se Deus é a causa eficiente pela graça, essa graça não obrigaria uma boa ação? É aqui que a linguagem cristológica de Escolário se torna essencial. Sim, a graça e a causalidade eficiente de Deus são a causa de qualquer boa ação, mas isso não é necessariamente anterior ou obrigatório para uma boa ação. Qualquer boa ação humana tem a sua iniciativa na vontade humana concomitante com a ação divina. Ou seja, qualquer boa ação se deve à cooperação de Deus e da humanidade, e Escolário recusa-se a dissecar esta misteriosa sinergia da maneira que a tradição agostiniana fez. Em vez disso, no relato cristológico de Escolário, qualquer boa ação humana é devida à concordância da vontade humana, mas não forçada pela vontade divina.

Existem, no entanto, dois problemas sérios com este relato da graça. Qual é o lugar para a oração desesperada? Para o publicano no templo (Lucas 18)? Para o bêbado ou viciado que confia totalmente em Deus e que é santo, como São Marcos Ji Tianxiang? Considere o exemplo do bêbado Sebastian Flyte em Brideshead Revisited, de Evelyn Waugh. A sua irmã Cordelia afirma que ele é santo. “Não se pode ter ideia de qual seja o sofrimento, sendo mutilado como está – sem dignidade, sem poder de vontade. Ninguém é santo sem sofrimento. Assumiu essa forma com ele. . . . É a fonte do amor.” O segundo problema é que o relato de Escolário não parece suficientemente sintonizado com a assimetria existente em qualquer cooperação entre o humano e o divino. A tradição ascética grega deixa claro que é Deus quem age em qualquer boa ação e que o objetivo da vida espiritual não é alcançar, mas permitir que Deus trabalhe. Se Deus prevê o bem humano e depois decide cooperar, a ênfase não está na ação humana? Pode ser que, como no exemplo da flecha que se dirige, Escolário não esteja em sua forma teologicamente mais perspicaz quando tenta dar exemplos. Na verdade, esta ênfase excessiva na contribuição humana é contrabalançada por outras partes do seu primeiro tratado sobre a providência.

No parágrafo 20, Escolário continua seu relato. Embora exista vontade e escolha humanas, Deus sabe de antemão o que uma pessoa escolherá porque ela é a causa de todas as coisas. [407.15] A presciência implica predeterminação, mas os eventos não são em si mesmos predeterminados [407.21]; eles são apenas predeterminados em Deus. Ou seja, os eventos não são forçados, como na interpretação de João Damasceno feita por Tomás de Aquino (discutida abaixo). Ora, o ser humano segue o que foi predeterminado para ele, mesmo sem querer, mas não é obrigado a fazê-lo. Aqui Escolário faz uma distinção fundamental para abordar a questão que atormentava os Padres gregos: a predeterminação parece implicar necessidade ou força. Mas, devido à causalidade secundária, as causas criadas são causas reais e, portanto, não são compelidas pela predeterminação divina.

Escolário continua seu argumento afirmando que Deus sabe de antemão o que as pessoas escolherão porque ele existe fora do tempo e, portanto, ele recusa a sua cooperação daqueles que ele sabe que escolherão o pior caminho. Deus é a causa daqueles que escolhem o bem porque colabora com eles, e não é a causa daqueles que escolhem o pior, porque não colabora com eles. “Ora, cada [ação] foi pré-conhecida e predeterminada por Deus da mesma maneira como irá acontecer e como irá ocorrer ou ser realizada pela natureza, e assim é razoável que a vontade divina (que considera tudo) está entrelaçada nessas pessoas, pois elas não são obrigadas, mas apenas colaboram e concordam em ser ajudadas, enquanto outras abandonam seu fim.”

SEÇÃO F, SOBRE O USO DO TERMO ΠΡΟΟΡΙΖΕΙΝ: SINOPSE COM ANÁLISE

No parágrafo 21, Escolário refere-se a teólogos não inspirados - e aqui ele tem em mente Anastácio do Sinai, entre outros - que confundem os verbos predeterminar e forçar. Aqui, seguindo João Damasceno e Tomás de Aquino, Escolário explica que “o fato de que todas as coisas são conhecidas de antemão e predeterminadas por Deus não confere mais necessidade para aqueles que agem pela vontade do que se, depois de fazerem algo livremente (o que quer que eles escolhessem fazer), ele soubesse que essas coisas seriam feitas por eles.” E a razão é que Deus vive fora do tempo:

Ora, essas coisas são conhecidas em algum momento e existem em si mesmas, na medida em que são reais e conhecidas, mas a presciência delas existe como se estivesse presente no conhecimento divino. Pois a presciência não completa essas coisas nem as impede. E assim ninguém pode dizer que houve necessidade por causa Daquele que prevê, e este também é o caso da predeterminação. Pois o conhecimento de eventos predeterminados é, para Deus, coextensivo à presciência. [408.20] Pois o conhecimento de acontecimentos indeterminados não seria adequado a Deus. E por isso é necessário que as coisas conhecidas sejam determinadas de maneira fixa e determinada. E as coisas conhecidas devem ser predeterminadas, e não são determinadas de nenhuma outra forma, exceto por aquele que é o criador de tudo e do fim último. E por isso se diz que todas as coisas são dele e para ele, pois é ele quem ordena cada coisa e todas as coisas lhe são ordenadas, e daí segue-se que cada um dos seus fins próximos é ordenado por ele. [408.27]

Aqui, novamente, as influências de Dionísio e Máximo Confessor são transparentes.

Escolário conclui o parágrafo com uma nota de que embora teólogos como ele talvez não estejam usando a palavra προορίζειν (predeterminar) em sua definição mais precisa, eles estão pensando precisamente de acordo com a regra de fé, o que implica também que aqueles que impõem esta palavra e seu significado usual nas realidades teológicas é uma camisa de força para a fé. Em vez disso, a definição ou uso da palavra deve ser mudado quando adaptada para uso teológico.

SEÇÃO G, PROVIDÊNCIA E ORAÇÃO: SINOPSE COM ANÁLISE

No parágrafo 22, Escolário argumenta que o seu relato é convincente porque é capaz de explicar as várias antinomias que os relatos anteriores haviam contrastado. Isto é, Pletão teve claramente que argumentar que tudo ocorre por necessidade porque o seu Deus realmente trabalha em todas as coisas. Mas Pletão sacrifica o livre arbítrio humano, dando espaço para a renúncia ao inevitável. Outros relatos teológicos cristãos gregos, mais tradicionais, limitam a atividade de Deus em vários graus. Por exemplo, Marcos de Éfeso e Anastácio do Sinai limitam Deus a trabalhar apenas nas boas ações humanas e consideram que ele não está de forma alguma envolvido na natureza (interpretada de forma ampla). Orígenes põe menos limites a Deus, mas ainda não consegue reconhecer que Deus está de alguma forma presente no pecado. Isto é, a existência de Deus como existência em si não pode coincidir com uma criatura pecadora porque o pecado é, metafisicamente, uma privação. Contudo, é um corolário do relato de Escolário que, porque Deus está presente em todos os lugares, há existência em seres humanos pecadores. Isto é, nenhum ser humano é tão depravado, tão simplesmente pecador, que não exista.

Agora, esta onipresença e predeterminação de todos os contingentes futuros pode parecer eliminar a necessidade ou a eficácia da oração. Escolário, porém, argumenta que seu relato rigoroso não elimina a eficácia da oração. Pois Deus está acostumado a responder orações de maneira milagrosa e pode prever suas próprias ações que, como milagres, estão além das leis da natureza. As orações dos piedosos realmente agem como causas. E, dada a metafísica de Escolário, talvez possamos considerar a causalidade da oração análoga à causalidade secundária da criatura. Isto é, Deus trabalha através da oração e não é constrangido por ela, e Deus pode causar o mesmo efeito sem oração, mas Deus prefere trabalhar através da oração, tal como prefere trabalhar através dos sacramentos na teologia da graça de Tomás de Aquino. Contudo, Deus nunca se limita a agir através dos sacramentos, nem a graça de Deus é causada, de forma primária, apenas através dos sacramentos.

Escolário inicia então um catálogo das intervenções de Deus na ordem natural que são em resposta às orações, argumentando contra a ideia, presente em Anastácio, Marcos e Pletão, de que existe uma necessidade estrita na natureza, com a qual Deus não pode ou não interfere. Embora Escolário não seja explícito sobre isso, o grande problema com tal concepção, é claro, é que ela faz de Deus algo como o Zeus de Homero, que, embora aparentemente todo-poderoso, deve obedecer ao destino, que determinou que seu filho morrerá no livro da Ilíada. Em vez disso, embora haja uma espécie de necessidade silenciosa na teologia da natureza de Escolário, Escolário chama isso de necessidade meramente natural ou de criatura. A necessidade nas criaturas é maleável e difere daquela necessidade que Deus exerce entre as criaturas. Esta necessidade divina é independente da necessidade da criatura. O Deus cristão, poderia dizer Escolário, não é nenhum Zeus pletônico: “E como ele criou as coisas no cosmos do nada, não há uma necessidade determinada nas criaturas de sua existência como se fossem eternas com ele. Assim ele transforma os seres, e faz isso sempre que deseja, e com suas próprias mãos, e com o melhor arranjo de presciência e pelo arranjo do bem maior e mais comum, e ele pode fazer isso sem remover os outros seres. ”Escolário, que não é dado ao tom comedido de Tomás de Aquino, talvez esteja enfatizando demais o poder e a atividade de Deus, ou, mais precisamente, ele esteja descrevendo com precisão as ações de Deus sem mencionar a causalidade muito real da criatura.

No parágrafo 23, Escolário argumenta que a oração está envolvida em todos os aspectos da vida. Ao mesmo tempo, a oração envolve deliberação e ação humana. De maneiras maravilhosas, tudo isso está dentro do arranjo divino. Aqui, novamente, o compromisso de Escolário com a causalidade secundária, enraizado na analogia do ser, é evidente. Não há contradição, para Escolário, em dizer que Deus é totalmente a causa eficiente de toda ação e que uma criatura também é totalmente a causa eficiente (embora secundária).

Esta afirmação, é claro, teria confundido Aristóteles. Mas está enraizado na leitura de Tomás de Aquino da Metafísica de Aristóteles, que vê o ser criatural como análogo ao ser divino. Escolário esboçou uma versão dessa mesma metafísica na seção B (pars. 2–4) deste tratado, que é fruto de seus trabalhos filosóficos das décadas de 1440 e 1450, examinados nos dois capítulos anteriores. Escolário transmite esta importante ideia em linguagem teológica íntima.

Ora, nestas coisas, Deus atende mais especialmente às orações e, portanto, a concordância de Deus nas fraquezas humanas transforma a ordem dos agentes intermediários em direção a eles, muitas vezes de maneira vantajosa, e isso ocorre com as vontades dos seres humanos, de modo que Deus fornece aos humanos os seus próprios movimentos adequados. E assim nós, seres humanos, suplicamos por ambos os tipos de ajuda celestial. Pois é impossível para quem está além da bondade não eliminar os obstáculos externos ou não iluminar as almas para encontrarem provisão, pelo menos para aquelas almas que têm um desejo apropriado e pedem uma vantagem para a vida que está diante delas. Isto é verdade, embora nem sempre seja claro [nesta vida]. (OC, 1.410.33–1.411.4)

A conclusão de Escolário, traduzida abaixo na íntegra, retorna à questão bizantina específica da predeterminação da hora da morte, e Escolário utiliza a mesma passagem que Pseudo-Anastácio utiliza para responder a esta questão, 2 Reis 20.123 Curiosamente, ela também é usada por Tomás de Aquino em dois pontos-chave, um dos quais Escolário certamente conhecia. A primeira está na discussão de Tomás de Aquino sobre a profecia, uma seção da Summa Theologiae que Escolário conhecia bem. A segunda é a carta ao Abade Bernardo, um texto que dificilmente Escolário teria conhecido. A conclusão de Escolário é a seguinte:

24. E o que é ainda melhor para demonstrar a boa providência de Deus para nós é que ele nos impele à oração para que aqueles que não têm o que precisam para viver continuamente como amigos de Deus possam ter esses recursos, pois Deus deseja dá-los a eles para o seu aperfeiçoamento. Isto é verdade tanto para os recursos para esta vida presente como para os necessários para a outra, seja ela a libertação da escravatura ou qualquer outra coisa. Pois não há ninguém a quem Deus não dê os recursos para a purificação, a uma pessoa de uma forma, a outra pessoa de outra, e tudo isso sabendo quais seres humanos aceitarão e se apegarão a este recurso, pois ele se deleita no cumprimento integral de toda a sua boa criação. O resultado disso é que todos, tanto os que melhoraram como os que permanecem obstinados, recebem o mesmo cuidado justo de Deus.

Ora, as histórias sagradas estão cheias destas coisas, e até mesmo os politeístas contam muitas dessas coisas nas suas histórias. No entanto, os politeístas foram desviados no que diz respeito às causas e aos meios. Eles atribuíram uma espécie de presciência e necessidade para assuntos sublunares a divindades específicas, mas erraram ao atribuir a divindade às obras do único Deus, e assim foram enganados na questão das causas das coisas, e assim, ao falar da providência, eles ou não falavam nada ou não falavam corretamente ou pelo menos não perfeitamente, e em vez disso eles se contentaram naquele momento com a necessidade, e fizeram isso sem qualquer precisão de pensamento. Pior de tudo, eles não achavam que deveriam concordar um com o outro.

Ora, depois de todos estes relatos do amor de Deus pelos seres humanos, é verdadeiramente apropriado que nós também proclamemos estas coisas com um pensamento correto e dêmos graças ao criador por elas, e especialmente pela predeterminação imutável da providência divina através da qual ele salva. Pois a ordem universal e completa da presciência de Deus a respeito do sol não é alterada pela sua paralisação em seu curso uma ou duas vezes, pois isso acontece pela autoridade do criador, nem está de alguma forma fora do que foi predeterminado para o sol. E Ezequias recebeu uma extensão de sua vida através do arrependimento de seu antigo modo de vida, fugindo em direção à fonte da vida. Pois Deus já havia economizado e determinado de alguma forma conceder mais vida a Ezequias, conforme ele ameaçou, a menos que Ezequias se convertesse. Mas a predeterminação divina relativa à vida e ao fim de Ezequias não mudou, pois nesta predeterminação também está contida a capacidade do Senhor da vida e da morte de organizar essas coisas para o bem, e não foi além do que havia sido predeterminado para Ezequias que isso poderia acontecer, ou seja, que a oração e uma vida melhor ganhariam para ele uma extensão de vida. Pois o que a presciência divina universal uma vez estabeleceu como o limite para a vida de Ezequias era incapaz de ser mudado, de modo que se tal período de tempo lhe fosse oferecido duas vezes, então devemos considerar que o segundo foi o limite final da vida para ele e que certamente será oferecido a ele. Porém, se o segundo não for o limite final da vida, então não será oferecido. E se Ezequias, por sua própria vontade, se arrepender, então também será possível que ele não queira se arrepender, mas Deus sabe de maneira determinada que ele mudará, e por isso ele não morre imediatamente.

E se ele tivesse morrido imediatamente porque não se converteu, então não teria sido predeterminado que os eventos acontecessem desta forma, mas em vez disso eles acontecerão da maneira que é predeterminada no conhecimento abrangente de Deus, e assim o evento acontece por meio da vontade humana, mas é predeterminado pelo conhecimento divino. Pois o princípio relativo à vontade desses homens e à presciência de Deus é o mesmo. E assim não resta nenhuma crítica a nós que confessamos o estabelecimento de tudo como expusemos aqui, pois confessamos a Deus, que nos dá a capacidade de conhecer e falar graciosamente, a quem pertence a glória de todos para todo o sempre. Amém.

Dois pontos deste parágrafo merecem atenção especial. A primeira é a discussão de Escolário sobre os antigos entendimentos pagãos da providência divina. Escolário conclui que os pagãos se estabeleceram na doutrina da necessidade. Esta é uma indicação de que Escolário tem em mente o pagão moderno Pletão e seus discípulos. Pode também revelar um insight perspicaz: em geral, as escolas filosóficas tenderam, ao longo dos séculos até Constantino, a esta conclusão. De qualquer forma, Escolário conclui que os pagãos aceitaram esta necessidade apenas porque não conseguiam compreender como a causalidade realmente funcionava. Na verdade, poder-se-ia, como fez Pletão, responder a Escolário que na sua juventude, se ele fosse um aristotélico consistente, ele também teria defendido uma visão de que todos os efeitos eram determinados com exclusão do livre arbítrio humano. É apenas a sua nova metafísica cristã (tomista) que lhe permite pensar consistentemente sobre esta questão.

O segundo ponto é que a implicação da compreensão da graça de Escolário (aqui Escolário fala de ἐπιμέλεια ou preocupação amorosa) é bastante diferente da de Agostinho. Especificamente, Escolário não parece dar muito peso à doutrina da eleição ou da predestinação. Isto é, ao contrário de Agostinho, Escolário parece dizer que Deus fornece a sua graça igualmente a todos os seres humanos, e não faz com que, no sentido da força, as pessoas aceitem ou rejeitem essa ajuda. Novamente, vemos Escolário pensando muito em linha com a tradição ascética grega com sua ênfase na purificação e na cooperação do cristão na obra de salvação. Isto também está presente em Tomás de Aquino, em grande parte através dos Padres Gregos, que ele pôde ler nas grandes bibliotecas de Roma quando esteve em Santa Sabina na década de 1260, mas o que é distintivo na primeira formulação de Escolário da sua teologia da providência é que ele apresenta uma versão da teologia de Tomás de Aquino sem a herança da doutrina agostiniana da predestinação ou da irresistibilidade da graça. A relação de Escolário com Tomás de Aquino, então, não está aberta à crítica de Jerônimo a Ambrósio. No prefácio de sua tradução latina de De spiritu sancto, de Dídimo, o Cego, Jerônimo escreve sobre um contemporâneo - identificado por Rufino como Ambrósio - que esse contemporâneo plagiou de Dídimo: “Eu mesmo prefiro ser conhecido como o intérprete da obra de outro, em vez de, como um pequeno corvo, adornar-me com as penas de outra pessoa, como fazem alguns homens. Pois li há algum tempo a obra de um homem sobre o Espírito Santo e descrevi nela, como diria o cômico, 'coisas ruins em latim tiradas de coisas boas em grego.'” Em vez de tradução passiva e incompleta, temos uma adaptação ativa de um recurso teológico estrangeiro. Em vez da crítica de Jerônimo a Ambrósio, poderíamos considerar a adaptação feita por Tomás de Aquino da teologia da providência de João Damasceno como um modelo para compreender o significado da realização de Escolário. Na verdade, veremos na conclusão que é precisamente o uso que Tomás de Aquino faz da teologia da providência de João de Damasco que o torna tão receptivo à recepção na tradição teológica ortodoxa grega.

Fonte: Matthew Briel, A Greek Thomist, University of Notre Dame Press, Notre Dame, IN, EUA, 2020.