Eis uma
oportunidade para observarmos como é possível, dentro do âmbito ortodoxo, e de
maneira inteligente e produtiva, fazer uso da teologia e da metafísica
desenvolvidas por Tomás de Aquino para elucidar temas difíceis como o da
providência divina. Foi o que fez São Genádio Escolário (+1473) ao acolher a
distinção real entre esse e essentia descoberta por Tomás de
Aquino, bem como a causalidade secundária de São João Damasceno e do próprio
Tomás, no seio da tradição cristã ortodoxa. Deixo-os com a tradução de um
capítulo de uma recente pesquisa de um scholar dedicado a São Genádio. O
autor, a exemplo de Marcus Plested, não aceita a postura anti-intelectual da maioria
dos teólogos ortodoxos do século XX, epitomizada pela afirmação de que “não há absolutamente
nenhuma similaridade entre criado e Incriado”, segundo o Pe. John Romanides.
Não apenas há similaridade (analogia entis), como tal similaridade é útil
para a compreensão e desenvolvimento da fé cristã ortodoxa. Nem só de
experiência monástica (purificação, iluminação e glorificação) vive a Igreja
Ortodoxa.
* * *
Nos dois
capítulos anteriores examinei as interações de Escolário com Pletão sobre a
questão do destino e da providência. Examinei dois debates a fim de identificar
as maneiras pelas quais Pletão desafiou Escolário a fornecer uma explicação
ortodoxa e coerente para a providência divina e a liberdade humana. Vimos no
decorrer dessas discussões que ambos os pensadores recorreram a Tomás de
Aquino, embora nenhum deles admitisse a dívida, e que Escolário estava
profundamente preocupado com o desafio de Pletão.
Tem sido
afirmado que, após a morte de Pletão, Escolário não estava mais preocupado com
o relato do destino de Pletão, ou que a melhor maneira de lidar com este
desafio pletônico era por uma espécie de damnatio memoriae, mais
claramente exemplificada em sua queima do livro de Pletão (Leis). Ou seja,
presume-se que Escolário não tenha dado uma resposta ao desafio de Pletão.
Embora seja verdade que após a morte de Pletão em 1454, Escolário não escreveu
uma resposta Contra Plethonem sobre a questão do destino, os cinco
tratados sobre a providência são certamente, pelo menos indiretamente, uma
resposta a Pletão. A maturidade e profundidade do pensamento de Escolário sobre
a questão da providência e da ação humana devem-se certamente ao desafio que Pletão
lançou e às várias respostas incompletas que Escolário deu na década de 1440 e
no início da década de 1450.
A confusão
do período após 1453 tornou-se recente e vividamente mais acessível com algumas
traduções e estudos importantes de Laonikos Chalkokondyles, um historiador
profundamente influenciado por Pletão. Foi no meio dessa confusão, na qual Mehmed
II rapidamente capturou as porções restantes do Império Romano e fez conquistas
impressionantes nos Bálcãs, que Escolário continuou a pensar na questão da
providência e trocou correspondência sobre o assunto. Pouco depois da primavera
de 1455, Mateus Kamariotes trouxe consigo sua cópia, talvez incompleta, de seu Contra
Plethonem quando retornou a Constantinopla, e Escolário instalou seu
ex-aluno no que restava da academia patriarcal. Por causa de sua discussão
sobre a causalidade secundária e sua estreita associação com Escolário nesta
época, é razoável postular que Escolário encorajou Kamariotes a terminar seu
trabalho contra o ensinamento de Pletão sobre o destino. O fato de o próprio Escolário
ter escrito um artigo “contra os ateus ou aqueles que acreditam que tudo
acontece por acaso, bem como contra os politeístas” algum tempo depois de 1456,
expõe a preocupação contínua de Escolário com Pletão e seus seguidores. Nesta
obra, Escolário ocupa-se em explicar como Deus guia o mundo. Este trabalho
filosófico-apologético estabelece as bases para sua obra-prima teológica sobre
a providência, que ele começará dentro de um ano.
Em algum
momento entre setembro de 1458 e agosto de 1459, Escolário compôs um tratado
sobre a providência que era uma obra independente, mas mais tarde foi expandido
e esclarecido por mais quatro tratados. Ele chamou o tratado de Περὶ θείας προνοίας καὶ προορισμοῦ: σπουδαῖον (Sobre
a providência divina e a predeterminação: um trabalho sério) e distribuiu o
tratado entre seus amigos. Este tratado contém toda a teologia da providência
de Escolário e é o assunto deste capítulo.
Como este
texto nunca foi traduzido, parece apropriado resumir os seus principais
argumentos teológicos, bem como avaliá-lo. Ao longo do caminho menciono fontes
ou influências sobre Escolário em pontos específicos. O apparatus fontium
na edição crítica é mínimo, limitado à maioria das citações bíblicas diretas e
apenas a algumas das outras citações diretas. Há muito que se deseja que estas
fontes sejam identificadas. Tentarei, portanto, identificar as principais
fontes, bem como discutir, brevemente, o uso que Escolário faz delas. Também
identificarei passagens bíblicas fora do padrão. O editor do texto, Martin
Jugie, não conseguiu encontrar algumas das passagens bíblicas porque não
correspondem a nenhum texto grego conhecido do Antigo ou do Novo Testamento.
Muitas dessas passagens gregas não podem ser encontradas porque são traduções
da Vulgata Latina para o grego. Especificamente, provêm de textos de Tomás de
Aquino, conforme indicado a seguir.
Jugie
dividiu o texto de Escolário em vinte e quatro parágrafos. Em minha análise e
recapitulação, porém, agrupo esses parágrafos em seis momentos do texto. O
primeiro parágrafo de Jugie, seção A (OC, 1:390.1–391.22), apresenta o texto.
Na seção B (= Jugie pars. 2–4 = OC, 1:391.23–393.28) Escolário fornece o fulcro
metafísico para o resto do tratado. Nesta seção fortemente tomista, Escolário
fornece um relato básico do relacionamento de Deus com a criação, do qual
depende o restante do tratado. Na seção C (= Jugie pars. 5–8 = OC,
1:393.29–396.4) Escolário dá um relato básico de como Deus conhece e guia
vários tipos de criação (criação corpórea não inteligente, seres humanos e
anjos). Na seção D (= Jugie pars. 9–17 = OC, 1:396.4–404.29) ele fornece sua
teologia completa de como Deus guia os seres humanos e como ele os conhece de
antemão e suas ações. Na seção E (= Jugie pars. 18–20 = OC, 1:404.30–408.9) ele
fornece uma rica ilustração da teologia da ação humana, cuja tradução apresento
abaixo. Na seção F (= Jugie parágrafo 21 = OC, 1:408.10–36), seguindo Tomás de Aquino
e João Damasceno, Escolário esclarece o que ele entende da palavra προορίζειν (predeterminar/predestinar).
Na seção final, G (= Jugie pars. 22–24 = OC, 408,37–412,18), Escolário examina
a questão da oração e da providência, concluindo com o exemplo de Ezequias de 2
Reis.
SEÇÃO A,
INTRODUÇÃO: SINOPSE
Escolário
inicia o primeiro tratado reconhecendo que, embora seu relato da providência
possa de fato ser identificado com o destino, εἱμαρμένη (no sentido de que tudo é
predeterminado), ele rejeita o termo porque a forma como geralmente é tomado é
como foi usado pelos estoicos.
Tendo
estabelecido como objetivo deste tratado o conhecimento tanto dos seres que
existem desde a eternidade como das coisas em formação, bem como [seu] arranjo
pelo criador de todas as coisas, primeiro rejeitamos o termo destino.
Embora seja possível nomear a presciência divina desta forma, não apenas porque
a providência existe apenas em Deus antes da existência das coisas que são pré-conhecidas,
mas também porque, na medida em que [a providência divina] é sempre aplicada às
próprias realidades substanciais, ela os assimila nos logoi eternos que
estão em Deus de acordo com sua existência e ordem, no entanto, rejeitamos a
palavra destino porque os estoicos não entenderam originalmente o
significado deste termo desta forma, mas em vez disso o usaram de uma forma
muito descuidada. Em vez disso, os termos providência e predeterminação,
que pertencem à escola santa e infalível, são suficientes para nós.
SEÇÃO A,
INTRODUÇÃO: ANÁLISE
É
surpreendente que Escolário diga que εἱμαρμένη (destino) é uma palavra precisa,
embora muitas vezes mal utilizada, para descrever a providência divina. Escolário
aqui demonstra uma precisão de pensamento porque quando este termo é mencionado
na tradição ὅρος τῆς ζωῆς (período de vida predeterminado), é rejeitado simplesmente por ser pagão
e, portanto, não ser realmente verdadeiro, como em Teofilato Simocattes. Escolário,
no entanto, quer manter a verdade básica do termo destino, pois ele,
junto com a maioria dos pensadores filosoficamente rigorosos na ὅρος τῆς ζωῆς, acredita
e argumenta não apenas que a hora da morte é predeterminada, mas também - indo
além de seus antepassados teológicos - que todos os contingentes futuros são
determinados, mas sem imposição. Escolário
pode muito bem estar derivando sua afirmação de que a palavra destino é
essencialmente uma descrição precisa da providência de Deus do corpus ST
I.116.1 de Tomás de Aquino, que ele mais tarde cita literalmente em seu ΕΚ ΤΟΥ θΕΟΛΟΓΙΚΟΥ (Resumo
da Summa Theologiae) (pós-1464): “Então, podemos postular o destino na
medida em que todas as coisas que ocorrem aqui abaixo estão sujeitas à
providência divina, no sentido de que são pré-ordenadas e, digamos, faladas de
antemão pela providência”. No entanto, Escolário fornece esta afirmação,
aparentemente derivada de Tomás de Aquino, com uma explicação muito grega: o
destino é verdadeiro quando entendido em termos teológicos gregos tradicionais,
derivados de Máximo Confessor, da relação dos logoi eternos em Deus com as
realidades substanciais. Ou seja, a providência divina orienta as criaturas que
realmente existem (realidades substanciais) segundo os planos que Deus tem. A
afirmação de Escolário é de fato nova na tradição teológica grega: não tenho
conhecimento de outros teólogos gregos que diriam que o destino (εἱμαρμένη) é de
fato verdadeiro, mas foi simplesmente mal utilizado pelos estoicos. O termo foi
quase sempre considerado incompatível com a crença cristã. É por isso que o
argumento de Pletão a favor de εἱμαρμένη foi considerado escandaloso.
Escolário
conclui sua introdução mencionando aqueles que acreditam que tudo existe e
acontece por acaso (ὡς ἔτυχεν εἶναί τε πάντα καὶ γίνεσθαι), mas diz que não abordará essas
preocupações porque exigiria muito trabalho. Aqui ele parece ter em mente os
tipos de preocupações que discuti no capítulo 2, que receberam pouca atenção
acadêmica. Em vez disso, Escolário propõe “uma explicação fundamental” sobre a
providência, para que os seus leitores possam evitar opiniões ímpias sobre esta
questão séria. Ele conclui a sua introdução com duas sugestões sobre o seu
método. A primeira é que se concentrará na analogia, e vemos aqui uma sugestão
do trabalho sobre a analogia do ser que Escolário fez em sua disputa com Pletão.
A segunda é que esta explicação da providência não dependerá diretamente de
outras autoridades além da Escritura. Em vez disso, Escolário afirma que é o
seu próprio pensamento sobre a questão, juntamente com a colaboração de Deus. É
importante notar, contudo, que ele certamente envolve outros teólogos, tanto
contemporâneos como da tradição teológica grega anterior, sem nomeá-los.
SEÇÃO B,
DEUS E O MUNDO: SINOPSE E ANÁLISE
Na seção B,
Escolário fornece uma breve descrição metafísica da ação de Deus no mundo. Toda
a realidade da criatura não é, num sentido real, auto-subsistente, mas existe
através da participação em Deus. Esta seção é um momento altamente tomista. No
parágrafo 2 ele alude à analogia do ser quando explica que “só ele [Deus]
existe propriamente” (αὐτὸς μόνος κυρίως ὤν) e que "ele criou as coisas
que são chamadas de seres" (ποιεῖ μὲν τὰ ὄντα λεγόμενα). Aqui ele quer mostrar o abismo de
Máximo Confessor entre o ser criado e o não-criado, enquanto, com Tomás de
Aquino e Dionísio, ele quer mostrar alguma semelhança ou analogia. Uma analogia
que Escolário identifica aqui entre os seres criados e Deus é que Deus deu a
alguns seres a capacidade de se tornarem eles próprios causas de outros seres:
“e desta forma um certo traço divino é estabelecido neles, distinguindo-os de
outras criaturas. Assim , no que diz respeito às coisas que são geradas e
corrompidas, ele não trabalha sem intermediários para a sua geração ou para a
sustentação e orientação do seu ser, mas antes considera mais sensato fazer
essas coisas através da ajuda de outros seres.” Na verdade, Escolário argumenta
que Deus é a causa primeira, e algumas criaturas têm o potencial de serem
causas secundárias, uma lição que ele aprendeu com sua leitura profunda do
comentário de Tomás de Aquino sobre a Metafísica, discutido nos
capítulos 4 e 5 acima. “Pois [a causa primeira] é aquela que engendra os poderes
das causas superiores e a geração da [causa] próxima e final, que traz à
existência mediante a própria geração, e sem este poder [da causa primeira =
Deus] nada ocorre por nenhuma [das outras causas]. E assim o criador das coisas
supremas é Deus de uma forma imediata, e nada menos que Deus, embora os seres
inferiores sejam guiados por outras causas”.
Vemos aqui,
pelo menos in nuce, uma teologia do concursus ou συντρέχειν (“correr
lado a lado”), que será posteriormente desenvolvida no parágrafo 16. Está
intimamente relacionada com a teologia da causalidade primária e secundária de Escolário:
na verdade, é outra forma de descrever a mesma realidade. Nesta linha de
pensamento, especialmente desenvolvida pelos escolásticos latinos, cujas obras Escolário
quase certamente conhecia, a ação de Deus é entendida como trabalhando
paralelamente a cada ação da criatura. A principal dificuldade para os leitores
contemporâneos desta filosofia é que esta discussão da causalidade eficiente
não é um jogo de soma zero. Isto é, o pensamento moderno, muito influenciado
pelo sucesso impressionante da análise científica da causalidade eficiente no
mundo natural, geralmente imagina a ação de Deus no cosmos como uma intervenção
num mundo que de outra forma seria independente. Por outras palavras, para a
imaginação pós-revolução científica, a ação de Deus só pode ser concebida como
em competição com as ações criadas. Isto, contudo, é inconcebível para os
monoteístas pré-modernos. Considere, por exemplo, o Salmo 139:7-12:
Para
onde me irei do teu espírito, ou para onde fugirei da tua face? Se subir ao
céu, lá tu estás; se fizer no inferno a minha cama, eis que tu ali estás
também. Se tomar as asas da alva, se habitar nas extremidades do mar, até ali a
tua mão me guiará e a tua destra me susterá. Se disser: Decerto que as trevas
me encobrirão; então a noite será luz à roda de mim. Nem ainda as trevas me
encobrem de ti; mas a noite resplandece como o dia; as trevas e a luz são para
ti a mesma coisa.
Tomás de Aquino desenvolve uma explicação
particular para a compreensão desta ação divina e criatural, muito relacionada
à analogia do ser e da causalidade primária e secundária descrita nos capítulos
4 e 5 acima. Escolário e Tomás de Aquino argumentam que Deus atua em cada ação
criatural, mas que a ação de certa forma “corre lado a lado” e sustenta a ação
da criatura. Novamente, para ser claro, esta não é apenas uma questão de Deus
sustentar cada criatura existente (conservação divina), mas antes de sua
operação em cada ato. Embora, antes de Escolário, esta fosse uma preocupação
escolástica particularmente latina, não deixa de ter ressonância na tradição
teológica bizantina, especialmente entre, mais uma vez, os teólogos de
pensamento mais rigoroso, como argumentaram Beck e Pharantos. Pharantos, por exemplo,
cita a Fócio, um teólogo muito filosófico, em seu Amphilochia. Como
veremos em nossa conclusão, através de Escolário este se torna um tema de
grande interesse na teologia dogmática ortodoxa desde o século XV até meados do
século XX.
No
parágrafo 3, Escolário elabora como funciona essa συντρέχειν
(concorrência). Ele
esboça um universo dionisíaco de hierarquia e participação no qual Deus fornece
continuamente o poder para que causas criadas inferiores também sejam causas. Escolário,
como Tomás de Aquino, enfatiza em sua teologia da providência que Deus não
produziu essas causas superiores de forma natural (τῷ πεφυκέναι), o que implicaria necessidade, mas
como uma escolha consciente (τῷ βούλεσθαι).
No
parágrafo seguinte, Escolário esclarece o que entende por causalidade
instrumental ou secundária. Aqui ele tenta introduzir um uso escolástico
latino, desenvolvido a partir de Aristóteles por Proclo de uma maneira
ligeiramente diferente, de volta à tradição intelectual grega, onde havia sido
silenciado, se é que esteve presente. Observe que Escolário teve que prefaciar
este ensino da causalidade secundária com a afirmação metafísica (bastante
tomista) de que Deus é o único ser que existe propriamente falando, e ele
conclui dizendo que somente Deus é uma causa criadora, propriamente falando
(392.22). Ambas as afirmações podem ser encontradas na Summa contra gentiles,
de Tomás de Aquino.
Ora, embora
Tomás de Aquino tenha de argumentar contra a filosofia islâmica do
ocasionalismo em al-Ghazali (século XII) e incipiente nas escolas franciscanas
(durante a vida de Tomás de Aquino) de que as causas secundárias ou
instrumentais são efetivamente causas reais, Escolário aqui parece colocar a
ênfase em outro aspecto. Isto é, Escolário teve de lutar contra a tendência
geral nas teologias gregas da providência, especialmente na literatura pastoral
ou ascética, em argumentar que, de fato, Deus está envolvido em todas as ações.
As ações ou o papel real das criaturas nas ações não são realmente questionados
em Bizâncio como são em algumas interpretações islâmicas de Aristóteles, que à
época influenciavam a teologia escolástica latina. Isto será verdade no que diz
respeito à tendência geral da tradição teológica grega da providência de Deus e
do governo do mundo: é um cenário bem diferente daquele da teologia latina.
Escolário
argumenta que não é o caso que, ao criar outra criatura, uma causa criada seja,
num sentido real, o poder criativo do efeito criado, mas sim que a causa criada
atue como uma causa instrumental. Ou seja, quando considerada da perspectiva
divina, a criatura atua como um instrumento da agência divina. Entretanto,
quando considerada da perspectiva da criatura, a ação da criatura é uma causa
secundária do efeito. Deus, o criador (demiurgo), é a causa de toda a criação,
e ele cria diretamente e, ao mesmo tempo, cria através de instrumentos: “No
entanto, Deus tem o poder e realmente faz cada coisa sem um instrumento. No
entanto, paradoxalmente, também acontece que ele faz essas mesmas coisas
através de instrumentos, e ele faz isso por causa da abundância de sua
sabedoria e bondade, e isso pode ser visto no caso das criaturas.” Isto é, as
causas criadas de outras criaturas atuam como instrumentos de Deus para criar
novas criaturas. Escolário parece querer dizer aqui que Deus está envolvido no
nascimento de um animal, mesmo que, obviamente, os pais masculinos e femininos
também estejam envolvidos, mas o seu envolvimento é, segundo a metafísica de Escolário,
instrumental. Os pais dos descendentes não são a causa dos seus descendentes
num sentido fundamental ou primário.
Portanto, é
aceitável falar tanto dos pais (ou das causas criadas) quanto de Deus como
causas criativas, mas, propriamente falando, Deus é a causa primeira e os
outros seres são causas secundárias. Isto é, continua Escolário, temos que
considerar Deus de uma maneira diferente quando falamos da operação, do poder e
da natureza de Deus, ao passo que todos os outros seres podem ser entendidos em
termos da mesma ordem e série. Por estas razões, Deus é o fim de todas as
coisas, bem como o bem de todas as coisas (393.27–28). O paralelo com o
ensinamento de Tomás de Aquino sobre a causalidade secundária, fundado na
analogia do ser, é óbvio.
SEÇÃO C,
ORIENTAÇÃO DE DEUS PARA A CRIAÇÃO: SINOPSE E ANÁLISE
Tendo
apresentado seu tratado e fornecido a estrutura metafísica nas seções A e B, na
seção C (parágrafos 5–8) Escolário fornece o esboço da situação especial dos
seres humanos em comparação com o resto da criação. Os seres humanos diferem da
criação não racional porque os seres humanos, enquanto estão na terra com
outras criações, são criados para um fim eterno. Ao mesmo tempo, enquanto estão
nesta vida, os seres humanos diferem dos anjos e dos demônios porque ainda não
atingiram o seu fim. Deus conhece de antemão as criaturas de acordo com sua
natureza, e esse conhecimento prévio é da mesma ordem que a criação dessas
criaturas do nada (393.29-30). Deus deseja o bem para cada natureza, e este é o
fim de cada criatura. Há uma ordem (τάξις; 393,33) para
tudo isso. Há um cursus/δρομή da
atividade de Deus em toda a criação, incluindo os seres humanos, que está
relacionado à sua participação (μετέχειν ; 394,7) em Deus. Na verdade, Deus
ordena diretamente cada ser humano (394.8) e usa outras criaturas não racionais
para o bem dos seres humanos racionais, guiando-os em direção à perfeição.
No
parágrafo seguinte, Escolário explica que os seres humanos são, em certo
sentido, mortais e, em outro, imortais, e usa duas passagens bíblicas para
indicar que esta é uma crença cristã básica. Como outros animais, os seres
humanos vêm da semente de seu pai, mas Deus cria imediatamente cada alma em
cada corpo, assim como criou os anjos – cada um deles imediatamente. Escolário
enfatiza que esta é uma espécie de criação de uma alma não sobrecarregada pelo
corpo e que é por esta razão que a alma humana pode elevar-se imediatamente a
Deus após a morte. Além disso, foi assim que Deus quis, livre de necessidade,
criar a humanidade. Escolário conclui: “Pois o fim do ser humano é uma
participação no bem final; isto é, é o conhecimento imediato de Deus segundo a
sua forma. Pois ele é a primeira verdade e o bem final”. Embora à primeira
vista pareça muito tomista falar da visão de Deus como sendo imediata e de
acordo com a forma, como de fato é, também é bíblica. Baseia-se na teologia
tomista mais profunda da participação discutida no capítulo anterior. Na
verdade, esta linguagem de ver Deus de acordo com a forma pode ser um
compromisso, uma maneira de tornar a teologia de Tomás de Aquino receptiva à
teologia palamita, segundo a qual os bem-aventurados veem Deus em suas energias
e não em sua essência ou substância. Pois Tomás de Aquino realmente diz que os
seres humanos veem Deus de acordo com a substância em ST I-II.3.8.57. Escolário
evita aqui a linguagem da substância.
No início
do sétimo parágrafo, Escolário apresenta sua teologia da providência humana in
nuce, que ele desenvolverá no restante do primeiro tratado. A presciência
de Deus sobre as criaturas irracionais não é eterna, mas é eterna em relação
aos seres humanos. Provavelmente, isso ocorre porque os seres humanos têm um
fim eterno, ou pelo menos é assim que acontece no pensamento de Tomás de
Aquino. Após esta afirmação, Escolário entra numa discussão sobre a salvação
que se baseia profundamente na tradição ascética grega e na teologia de Máximo
Confessor discutida no capítulo 3. Assim, ele argumenta que os seres humanos
são desviados do seu fim por serem demasiado apegados ao corpo (imagens,
percepções e desejos), o que por sua vez afeta o logos da humanidade.
Mas embora caiba ao indivíduo escolher o bem, ele precisa de Deus para ser libertado
desses apuros. Esta separação da condenação e tornar-se digno do seu fim
adequado ocorre de acordo com a presciência de Deus.
Tendo
distinguido a providência de Deus para os seres humanos da providência para
outras criaturas no parágrafo 7, no parágrafo 8 Escolário descreve brevemente a
providência de Deus para substâncias separadas, ou anjos. A providência de Deus
para eles é mais simples do que para os seres humanos porque os anjos já estão
no seu fim (seja o seu fim próprio, o desfrute de Deus, ou uma espécie de
inferno para substâncias separadas como demônios). Isto é, Deus não os está
guiando ativamente em direção ao seu telos. Aqui Escolário segue o
ensinamento de Tomás de Aquino de que os anjos são individuados por sua
espécie.
SEÇÃO D, GUIAMENTO
E PRESCIÊNCIA DIVINA: SINOPSE E ANÁLISE
Escolário
conclui a seção C dizendo: “Devemos investigar seu cuidado pelos humanos
separadamente e isso apenas como um esboço” da verdadeira providência e cuidado
de Deus pelos seres humanos. Na seção D (pars. 9–17), Escolário fornece uma
teologia mais completa da presciência de Deus e orientação dos seres humanos.
“Agora, como já foi dito, Deus está extremamente desejoso em adquirir conhecimento
prévio da alma humana, para que essa alma humana em particular possa escolher
uma vida aqui abaixo que seja mais apropriada e proveitosa. Assim, por exemplo,
a alma humana é capaz de viver de acordo com a razão e a lei e [ser
direcionada] para o fim que foi estabelecido para ela e para cujo fim essa alma
surgiu em primeiro lugar.” Observe aqui que Escolário fala de almas humanas em
vez de seres humanos compostos. Isto não é tomista, pois Tomás de Aquino fala
da combinação corpo-alma como homo (ser humano). A alma por si só não é
o ser humano de acordo com Tomás de Aquino, mas apenas o corpo-alma. Isto pode
evidenciar a influência da tradição ascética grega.
Escolário
continua dizendo que Deus conhece de antemão toda a natureza desde a eternidade
e a guia. Alguns, porém, não são dignos do fim estabelecido pela natureza
(397.13). A natureza, para Escolário, deve ser entendida muito mais dentro da
tradição patrística grega de uma natureza redimida, do que na construção
escolástica latina tardia de natura pura, teórica e a-historicamente
separada da graça. Outra ideia patrística grega é evidenciada no uso da palavra
“digno” (ἄξιος) por Escolário. Vemos isso repetidas vezes ao longo dos cinco tratados
sobre a providência. Isto é bastante diferente da herança latina medieval da
ênfase agostiniana paulina na justificação de Deus. Escolário, juntamente com
Máximo e grande parte da tradição patrística grega, enfatiza a dignidade de
receber a graça ou a cooperação de Deus.
Na verdade,
é claro que Escolário opera dentro de uma chave teológica grega quando começa a
falar de theosis, argumentando que a vontade e a razão tornam a vida de
um ser humano semelhante à vida divina e que, portanto, não seria bom forçar os
seres humanos em direção ao bem. Tudo isto, incluindo a escolha do mal, está
dentro do alcance divino. Escolário ilustra isto com um exemplo, emprestado de
Tomás de Aquino, de uma flecha que é alterada num aspecto significativo. Para Escolário
a flecha não só é guiada (por Deus), mas também se guia a si mesma.
Agora, se
uma flecha tem a trajetória correta quando é lançada, da mesma forma ela
chegará voluntariamente ao alvo ou aonde quer que seja levada a acertar. Aquele
que faz tal coisa o realiza como alguém que escolheu e tem capacidade, e tal
pessoa é o criador e arqueiro, e sua boa providência é transparente por ter
colocado o alvo e por residir no poder da flecha. [397.29] E assim a boa
providência envia de bom grado a flecha em direção ao alvo, e gentilmente ajuda
a empurrar a flecha adiante se a flecha também estiver disposta a se dirigir
sozinha, e se daí for desviada do caminho e não obedecer a aquele que a mandou
bem e a está ajudando a empurrá-la e até abrindo-lhe caminho, então ela não
atinge seu objetivo; em vez disso, aquela flecha é pisoteada. E, no entanto,
tudo isso não é uma espécie de fraqueza da presciência a respeito da flecha,
nem de má vontade em relação à flecha.
. . . pois,
como disse acima, o ser humano não pode ser forçado a aceitar o bem. Embora o
homem seja orientado para isso, ele não é obrigado a aceitar esse bem. Assim,
um duplo fim foi preparado para o homem. . . . E é assim que uma pessoa é
preparada para as duas terras e modos de vida de acordo com a natureza e é
designada para uma das duas pelas ações de sua vida que estavam de acordo com a
natureza.
Obviamente uma
flecha não se dirige a si mesma, e esta imagem tomista de Escolário é inadequada.
Aqui temos um momento em que as duas tradições simplesmente não se alinham. A
questão teológica, porém, é clara: Deus conhece de antemão ambos os fins, o céu
e o inferno, e não apenas os fins, mas também como e o que suprir a alma no
caminho. Escolário acrescenta uma ênfase, porém: o ser humano deve cooperar com
Deus para atingir o seu fim.
No
parágrafo seguinte, Escolário deixa transparecer a influência da cosmologia e
da física de Aristóteles, bem como, possivelmente, dos comentários de Tomás de
Aquino. Há também aqui uma influência direta ou indireta de Dionísio. Deus guia
a humanidade através de outros seres. O telos da humanidade foi
determinado: “O telos dos seres humanos e as coisas que levam a ele
foram determinados. Se este não fosse o caso, então não haveria presciência em
relação aos seres humanos.” Πρόνοια (presciência), para Escolário,
então, requer προορισμός (predeterminação ou predefinição): isto está
implícito no sentido básico do conhecimento em Aristóteles. Se um fenômeno não
for circunscrito ou definido, ele não pode ser conhecido. Embora em desacordo
com a concepção de Anastácio da providência divina, a teologia da providência
de Escolário está muito alinhada com a compreensão de Orígenes da presciência
de Deus em seu comentário sobre Romanos 8:30, que discuti no capítulo 3. Como
veremos, no entanto, Escolário vai além de Orígenes ao afirmar que Deus
realmente causa eventos futuros, mas, concordando tacitamente com a leitura de
Tomás de Aquino de uma importante passagem de João Damasceno discutida
anteriormente, Escolário interpreta a preocupação da tradição teológica grega
patrística sobre a predeterminação divina de contingentes futuros como sendo
mais uma preocupação sobre Deus forçando uma ação em vez de causá-la.
Novamente, a solução para Escolário é a causalidade secundária.
Observe
como isso é diferente do sentido latino-paulino de προορίζω
traduzido como praedestinare
na Vulgata em Romanos 8:29 e recebido como tal pela tradição escolástica
latina. Embora Paulo possa muito bem ter significado προορίζω
como “predestinar” com
a valência de “força”, a valência da palavra grega também permite, e talvez
mais fundamentalmente seja, “predeterminar”. É esta outra opção hermenêutica,
aberta aos leitores gregos, mas fechada pela tradução latina praedestinare,
que a tradição teológica grega, e com ela Escolário, irão prosseguir. Este é o
germe da diferença fundamental entre Escolário e Tomás de Aquino, e certamente
entre Escolário e o resto da tradição teológica latina. No parágrafo 11, Escolário
explica que existem dois fins (πέρατα) para os seres humanos. Um fim, o
pretendido pela natureza, é o conhecimento de Deus e a vida eterna, e o outro é
errar o alvo, e isso também é determinado para aqueles que vivem contrariamente
à natureza. “E assim, portanto, aqueles que são salvos para a vida eterna são
determinados desta forma através da boa premeditação da vontade divina, e por
essa razão dizemos que aqueles que são dignos dessa salvação são ao mesmo tempo
mais adequadamente determinados e são determinados, enquanto aqueles que são
castigados não são adequadamente [400.10] determinados para a justiça eterna,
mas sim, são rejeitados da vida que foi estabelecida pelo Pai para os seres
humanos”.
Tendo
explicado no parágrafo anterior, ainda que brevemente, como os fins são
predeterminados, no parágrafo 12 Escolário prossegue argumentando que não
apenas os fins, mas também os meios utilizados para atingir os fins são
predeterminados. Isto é significativo e mais uma vez revela quão “grega” é a
teologia de Escolário (ou quão profundamente enraizada ela está na tradição
ascética macariana, que influenciou Máximo Confessor e todos os teólogos gregos
posteriores). Esta não é uma doutrina de pré-eleição: a graça é dada a todos, e
o que decide a questão é como essa graça é cultivada. Ao mesmo tempo, Escolário
insiste, contrariamente a Anastácio e Marcos de Éfeso, que tudo está
predeterminado.
O parágrafo
13 é tão significativo que cito minha tradução na íntegra.
13. Mas se
quisermos falar verdadeiramente, o vício nem é somente a privação da virtude,
nem há uma determinação no caminho do vício, mas antes é algo totalmente indeterminado.
E assim, se alguma coisa for determinada entre estes seres maus, essa
determinação está em oposição ao bem e por conta do bem. Ora, as boas ações e
os hábitos acompanham-se pela determinação de forma bem ordenada, e suas
privações também se sucedem. A vida também não está verdadeiramente presente
naqueles que moldam a sua própria vida de acordo com estas privações, mas antes
é como se fosse uma paródia da vida verdadeira. E é assim que o sofrimento que
vem depois é pior do que qualquer morte. É racional e apropriado que não alcancem
o princípio, porque lhes foi possível aprender antes de chegarem a ele, e
assim, tal como escolheram, assim acontecerá. E assim é comumente aceito que a
raça humana, tendo esses caminhos sido preparados e vindo de Deus, alcança o
bem. Agora, é uma grande preocupação para os pais e para os governantes dos
povos como os seus filhos ou os cidadãos vivem de forma adequada à herança que
esperam receber dos seus pais. Desta forma, aqueles que obedecem determinam
isso por si próprios. Por outro lado, eles aprenderam sozinhos e fizeram essas
coisas, e assim buscaram essa vida para si mesmos e então se tornaram dignos
dessa vida. É muito mais necessário que Deus determine a felicidade e as coisas
que levam a ela para seus filhos, a fim de que, vendo-a, eles possam
persegui-la.
Isto
certamente pareceria estar em tensão com Agostinho. Observe que o conceito
latino de eleição (desenvolvido a partir de São Paulo) não ocupa um lugar
significativo na teologia de Escolário. Em vez disso, o relato de Escolário é
um desenvolvimento da explicação de Tomás de Aquino, em ST I-II.79.1, de como
Deus não é a causa do pecado, direta ou indiretamente. No entanto, porque a
privação do bem (= mal) é a negação em um sujeito, e Deus conhece e determina
tudo o que é e que é bom, ele conhece e determina o mal negativamente. Isto
ocorre porque, em primeiro lugar, Deus, cuja existência é qualitativamente
diferente da nossa, existe fora do tempo e, portanto, não existe presciência sensu
stricto em Deus. Em vez disso, Deus conhece tudo o que existe no presente.
Em segundo lugar, o problema do seu conhecimento do pecado é explicado pela
afirmação de que ele sabe de um modo negativo. Assim, por exemplo, se eu
escolher livremente pecar amanhã, Deus pode saber que vou pecar amanhã. Ele
sabe disso com certeza, mas não me obriga a pecar; isto é, minha ação permanece
livre porque Deus conhece o pecado não em si, mas apenas negativamente, porque
o conhecimento, tanto na teologia grega quanto na latina, envolve participação:
Deus não pode participar do pecado e, portanto, não pode conhecê-lo, mas
conhecendo a si mesmo, Deus sabe tudo, porque tudo existe através da
participação no ser de Deus. Ou, noutro sentido, tudo o que existe é bom, e o
pecado é uma falta de existência, por isso não pode ser conhecido
adequadamente. Imagine buracos de vermes em uma maçã. Tudo ao redor desses
espaços vazios, ou seja, a polpa da maçã, é bom e conhecido. A falta ou
privação da polpa da maçã existe dentro da maçã. O buraco em si não é conhecido
porque é um espaço vazio. Mas a própria forma desse buraco, os seus contornos e
desvios, podem ser conhecidos. Na verdade, tudo sobre o buraco pode ser
conhecido conhecendo a polpa da maçã. Ora, como o mal é uma privação do ser, o
ser que fica (e ficará) com buracos ou lacunas é plenamente conhecido –
determinado e predeterminado – por Deus. Neste conhecimento e predeterminação
do bem, Deus também conhece o mal, ainda que negativamente.
Escolário
esclarece esse relato bastante denso e metafísico no parágrafo seguinte,
fornecendo vários exemplos de como Deus nos ajuda em nosso caminho para o fim
que é a vida eterna. Estas ilustrações da presciência de Deus são essenciais
para comunicar como esta teologia funciona na vida real. A vida cristã é uma
dinâmica de esforço humano e intervenção divina, caracterizada como ἐπιμέλεια (preocupação
amorosa) de Deus. Há um elemento importante de dignidade aqui, como em outras
partes deste tratado, como, por exemplo, na questão de como Deus ouve a oração:
“E é assim que eles são predeterminados: alguns que oram são considerados
dignos, enquanto outros são recusados”.
Então,
voltando para expandir e elaborar sua teologia do fim da humanidade,
especialmente a partir do parágrafo 11, no parágrafo 15 Escolário declara que
Deus de fato sabe eternamente se uma pessoa está predeterminada para a vida ou
para a rejeição (ἀποδοκιμασία), mas que isso não é conhecido por nós. Deus
não apenas sabe disso, mas também organiza essas coisas: “E não é apenas que
ele sabe as coisas como elas acontecem ou como terminam ou não terminam, mas
também ele organiza as coisas de tal maneira que elas terminem [de sua maneira
predeterminada]. E não só isso! Ele também cumpre a ordem deles, e faz isso por
si mesmo, de maneira imediata, bem como por meio de instrumentos, como foi
explicado acima.” Deus age através de todo o cosmos visível para o bem da
humanidade, pois todo o cosmos visível vale menos do que um único ser humano,
porque o fim da humanidade é eterno. Observe aqui que Escolário fala do ser
humano composto – corpo e alma, não apenas da alma como acima. Isto é mais
tomista do que sua discussão anterior neste tratado. Observe também a
influência tomista na afirmação de Escolário de que os corpos celestes apenas
influenciam os seres humanos per accidens.
No
parágrafo 16, Escolário sinaliza o fim do tratado; em certo sentido, ele
descreveu a providência de Deus para os seres humanos, mas alguns aspectos
deste relato ainda estão faltando:
E neste
capítulo trataremos daquelas coisas que são necessárias para os cristãos
piedosos acreditarem no que diz respeito à presciência divina a respeito dos
seres humanos. Alguns deles iremos repetir e outros iremos oferecer pela
primeira vez. Ora, o fim da geração e da vida dos seres humanos lhes é
preparado por Deus de duas maneiras, e ainda assim é necessário que escolham
como viver, e não que vivam pela necessidade da natureza.
[402.37]
Agora é necessário que todos aqueles que são enviados para o outro lugar
cheguem ao lugar que prepararam com a própria vida. Ou seja, ninguém é enviado
e compelido involuntariamente. Pois, de fato, tanto a livre escolha quanto a
sinergia de Deus acompanham a vida humana, pois nossa vontade, o ato de querer
e a prática vêm de Deus, de quem também vem a existência, embora em formas
menores de vida, a escolha e a retirada da graça divina são simultâneas. E não
apenas alguém é enviado e conduzido ao mesmo tempo para o escathon, mas também
toda a sua vida é assim conduzida para o fim último. E desta forma existem
certos limites de movimento, e estas são as ações que estão nesta vida. [403.9]
Estas ações se organizam juntas em direção ao escathon, e em tudo isso a graça
colabora e deixa vestígios. E assim a humanidade cresce, e esta colaboração
está em ação, fazendo com que a humanidade cresça em direção ao bem, mesmo que
tal trabalho seja difícil. Mas se um ser humano se envolver no mal, o que é
muito mais fácil de fazer, a graça o abandonará. Contudo, não é necessário que
a graça divina una alguém ao bem ou abandone alguém ao mal. Pois essas coisas
são concluídas de uma forma que desconhecemos. [403.15] Contudo, todo impulso
da alma, seja dirigido para o bem ou para o mal, brota de si mesmo. E não é
apenas para que esta graça divina não atue misturando-se ou abandonando-a
quando colabora na própria escolha, mas também para que não haja compulsão para
algum ato que alguém não esteja plenamente disposto a praticar. [403.20] E, no
entanto, há momentos em que parece que a divindade coopera em uma necessidade,
como quando a divindade inclina o abrandamento ou o endurecimento do coração
onde ele deseja, de acordo com as escrituras. Nestes casos, a ação da divindade
é acrescentada à decisão forçada da alma, mas esta geralmente é deixada de
lado, embora não escape à mais sábia atenção de Deus.
No
parágrafo 17, Escolário explica que a orientação de Deus para a vida humana é
multifacetada. Ele guia os seres humanos através de causas inferiores: anjos e
as almas (ou decisões) de outros seres humanos. A vida aqui embaixo pode
parecer paradoxal. Às vezes, aqueles que, para a maioria das pessoas, parecem
ser os menos dignos são, na verdade, os mais dignos. O Espírito sabe o que faz,
e aqueles que vivem piedosamente estão em melhor posição para compreender isso
do que outros. Mas não está claro se o fim de uma determinada pessoa (céu ou
inferno) pode ser conhecido por outro ser humano: “Pois Deus faz o bem em todos
os seus logoi providenciais que dizem respeito a todos, pois claramente
ele está atento a todos os tipos de seres humanos e a vida de cada um, e isto
de uma forma tão maravilhosa que se cumpre a bondade do seu arranjo ou a sua
justiça. Pois ele é tão hábil que, através de uma decisão, pode realizar tais
coisas para todos.” Escolário usa aqui a concepção de Máximo dos logoi
na orientação divina do mundo. Na verdade, Escolário é um dos primeiros
teólogos desde Máximo a fornecer um relato teológico da providência que ousa
reivindicar tanto a omnipotência absoluta de Deus como a liberdade humana. Tal
como o argumento de Máximo, o de Escolário está intimamente relacionado com a doutrina
de Calcedónia, como veremos a seguir.
SEÇÃO E,
UMA ILUSTRAÇÃO DA PROVIDÊNCIA DE DEUS SOBRE OS SERES HUMANOS: TEXTO E ANÁLISE
Em seguida
à sua digressão sobre a providência, Escolário a profunda com uma ilustração
histórica de sua teologia da providência, que merece uma tradução completa.
Essa ilustração analisa os méritos e culpas relativos de Herodes e João na
história do evangelho sinótico sobre a decapitação de João Batista. Notaremos
que, embora Escolário seja em geral fiel à sua teologia da providência esboçada
anteriormente no tratado, ele de certa forma tropeça num problema particular.
As notas finais identificarão o momento em que Escolário claramente recorrerá à
teologia dos logoi de Máximo Confessor. O quadro geral, contudo,
continua a ser um tomismo modificado.
18.
[404.30]
E assim,
prevendo todas essas coisas com certeza, ele as organiza de acordo com sua
presciência a respeito delas, e as cumpre. Ora, não é que a presciência divina
escolha a particularidade do humano a partir de tal presciência das coisas
organizadas em seu arranjo ou em seu resultado, pois isso cabe à vontade e ao
livre arbítrio realizar, e eles realizam essas coisas, mas ele mesmo permanece
firme em todos esses assuntos. [404.33]
E agora,
para que todo o relato possa ficar mais claro através de um exemplo, vejamos
como Deus sabia que João, filho de Zacarias, tinha duas opções: 1. João poderia
ser ajudado por apenas um momento, já que Herodes foi persuadindo-o e,
portanto, seria punido para sempre porque não estaria prestando atenção à clara
lei divina de Deus e porque estaria ignorando aqueles que estavam a caminho com
Herodes e que poderiam ser vistos (pois nesse caso o exemplo deles seria inútil
para ele). Alternativamente, 2. João poderia escolher morrer por causa disso,
mas ser coroado para sempre por causa de sua livre escolha de morrer, e ele
conseguiria isso apenas com a ajuda das leis justificadoras de Deus. Deus sabia
que João escolheria a segunda opção, e sabia disso pela abundância de seu
conhecimento que é próprio de um criador. Da mesma forma, Deus sabia o que
Herodes faria e também lhe permitiu duas opções. Herodes poderia ter respeito
pelas leis divinas e por João, que o estava testando. Então ele estaria se
abstendo da poluição e, ao manter-se afastado de João, estaria dando graças.
Alternativamente, Herodes poderia ficar irado e regozijar-se com essa raiva,
vingar-se de João e prejudicá-lo, contrariando a lei, já que João não havia
sido condenado por nenhum crime. Herodes escolheu esta última opção, e essa
escolha, entre outras, é a causa do seu castigo eterno.
E assim
Deus determinou o que aconteceria com João, e os outros eventos foram
conhecidos de antemão à medida que aconteciam, qualquer um dos dois que fosse
desejado, pois uma escolha não é feita por pessoas sérias sem uma decisão
ponderada - se, por exemplo, uma pessoa deveria enfrentar a morte com virtude,
glória e grande esperança ou se, por outro lado, deveria sobreviver mais um
pouco com qualidades opostas. E ao mesmo tempo Deus não forçou João a escolher
isto ou aquilo, mas apenas colaborou com João para capacitá-lo a preferir o bem
pela graça que habitava nele, que de fato habitava nele, pois ele havia se apresentado
como digno de receber essa graça. Da mesma forma, Deus não forçou Herodes a
fazer uma escolha específica em relação a João e a si mesmo. Contudo, Deus já
havia determinado para Herodes um momento apropriado para sua decisão, qualquer
que fosse essa decisão.
[405.21]
Ora, nem Deus os forçou nem foram de modo algum forçados a uma escolha
determinada, mas antes, na sua própria escolha, algo de muito livre é mostrado
por eles em relação à sua posição, e assim é manifestado da mesma maneira pela
sua escolha; com isso quero dizer em relação à liberdade de seu julgamento [γνώμη] e à
natureza da ação em si; pois na escolha das coisas feitas fica manifesto que
João escolheu o melhor e Herodes o pior. E assim João escolheu livremente, e o
bem que é oferecido de forma absoluta foi assim escolhido. Mas a escolha de
Herodes foi em todos os sentidos pior, e tantas coisas ruins aconteceram com
ele. [405.29] E essas coisas estão entrelaçadas de modo que se Herodes não
tivesse escolhido e feito algo ruim, João não teria alcançado o bem, e se João
não tivesse feito o bem, Herodes não teria levado a sua má ação até o fim.
E, no
entanto, João não foi bom por causa de Herodes, mas sim por escolha do próprio
João, e Herodes não foi mau exceto por si mesmo. O primeiro só é bom por causa
do último se este fizer uma determinada escolha. [405.35] E assim cada um
escolhe para si aquilo que lhe apetece a si e à sua disposição, como se diz:
“Já não faço o mal, mas sim o pecado que habita em mim”. Da mesma forma, o bem
é chamado graça naquele que a possui (pois eu sou a causa do pecado, e Deus é a
causa da graça), pois ele se apresentou digno de recebê-la. Ora, a graça
concorda com tudo e colabora em tudo, de tal maneira que aqueles que a escolhem
livremente serão coroados no céu, enquanto aqueles que aqui embaixo não viveram
de acordo com a lei recebem uma condenação digna por intemperança, desordem e
assassinato.
19.
[406.6]102
Ora, as
opções que lhes são permitidas são as mesmas, podendo ser escolhidas
possibilidades de ação opostas. Ambas as opções são oferecidas a eles da mesma
maneira. Ora, como cada um [João e Herodes] fez o contrário, é necessário que o
evento não tenha acontecido por sua própria natureza. Em vez disso, por já ter
sido realizado, o evento não é contingente nem está em estado atual, assim como
antes de surgir ele era contingente e não atual. E assim estas coisas serão
tomadas em si mesmas, e assim serão consideradas por nós. Supõe-se que as
coisas surgiram por presciência divina, e Deus as conhece antes que ocorram,
pois os seres humanos são capazes de escolher as coisas que escolhem, e não é
necessário para nenhum deles que os seres sejam seres em si mesmos. Pois cada
um escolheu isto e não aquilo, e por isso é conhecido como determinado, e como
ele previu que isso acontecerá em tal e tal data, o evento futuro é conhecido
de forma necessária.
Ora, o
conhecimento divino co-escolhe toda a escolha e ação humana, assim como o faz
por si mesmo em relação a tudo, seja o que for, e ao mesmo tempo é levado em
direção ao último [escathon]. [406.18] Portanto, é a mesma coisa naquilo que é
permitido e da mesma maneira é necessário, pois todas as coisas dependem dela
[presciência divina], de tal forma que ela é a causa infinita e comum de todas
as coisas. E assim ela não apenas conhece toda a conduta de ambos, mas também
coorganiza naturalmente o primeiro na predeterminação divina e o segundo em sua
própria operação. Ela ajudou a organizar a graça que foi oferecida a Herodes,
mas a graça é excluída deste homem porque a luz da graça não é capaz de habitar
nas trevas, nem deveria brilhar sobre aqueles que seriam salvos
involuntariamente, em vez de voluntariamente.
E a graça
não fez João pensar que o amedrontador não era amedrontador ou simplesmente
exultar em morrer, mas antes, a graça fez com que João fosse dado a ver que há
algo mais terrível do que aquele que é capaz de matar o corpo, mas não é capaz
de tocar a alma, como aconselham as escrituras, e por essa razão [ele foi
capaz] de escolher a morte com coragem e com caloroso amor de Deus para
entregar a alma por causa dos ensinamentos do Amado.
E assim,
ajudado pela graça, de tal maneira que julgou corretamente o que deveria ser
escolhido, ele acolheu com todo o seu arbítrio o melhor, e toda a sua vontade
foi boa. Pois era nada menos do que a totalidade da graça, fosse ela qual
fosse, sem a qual não seríamos capazes de fazer absolutamente nada. E por esta
razão diz-se que a própria graça lidera o caminho, devido à incapacidade da
criatura de fazer qualquer coisa por si mesma, e por outro lado diz-se que a
graça segue e a livre escolha lidera porque a graça não obriga, pois ele quem é
capaz e deseja por si mesmo é capaz de olhar para a luz. E, no entanto, João
orou para não ser totalmente abandonado, mas sim para ser levado a escolher o
bem. Deus ouviu João nesta preocupação e então imediatamente considerou a ação
de João que havia sido dirigida a Deus, que sabia de antemão de uma forma
necessária que João seria digno de ser ouvido. E João não orou em vão. Mas
Herodes considerou cuidadosamente de antemão e criou esta situação da
decapitação de João, pois era necessário que Herodes fosse deixado para trás, e
não só ele foi deixado para trás, mas a partir disso era necessário que Herodes
merecesse ser deixado para trás. E assim, não só o seu mal sofreu isso por si
mesmo, mas também não aconteceu ao acaso.
SEÇÃO E,
UMA ILUSTRAÇÃO DA PROVIDÊNCIA DE DEUS SOBRE OS SERES HUMANOS: ANÁLISE
Na
introdução à edição deste tratado, Jugie viu este episódio como um relato quase
molinista. Além de ser suscetível à acusação de anacronismo, esta avaliação
divide artificialmente o relato de Escolário em duas ordens: natureza e graça.
O problema é que Jugie subestima a ênfase de Escolário na sinergia aqui. O
tratado não é fundamentalmente um relato molinista, mas talvez tenha algumas
dessas tendências quando Escolário tenta definir como Deus opera o bem nesta
situação difícil. E nisto Escolário segue Orígenes. É importante notar,
contudo, que Escolário teologicamente tropeça em algo como o Molinismo apenas
quando tenta definir com demasiada precisão quem tem o passo inicial numa boa ação:
Deus ou a humanidade. A explicação mais teórica de Escolário é, em alguns
aspectos, mais satisfatória do que as suas tentativas de ilustrar essa teoria
em ação, porque na sua explicação teórica ele permite-se simplesmente dizer que
Deus e a humanidade cooperam em todas as boas ações.
Visto que,
como ele argumentou nos parágrafos 2-4, todas as criaturas recebem seu ser de
Deus, a atividade de Deus na criação é explicada como συντρέχειν, um acompanhamento ou concorrência,
uma palavra usada no concílio de Calcedônia para explicar como as duas
naturezas de Cristo coexistem. E é esta analogia cristológica da operação
simultânea do humano e do divino que é central para a compreensão do pensamento
de Escolário e do seu lugar na tradição teológica grega sobre a questão da
providência. Escolário estende o relato de João Damasceno sobre a natureza
humana de Cristo (na qual a natureza criatural é concebida como um instrumento
do divino) ao domínio das ações humanas em geral. Todas as outras causas além
de Deus são, segundo Escolário e Tomás de Aquino, causas instrumentais. Além de
ser a causa final da criação inteligente – isto é, dos anjos e dos seres
humanos, que encontram seu propósito na participação em Deus – Deus também é a
causa eficiente de tudo o que acontece. No relato de Escolário, a providência
de Deus não é limitada. E a liberdade humana?
A liberdade
parece estender-se aos seres humanos porque Deus também compartilha sua
causalidade eficiente com os seres dotados de inteligência. Mas isso cria um
problema. Quem, então, é realmente responsável por qualquer ação? Um ato
maligno, assim como foi para Damasceno e para a maioria dos teólogos
filosóficos gregos, é o resultado da escolha humana. Mas quem é responsável por
uma boa ação? Se Deus é a causa eficiente – isto é, o agente responsável por
tudo no mundo – como podem os seres humanos ser responsáveis por qualquer coisa
que não seja o pecado? Se Deus é a causa eficiente pela graça, essa graça não
obrigaria uma boa ação? É aqui que a linguagem cristológica de Escolário se
torna essencial. Sim, a graça e a causalidade eficiente de Deus são a causa de
qualquer boa ação, mas isso não é necessariamente anterior ou obrigatório para
uma boa ação. Qualquer boa ação humana tem a sua iniciativa na vontade humana
concomitante com a ação divina. Ou seja, qualquer boa ação se deve à cooperação
de Deus e da humanidade, e Escolário recusa-se a dissecar esta misteriosa
sinergia da maneira que a tradição agostiniana fez. Em vez disso, no relato
cristológico de Escolário, qualquer boa ação humana é devida à concordância da
vontade humana, mas não forçada pela vontade divina.
Existem, no
entanto, dois problemas sérios com este relato da graça. Qual é o lugar para a
oração desesperada? Para o publicano no templo (Lucas 18)? Para o bêbado ou
viciado que confia totalmente em Deus e que é santo, como São Marcos Ji
Tianxiang? Considere o exemplo do bêbado Sebastian Flyte em Brideshead
Revisited, de Evelyn Waugh. A sua irmã Cordelia afirma que ele é santo.
“Não se pode ter ideia de qual seja o sofrimento, sendo mutilado como está –
sem dignidade, sem poder de vontade. Ninguém é santo sem sofrimento. Assumiu
essa forma com ele. . . . É a fonte do amor.” O segundo problema é que o relato
de Escolário não parece suficientemente sintonizado com a assimetria existente
em qualquer cooperação entre o humano e o divino. A tradição ascética grega
deixa claro que é Deus quem age em qualquer boa ação e que o objetivo da vida
espiritual não é alcançar, mas permitir que Deus trabalhe. Se Deus prevê o bem
humano e depois decide cooperar, a ênfase não está na ação humana? Pode ser
que, como no exemplo da flecha que se dirige, Escolário não esteja em sua forma
teologicamente mais perspicaz quando tenta dar exemplos. Na verdade, esta
ênfase excessiva na contribuição humana é contrabalançada por outras partes do
seu primeiro tratado sobre a providência.
No
parágrafo 20, Escolário continua seu relato. Embora exista vontade e escolha
humanas, Deus sabe de antemão o que uma pessoa escolherá porque ela é a causa
de todas as coisas. [407.15] A presciência implica predeterminação, mas os
eventos não são em si mesmos predeterminados [407.21]; eles são apenas
predeterminados em Deus. Ou seja, os eventos não são forçados, como na
interpretação de João Damasceno feita por Tomás de Aquino (discutida abaixo). Ora,
o ser humano segue o que foi predeterminado para ele, mesmo sem querer, mas não
é obrigado a fazê-lo. Aqui Escolário faz uma distinção fundamental para abordar
a questão que atormentava os Padres gregos: a predeterminação parece implicar
necessidade ou força. Mas, devido à causalidade secundária, as causas criadas
são causas reais e, portanto, não são compelidas pela predeterminação divina.
Escolário
continua seu argumento afirmando que Deus sabe de antemão o que as pessoas
escolherão porque ele existe fora do tempo e, portanto, ele recusa a sua
cooperação daqueles que ele sabe que escolherão o pior caminho. Deus é a causa
daqueles que escolhem o bem porque colabora com eles, e não é a causa daqueles
que escolhem o pior, porque não colabora com eles. “Ora, cada [ação] foi
pré-conhecida e predeterminada por Deus da mesma maneira como irá acontecer e
como irá ocorrer ou ser realizada pela natureza, e assim é razoável que a
vontade divina (que considera tudo) está entrelaçada nessas pessoas, pois elas
não são obrigadas, mas apenas colaboram e concordam em ser ajudadas, enquanto
outras abandonam seu fim.”
SEÇÃO F,
SOBRE O USO DO TERMO ΠΡΟΟΡΙΖΕΙΝ: SINOPSE COM ANÁLISE
No
parágrafo 21, Escolário refere-se a teólogos não inspirados - e aqui ele tem em
mente Anastácio do Sinai, entre outros - que confundem os verbos predeterminar
e forçar. Aqui, seguindo João Damasceno e Tomás de Aquino, Escolário
explica que “o fato de que todas as coisas são conhecidas de antemão e
predeterminadas por Deus não confere mais necessidade para aqueles que agem
pela vontade do que se, depois de fazerem algo livremente (o que quer que eles
escolhessem fazer), ele soubesse que essas coisas seriam feitas por eles.” E a
razão é que Deus vive fora do tempo:
Ora, essas
coisas são conhecidas em algum momento e existem em si mesmas, na medida em que
são reais e conhecidas, mas a presciência delas existe como se estivesse
presente no conhecimento divino. Pois a presciência não completa essas coisas
nem as impede. E assim ninguém pode dizer que houve necessidade por causa
Daquele que prevê, e este também é o caso da predeterminação. Pois o
conhecimento de eventos predeterminados é, para Deus, coextensivo à
presciência. [408.20] Pois o conhecimento de acontecimentos indeterminados não
seria adequado a Deus. E por isso é necessário que as coisas conhecidas sejam
determinadas de maneira fixa e determinada. E as coisas conhecidas devem ser
predeterminadas, e não são determinadas de nenhuma outra forma, exceto por
aquele que é o criador de tudo e do fim último. E por isso se diz que todas as
coisas são dele e para ele, pois é ele quem ordena cada coisa e todas as coisas
lhe são ordenadas, e daí segue-se que cada um dos seus fins próximos é ordenado
por ele. [408.27]
Aqui,
novamente, as influências de Dionísio e Máximo Confessor são transparentes.
Escolário
conclui o parágrafo com uma nota de que embora teólogos como ele talvez não
estejam usando a palavra προορίζειν (predeterminar) em sua definição
mais precisa, eles estão pensando precisamente de acordo com a regra de fé, o
que implica também que aqueles que impõem esta palavra e seu significado usual
nas realidades teológicas é uma camisa de força para a fé. Em vez disso, a
definição ou uso da palavra deve ser mudado quando adaptada para uso teológico.
SEÇÃO G,
PROVIDÊNCIA E ORAÇÃO: SINOPSE COM ANÁLISE
No
parágrafo 22, Escolário argumenta que o seu relato é convincente porque é capaz
de explicar as várias antinomias que os relatos anteriores haviam contrastado.
Isto é, Pletão teve claramente que argumentar que tudo ocorre por necessidade
porque o seu Deus realmente trabalha em todas as coisas. Mas Pletão sacrifica o
livre arbítrio humano, dando espaço para a renúncia ao inevitável. Outros
relatos teológicos cristãos gregos, mais tradicionais, limitam a atividade de
Deus em vários graus. Por exemplo, Marcos de Éfeso e Anastácio do Sinai limitam
Deus a trabalhar apenas nas boas ações humanas e consideram que ele não está de
forma alguma envolvido na natureza (interpretada de forma ampla). Orígenes põe
menos limites a Deus, mas ainda não consegue reconhecer que Deus está de alguma
forma presente no pecado. Isto é, a existência de Deus como existência em si
não pode coincidir com uma criatura pecadora porque o pecado é,
metafisicamente, uma privação. Contudo, é um corolário do relato de Escolário
que, porque Deus está presente em todos os lugares, há existência em seres
humanos pecadores. Isto é, nenhum ser humano é tão depravado, tão simplesmente
pecador, que não exista.
Agora, esta
onipresença e predeterminação de todos os contingentes futuros pode parecer
eliminar a necessidade ou a eficácia da oração. Escolário, porém, argumenta que
seu relato rigoroso não elimina a eficácia da oração. Pois Deus está acostumado
a responder orações de maneira milagrosa e pode prever suas próprias ações que,
como milagres, estão além das leis da natureza. As orações dos piedosos
realmente agem como causas. E, dada a metafísica de Escolário, talvez possamos
considerar a causalidade da oração análoga à causalidade secundária da
criatura. Isto é, Deus trabalha através da oração e não é constrangido por ela,
e Deus pode causar o mesmo efeito sem oração, mas Deus prefere trabalhar
através da oração, tal como prefere trabalhar através dos sacramentos na
teologia da graça de Tomás de Aquino. Contudo, Deus nunca se limita a agir
através dos sacramentos, nem a graça de Deus é causada, de forma primária,
apenas através dos sacramentos.
Escolário
inicia então um catálogo das intervenções de Deus na ordem natural que são em
resposta às orações, argumentando contra a ideia, presente em Anastácio, Marcos
e Pletão, de que existe uma necessidade estrita na natureza, com a qual Deus
não pode ou não interfere. Embora Escolário não seja explícito sobre isso, o
grande problema com tal concepção, é claro, é que ela faz de Deus algo como o
Zeus de Homero, que, embora aparentemente todo-poderoso, deve obedecer ao
destino, que determinou que seu filho morrerá no livro da Ilíada. Em vez
disso, embora haja uma espécie de necessidade silenciosa na teologia da
natureza de Escolário, Escolário chama isso de necessidade meramente natural ou
de criatura. A necessidade nas criaturas é maleável e difere daquela
necessidade que Deus exerce entre as criaturas. Esta necessidade divina é
independente da necessidade da criatura. O Deus cristão, poderia dizer Escolário,
não é nenhum Zeus pletônico: “E como ele criou as coisas no cosmos do nada, não
há uma necessidade determinada nas criaturas de sua existência como se fossem
eternas com ele. Assim ele transforma os seres, e faz isso sempre que deseja, e
com suas próprias mãos, e com o melhor arranjo de presciência e pelo arranjo do
bem maior e mais comum, e ele pode fazer isso sem remover os outros seres. ”Escolário,
que não é dado ao tom comedido de Tomás de Aquino, talvez esteja enfatizando
demais o poder e a atividade de Deus, ou, mais precisamente, ele esteja
descrevendo com precisão as ações de Deus sem mencionar a causalidade muito
real da criatura.
No
parágrafo 23, Escolário argumenta que a oração está envolvida em todos os
aspectos da vida. Ao mesmo tempo, a oração envolve deliberação e ação humana.
De maneiras maravilhosas, tudo isso está dentro do arranjo divino. Aqui,
novamente, o compromisso de Escolário com a causalidade secundária, enraizado
na analogia do ser, é evidente. Não há contradição, para Escolário, em dizer
que Deus é totalmente a causa eficiente de toda ação e que uma criatura também
é totalmente a causa eficiente (embora secundária).
Esta
afirmação, é claro, teria confundido Aristóteles. Mas está enraizado na leitura
de Tomás de Aquino da Metafísica de Aristóteles, que vê o ser criatural como
análogo ao ser divino. Escolário esboçou uma versão dessa mesma metafísica na
seção B (pars. 2–4) deste tratado, que é fruto de seus trabalhos filosóficos
das décadas de 1440 e 1450, examinados nos dois capítulos anteriores. Escolário
transmite esta importante ideia em linguagem teológica íntima.
Ora,
nestas coisas, Deus atende mais especialmente às orações e, portanto, a
concordância de Deus nas fraquezas humanas transforma a ordem dos agentes
intermediários em direção a eles, muitas vezes de maneira vantajosa, e isso
ocorre com as vontades dos seres humanos, de modo que Deus fornece aos humanos
os seus próprios movimentos adequados. E assim nós, seres humanos, suplicamos
por ambos os tipos de ajuda celestial. Pois é impossível para quem está além da
bondade não eliminar os obstáculos externos ou não iluminar as almas para
encontrarem provisão, pelo menos para aquelas almas que têm um desejo
apropriado e pedem uma vantagem para a vida que está diante delas. Isto é
verdade, embora nem sempre seja claro [nesta vida]. (OC, 1.410.33–1.411.4)
A conclusão
de Escolário, traduzida abaixo na íntegra, retorna à questão bizantina
específica da predeterminação da hora da morte, e Escolário utiliza a mesma
passagem que Pseudo-Anastácio utiliza para responder a esta questão, 2 Reis
20.123 Curiosamente, ela também é usada por Tomás de Aquino em dois
pontos-chave, um dos quais Escolário certamente conhecia. A primeira está na
discussão de Tomás de Aquino sobre a profecia, uma seção da Summa Theologiae
que Escolário conhecia bem. A segunda é a carta ao Abade Bernardo, um texto que
dificilmente Escolário teria conhecido. A conclusão de Escolário é a seguinte:
24. E o
que é ainda melhor para demonstrar a boa providência de Deus para nós é que ele
nos impele à oração para que aqueles que não têm o que precisam para viver
continuamente como amigos de Deus possam ter esses recursos, pois Deus deseja
dá-los a eles para o seu aperfeiçoamento. Isto é verdade tanto para os recursos
para esta vida presente como para os necessários para a outra, seja ela a
libertação da escravatura ou qualquer outra coisa. Pois não há ninguém a quem
Deus não dê os recursos para a purificação, a uma pessoa de uma forma, a outra
pessoa de outra, e tudo isso sabendo quais seres humanos aceitarão e se
apegarão a este recurso, pois ele se deleita no cumprimento integral de toda a
sua boa criação. O resultado disso é que todos, tanto os que melhoraram como os
que permanecem obstinados, recebem o mesmo cuidado justo de Deus.
Ora, as
histórias sagradas estão cheias destas coisas, e até mesmo os politeístas
contam muitas dessas coisas nas suas histórias. No entanto, os politeístas
foram desviados no que diz respeito às causas e aos meios. Eles atribuíram uma
espécie de presciência e necessidade para assuntos sublunares a divindades
específicas, mas erraram ao atribuir a divindade às obras do único Deus, e
assim foram enganados na questão das causas das coisas, e assim, ao falar da
providência, eles ou não falavam nada ou não falavam corretamente ou pelo menos
não perfeitamente, e em vez disso eles se contentaram naquele momento com a
necessidade, e fizeram isso sem qualquer precisão de pensamento. Pior de tudo,
eles não achavam que deveriam concordar um com o outro.
Ora, depois
de todos estes relatos do amor de Deus pelos seres humanos, é verdadeiramente
apropriado que nós também proclamemos estas coisas com um pensamento correto e
dêmos graças ao criador por elas, e especialmente pela predeterminação imutável
da providência divina através da qual ele salva. Pois a ordem universal e
completa da presciência de Deus a respeito do sol não é alterada pela sua
paralisação em seu curso uma ou duas vezes, pois isso acontece pela autoridade
do criador, nem está de alguma forma fora do que foi predeterminado para o sol.
E Ezequias recebeu uma extensão de sua vida através do arrependimento de seu
antigo modo de vida, fugindo em direção à fonte da vida. Pois Deus já havia
economizado e determinado de alguma forma conceder mais vida a Ezequias,
conforme ele ameaçou, a menos que Ezequias se convertesse. Mas a
predeterminação divina relativa à vida e ao fim de Ezequias não mudou, pois
nesta predeterminação também está contida a capacidade do Senhor da vida e da
morte de organizar essas coisas para o bem, e não foi além do que havia sido
predeterminado para Ezequias que isso poderia acontecer, ou seja, que a oração
e uma vida melhor ganhariam para ele uma extensão de vida. Pois o que a
presciência divina universal uma vez estabeleceu como o limite para a vida de
Ezequias era incapaz de ser mudado, de modo que se tal período de tempo lhe
fosse oferecido duas vezes, então devemos considerar que o segundo foi o limite
final da vida para ele e que certamente será oferecido a ele. Porém, se o
segundo não for o limite final da vida, então não será oferecido. E se
Ezequias, por sua própria vontade, se arrepender, então também será possível
que ele não queira se arrepender, mas Deus sabe de maneira determinada que ele
mudará, e por isso ele não morre imediatamente.
E se ele
tivesse morrido imediatamente porque não se converteu, então não teria sido
predeterminado que os eventos acontecessem desta forma, mas em vez disso eles
acontecerão da maneira que é predeterminada no conhecimento abrangente de Deus,
e assim o evento acontece por meio da vontade humana, mas é predeterminado pelo
conhecimento divino. Pois o princípio relativo à vontade desses homens e à
presciência de Deus é o mesmo. E assim não resta nenhuma crítica a nós que
confessamos o estabelecimento de tudo como expusemos aqui, pois confessamos a
Deus, que nos dá a capacidade de conhecer e falar graciosamente, a quem
pertence a glória de todos para todo o sempre. Amém.
Dois pontos
deste parágrafo merecem atenção especial. A primeira é a discussão de Escolário
sobre os antigos entendimentos pagãos da providência divina. Escolário conclui
que os pagãos se estabeleceram na doutrina da necessidade. Esta é uma indicação
de que Escolário tem em mente o pagão moderno Pletão e seus discípulos. Pode
também revelar um insight perspicaz: em geral, as escolas filosóficas
tenderam, ao longo dos séculos até Constantino, a esta conclusão. De qualquer
forma, Escolário conclui que os pagãos aceitaram esta necessidade apenas porque
não conseguiam compreender como a causalidade realmente funcionava. Na verdade,
poder-se-ia, como fez Pletão, responder a Escolário que na sua juventude, se
ele fosse um aristotélico consistente, ele também teria defendido uma visão de
que todos os efeitos eram determinados com exclusão do livre arbítrio humano. É
apenas a sua nova metafísica cristã (tomista) que lhe permite pensar
consistentemente sobre esta questão.
O segundo
ponto é que a implicação da compreensão da graça de Escolário (aqui Escolário
fala de ἐπιμέλεια ou preocupação amorosa) é bastante diferente da
de Agostinho. Especificamente, Escolário não parece dar muito peso à doutrina
da eleição ou da predestinação. Isto é, ao contrário de Agostinho, Escolário
parece dizer que Deus fornece a sua graça igualmente a todos os seres humanos,
e não faz com que, no sentido da força, as pessoas aceitem ou rejeitem essa
ajuda. Novamente, vemos Escolário pensando muito em linha com a tradição
ascética grega com sua ênfase na purificação e na cooperação do cristão na obra
de salvação. Isto também está presente em Tomás de Aquino, em grande parte
através dos Padres Gregos, que ele pôde ler nas grandes bibliotecas de Roma
quando esteve em Santa Sabina na década de 1260, mas o que é distintivo na primeira
formulação de Escolário da sua teologia da providência é que ele apresenta uma
versão da teologia de Tomás de Aquino sem a herança da doutrina agostiniana da
predestinação ou da irresistibilidade da graça. A relação de Escolário com
Tomás de Aquino, então, não está aberta à crítica de Jerônimo a Ambrósio. No
prefácio de sua tradução latina de De spiritu sancto, de Dídimo, o Cego,
Jerônimo escreve sobre um contemporâneo - identificado por Rufino como Ambrósio
- que esse contemporâneo plagiou de Dídimo: “Eu mesmo prefiro ser conhecido
como o intérprete da obra de outro, em vez de, como um pequeno corvo, adornar-me
com as penas de outra pessoa, como fazem alguns homens. Pois li há algum tempo
a obra de um homem sobre o Espírito Santo e descrevi nela, como diria o cômico,
'coisas ruins em latim tiradas de coisas boas em grego.'” Em vez de tradução
passiva e incompleta, temos uma adaptação ativa de um recurso teológico
estrangeiro. Em vez da crítica de Jerônimo a Ambrósio, poderíamos considerar a
adaptação feita por Tomás de Aquino da teologia da providência de João
Damasceno como um modelo para compreender o significado da realização de
Escolário. Na verdade, veremos na conclusão que é precisamente o uso que Tomás
de Aquino faz da teologia da providência de João de Damasco que o torna tão
receptivo à recepção na tradição teológica ortodoxa grega.
Fonte: Matthew Briel, A Greek Thomist,
University of Notre Dame Press, Notre Dame, IN, EUA, 2020.