31 de maio de 2010

Por que São Simeão é o "Novo Teólogo"?


Para entendermos por que São Simeão é chamado de “o Novo Teólogo”, tomemos como ponto de partida a sugestão do Arcebispo Basílio, segundo o qual o epíteto “talvez lhe tenha sido dado por seus adversários. O termo carregava uma nuance que soava pejorativa aos ouvidos bizantinos conservadores, mas que foi rapidamente apropriado pelos discípulos de Simeão com grande entusiasmo”. [1] Aproveitaremos esta sugestão para abordar a doutrina de São Simeão dialogicamente, ou seja, tanto do ponto de vista daqueles que a defendem como sendo a expressão da espiritualidade ortodoxa tradicional quanto daqueles que entendem que tal doutrina representa uma inovação. As evidências do primeiro ponto de vista serão retiradas das obras do Arcebispo Basílio (Krivcheine), [2] do Bispo [atual Metropolita] Hilarion (Alfeyev) [3] e do Hieromonge Alexander (Golitzin), [4], enquanto as evidências do segundo ponto de vista serão retiradas de três artigos do Pe. John Anthony McGuckin. [5]

Um dos pontos centrais da discussão é como a palavra “novo” deve ser entendida. A explicação mais comum é que o epíteto de São Simeão o alinharia com o Evangelista João e São Gregório de Nazianzo, que foram os únicos Padres que também receberam o título de “teólogo”. Sob este ponto de vista, São Simeão seria “novo” somente em termos temporais, ou seja, ele teria apenas “renovado” a teologia mística em sua própria vida e doutrina. O título não é usado para conotar novidade, mas precisamente o contrário: ele implica em uma renovação da teologia tradicional e da prática espiritual. Eu rotularia este uso do termo como “fideísta”, no qual todo santo deve ser considerado, por via de “regra de fé”, plenamente inserido nos padrões da tradição ortodoxa: sua fidelidade à Tradição é enfatizada acima de tudo, enquanto qualquer ecentricidade ou discrepância no seio da Tradição tem sua importância minimizada.

O Bispo Hilarion, por exemplo, afirma na Conclusão Geral de seu livro que o “principal objetivo dos capítulos anteriores foi demonstrar a unidade fundamental entre Simeão, o Novo Teólogo, e a tradição ortodoxa, qual seja, a Escritura e a doutrina dos Apóstolos e Padres da Igreja”. [6] O Hieromonge Alexander argumenta, mais ou menos na mesma linha, que as obras de São Simeão sobre deificação e paternidade espiritual apresentam nada menos do que “o testemunho pessoal dos antigos elementos da tradição patrística grega”. [7] Por fim, segundo o Arcebispo Basílio, “O termo ‘teólogo’ deve ser entendido aqui, à exemplo da maioria dos Padres gregos, não no sentido de um teólogo que elabora novos dogmas, mas de um teólogo que atingiu o estágio contemplativo. O adjetivo “Novo” significaria, portanto, um renovador da vida apostólica, a qual teria sido em grande parte esquecida, conforme o próprio Simeão afirmara”. [8]

Todavia, comparem estas avaliações com a leitura crítica e historicista do Pe. John Anthony McGuckin, segundo o qual São Simeão era “um dos místicos menos representativos da tradição cristã oriental”. [9] McGuckin critica aqueles que “tentam sempre inserir o estudo de um autor bizantino do século XI em qualquer lugar (aparentemente), menos no século XI”. [10] Vejam que, aqui, São Simeão é “novo” em um sentido totalmente distinto daquele que verificamos acima: ele seria um inovador, alguém que fez uso da primazia de pai espiritual e de experiências místicas sobretudo para impor sua autoridade sobre monges desconfiados. Não é difícil imaginarmos como esta suposta novidade teria levantado suspeitas em seus contemporâneos, levando-os a atribuir-lhe a pecha de “Novo Teólogo” de maneira pejorativa, senão irônica.

Surge aqui uma importante questão metodológica: Será que nós, ortodoxos, deveríamos aceitar acriticamente o retrato “fideísta” dos vários santos, conforme nos são apresentados na hagiografia e nos hinos da Igreja? Ou será que deveríamos levar em conta as críticas “desconstrutivas” contra a literatura religiosa? O Pe. McGuckin entende que ambas as posturas são compatíveis: “Tenho notado que, em vários debates de seminários, esta questão da contextualização histórica das experiências místicas é vista como uma tentativa de reduzi-las a fatores que a precederam ou invocaram. Tal reducionismo não é de meu interesse, nem é corolário para meus arguimentos, exceto quando se trata de interpretarem grosseiramente a lógica do meu discurso”. Vamos então aplicar estas duas posturas tão diferentes à questão do relato de São Simeão acerca da visão da Luz divina, bem como às suas questões corolárias, ou seja, à primazia da paternidade espiritual e à centralidade da experiência espiritual pessoal

No capítulo The Vision of Light, [12] o Arcebispo Basílio aceita o valor de face dos diversos relatos de São Simeão, e se limita a combiná-los e a lhes anexar alguns comentários. O Hieromonge Alexander faz algo semelhante, e chega ao ponto de dedicar um capítulo do livro a The Glory in the Tradition [A Glória na Tradição], no qual procura fundamentar os relatos de São Simeão sobre a experiência da glória divina no contexto do Velho e do Novo Testamento e nas obras dos Padres. Ele conclui afirmando que “Glória e Luz, e a possibilidade de experienciar estas coisas na graça do Espírito Santo, não são novidades na literatura patrística grega. Simeão tem toda razão quando afirma que ele não é um inovador”. [13] O Bispo Hilarion vai ainda um pouco mais longe, e sustenta que a visão da Luz divina era uma experiência comum aos santos monges desde o princípio do monasticismo: “Do século IV em diante, as fontes monásticas fornecem muitos exemplos desse tipo de coisa [a visão da Luz], e é evidente que a visão da Luz era a experiência comum de muitas gerações de monges e ascetas”. [14] O Bispo Hilarion conclui: “Podemos dizer que a doutrina da visão da Luz de Simeão definitivamente possui sua pré-história na literatura patrística, particularmente nas obras de Evágrio, Macário, Máximo e Isaque, o Sírio”. [15] Segundo o Bispo Hilarion, a singularidade de São Simeão no que tange as obras sobre a visão da Luz divina reside somente em sua natureza autobiográfica e na ênfase dada à importância dessa visão.

Assim sendo, verificamos que, para os três autores citados, as obras de São Simeão em geral e sua ênfase na visão da Luz divina em particular estão plenamente fundadas na tradição patrística. A novidade de São Simeão reside apenas nos relatos de caráter personalista dessa visão e na centralidade que ele atribui a essa experiência. Nota-se, porém, certa postura defensiva em suas descrições: se São Simeão é um teólogo tão tradicional quanto afirmam, por que tanta insistência no assunto? É neste ponto que a obra do Pe. John Anthony McGuckin nos é muito útil.

A intenção do Pe. McGuckin não é duvidar ou denegrir a realidade da experiência e da doutrina de São Simeão, mas encontrar a vida autêntica por trás de sua Vita mediante a correlação entre a carreira de São Simeão e os distúrbios politicos da corte bizantina da época, criando assim uma contextualização histórica dos relatos das visões espirituais de São Simeão. No que tange os autores supra citados, o Pe. McGuckin argumenta contra a tendência deles de inserir São Simeão em uma corrente dourada que começaria com os Padres do Deserto e culminaria na controvérsia hesicasta do século XIV. A hermenêutica correta para a interpretação de São Simeão, segundo o Pe. McGuckin, “deve inelutavelmente começar em seu próprio texto, e aí já fica claro de imediato que a maior parte da literatura que o incluenciou (à parte a reprodução “padrão” da literatura monástica ascética) é uma rede difusa de biblicismos que substanciam suas obras, e que dão testemunho de que uma profunda consciência bíblica poderia em breve ser introduzida por meio da prática monástica”. [16] Em particular, os paradigmas bíblicos aludidos pelo Pe. McGuckin são os que ele chama de “paradigma do Sinai”, “paradigma(s) paulino(s)” e o “arquétipo apocalíptico-visionário”. [17] Os principais interesses destes paradigmas são “(a) uma forte reivindicação por autoridade e (b) uma necessidade explícita em estabelecer as bases para um programa radical de reformas”. [18] Segundo o Pe. McGuckin, o interesse de São Simeão em relatar suas experiências não é tanto expor uma doutrina da Luz divina, mas estabelecer sua própria autoridade sobre os monges do Mosteiro de São Mamas.

Ademais, o Pe. McGuckin sustenta que São Simeão realmente introduziu contribuições originais e significativas à vida monástica bizantina, sobretudo no que tange “seu desejo em ver o monasticismo ascender à categoria de atividade extática e visionária” e “no seu desejo de propagar a forma de energia psíquica e emotiva de seu mestre na vida spiritual afetiva”; e, por fim, “em sua tentativa de redefinir a estrutura de poder dos fundamentos aristocráticos”. [19]

Como devemos analisar estas leituras tão radicalmente distintas da “novicidade” da vida e da obra de São Simeão? Parece-me que a causa de tão divergentes leituras encontra-se nas distintas metodologias e pressuposições adotadas pelos dois lados. O Arcebispo Basílio, o Bispo Hilarion e o Hieromonge Alexander partem da conclusão de que a espiritualidade monástica da Igreja Ortodoxa forma uma tradição ininterrupta desde os Padres do Deserto dos séculos IV e V, continuando ao longo do período bizantino e culminando na expressão doutrinal da controvérsia hesicasta do século XIV, e que continua ininterrupta até os dias de hoje. Assim, eles inserem São Simeão precisamente dentro desta tradição contínua e ininterrupra, conferindo-lhe, no máximo, certa mudança de ênfase para a experienciação pessoal da Luz divina. As motivações desses autores seriam tão confessionais e apologéticas quanto históricas: seu interesse parece estar focado não tanto em São Simeão, mas no extraordinário exemplo pessoal que São Simeão representa no contexto da tradição viva como um todo. Por outro lado, o Pe. McGuckin parece dispensar o que ele chama de “hermenêutica global sintetizante” [20], inserindo firmemente São Simeão em seu contexto histórico. O Pe. McGuckin procura não extrair uma doutrina da Luz divina nos relatos de São Simeão, mas procura entender os motivos do santo ao descrever essas visões de uma maneira específica a uma audiência específica em uma época específica. Ademais, ele lê a Vita de Nicetas Stethatos exatamente com o objetivo de identificar “os motivos reais de Simeão por trás dos motivos que lhe foram atribuídos na geração seguinte”. [21]

Na minha opinião, o produto da abordagem do Pe. McGuckin é, na melhor das hipóteses, dúbio. Embora ele insista que não é sua intenção duvidar da autenticidade da experiência espiritual de São Simeão, sua abordagem quase sempre projeta no santo os motivos os menos lisonjeiros. Alguns exemplos ilustram bem o que quero dizer. O Pe. McGuckin diz que no “argumento teológico central de Simeão”, a saber, que apenas os místicos iniciados têm o direito de teologizar, a questão principal é a da autoridade”. [22] Para o Pe. McGuckin, tal apelo “representa nada mais do que um apelo de cunho antecipatório, com o objetivo de arbitrar-lhe autoridade individual dentro e acima daquela sociedade”. [23] As exortações disciplinares das Catequeses são, para o Pe. McGuckin, “técnicas de controle dirigidas aos grupos do mosteiro que não se encontravam sob controle direto de seus hegoumenos e que São Simeão pressentia poderiam lhe representar uma ameaça”. [24] Embora o Pe. McGuckin insista na idéia de que não deseja negar a autenticidade espiritual de São Simeão, os motivos que ele atribui ao santo são de tal ordem que acabam por minar sua própria santidade.

Comecei este artigo perguntando por que São Simeão é chamado de “o Novo Teólogo”. Acredito que, à exemplo do Arcebispo Basílio, o epíteto possa ser visto de duas maneiras. Aqueles que falam de dentro da tradição ortodoxa, como o próprio Arcebispo Basílio, o Bispo Hilarion e o Hieromonge Alexander, tendem a explicar o título apontando para a renovação da vida espiritual empreendida por São Simeão, explicando assim sua insistência aparentemente nova na importância da visão da Luz divina (além da insistência corolária na obediência a um pai espiritual) como algo plenamente inserido na tradição. Mas o título “Novo Teólogo” também pode ser encarado como sendo uma genuína novidade. Verificamos que tal ponto de vista é defendido em três artigos do Pe. John Anthony McGuckin, o qual, apartando São Simeão de uma “hermenêutica global sintetizante” e inserindo-o no contexto imediato do século XI, afirma que São Simeão não era um representante do monasticismo bizantino e que, ademais, São Simeão teria defendido um programa de reformas apelando às suas próprias experiências místicas.

Estas avaliações tão diferentes a respeito da “novicidade” de São Simeão vêm de duas perspectivas também radicalmente diferentes. Aqueles que partem da premissa de que há uma “corrente dourada” e contínua de tradição monástica tendem a enxergar São Simeão como um dos mais novos elos dessa corrente. Aqueles que encaram São Simeão exclusivamente a partir de seu contexto histórico tendem a analisar tal novicidade comparando-a com a Igreja contemporânea de São Simeão, insistindo assim que o santo estaria desprovido de antecedentes. De minha parte, afirmo que a primeira abordagem -- aquela que enfatiza a tradicionalidade de São Simeão -- provavelmente corresponde à abordagem empregada por seus discípulos, enquanto aqueles que fazem uso irônico do título “Novo Teólogo” enxergam São Simeão de maneira semelhante à do Pe. McGuckin.

[1] In the Light of Christ (Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 1986), 62.

[2] Ibid.

[3] St Symeon the New Theologian and Orthodox Tradition(Oxford: Oxford University Press, 2000).

[4] On the Mystical Life: The Ethical Discourses, Vol. 3: Life, Times and Theology (Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 1997).

[5] “Symeon the New Theologian (d. 1022) and Byzantine Monasticism,” in A. Bryer and M. Cunningham Mount Athos and Byzantine Monasticism (London: Variorum, 1996); “St. Symeon the New Theologian (969-1022): Byzantine Spiritual Renewal in Search of a Precedent” in R. N. Swanson, The Church Retrospective (Ecclesiastical History Society, 1997); “The Luminous Vision in Eleventh-Century Byzantium: Interpreting the Biblical and Theological Paradigms of St. Symeon the New Theologian” in M. Mullet and A. Kirby, Work and Worship at the Theotokos Evergetis 1050-1200, (Belfast: Byzantine Texts and Translations, 27, 1997).

[6] Alfeyev, 271

[7] Golitizin, 11.

[8] Krivocheine, 62-63, grifos meus.

[9] McGuckin, “Luminous Vision,” 97, grifos no original.

[10] Ibid., 97, grifos no original.

[12] Krivocheine, 215-238.

[13] Golitzin, 105.

[14] Alfeyev, 226, grifos meus.

[15] Ibid., 241, grifos meus.

[16] McGuckin, “Luminous Vision,” 97-98.

[17] Ibid., 98-101.

[18] Ibid., 101-102

[19] McGuckin, “Byzantine Monasticism,” 34.

[20] McGuckin, “Luminous Vision,” 96.

[21] McGuckin, “Byzantine Monasticism,” 18.

[22] Ibid., 30

[23] Ibid., 30

Fonte: Ora et Labora (partes 1, 2, 3 e 4).

28 de maio de 2010

A Igreja Ortodoxa e as religiões orientais


Um padre cristão ortodoxo me contou que seu filho de 26 anos tomara a decisão de sair de casa e se mudar para um mosteiro budista. O padre estava desconsolado. Afinal, a Ortodoxia não era algo estranho para seu filho, nem mesmo a tradição monástica, pois o rapaz já havia visitado e se hospedado em mosteiros ortodoxos por diversas vezes. Até mesmo na Santa Montanha o rapaz esteve, por dois meses seguidos.

A transferência desse rapaz para uma tradição religiosa oriental não-cristã não é um fato isolado. As religiões orientais estão crescendo bastante na América do Norte e, hoje, representam uma força competitiva real na vida religiosa. O Budismo é atualmente o quarto maior grupo religioso dos EUA, com aproximadamente 2,5 a 3 milhões de adeptos, dos quais uns 800 mil são de americanos "convertidos". Nos EUA, há mais budistas do que cristãos ortodoxos. O Dalai Lama (líder de uma das seitas budistas tibetanas) é uma das pessoas mais reconhecidas e admiradas do mundo e, sem dúvida, é muito mais conhecido do que qualquer hierarca cristão ortodoxo. Dê uma olhada na seção de revistas da Borders ou da Barnes & Noble. Você vai encontrar mais revistas com nomes como Shambala Sun e Buddhadharma do que revistas cristãs.

Além de perder buscadores para as tradições orientais não-cristãs (muitos dos quais são jovens), a metafísica oriental infiltrou-se na cultura ocidental sem que ninguém notasse. Por exemplo, quantas vezes você já ouviu frases como "você tem um bom karma"? Karma é um termo hindu que tem a ver com as conseqüências do que você fez em vidas passadas (reencarnação). Eles estão sendo mais eficazes em "evangelizar" nossa cultura do que nós, cristãos ortodoxos.

O Senhor foi muito claro quando disse para que em Seu nome se pregasse o arrependimento e a remissão dos pecados, em todas as nações (Lucas 24:47). O número de budistas (entre os quais há muitas seitas) e hindus cresce a olhos vistos na América -- nas salas de aula, nos campos de futebol, nos shopping centers. Eles representam um "campo missionário" em potencial para a Igreja Ortodoxa nos EUA. Infelizmente, com raras exceções, como as obras do Hieromonge Damasceno [Christensen] e de Kyriakos S. Markides, nós não estamos falando a essa gente.

Pois eu lhes digo, como ex-hindu e discípulo de um famoso guru, que o Cristianismo Ortodoxo tem muito mais a ver com as tradições orientais não-cristãs do que qualquer outra confissão cristã. O fato é que os protestantes tentam evangelizar os buscadores orientais e a emenda acaba saindo pior do que o soneto. A abordagem que eles adotam é culturalmente ocidental, racionalista e jurídico-legalista, e eles pouco ou nada entendem dos paradigmas e da linguagem espiritual dos buscadores dessas tradições orientais.

Os budistas e hindus compartilham três "princípios metafísicos fundamentais":

1. Há uma realidade "supra-natural" que subsume e pervade o mundo fenomênico. Tal Realidade Suprema não é pessoal, mas transpessoal. Deus, ou a Realidade Suprema, é, em última instância, uma "consciência pura", desprovida de atributos.

2. A alma humana é consubstancial com essa Realidade Suprema. A natureza humana inteira é, em essência, divina. Segundo essas tradições, Cristo ou Buda não são salvadores, mas são apenas paradigmas de auto-realização, o objetivo de toda a humanidade.

3. A existência é fundamentalmente uma unidade (monismo). A criação não é aquilo que parece a olho nu. Em essência, ela é "ilusória", "irreal" e "impermanente". Há um grau de ser (pense no "campo quântico" da Física.) que unifica todos os seres e do qual e no qual tudo pode ser reduzido.

O que esta metafísca tem em comum com a fé cristã ortodoxa? Não muito, à primeira vista. Mas acontece que, nas tradições orientais não-cristãs, o conhecimento não é apenas um desenvolvimento teológico ou a disseminação de uma doutrina metafísica. Eis um dos pricipais problemas que os cristãos ocidentais enfrentam quando tentam se comunicar com os buscadores orientais. As religiões orientais jamais são teóricas ou doutrinais. Elas têm mais a ver com o esforço para se libertar do sofrimento e da morte. Essa ênfase "existencial" é o primeiro ponto em comum com a Ortodoxia, pois a Ortodoxia, em sua essência, enfatiza o aspecto transformacional.

O segundo ponto em comum da fé ortodoxa com os budistas e hindus é o estado corrupto da humanidade e da consciência humana. O objetivo da vida cristã, segundo os Padres da Igreja, é sair desse estado "sub-natural" ou "caído" em que estamos (sujeitos à morte) para um estado "natural" ou "segundo a natureza", à imagem (de Deus), e, em última instância, a um estado "supra-natural" ou "sobre-natural", à semelhança (de Deus). Segundo a doutrina dos Santos Padres, os estágios da vida espiritual são a purificação (metanoia), iluminação (theoria) e deificação (theosis). Tal paradigma de formação e transformação espiritual é, na Cristandade, exclusivo da prática cristã ortodoxa. Embora não concordemos com budistas e hindus a respeito do que é "iluminação" e "deificação", estamos de acordo no que tange o diagnóstico básico da condição humana decaída. Certa vez, eu disse a um budista tibetano praticante que "estamos de acordo quanto à doença (da condição humana); nós só discordamos quanto à cura".

A Ortodoxia -- especialmente a tradição hesicasta (contemplativa) -- ensina que o "conhecimento espiritual" pressupõe um noûs "purificado", "desperto", que é o "eu" interior da alma. Para os cristãos ortodoxos, o verdadeiro teólogo não é aquele que simplesmente sabe a doutrina, em termos intelectuais ou acadêmicos, mas é aquele que conhece Deus, ou os princípios ou essências interiores das coisas criadas, mediante a apreensão direta ou percepção espiritual. Segundo um famoso teólogo ortodoxo, "Quando o noûs está iluminado, isso significa que ele está recebendo a energia de Deus, a qual o ilumina...". Tal idéia soa bem aos ouvidos dos buscadores orientais que se esforçam em experimentar -- mediante ascese não-cristã ou métodos ocultistas -- a iluminação espiritual. A maioria dos buscadores orientais não está ciente de que a iluminação espiritual profunda, a qual nossa tradição hesicasta chama de theoria, exista em um contexto cristão.

O dhamma (prática) budista e hindu enfatiza a cessação do desejo como parte de sua ascese espiritual, a qual é necessária para apagar as paixões. A tradição da Igreja ensina a apatheia, ou desapego, como o meio para compater as paixões decaídas. Os métodos de meditação hindu e budista ensinam a "quietude". A palavra hesychia, na tradição cristã -- a raiz da palavra hesicasmo --, significa exatamente "quietude". Em especial, o Budismo ensina a "plena atenção". A tradição cristã ensina a "vigilância", para que não incorramos em tentações. Os hindus e budistas entendem que não é sábio viver para esta vida, mas sim se esforçar para a vida futura. Nós, ortodoxos, concordamos plenamente. Os americanos que se "convertem" ao Budismo ou ao Hinduísmo são freqüentemente pessoas que se esforçam para aprender línguas e culturas estrangeiras (sânscrito, tibetano, japonês) e sair de suas "zonas de conforto". Os convertidos à Igreja Ortodoxa também são assim. Algumas seitas budistas e hindus possuem formas complexas de "liturgia", as quais incluem cânticos, prostrações e venerações de ícones. O Budismo Tibetano, em particular, confere grande honra aos seus ascetas, relíquias e "santos".

A principal diferença no que tange a experiência espiritual está naquilo que as tradições orientais não-cristãs chamam de "iluminação espiritual" ou "consicência primordial" -- alcançada mediante contemplação profunda (Moksha, Samadhi) --, pois a tradição cristã ortodoxa chama isso de "auto-contemplação". O Arquimandrita Sofrônio (Sakharov) era um grande especialista em yoga (união) antes de se tornar hesicasta e discípulo de São Silvano da Santa Montanha. Eis o que ele disse, a partir de sua experiência pessoal: "Toda contemplação alcançada por estes meios (yoga etc.) é auto-contemplação, e não contemplação de Deus. Em tais circunstâncias, o que se revela a nós é a beleza criada, mas não o Primeiro Ser. Neste contexto, não há salvação para o homem". Clemente de Alexandria, há dois mil anos, escreveu que os filósofos pré-cristãos freqüentemente encontravam-se inspirados por Deus, mas que mesmo assim os cristãos deveriam tomar cuidado com o que aprendiam deles.

É verdade, portanto, que os buscadores orientais podem, mediante ascese ou disciplinas contemplativas, experienciar níveis profundos de beleza criada, ou ser criado, ou dimensões paranormais, até mesmo o "não-ser" do qual somos formados: mas isto não é a Vida Incriada. Será que são essas experiências que os buscadores orientais estão procurando? Esta é a pergunta-chave. Somente a Igreja Ortodoxa poderá, mediante os mistérios deificantes, levá-los à província da Vida Incriada. De todas a confissões cristãs, somente na Igreja Ortodoxa os buscadores orientais aprenderão que há mais na "salvação" do que apenas remissão de pecados e justiça divina. Eles serão levados a participar na energias incriadas de Deus e, por meio delas, serem participantes da natureza divina [II Pedro 1:4]. Enquanto membros do Corpo de Cristo, eles se juntarão ao processo deificante e, aos poucos, serão transformados na semelhança de Deus. A deificação está disponível a todos que ingressam na Santa Igreja Ortodoxa, são batizados (é o começo do processo deificante) e participam dos santos mistérios. Não é algo que está disponível apenas aos monges, ascetas e atletas espirituais.

A Ortodoxia tem muito a compartilhar com os buscadores orientais. Vida e morte estão à prêmio nesta vida, não nas milhões de vidas que os buscadores orientais pensam que têm. Conforme alertou o Apóstolo Paulo: Aos homens está ordenado morrerem uma vez, vindo depois disso o juízo (Hebreus 9:27).

Que Deus nos conceda a sabedoria para estendermos a mão e compartilharmos a "luz verdadeira" da santa fé ortodoxa com os buscadores das tradições espirituais orientais.

Fonte: Kevin Allen.

Foto: Catedral Ortodoxa de Santa Sofia, Harbin, China.

27 de maio de 2010

O que é "palamismo"?

Recentemente, um amigo me mandou um post de um blog de um teólogo acadêmico que pensou ter refutado as doutrinas de São Gregório Palamás ao citar São Basílio de maneira completamente descontextualizada. Bem, não é a toa que a internet é chamada de "a maior revista Caras do mundo".

Ora, já que o dia de São Gregório está chegando, pensei que seria o momento ideal para darmos uma olhada na teologia dele. A primeira coisa que precisamos entender sobre o palamismo é que o palamismo absolutamente não existe. O palamismo foi inventado por pensadores católicos romanos -- não ousarei chamá-los de teólogos -- que queriam justificar sua própria heresia mediante o expediente de rotular a doutrina tradicional da Igreja Ortodoxa com alguma palavra exótica, transformando-a assim em algum "ismo" historicamente condicionado. Tudo o que São Gregório fez foi expressar a milenar doutrina da Igreja no quadro contextual da controvérsia da época, a saber, a natureza dos métodos hesicastas de oração. Por trás das discussões sobre focar o peito e enxergar luzes encontra-se uma distinção fundamental sobre a qual os teólogos ortodoxos têm versado pelo menos desde os tempos de Santo Atanásio.

Em poucas palavras, a doutrina é a seguinte: Desde o princípio, os homens têm passado por dois tipos bem diferentes de experiências com Deus. Por um lado, Deus é percebido como algo radicalmente diferente, ou seja, como um "Outro" tão distinto de nós que simplesmente não conseguimos nos referir a Ele com palavras como "ser" e "existência" de maneira perfeitamente inequívoca e direta. "Os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos" [Isaías 55:8], disse o Senhor. O termo técnico que designa esse sentido da distância divina em relação a nós é "transcendência". Por outro lado, nós, homens, ou pelo menos alguns homens, também experimentaram Deus como algo que está mais próximo de nós do que nossos próprios egos. O Cristianismo é a religião de Emanuel, que significa "Deus conosco". São Pedro nos exorta para que nos tornemos "participantes da natureza divina" [II Pedro 1:4]. O termo técnico que designa essa proximidade de Deus é "imanência".

A Ortodoxia é a religião do e, não a religião do ou. Isso significa que a Ortodoxia tem, desde sempre, ensinado a transcendência inconciliável de Deus e a presença e comunhão imediata de Deus com os homens -- a ponto de Ele nos tornar participantes de Sua própria vida.

No entanto, as heresias têm quase sempre ensinado a religião do ou. Já expliquei em programas anteriores que há dois tipos de heresias. As "heresias entusiastas" são aquelas que se apegam a alguma sujeito carismático que acha que tem uma relação especial com Deus e que banca o profeta auto-ungido. Montano é um exemplo típico dessa heresia. Dizem que seus seguidores batizaram pessoas em nome do Pai, do Filho e do Senhor Montano. Joseph Smith, bem como a maioria dos carismáticos modernos, também se enquadram nessa categoria. O segundo tipo de heresia, e que é a categoria mais comum, são as "heresias racionalistas". A grande maioria dos "ismos" que afetaram a Igreja ao longo dos séculos eram heresias desse tipo -- desde o sabelianismo até o calvinismo. Porém, há uma coisa em comum nesse tipo de heresia: seus heresiarcas ensinam que a experiência com Deus deve se conformar a uma determinada estrutura racional. Em outras palavras, todos eles presumem que Deus tem de fazer sentido para nós.

Acho que fica mais fácil de entender se eu lançar mão de uma ilustração. Por exemplo, vamos considerar a doutrina da Trindade. Sabemos que, desde o princípio, a Igreja confessa sua fé no Pai, Filho e Espírito Santo, bem como batiza em Seu nome. Sabemos também que a Igreja é o novo Israel e, por isso, ensina que há um e apenas um Deus, e não três. Portanto, a Igreja confessa que Deus é Três Pessoas divinas e Um ser eterno e onipotente.

Contudo, o presbítero romano Sabélio não aceitou o e da Trindade. 1 + 1 + 1 não é igual a 1. Ora, ele queria que Deus se conformasse à razão humana e à lógica matemática. Assim, ele resolveu o dilema lógico da Trindade concluindo que as Pessoas eram apenas modos do Deus Uno, e que, apesar de desempenharem papéis distintos em momentos distintos, havia sempre o mesmo Deus por trás daquela máscara. Mais tarde, Ário enfrentou exatamente o mesmo problema. Porém, como os sabelianos haviam sido banidos da Igreja, ele teve de bolar uma solução diferente. Ário rebaixou o Filho e o Espírito ao nível de seres criados. Esse esquema mantinha intacta a unidade de Deus, mas ao mesmo tempo tornava mentirosa a experiência da Igreja. A Igreja sempre adorou Cristo como Deus. Por conseguinte, o arianismo acabou sendo rejeitado.

A função da famosa expressão homoousios do credo niceno nada mais é do que afirmar que Cristo é uma Pessoa distina da Pessoa do Pai e é consubstancial -- de mesma essência ou natureza -- ao Pai. Em outras palavras, a Trindade é trina e una.

Quanto à distinção entre essência e energias de Deus -- aquilo que os católicos romanos gostam de chamar de "palamismo", mas que está presente em toda a história do pensamento ortodoxo --, ela nada mais é do que uma convenção lingüística para afirmar a transcendência e a imanência de Deus. A doutrina da Luz incriada, que é um corolário desta distinção, afirma simplesmente que, quando os santos experimentavam a glória de Deus, eles estavam experimentando nada menos do que o próprio Deus, embora Ele ainda estivesse absolutamente oculto e intocável no que tange a Sua natureza mais íntima.

A glória de Deus, ou a graça de Deus, não são intermediários criados, mas o próprio Deus. Quando o homem participa dessa graça, ele encontra-se literalmente deificado, mas nunca, nem nesta vida nem no século futuro, o homem será transformado na natureza de Deus. Deus é participável (se é que essa palavra existe) segundo Suas atividades ou energias, mas Ele também é totalmente transcendente por natureza. Em contrapartida, o homem se torna deificado pela graça, embora permaneça criatura por toda a eternidade. Foi isto isto que São Basílio quis dizer quando afirmou que o homem é uma criatura destinada a se tornar Deus.

Todavia, as pessoas que negam tal distinção alegam que ela viola a simplicidade divina -- o que é uma maneira insincera de dizer que ela viola a racionalidade humana --, pois Deus teria de ser ou, não e. Mas a natureza divina não é, e nem poderia ser, objeto da cognição humana. Um deus que possa ser compreendido pela razão humana não é absolutamente Deus. Em suma, Deus não está sujeito às leis da não-contradição e do terceiro excluído.

Ocorre que São Gregório fez uso de um método de argumentação que São Marcos, o Monge, e outros santos utilizaram desde há muitos séculos. Ele se pergunta, retoricamente, "E se esse pessoal do ou estiver certo?" Se as atividades ou energias divinas não forem realmente Deus, mas coisas criadas, então o homem será incapaz de efetivamente comungar com Deus. Nossa relação com Deus seria puramente extrínseca. Esta é a maneira de pensar dos muçulmanos e de algumas denominações protestantes. Jamais nos tornaremos deuses pela graça, ou participantes da natureza divina, ou legítimos co-herdeiros com Cristo. Seremos apenas servos. Por outro lado, se as atividades ou energias divinas são idênticas à natureza divina, então participar delas significa, de algum modo, participar da própria natureza divina. Se levarmos esse raciocínio às últimas conseqüências, a conclusão final será inevitavelmente o panteísmo. Com efeito, o Cristianismo Ocidental tem vacilado entre ambas as conclusões ao longo dos últimos mil anos. No entanto, ambos os cenários, repetindo o que falei acima, tornam mentirosa a experiência da Igreja. Os santos sabiam que estavam experienciando o próprio Deus, e não uma criatura intermediária, mas também sabiam que esse Deus era inexaurível e inconciliável em Seu ser mais íntimo.

Por conseguinte, restam-nos duas opções. Podemos aceitar o e e os paradoxos e contradições lógicas que advêm disso, ou sacrificamos a experiência viva da Igreja no altar da razão humana decaída e conformamos Deus aos nossos padrões de racionalidade.

O verdadeiro problema aqui, conforme falei anteriormente, é o fato de as pessoas insistirem em fazer teologia com livros ao invés de fazer teologia com o cordão de oração. Não há nada esotérico, nem mesmo místico, na doutrina da distinção entre essência e energias divinas. Trata-se simplesmente do modo da Igreja preservar o e e, conseqüentemente, preservar a possibilidade de que descubramos essa verdade por nós mesmos, seguindo o caminho eclesiástico do arrependimento, da obediência e da oração.

22 de maio de 2010

A identidade espiritual


A religião existe para criar no indivíduo humano uma identidade pessoal que seja completamente independente das circunstâncias da sua vida corporal, ou seja, para dar ao indivíduo humano uma identidade que seja capaz de resistir à destruição desse corpo. Essa identidade só se pode construir a partir de uma atividade, no próprio indivíduo humano, que seja ela mesma, por definição, completamente independente da corporalidade. A única coisa no indivíduo humano que é capaz de uma atividade assim é a própria inteligência. A atividade da inteligência é ela mesma incorpórea. Se essa atividade alcançar um objeto que em nada dependa da corporalidade, então o sujeito que alcança isso começa a adquirir uma identidade pessoal que é completamente independente da sua vida corporal. Então, quando ele morre, essa identidade é capaz de continuar.

Essa identidade começa quando o sujeito, em nome da aquisição dessa atividade, dá esse salto. O sujeito dá esse salto quando ele diz: "Olha, eu não tenho a menor idéia do que é o Absoluto, e todo meu psiquismo e minha corporalidade diz que eu não preciso fazer isso [que no Cristianismo, Islã, Confucionismo etc.] que dizem que devo fazer para conhecer o Absoluto". Quando o sujeito se dá conta de que todo seu psiquismo e organismo dizem que não precisa, ele mesmo assim faz isso precisamente porque não confia em seu psiquismo e em seu organismo. Quando o sujeito faz isso, ele deu o primeiro passo para a aquisição de uma identidade espiritual, de uma identidade que é independente de seu organismo psicofísico.

A perfeição existe dentro de cada ordem. Existem corpos humanos que são perfeitos: há pessoas que são perfeitamente saudáveis e maravilhosamente belas. Existem pessoas cujas almas são verdadeiramente angelicais. Quando se lê a biografia de Santo Antonio de Pádua ou de São Bento, por exemplo, parece que eles não eram homens, mas anjos. Aos 5 anos de idade eles já pensavam em sua identidade espiritual. Existem pessoas cuja alma e cujo corpo são perfeitos, mas "o corpo morrerá, e a alma mudará".

Por mais perfeita que seja uma alma, se a personalidade que há naquela alma depende do corpo e da sua história e da sua biografia apenas, ela será perdida. Existem pessoas excelentes, mas elas também morrerão, e elas poderão esquecer tudo que é excelente nelas depois da morte. Não é difícil se esquecer do que nós somos.

Nós nos lembramos do que somos porque todo dia de manhã podemos nos olhar no espelho e ver um rosto muito semelhante ao que vimos no dia anterior. Todo dia nós acordamos e estamos no mesmo quarto, no mesmo lugar em que fomos dormir etc. Todo esse quadro de referências constantes oferecido pela corporalidade garante a manutenção de nossa identidade psíquica, garante-nos lembrar que "eu sou Fulano, filho de Beltrano e Ciclana etc.". Tudo isso sustenta nossa identidade.

Com a morte, tudo isso desaparece. Depois da morte, encontramo-nos em uma situação semelhante ao sonho, em que não existem referências fixas. Nos sonhos, por exemplo, colocamos um copo na mesa, mas ele atravessa a mesa e cai. Depois colocamos de novo e ele fica. Não existem regularidades nos sonhos. Depois da morte, toda a experiência da alma é assim. Por quanto tempo conseguiremos nos lembrar de quem somos em uma situação assim? Em um dia, acordamos e somos filhos do Fulano, no dia seguinte somos filhos de Beltrano etc. Isto é a morte. A morte é entrar em um estado de sonho. O sujeito que não adquiriu, antes da morte, um princípio de identidade que não dependa de nada deste quadro de referência corporal acabará enlouquecendo depois da morte. E isso é o inferno.

Há uma famosa passagem de Chuang-Tsé, um sábio taoísta, que diz: "Uma vez eu dormi e sonhei que era uma borboleta. Quando acordei, me perguntei: 'Eu era um homem sonhando que era uma borboleta ou uma borboleta sonhando que era um homem?'". Como saber? Os taoístas ensinam que, se numa noite você é uma borboleta azul, na outra uma borboleta vermelha, na outra uma borboleta que fala etc., ou seja, as referências nos sonhos podem mudar em todos os seus aspectos, mas quando acordamos, as referências permanecem mais ou menos iguais, então elas têm um tipo de estabilidade que as referências do mundo onírico não têm. A corporalidade tem um tipo de estabilidade que o mundo onírico/psíquico não tem, e isso nos garante a manutenção de uma identidade. O ser humano altera entre dois estados: vigília (referências constantes, regularidades) e mundo onírico. Essas regularidades permitem que nos recordemos de quem somos. A mudança de minha aparência física é gradual.

É só isto que nos mantêm sendo a mesma pessoa. É só isso que permite que digamos que há um "eu". A morte nos tira essa referência, ela nos joga em um estado de sonho perpétuo. A morte é sair do mundo real e entrar no mundo da Pantera Cor-de-Rosa. Depois de uma dúzia de experiências de maleabilidade total das referências, nós já enlouquecemos, já perdemos nossa identidade. Se três vezes, na mesma semana, nos tirarem do lugar onde estamos e nos colocarem em um lugar completamente diferente, já estaremos a meio caminho da loucura. É verdade que olharemos para nossas mãos e as reconheceremos como as mesmas que vimos antes, ou seja, haverá ainda algumas experiências regulares. Mas e se tirarmos todas essas referências? No sonho, podemos nos perceber como humanos, depois como borboleta, depois como leão.

Existem qualidades humanas fora das religiões? Sim, claro. Há ateus perfeitamente honestos, justos etc., mas as qualidades humanas são características ou hábitos do psiquismo humano, e elas dependem desse quadro de referências. Todas as qualidades humanas -- justiça, honestidade, generosidade etc. -- dependem desse quadro de referências que é a corporalidade. Quando damos esmola para o mendigo, o dinheiro não volta para nosso bolso no dia seguinte, mas permanece no bolso do mendigo (ou de quem ele tenha porventura passado o dinheiro). No estado de sonho, isso aí acabou: não há como manter qualidades humanas em um estado de sonho, pois elas têm como alicerce o quadro de referências dado pela corporalidade. Em suma, as qualidades humanas não são suficientes para salvar um indivíduo. As qualidades humanas são excelentes, mas elas existem como uma função da adequação entre o homem e este mundo, para que mantenhamos nossa identidade humana diante deste mundo. Nossa generosidade, justiça etc. existem para que lembremos o tempo todo que não somos uma pedra, um cachorro, uma nuvem. Elas nos recordam daquilo que nos é próprio, mas sempre dentro do quadro de referência da corporalidade. Como manter nossa justiça em um mundo de sonho? As qualidades humanas se diluem no psiquismo. Nossas qualidades humanas dependem da fixidez e estabilidade do mundo corpóreo, e em um estado de sonho não conseguiremos mantê-las.

As virtudes teologais são uma iniciativa do Absoluto. São qualidades divinas que Ele insere no psiquismo humano, que existem em função da regeneração de uma identidade espiritual independente do psiquismo. Quando o sujeito morre e ele está diante de sua psique, essa identidade se destacará como permanente. As virtudes teologais são aspectos de modalidades da identidade espiritual na psique. A caridade não se confunde com o amor humano pelos seus semelhantes, ou por outros seres, ou por Deus, pois não é um sentimento, não é um ato psíquico, mas é um aspecto da identidade espiritual do cristão que reverbera ou ressoa em seu psiquismo como generosidade, como compaixão, como bondade. O que chamamos de caridade é somente a ressonância psíquica da caridade. A caridade é um aspecto da identidade espiritual do cristão.

Sem o sujeito adquirir um princípio de identidade pessoal que não dependa em nada do quadro de referências fornecido pela corporalidade será impossível que ele se mantenha consciente de quem ele é depois da morte. É impossível. Ele perderá essa identidade no decorrer das experiências psíquicas. Se começarmos a sonhar e não acordarmos mais, esqueceremos rapidamente quem somos. Aliás, a expressão "quem eu sou" não tem sentido no mundo onírico. Tudo o que chamamos de identidade depende de certas referências constantes. O que chamamos de "eu" depende das leis do mundo corpóreo, do mundo físico. Uma vez removidas essas leis, o efeito cessa. Sem a causa (leis do mundo físico), não há efeito (o "eu").

Na morte, só nos resta a identidade que nós criamos para nós mesmos. Se ela é de natureza espiritual, ela permanece; se for de natureza corpórea, ela desaparecerá. Não é que a atividade psíquica, que era organizada segundo essa identidade, desaparece: essas capacidades não são determinadas pela existência física. Essas capacidades continuarão. Mas a identidade subjetiva delas desaparecerá. A esquizofrenia é um símbolo do inferno.

As pessoas no Purgatório são as pessoas que conseguiram realizar os princípios de identidade espiritual, mas não chegaram a construí-la efetivamente. É como o sujeito que comprou todo o material para fazer a casa, mas ele ainda não a fez. O estado do Purgatório é aquele em que tudo aquilo que era contrário ao processo de construir sua identidade espiritual vai sendo destruído, ou seja, tudo o que, na sua identidade concreta, impossibilitava a pessoa de construir sua identidade espiritual neste mundo vai desaparecendo. É neste sentido que o Purgatório é doloroso. Mas, ao mesmo tempo, vai aparecendo os materiais espirituais, uma ambiência espiritual, na qual ele constrói uma outra identidade. É por isso que, no topo da montanha do Purgatório, Dante colocou o Jardim do Éden. Há muitas pessoas assim nas comunidades religiosas.

Na verdade, para o sujeito começar a adquirir essa identidade, é necessário que ele faça aquilo que, na prática, o torna consciente que a identidade que ele possui não é suficiente para depois da morte. É não agir segundo sua identidade por saber que ela não o garante. São as ocasiões em que existe uma disparidade entre a proposta de nossa religião e nossa realidade concreta -- ou seja, como sentimos a realidade das coisas, de nossos sentimentos, vontade, inteligência -- que são as oportunidades que temos para começarmos a construir uma identidade espiritual. Se eu não sinto que é assim, então é por isso mesmo que vou fazer. "Eu não sinto, mas o Cristo sente, e Ele é a minha identidade espiritual, que eu não conheço." A expressão "o Filho do homem" representa justamente isso: a identidade espiritual que nasce no seio do psiquismo humano, que só pode nascer nesse organismo psicofísico. Para construir essa identidade é simples: devemos dar os saltos necessários.

A terra é um símbolo de nossa identidade psicofísica, mas serve de alicerce para que outra coisa vá para o céu: o Filho do homem. Das sementes plantadas na terra, algumas vão cair em espinhos, outras em solos áridos etc., mas temos de plantar as sementes toda vez que podemos, pois uma hora alguma poderá germinar.

A essência da religião é não seguir a sua vontade, é lutar contra a vontade própria. A vontade própria é a expressão da nossa natureza terrestre em contraste com uma influência celeste. Nós somos terra, nossa identidade é terra. Essa identidade é literalmente um epifenômeno das leis da corporalidade. Se ela não fosse assim, seria impossível a existência de indivíduos humanos perversos. O livre arbítrio pode agir em nome de algo que não foi alcançado pela inteligência: ele pode ver o que somos e nos mover a ser o que o Cristo era. As religiões existem e são o que são justamente para oferecer o máximo de oportunidades para que o indivíduo faça isso. É por isso que as religiões são cheias de mandamentos, dogmas etc., que pode aparecer em conflito com nossa identidade psicofísica. A religião é um conjunto de oportunidades para nos contrariar, para que possamos construir uma identidade que não dependa deste organismo, pois ele perecerá.

Se o indivíduo está numa religião porque ele gosta dela, porque se sente bem nela, então essa religião não é boa para ele. É como ir a um bordel porque o sujeito se sente bem lá. No estado onírico, ambos desejos se dissolverão. Religião sempre implica em um desafio para transcender-se. Não existe por definição um equilíbrio permanente neste mundo entre o indivíduo humano e Deus. A luta entre a identidade espiritual de um santo e sua identidade psicofísica é como que uma brincadeira, mas mesmo nele esse equilíbrio não existe.

[...]

A característica mais importante é o esforço sistemático para transcender-se. Sem isso, não existe religião. Você pode ir a um templo, fazer uma oração, vestir uma determinada roupa: tudo isso parece religião, mas não é religião. Religião implica que, nesse contexto, exista um esforço pessoal constante para o sujeito transcender a si mesmo, para perceber cada uma das oportunidades em que ele e Deus são inimigos e, assim, criar uma nova identidade.

Religião significa que, em certa medida, tornar-se amigo de Deus é tornar-se inimigo de si mesmo, do mesmo jeito que se aproximar do céu é afastar-se da terra. Numa certa medida podemos crescer e nos aproximar do céu crescendo. Em outra medida, temos de nos lançar para fora da terra e se aproximar do céu. Numa certa medida, podemos aperfeiçoar nossa identidade psicofísica e nos tornarmos possuidores de nobres qualidades, e isso nos aproxima de Deus. Mas entre o aproximar-se e o estar justo dEle, existe um imenso salto. Se existe um elemento constante universal nas religiões é a idéia de que existem três tipos de graça -- um ciclo ternário que deve ser cumprido sempre que possível --, que se apresentam ao homem sucessivamente: (1) graça que afasta o homem do mundo, ou seja, de sua própria identidade psicofísica ("eu penso assim, Deus pensa assado, então vou pensar assado e não assim"); (2) graça pela qual Deus entra no homem -- quando o sujeito faz isso [que está em (1)], Deus planta nele uma semente, que cresce e aparece no sujeito como virtudes, sabedoria, perfeições humanas; as pessoas em torno dão testemunho de que ele se tornou uma pessoa melhor; (3) graça pela qual isto que surgiu do sujeito em decorrência da morte de um aspecto e o nascimento de outro aspecto é lançado para Deus. Em suma: primeiro rompemos com nós mesmos, em nome de uma amizade com Deus -- nós eliminamos de nossa identidade psicofísica certos aspectos; em troca de nossos defeitos, Ele oferece algumas qualidades, mas que ainda estão em nossa estrutura psicofísica; por fim, em terceiro lugar, dentro dessas qualidades, aparecem algumas características que transcendem nossa própria identidade e que transcendem nossa identidade mesmo como qualidades humanas, e é isto que é lançado em Deus.

O ciclo da vida na terra é um símbolo desse ciclo de identidade espiritual: romper com o "ventre" do seu psiquismo; crescer, que só é possível fora do ventre; lançar para outra depois que está completo.

A morte necessariamente nos lançará nesse estado de indefinição. Todas as referências que temos necessariamente serão perdidas. Este é o significado real da morte. Se morte fosse só perder as coisas deste mundo, isso não seria nada; a morte é perder a estrutura deste mundo e, portanto, perder a estrutura que permite que nos construamos como nós mesmos. A morte é necessariamente um risco de perder-se a si mesmo. Ao criar uma teofania -- ao aparecer para o homem como uma religião -- Deus fez uma série de concessões. Ele mostrou-se não como Ele é, mas como somos capazes de vê-Lo. Isso já é uma concessão por parte de Deus. A religião é por um lado esse conjunto de concessões divinas, e por outro lado a subseqüente concessão humana. Se Deus se mostrou para nós de um jeito que não é como Ele realmente é, nós também temos de nos construir para Ele de um jeito que nós realmente não somos. Deus não apareceu para o homem tal Ele se sente ou como Ele se entende, então nós também só podemos aparecer a Deus tal como nós não nos sentimos ou nos entendemos. É isso que Cristo quer dizer com "ninguém vai ao Pai senão por mim": Deus só olha o Logos, Deus só olha o Verbo Divino. Se nós não nos tornarmos semelhante ao Verbo Divino, então nós não temos nenhuma ligação com Deus: Ele nos verá como terra, como pó, que ao pó retornará.

A religião só é possível quando existe integridade formal. Se o homem não pode captar diretamente o Absoluto e o Infinito, ele no entanto pode captar diretamente a perfeição, ou seja, aquilo que é completo e íntegro. A perfeição ou integridade formal é justamente o elo entre o homem e Deus. Por isso que não é possível para um sujeito construir uma integridade formal afirmar que suas crenças são budistas, seus sentimentos cristãos, seu comportamento muçulmano, assim como não pode juntar a cabeça de uma mulher bonita com os braços de outra mulher bonita com as pernas de outra: no final teremos um monstro. Tal é o instrumento fundamental da construção de uma identidade espiritual. O sujeito que é "meio" de cada religião não é nada. Os aspectos que Deus escondeu dEle mesmo em cada uma das religiões são diferentes. O sujeito que pensa assim não entenderá nada a respeito de Deus, ficando somente com as brechas de cada religião. No final, o sujeito que faz isso pegará de cada religião apenas o elemento humano. Ele até pode se tornar um bom sujeito -- em geral são pessoas cheias de qualidades, mas todas elas irão para o inferno. É melhor ser mau muçulmano, mau judeu, mau cristão, do que ser "meio" alguma coisa. O sincretismo é a anti-religião porque dá a impressão de tornar o sujeito mais espiritual, quando na verdade está afastando o sujeito da integridade formal que permite a construção de uma identidade espiritual. É claro que há coisas no Budismo com as quais nos sentimos bem, assim como no Cristianismo, no Islamismo etc., mas se pegarmos tudo isso que nos sentimos bem, no final o que teremos somos nós mesmos, que é aquilo que tínhamos desde o começo. Esse é o fundo do poço da ilusão espiritual; é revestir sua identidade psicofísica de uma tintura de identidade espiritual. Isso é muito comum hoje; essas pessoas são hoje em dia exaltadas como modelos humanos. Esquecemos que "radical" é aquilo que está ligado a uma raiz, ou seja, é aquilo que é firme. Simpatizar com todas as religiões é muito bonito, mas guiar-se por essas simpatias é simplesmente guiar-se pelo que você é. Jamais perceberemos os elementos de nossa psique que são contrários a Deus, pois isso só é percebido num compromisso total com uma religião. Geralmente essas pessoas não são más, elas são pessoas cheias de qualidades; mas essas qualidades morrerão com o corpo. Em certo sentido, é melhor pecar sendo muçulmano ou cristão do que fazer uma coisa boa sem ser nada. É melhor ser um pouco menos bom dentro de um quadro espiritual íntegro do que ser um pouco melhor fora desse quadro.

A percepção entre a descontinuidade entre nós e Deus é o primeiro instrumento de integração espiritual.

Fonte: transcrição parcial da aula 20.

21 de maio de 2010

Pe. Seraphim Rose e a música clássica

O Abençoado Padre Seraphim Rose proferiu uma palestra semanas antes de seu repouso, em 1982, intitulada Living the Orthodox Worldview [A Vida da Cosmovisão Ortodoxa]. O áudio original, que inclui a palestra e a sessão de perguntas e respostas, pode ser adquirida no site do Mosteiro de São Germano do Alaska.

A última faixa do CD é uma interessante resposta que o Pe. Seraphim dá a um ouvinte sobre música clássica. De certa forma, complementa o que o Pe. Seraphim chamava de desenvolvimento emocional da alma. Tentei transcrever e traduzir da melhor maneira possível, já que a qualidade do áudio não é lá muito boa.

* * *

-- O sr. falou um pouco sobre música clássica em relação à educação infantil.

-- Sim.

-- Há alguns tipos de música clássica que provocam emoções sensuais, que invocam...algumas músicas clássicas como Bolero...

-- Bem, há várias tipos de música clássica. Em geral, quanto mais moderna, mais e mais sensual, mais e mais anárquica ela será. São princípios que pertencem mais ao século XX. A música clássica básica, aquela que pertence a períodos anteriores, mais dos séculos XVII, XVIII e XIX: é especificamente a essas que me referi anteriormente. Nos anos seguintes, há cada vez menos casos em que as músicas clássicas apresentam a característica de refinar o ouvinte. Aquelas que são mais toscas e sensuais não se deve ouvir. Há os grandes compositores, como Bach, Händel, Mozart, e mesmo alguns compositores do século XIX, alguns com obras muito refinadas, como Tchaikovsky e Verdi, por exemplo. Há alguns que são perigosos, muito sensuais...

-- Na minha classe falou-se alguma coisa de Liszt, das obras de Liszt, do fato de serem muito sensuais, talvez...

-- Bem, há diferentes tipos de sensualidade. Comparado com o que temos hoje, não há nada de muito sensual em Liszt. [Risos da platéia]. É muito mais refinado do que temos hoje. É melhor ouvir isso do que algumas coisas que se ouve hoje. Pois quando mencionam "sensualidade" em relação a esse tipo de coisa não é a mesma sensualidade que temos hoje. Ela não invoca diretamente essas emoções; ela, digamos, descreve essas emoções, assim como um grande romance descreve todos os tipos de paixões com o objetivo de nos familiarizarmos com elas, de maneira que você lê o romance sem ter de passar por todas essas terríveis experiências na vida, de maneira que você saiba os resultados desse tipo de paixão.

20 de maio de 2010

A relação entre marido e mulher


Achei interessante a explicação do Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto sobre uma das cinco relações constantes do Li confucionista -- a relação entre marido e esposa -- e creio que os leitores deste blog apreciarão a transcrição dessa explicação.

O conselho de Confúcio é: "os maridos devem ser bondosos e as esposas devem ouvir".

* * *

Noventa por cento dos problemas matrimoniais ocorre porque faltou uma dessas duas coisas: ou o marido foi mesquinho, ou a mulher não ouviu e simplesmente não prestou atenção ao que ele estava sentindo ou querendo.

Confúcio não poderia recomendar o contrário. O que aconteceria se ele recomendasse o contrário? Se ele dissesse para o homem que ele deve ouvir, o homem não faria mais nada porque o que as esposas mais gostam de fazer é falar. Isso é assim porque existe no homem uma dificuldade quase orgânica de não querer satisfazer a mulher, ou seja, o homem tem grande inclinação em querer satisfazer a mulher. Esse aspecto se projeta no homem quase que por espontaneidade. Existe um ditado americano que diz: "antes do casamento, as mulheres possuem todos os escrúpulos e os homens nenhum; depois do casamento o homem adquire todos os escrúpulos morais e a mulher perde todos". Esses ditados sobre casamento expressam certos aspectos da natureza.

O sujeito logo que se casa está atento o tempo todo ao que pode fazer para agradar a mulher, aliviando o sofrimento dela o mais que possível. Já a mulher tem um talento especial em não prestar atenção à necessidade do outro. A mulher é capaz de abstrair completamente o que o o outro precisa. Talvez isso derive um pouco das funções biológicas naturais. A proximidade dela com a prole implica numa insensibilidade, implica em fazer aos filhos pequenos o que ela sabe o que é bom para eles, e não o que eles querem. A capacidade maternal consiste simplesmente nisso. A mulher é compassiva com quem não vive com ela, com quem está longe. Ela tem uma capacidade impressionante de dizer "o que é bom para você é tal coisa; eu vou te dar isso aqui, e não o que você quer". E ela aplica isso ao marido. Um dos maiores problemas no relacionamento com as mulheres é esse.

Isso deriva também de uma diferença crucial na decisão de se casar. O homem não tem nenhum instinto natural para preferir uma mulher sobre todas as outras. Quando um homem decide se casar, isso é uma escolha. Ele diz: "Agora esta mulher é tudo". Não há nenhum componente instintivo nele para fazer isso. Enquanto o homem está pensando que essa mulher é apenas "a mulher da vez", ele não casa. As mulheres se questionam por que os homens demoram tanto para casar, por que eles "fogem" do casamento. Isso ocorre porque o casamento não é instintivo no homem, mas é algo deliberado. "Se eu me casar, é desta aqui que eu tenho de cuidar. Eu tenho de diferenciar ela de todas as outras". A mulher, em primeiro lugar, sente que esse homem é o único. Se você observar a história humana, os homens nunca se queixaram de serem movidos a casar por formalidades sociais. Os homens nunca reclamaram disso, porque o ato de casar-se é um ato social humano, e não um instinto. A queixa das mulheres é ser obrigada a se casar com um sujeito que ela não sentia como sendo o único. A escolha da mulher não é deliberada, mas é instintiva. No homem, a escolha de se casar não é determinada pelo sentimento. Em um impulso inicial, o homem pode até sentir isso, mas quando se aproxima do casamento, o homem já se questiona "por que vou fazer isso?", e o sentimento não dá resposta. Unir-se à feminilidade em geral é instintivo no homem, mas não a esta ou aquela mulher.

Como a mulher tem um instinto de escolha, ela sente no seu íntimo que ela compreende aquele homem melhor do que ele mesmo, que ela vê todas as possibilidades dele no futuro que, veja só, ele mesmo desconhece completamente. Ela já casa com a intenção de educá-lo para realizar aquelas possibilidades, mas que ele ainda não percebe. Para o homem é o contrário: ele decide "vou me casar com essa mulher; vou fazer o bem para ela". Mas ele não tem a menor idéia do que é o bem para ela, ele não sabe o que ela quer. A tensão matrimonial para o homem é o imenso trabalho que dá para descobrir o que a mulher quer, então ele se desestimula. É por isso que o homem deve ser bondoso: não importa quanto trabalho dê para contentar ela, o homem deve querer contentar ela. Para a mulher não é isso. Não importa quanto a mulher quer que o marido se torne aquele outro sujeito no futuro, a mulher tem de ouvi-lo para saber o sujeito que ele quer se tornar no futuro.

As duas prescrições são simplesmente compensações humanas às deficiências instintivas. A mulher não vai contribuir para a destruição do casamento por falta de bondade, por falta de desejo de fazer o bem para o marido. A mulher por instinto tem a capacidade de sacrificar tudo pelo bem ao outro. O que a mulher não tem é a capacidade de detectar o que o homem quer, fazendo esse bem a ele. Isso não é instintivo à mulher. A mulher deve entender que o marido não é mais um dos filhos. O homem ouve por instinto, e a mulher é boa por instinto. Os preceitos de Confúcio recomendam justamente aquilo que não é instintivo, aquilo que deve ser educado. É um complemento à natureza de homens e mulheres.

17 de maio de 2010

O santo cristão e o filósofo pagão


Quando São Teodoro, o Santificado, estava em Panópolis com seu pai espiritual, São Pacômio, um filósofo se lhe aproximou desafiando-o para um debate sobre a fé. O filósofo lançou a Teodoro três perguntas: "Quem não nasceu e morreu?", "Quem nasceu e não morreu?", "Quem morreu e não se desintegrou?" A essas perguntas, São Teodoro respondeu: "Adão não nasceu e morreu. Enoque nasceu e não morreu. A esposa de Lot morreu e não se desintegrou". Dito isto, o santo deu ao filósofo um conselho: "Presta atenção a este sábio conselho: afasta-te dessas questões inúteis e dos silogismos escolásticos; aproxima-te do Cristo ao qual nós servimos e tu receberás perdão dos pecados". O filósofo quedou-se mudo diante de tão incisiva resposta e, envergonhado, partiu. Esta história mostra a enorme diferença entre um filósofo pagão e um santo cristão. Aquele [o filósofo] perde-se em abstrações, em palavras engenhosamente retorcidas, em provocações lógicas e em esportes mentais, enquanto este [o santo] direciona sua mente inteira ao Deus vivo e à salvação de sua alma. O filósofo é abastrato e morto, enquanto o santo é prático e vivo.

Fonte: São Nicolau (Velimirovich), o Novo Crisóstomo - Prólogos de Ochrid

Ícone: São Teodoro, o Santificado, com São Pacômio, o Grande

Santo Aquiles


O grande hierarca e taumaturgo Aquiles nasceu na Capadócia. Ele participou do Primeiro Concílio Ecumênico [de Nicéia, em 325], no qual envergonhou os hereges e, por sua inteligência e santidade, causou grande espanto em todos. Santo Aquiles pegou uma pedra e, vociferando aos arianos, disse: "Se Cristo é uma criatura de Deus, como vós dizeis, então dizei: 'Que óleo verta desta pedra'". Os hereges quedaram-se mudos e perplexos ante tal exigência de Santo Aquiles. O santo continuou, dizendo: "E se o Filho de Deus é igual ao Pai, conforme nós cremos, que verta óleo desta pedra". Com efeito, a pedra começou a verter óleo, para o espanto de todos. Santo Aquiles repousou na paz de Cristo na cidade de Larissa, em 330. O Rei Samuel [da Bulgária], após conquistar Tessália, transladou as relíquias de Aquiles para Prespa, mais especificamente a uma ilha em um lago que, até hoje, é chamado de Aquiles ou Ailus.

Fonte: A vida de Santo Aquiles, Bispo de Larissa, comemorado em 15/28 de maio.

Religiões do mundo


O curso online do Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto é o primeiro ciclo de uma  introdução às grandes religiões do mundo. O método de comparação é do tipo "imaginal", ou seja, não se trata de uma descrição exaustiva de cada religião, mas uma tentativa do ouvinte compreender uma religião que não é a sua mediante o uso da imaginação. Cabe lembrar que freqüentemente o professor se baseia em preceitos e interpretações schuonianas, mas isso não chega a prejudicar o curso como um todo.

O que se segue são algumas anotações que tomei ao longo das audições. Que o leitor não pense que elas substituem a audição original, mas as tome apenas como noção geral do que ali é ensinado.

* * *

Aula 1: O que é religião?

Religião vem de religação.

(1) Todas possuem símbolos/mitos/doutrinas nas quais o ser humano está intrinsecamente ligado a realidades que transcendem o plano terrestre, e de algum modo "esquece" ou "rompe" essa ligação. Daí a "religação", a religião.

(2) A religião sempre fez parte da história humana.

(3) Todas dizem que os homens precisam de religião, pois a natureza não frustra, ou seja, o ser humano tem algumas necessidades exclusivamente suas que não são satisfeitas por outras coisas, e são expressas em três conceitos: (a) absoluto (solto de, que não depende de nada) (uma hora temos de chegar no primeiro ente do qual os outros dependem), (b) justiça, (c) morte. Elas são responsáveis por gerar os três tipos de instintos ou inclinações religiosas: (a) curiosidade intelectual (quer saber o que é esse absoluto), (b) amor pelo bem (deseja o Paraíso etc.) e (c) temor do sofrimento (medo do inferno, de reencarnações etc.). Todas as pessoas que tem uma religião a tem legitimamente e suficientemente somente por um ou mais desses motivos. Pode haver outros motivos legítimos, mas são sempre insuficientes.

Elementos constitutivos intrínsecos das religiões, que servirão para compará-las entre si:

(1) Via: A função da religião é levar o fiel para o plano do absoluto, onde não há injustiça nem morte. É necessário desenvolver e ativar o órgão espiritual que tem a mesma natureza desse plano para atingi-lo. O discurso simbólico é o meio usado para explicar o objeto transcendente. É o mesmo que explicar as cores para um cego de nascença. É preciso fazer "comparações", como a paixão para o vermelho etc, para que o cego tenha alguma idéia do que é o vermelho. É o símbolo. O símbolo mais utilizado é um anel no qual está engastada uma jóia. É necessário lapidar a jóia (o órgão espiritual) antes de usar o anel. E também é necessário um engaste perfeito e um anel perfeito para a jóia permanecer definitivamente neles. Tais são as qualidades e os atributos que a pessoa tem de ter para manter constante contato com esse mundo da jóia. Agir -- condução ao transcendente.

(2) Doutrina: Dá as chaves explicativas básicas do que consiste a experiência mística experienciada. É um instrumento para a inteligência discursiva. O senso do sagrado auxilia a inteligência quando a doutrina não é suficiente para explicar a experiência. O fato do sujeito estar confuso não invalida sua experiência. As expressões doutrinais entre as religiões não podem ser absolutamente diferentes, porque afinal se referem ao mesmo objeto. Aprender uma doutrina de uma religião muito distante é o mesmo que aprender uma língua muito distinta. É pela relação entre as palavras que aprendemos uma língua (o sujeito fala "pedra" e aponta para uma pedra etc.). [Isso dá a entender que há elementos talvez "metafísicos" comuns a todas as "línguas"]. Pensar -- inteligência.

(3) Ritos: Conjunto de símbolos que o sujeito opera, recebendo uma "dose mínima" do objeto no plano do transcendente, para que ele receba uma pequena "vontade". O símbolo é um rito cristalizado, e o rito é um símbolo vivenciado. Rito é retidão, e possui uma bondade e beleza intrínseca, que apelam à vontade humana. É necessário observá-lo com regularidade para captá-lo mais amplamente (como a morte de um carneiro, cuja imagem é a mansidão que o próprio observador deve demonstrar perante Deus). Querer -- vontade.

(4) Mandamentos: Evita que os sentimentos afastem a pessoa do transcendente. São os limites à ação humana, para evitar que os sentimentos involuntários o afastem do objeto. Não limitam necessariamente a vontade, mas os sentimentos, porque o sentimento em si não diz se o que quer é justo ou injusto. Então os mandamentos têm uma função mais "geral". Sentir - sentimento.

Toda religião possui componentes formais que são inadmissíveis em outra religião, necessariamente.

Provas extrínsecas das religiões:

(1) santidade: é o modelo para os praticantes da religião.

(2) milagres: intervenção direta do plano do transcendente.

(3) arte sacra.

(4) história.

Para entender outra religião, temos de imaginativamente esquecer que somos de nossa religião e nos imaginar em outra. É uma postura "imaginal", e não "vivencial". Eu não vou viver como se eu fosse budista, mas vou imaginar, neste momento, que sou budista. O elemento doutrinal é apenas um elemento da religião. Achar que compreender o elemento doutrinal é o mesmo que compreender a religião é o mesmo que achar que compreender a ciência médica é o mesmo que compreender a profissão de médico.

Religião não é um modo de pensamento, ou seja, eu não posso mudar de religião como se eu mudasse o que penso a cada momento. Religião é um modo de ser, ou seja, você não pode mudar seu modo de ser a cada momento.

Se o esforço imaginativo for grande demais, ou seja, se não tivermos elementos daquela religião atuais, presentes, vivos, suficientes para o exercício imaginativo, sobretudo representantes autênticos dela, então não será possível compreendê-las adequadamente. Somente hipóteses serão possíveis a respeito delas.

Aula 2: As principais religiões do mundo: ramo semítico, ramo ariano, ramo extremo oriental e tradições indígenas

Ramo é utilizado apenas conceitualmente, ou seja, é a descendência de uma mesma tradição espiritual.

Tradição ariana - origem possível dos aqueus (noroeste da Índia), aprox. até 1500 a.C., o mesmo povo que talvez também tenha migrado para a região da Grécia.

Toda religião tem seu centro, origem. Por exemplo, as tradições semitas têm seu centro e origem com Abraão.

Nas tradições arianas (Hinduísmo), a origem e o centro são os hinos, chamados Vedas (entre 1500 a.C. e 1000 a.C. já tinham a forma atual). São um discurso divino, hinos recitados por Deus, que 7 sábios ouviram.

Mas seu conteúdo foi esquecido, e outros sábios e santos se recordam desses livros sagrados, permitindo que outras pessoas acessem os Vedas. Há uma descontinuidade entre duas potências do ser humano: um núcleo central, um fundo, idêntico ao próprio Absoluto (basta esse fundo se conhecer e ele perceberá o Absoluto), e a capacidade de pensar, mas ela é limitada porque depende da língua ensinada pelos pais (o tamanho da sua alma é proporcional ao tamanho da sua linguagem -- é necessário que o que se passa na sua alma tenha um nome).

A primeira coisa que os Vedas dizem é que no começo do Universo só existiam as trevas, mas por trás das trevas existia um Eu absoluto, um Espírito absoluto, que iluminou as trevas, dando-lhes uma multidão de formas. Elas são as imagens desse mesmo Eu para Si mesmo.

A primeira realidade que o Hinduísmo descreve é uma polaridade: o Atma (Eu absoluto/original, o Espírito absoluto/original) e o Maya (a ilusão cósmica, as formas que refletem o Atma, as aparências que deuses e demônios aparentam; são os modos, disfarces, de o Deus original aparecer).

Existem as coisas que são significadas pela linguagem, isto é, as formas percebidas. O primeiro conjunto de nomes/conceitos/recursos se dava o nome de "Naman" (de onde vem nome). O conjunto de formas que eram significadas por esses nomes se chama Rupah (que significa figura/cor). O ser humano é um composto chamado de "Namanrupah", que é o modelo estrutural não só do ser humano, mas de qualquer coisa que existe. Todo objeto contém elementos sensíveis (perceptíveis pelos sentidos, como a forma e a textura de um cão) e supra-sensíveis (como a visão do próprio cão).

Todos os ramos da tradição ariana dizem que o "Absoluto original (o Atma) está além de Namanrupah", ou seja, não é possível esgotá-lo pelos conceitos nem coisas sensíveis. Ele é algo que tem de ser apreendido de outra maneira. O que diferencia um ramo do outro, na tradição ariana, é justamente como se capta esse Absoluto original.

Entre 1000 e 500 a.C., quando os Vedas atingiram uma forma fixa, os principais sábios procuram comentar e entender os Vedas.

A primeira resposta sobre quem é o Espírito original é que "Você mesmo é esse Espírito original". Essa á a primeira resposta para conhecer o Absoluto: você mesmo é o Absoluto. Isto é, você mesmo ignora sua própria natureza.

Existe 4 tipos de seres (naturezas):

1) Absoluto, que não tem princípio nem fim,

2) Rupah, o extremo oposto da realidade, isto é, as formas sensíveis, e todas têm princípio e fim,

3) Consciência individual, que tem princípio mas não tem fim, e

4) Avidia, ou ignorância, que não tem princípio mas terá um fim.

Para que você seja consciente de você como ser humano, você tem de ter esquecido que era um Absoluto (a ignorância é tão antiga quanto o Absoluto), mas terá fim porque você pode descobrir o Absoluto em você mesmo. A sua consciência passará a partilhar da infinitude do Absoluto, passando então a ter existência indefinida.

A preocupação mais característica da tradição ariana é a idéia de "Eu". O que é o "Eu"? Essa idéia é tão importante que chegou a ponto de ter sido ela que diferenciou os ramos extremos do arianismo.

A resposta do Hinduísmo é: "o Eu é o próprio Absoluto", que vestiu o disfarce de "Edward" em um caso, "Fulano" em outro etc.

A resposta do Budismo é contrária: "o Eu não é; não existe nenhum Eu".

Essas respostas exigem imaginação metafísica. Quando nos perguntamos: "Quem (ou o quê) sou eu?", todas as respostas são posteriores ao seu próprio "eu", ou seja, exige-se que demos um salto cognitivo. Qualquer linguagem humana suficientemente rica pode explicar o que é um cachorro ou um ser humano, mas não o que é "eu". Toda informação que você dá acerca de você não é você evidentemente, mas apenas algo que pertence a você (mente e/ou corpo). Ou seja, tudo que falo sobre mim mesmo corresponde a Naman ou Rupah, menos a palavra "eu", porque "eu" sou justamente o possuidor desse Naman ou desse Rupah, ou seja, é aquele que está subentendido nisso aí.

O Deus de Abraão não tinha forma, enquanto os outros deuses tinham. Um deus numa estátua significa que esse deus é abarcado, representado, por um conjunto de nomes, e que, portanto, o seu psiquismo pode esgotá-lo. A invisibilidade do Deus de Abraão e dos hindus significa que ambos colocam Deus fora da esfera de Naman e Rupah. O Taoísmo faz o mesmo, dando um nome para o Absoluto ("Tao"), sendo que o "Tao (caminho) que pode ser trilhado não é o verdadeiro Tao (caminho)". Esta é justamente a característica fundamental do Absoluto, qual seja, estar além de Namanrupah.

O elemento fundante e comum das tradições é essa distinção absoluta de planos: (1) aquilo que mente e corpo podem abarcar e (2) aquilo que está além do que mente e corpo pode abarcar.

Uma arte ou ciência está consolidada numa cultura justamente quando o conjunto de meios idiomáticos que o expressam é suficientemente completo. Por exemplo, os treze livros dos Elementos de Euclides. Todos tratam da Geometria. Se você romper a cadeia histórica de transmissão desses conhecimentos, após 50 gerações, se alguém encontrar esses livros, será perfeitamente possível reconstruir essa ciência por meio do registro nominal que ficou. Isso ocorre porque o próprio objeto está dentro dos limites de Namanrupah, isto é, ele não é maior do que a capacidade de conceituação humana, mas é menor.

Com a religião não é assim. Como seu objeto transcende Namanrupah, a próxima geração não será capaz de resgatá-la. Essa ligação/transmissão vital é o que faz a religião ainda ser uma religião. Ela é uma imitação de um ato vital do próprio Deus. O próprio Deus não pode ser abarcado conceitualmente. Não posso, apenas pela leitura das escrituras, restaurar uma religião, mas eu preciso perguntar para alguém, que ouviu de outro alguém etc., o que exatamente isto ou aquilo quer dizer. O máximo que seria possível seria por analogia com religiões semelhantes ou próximas. O registro escrito é maximamente abstrato, tendendo para Naman; ele dá a impressão que você está transmitindo algo, quando não está. Por que Deus não escreveu um livro para Abraão? Porque a fala, além de ser um ato vital, "resume" todos os componentes da individualidade humana: ela tem uma aparência sensível (Rupah) e tem um conteúdo inteligível (Naman), sendo como um "resumo" do ser humano.

O Absoluto só pode ser captado como uma experiência direta e individual. Se a religião promete que seu objeto pode ser abarcado conceitualmente, então não é uma religião, mas uma pseudo-religião.

Mas este mesmo Absoluto pode se agarrar a uma forma sensível e a um conjunto de conceitos. Por exemplo, o Absoluto é inalcançável, mas ele falou aos Vedas, que é uma forma sensível, ou o Deus de Abraão, que fala a ele "faça isso". Sem essa fixação numa forma sensível, não é possível fundar uma religião.

Portanto, a fundação de uma religião é essa fixação do Absoluto numa forma sensível. O brahmane recita os Vedas como complemento ao movimento que Deus fez em direção aos homens, e chega a uma série de conclusões a respeito de Deus. São essas conclusões que permitem que ele transmita a experiência original para a geração seguinte.

Portanto, a verdadeira religião fornece um mecanismo de auto-perpetuação. No caso dos Vedas, é sua recitação. No caso da tradição abraâmica, é abandonar/renunciar alguma coisa ("não faça isso", "não tenha tal coisa" etc.).

A transmissão se dá quando a geração anterior reconhece/testemunha que a geração posterior teve a mesma experiência. É impossível resgatar uma tradição que não foi "trazida" (tradição = aquilo que foi trazido).

Ser de uma determinada religião não é a aderência intelectual a ela, mas participar da mesma experiência original. Por exemplo, é perceber o Cristo, de certa maneira, do mesmo jeito que os apóstolos perceberam.

Normalmente, não há uma experiência do Absoluto que seja capaz de abarcar a experiência de outra religião. É necessária uma autoridade daquela religião para reconhecer a pessoa como sendo ou não dela.

Todas as tradições religiosas propõem algo para a sua vontade, mais do que para sua inteligência abstrata. A liberdade da sua vontade é o sinal mais característico da individualidade humana do que é o Absoluto. Não pode ser a inteligência abstrata porque você pode ser burro. Mas, por mais burro que seja, você ainda pode escolher fazer isso ou não fazer isso: é algo que ninguém pode lhe tirar.

Portanto, a experiência transcendente de uma religião é acessível a partir de outra experiência, que é humana e comum. Essa experiência pode ser de ordem universal ou acidental (característica de um povo). Por exemplo, o Budismo é baseado na experiência do sofrimento. O Islã se baseia na experiência de que há normas que antecedem a sua existência e que determinam a sua vida. O Cristianismo se baseia na experiência de que você é pior do que você queria ser ("Eu vim para os enfermos e não para os sãos"). São todas experiências humanas comuns.

Aula 3: O ramo ariano: Hinduísmo e Budismo

Descreveremos os traços característicos ou idéias fundamentais que são as sementes da civilização hindu.

1. A antropovisão (a visão do ser humano). É isso que estrutura sua civilização. É possível quase que explicar a civilização hindu a partir da resposta à pergunta "quem sou eu?", "quem é este sujeito que está aqui?". Você é uma forma de vida orgânica, um corpo vivente. O que caracteriza os seres vivos é o fato de que eles (1) crescem, a fim de atingirem um tamanho ideal ao qual eles devem corresponder por meio da (2) alimentação; atingido esse tamanho ideal, eles (3) se reproduzem. Portanto, você é Anamaya (Maya = feito de; ana = nutrição, alimentar-se).

O alimento absorvido só se transforma em alimento de fato depois que ele foi destruído, isto é, digerido e assimilado. O sabor da maçã não está na maçã, no ato da percepção, mas está em você. Portanto, além de Anamaya, você também é um Pranamaya (Prana = vento, ar, ar em movimento; é o símbolo da informação sensorial, pela facilidade que o ar tem para se deslocar). O sabor estava na maçã, molecularmente falando, e depois passa para você, como notícia da maçã. O ponto importante é a diferença entre a mudança que houve na nutrição e a mudança que houve na sensação ou percepção. Na nutrição, a maçã deixou de ser maçã para virar outra coisa. Na sensação ou percepção, embora tenha havido uma mudança, essa mudança não mudou a natureza do objeto, ou seja, aquele sabor de maçã que você sente não é seu sabor, mas é o sabor da maçã tal como você o percebe. Quando você já digeriu a maçã, ela não é mais maçã: ela é você. Mas o sabor da maçã que entrou na sua mente é sabor de maçã. Eis aí outra característica dos seres vivos: (4) sensação (só dos animais), isto é, eles recebem informações daquilo com o que entram em contato (Pranamaya).

A primeira polaridade dessas reverberações subjetivas da sensação é prazer/desprazer, que causam (5) desejo/aversão (só existem no sujeito, portanto, é um modo do ser do sujeito). Este é o aspecto Manumaya ("o que está feito de mente").

Resumindo as camadas comuns a todos os animais:

a) Anamaya (nutrição) = começa no objeto e termina no objeto

b) Pranamaya (sensação) = começa no objeto e termina no sujeito

c) Manumaya (apetite/inclinação) = começa no sujeito e termina no sujeito => este é o ato característico da mente

O Hinduísmo diz que há mais duas camadas que são características do ser humano.

d) Vizhnanamaya (Vizhnana = conhecimento indireto/reflexão) = todas as informações reunidas permitem compor uma imagem integral do objeto, e, assim, capaz de compreender o objeto, isto é, entender como o objeto é percebido por outros seres. O homem pode plantar capim para ter vaca e comer a vaca, embora não goste de capim.

e) Anandamaya ("o que é feito de felicidade"). Há poucos propósitos que se auto-justificam. Eles são términos finais da sua ação. (1) O prazer pode ser um deles ("prefiro maçã porque ela me dá mais prazer"). O bem do prazer está no objeto do prazer; é uma qualidade do objeto que chega até você. (2) Além do prazer, há o sucesso, que se resume em três coisas: riqueza, fama e poder, que podem envolver o sacrifício de inúmeros prazeres. Ninguém obtém sucesso simplesmente satisfazendo os seus prazeres. As pessoas podem viver entre estas duas polaridades, ora fazendo as coisas por prazer, ora por sucesso. O bem do sucesso está no uso que se pode fazer do objeto; é a qualidade dos instrumentos, isto é, dos objetos que são usados de modo instrumental. (3) Há também a ação altruísta (benevolência), como para filhos, parentes, amigos e outras pessoas. Sua característica é que não se dirige imediatamente para o próprio sujeito, ou seja, implica numa perda. Mas, de algum modo, houve um ganho, pois, do contrário, você não o faria -- você se aproximou daquilo que você gostaria de ser, isto é, o seu ser "cresceu". O bem da benevolência é uma qualidade que está em você (o dinheiro que você entregou ao mendigo não é uma qualidade do mendigo, nem do dinheiro, mas é sua qualidade).

Mas (1), (2) e (3) são bens limitados (você não obteve todos os prazeres que quis, não obteve todo o sucesso que queria e não pode fazer todo o bem que o mundo precisava), e, além disso, você vai morrer, ou seja, esses prazeres vão acabar. Daí vem a pergunta: é possível transcender esses limites? Combinar (1), (2) e (3) constituem, claro, uma vida excelente. Mas mesmo assim é algo limitado. A partir desse momento, os hindus se perguntam quais são os métodos para que obtenhamos esses bens na medida máxima. Como (1), (2) e (3) possuem bondade intrínseca, podemos dizer que "tudo o que é, é bom -- pelo simples fato de ser". O seu apego à sua própria existência é a primeira prova disso.

Nossa sensação do mal corresponde à nossa ignorância e ilusão em relação aos seres. A capacidade de uma coisa ser uma coisa e parecer outra é o que chamamos de Maya. Todo sofrimento humano existe porque você toma uma coisa por outra: a causa do sofrimento é a ilusão (engano) acerca das coisas. A confusão entre uma finalidade e outra possível para o mesmo ente é a causa fundamental do sofrimento, segundo hindus e budistas. Quando você espera de um objeto algo para o qual ele não está ordenado, ele não vai dar. Isso não quer dizer que ele é ruim. Isso quer dizer que ele não foi feito para aquilo. Ele foi feito para outra coisa. O estado de uma maçã pequena não inclui a possibilidade de ser saboreada. É uma frustração comer uma maçã dessas e esperar saboreá-la.

Aula 4: Introdução ao Hinduísmo

Antropovisão hindu (a antropovisão escolástica é muito semelhante):

Anamaya = potências nutritivas ou vegetativas

Pranamaya = potências sensitivas

Manumaya = potências apetitivas

Vizhnanamaya = potências intelectivas

Na cosmovisão hindu, os seres são bondade. Essa capacidade de as coisas se apresentarem de modo ilusório os hindus chamam de Maya. A verdadeira natureza de um ente está encoberta pelas funções naturais desse ente.

Segundo os hindus, essa natureza é tão diferente dos entes particulares que é impossível descrevê-la.

Portanto, uma das primeiras características que distingue essa natureza última das naturezas particulares é que elas excluem-se mutuamente (ser uma coisa é não ser outra). Mas quanto a esse último ser, ser ele não exclui ser alguma outra coisa, porque ser alguma coisa é apenas um modo de ser aquele ser primeiro/último. Por exemplo, ser ouro não exclui ser também uma estatueta, uma jóia, um anel etc., mas ser uma estatueta não é o mesmo que ser ouro -- ser uma estatueta por si não inclui ser ouro, porque a estatueta pode ser de pedra, barro, madeira etc.

Então, segundo a teologia hindu, quando Deus olha para você, é como se Ele estivesse olhando para Ele mesmo de um determinado jeito, como uma figura que se acrescentou ao ouro, que é Ele mesmo. Quando você olha para você, você vê apenas suas próprias características distintivas, e não o "ouro". A existência "criatural" é um ponto de vista, uma mera maneira de encarar a realidade.

Deus olha para Ele mesmo e vê infinitas possibilidades de ser. Então, Ele pensa: "E se Eu recortar algumas possibilidades e torná-las impossibilidades?" Por exemplo, Deus está em toda parte. "Mas e se Eu não puder estar em toda a parte?" Daí, Ele cria a noção de corpo localizado. "Eu sou vida infinita em todas as modalidades. Mas e se Eu não pudesse perceber as coisas como Eu percebo, isto é, apenas parcialmente?" Daí, ele cria o modo de percepção das criaturas. Deus é como um Artífice, mas Ele mesmo é o material do qual faz a obra de arte. Ele é como uma quantidade infinita de material. Para que faça alguma coisa, Ele tem de "tirar" algo do material (assim como um artífice que tira pedaços de mármore para fazer uma estátua). A criação divina é um processo que tem um princípio. "O que eu posso tirar de Mim mesmo, de maneira que, o que sobra, ainda seja uma indicação suficiente do meu próprio ser?" Por exemplo, Deus tem de retirar a nota "infinitude". Mas como, nessa, obra, nós conseguiremos entender que ela representa o próprio Autor infinito? Ora, Deus retira a infinitude, mas tem de deixar um "sinal" da infinitude, isto é, Ele tem de deixar, na obra finita, algo que indique que Ele é infinitude.

1) Um exemplo da infinitude é a inesgotabilidade de aspectos da criatura. Um grão de areia (ou átomo) tem uma quantidade de aspectos indefinida, que nossa mente não tem como abarcar. Por mais simples que seja um grão de areia, o ser humano não conhece inúmeras coisas a respeito desse ente. É, portanto, um sinal da infinitude.

2) Deus sempre deixa na criatura um sinal do absoluto. Esse sinal é a incomparabilidade. Não há duas criaturas idênticas. Existe uma unicidade -- um caráter único -- em todo e qualquer ente. A própria forma total do conjunto de acidentes que recebemos do mundo é única.

3) Deus é puro Espírito, ou seja, não há nada que possa resistir à presença desse ser. Espírito, originalmente, significa "vento" (está em todo lugar). O sinal da espiritualidade de Deus é que, embora não possamos conhecer exaustivamente todos os aspectos de nenhuma criatura, nós podemos compreendê-la, isto é, num ato único, somos capazes de abarcar todas as possibilidades dela, sinteticamente. Em suma: as criaturas são inteligíveis.

Em suma: de um ponto de vista mais "profundo", não há uma descontinuidade entre Criador e criatura. Esta é a raiz da espiritualidade hindu.

O ponto de vista divino, a respeito do que você é, é absoluto. Enquanto seu ponto de vista é meramente relativo, ou seja, ele é dependente de alguns fatores. Ser criatura é ser relativamente. O modo pelo qual você enxerga seu próprio ser, depende de alguns fatores. Se você eliminar esses fatores (ou compensá-los), você será capaz de se ver como Deus o vê.

Mas a doutrina tem de ser realizada, ou seja, você tem de experimentá-la realmente. Ora, se ser criatura é um modo de ignorância, o contrário é o conhecimento. Portanto, o primeiro método para verificar a realidade do absoluto é compreender cuidadosamente a doutrina, você perceberá a realidade tal como ela é. Então, você vai fazer um esforço sistemático (segundo os métodos da doutrina hindu) para provar que essa doutrina é falsa, ou seja, que há um abismo radical e absoluto entre o Absoluto e o relativo (a doutrina da unidade dos seres). Esgotadas todas as possibilidades de refutação, sua alma se tornará serena, e, nessa calma, você contemplará a natureza do Absoluto.

Por exemplo, a palavra "eu" necessariamente se refere a um traço do Absoluto no seu ser. A palavra "eu" não se refere a nenhum dos componentes da pessoa, pois são apenas coisas que pertencem ao "eu". Os diversos componentes podem tanto distinguir ou confundir a identificação de uma pessoa. Nenhum desses componentes serve realmente como sinal distintivo do que é o "eu". Então, ensinam os hindus, o objeto que corresponde ao significado da palavra "eu" está além do Vizhnanamaya, ou seja, está além da capacidade de seu conhecimento distintivo, é algo mais profundo e sutil.

Há duas respostas razoáveis: ou o "eu é uma atividade divina, ou o "eu" é o próprio Deus.

Os estados depois da morte (estados póstumos):

1) Estado da iluminação (Ressurreição = Cristianismo)

2) Estado pacífico, onde você aprenderá a iluminação (Terra-Pura = Budismo, Paraíso = Cristianismo), para pessoas boas.

3) Estado não-pacífico (Purgatório = Cristianismo), para pessoas não tão boas.

Estes três primeiros são positivos, pois reintegram a individualidade no Absoluto. Agora, veremos os negativos, pois representam a dissolução da identidade no cosmos, isto é, no relativo (é como se fosse a única maneira de Deus se esquecer de você):

4) Transmigração, isto é, os animais e demônios herdarão pedaços do seu ser, equivalentemente positivos e negativos. É breve, dura semanas ou meses depois da morte, e a pessoa terá apenas uma consciência tênue. Dói, mas não muito.

5) Inferno. Indefinidamente longo e doloroso, pois você é consciente dele. Para pessoas muito más.

Bibliografia recomendada (ler nesta ordem):

1) Zimmer, Heinrich. Philosophies of India. Princeton, Princeton University Press, 1969

2) Guénon, René. L’Homme et son devenir selon le Vêdânta. Paris, Éditions Traditionelles, 1991.

Estes dois primeiros darão a clareza filosófica necessária do pensamento hindu segundo as categorias do pensamento ocidental.

3) Ramana Maharshi. Ensinamentos Espirituais. São Paulo, Editora Pensamento, 1993

4) Shankara. A Jóia Suprema do Discernimento. São Paulo, Editora pensamento, 1992

5) Guénon, René. Introduction générale à l’étude des doctrines hindoues. Paris, Maisnie-Trédaniel, 1997

6) Müller, F. Max. Six Systems of Indian Philosophy. Kessinger Publishing, 2003

Aula 5: Introdução ao Hinduísmo e Budismo

As castas se determinam pela carga hereditária, e muito pouco pela determinação do próprio sujeito. Só se o sujeito recebe uma herança "mista", então talvez ele tenha certa liberdade de esculpir seu próprio caráter em uma casta. Assim como não escolhemos a cor do cabelo, não escolhermos a casta a qual pertencemos.

Os Vedas se afirmam como uma coleção de aplicações da ordem intrínseca que está no Anandamaya à vida humana.

O sacerdote hindu chama sua própria religião Sanathma Dharma (Sanathma = eterno; Dharma = lei/alicerce/fundamento). O conjunto de leis que precedem a existência de um objeto deriva do Anandamaya de um objeto, ou seja, do bem que aquele objeto é no real. Cada ser tem um dharma, ou seja, uma ordem intrínseca que o apóia na realidade. Na medida em que aquele ser se desvia daquele dharma, ele perde sua identidade própria, e passa a ser um mero efeito de outros seres.

Por exemplo, se um indivíduo não segue seu dharma, seu comportamento será dominado pelo ambiente, pela sociedade, pelo clima etc., ou seja, por tudo o que não é ele. Então, para o hindu, a religião não se apresenta primeiramente como um corpo doutrinal, nem como conjunto de ritos, mandamentos etc., mas como uma religião que procura traduzir concretamente o dharma do ser humano. Mas nos próprios Vedas, está aberta a possibilidade de que outros conjuntos de ritos, mandamentos, símbolos etc. também podem cumprir o propósito. Assim, o Hinduísmo não se vê como uma religião, mas como uma expressão da religião.

O Hinduísmo tem duas regras básicas: (1) existem as castas e (2) os brahmanes escolhem as religiões verdadeiras. Então, Cristianismo é Hinduísmo, Islamismo é Hinduísmo etc., pois são todos Sanathma Dharma.

A pessoa tem de saber o seu dharma para saber a que religião (isto é, expressão de religião) deve pertencer.

A única religião onde não há tensão entre ser a religião ou uma religião é o Judaísmo. Cristianismo e Islã admitem, com mais ou menos grau, a existência de uma religião a partir da qual são expressões.

Há quatro categorias/tipologias gerais de expressão da Sanathma Dharma:

1) Jnana yoga (jnana = conhecimento ; yoga = disciplina que conduz à união - tipo contemplativo). São as pessoas que tendem a subordinar tudo à investigação intelectual, à curiosidade intelectual. O jnani deve investigar a que objeto corresponde a palavra "eu". Exemplos: Ramana Maharshi e Shankara.

2) Bhakti yoga (bhakti = amor - tipo afetivo/emotivo/sentimental). São as pessoas que tendem a subordinar tudo à satisfação de seu desejo amoroso, isto é, amar um Deus Pessoal (no Cristianismo, a maioria dos santos são seguidores do bhakti yoga - "Amar a Deus sobre todas as coisas" - mas há santos que prestaram atenção a outro trecho: "Buscai a verdade, porque a verdade vos libertará"). Para o bhakta, o caminho do jnani é desinteressante. Exemplo: Rama Krishna.

3) Karma yoga (karma = ação - tipo ativo). São as pessoas extremamente ativas, pessoas que estão sempre fazendo alguma coisa. Para realizar a Deus por meio da ação, bastam duas coisas: (a) ter uma espécie de bhakta yoga menor (rezar bastante) ou jnana yoga menor (conhecer bem a doutrina) e (b) abster-se de buscar resultados desde o começo da ação, ou seja, abster-se das reações emocionais dos resultados. A vida da pessoa muda pouquíssimo no karma yoga, mas seu interior ganha uma serenidade inabalável.

4) Raja yoga (raja = real, ligado à realeza - tipo inativo). São as pessoas cuja atenção volta-se naturalmente a seus processos fisiológicos e psíquicos. É difícil perceber as pessoas que são assim, caso nós mesmos não sejamos. O objetivo é obter domínio (daí o "real") sobre seus processos fisiológicos e psíquicos. (Algumas experiências são jejuns longuíssimos, artes marciais, espetam facas em si mesmos etc.).

A grande quantidade de deuses deriva justamente da primeira premissa do Hinduísmo, que é o fato de que o transcendente é inefável, ou seja, você não consegue expressá-lo. Sendo ele inefável, só podemos expressá-lo simbolicamente, ou seja, de maneira indicativa, e não pelo pensamento discursivo. Por exemplo, é como expressar o mistério da Trindade: é como um triângulo (mas Deus não é um triângulo). Assim, os Vedas apresentam várias descrições do Absoluto.

Tanto Rama Krishna quanto Maharshi, dois grandes santos hindus, admitiram que o sistema de castas é válido, mas não está mais em vigor na Índia. Isso quer dizer que brahmanes não são realmente brahmanes, shudras não são realmente shudras. Dessa maneira, o Hinduísmo aos poucos está morrendo. Talvez isso explique a grande quantidade de conversões ao Budismo.

Aula 6: Introdução ao Budismo

Conhecemos a origem histórica do Budismo, ao contrário do Hinduísmo. Buda tem algo em comum somente com Jesus Cristo: nós nos questionamos se eles pertencem a outra ordem. Eles levantaram a pergunta "O que é você?", "A que ordem da realidade você pertence?", e não apenas "Quem é você?".

A resposta dada pelo Buda (e por Jesus Cristo) explica muito da religião trazida por ele. Ele respondeu: "Eu sou Buda" (Buda = Desperto). Isso o diferenciava dos outros seres. Essa pergunta só se levanta quando essa pessoa traz características tão marcantes, que não é fácil aceitar que ele é humano.

Quando Buda nasceu, os astrólogos do rei disseram que o menino não era comum, que seu destino era especial. Se ele amar o mundo, e amar o mundo, ele se tornará o unificador universal dos povos hindus. Se ele abandonar o mundo, ele se transformará num grande mestre espiritual. Seu pai decidiu que sua vida seria cercada de felicidades, para que ele não se desgostasse do mundo. Foi então construída uma cidade para ele, na qual tudo era felicidade e beleza.

Buda adorava cavalgar. Aos 18 anos, aproximadamente, Buda decidiu que queria cavalgar para mais longe. Seu pai decidiu enviar um exército na frente, limpando tudo o que é ruim. Mas ele avistou de longe um velho, um doente, um cadáver, um monge mendicante. Como aprendeu que ninguém escapava da morte, Buda resolveu que os prazeres que tinha não faziam sentido, e decidiu tornar-se um monge mendicante. Vê-se então a capacidade de pensamento abstrato de Buda.

Fugindo do palácio, Buda encontrou-se com monges que lhe ensinaram algumas técnicas de ascese do raja yoga. No entanto, olhando para a criação, Buda percebeu que todos os seres capazes de percepção sofrem. Ele entendeu que o raja yoga não lhe daria a resposta sofre o sofrimento. Os ascetas o amaldiçoaram, pois Buda havia prometido dedicação até a morte.

Buda decide se sentar e meditar sobre a questão do sofrimento, tornando-se, assim, o Buda (= o Desperto). A esperança vaga e difusa de que sejamos livres do sofrimento é, segundo Buda e Jesus Cristo, o maior inimigo do ser humano, o maior obstáculo ao início do desenvolvimento espiritual. Não há fundamento para essa esperança.

Voltando-se para os ascetas, Buda disse-lhes que compreendeu a questão do sofrimento em quatro etapas ("quatro nobres verdades"):

1) A verdade do sofrimento (du-ha = desarmonia entre o indivíduo e o meio, ou entre as diversas partes do indivíduo -- a dualidade causa disparidade). Não há fundamentos reais para a expectativa passiva/natural da cessação do sofrimento. Ela serva para que a pessoa pare de pensar que o problema se resolverá por si, e comece a trabalhar para resolver o problema.

2) A verdade das causas do sofrimento. O que causa o sofrimento é o desejo (tu-ha = desejo de dispor a ordem objetiva segundo uma ordem subjetiva) de um encontro ideal entre os elementos duais (sujeito e objeto), ou seja, o desejo de recriar o mundo à sua imagem e semelhança.

3) A verdade sobre a cessação do sofrimento. Ele chega a esta verdade por meio da investigação do que é o "eu". Então, ele conclui que é possível cessar o sofrimento, mas não porque você pode conformar o mundo ao seu "eu, mas porque essa idéia de "eu" não corresponde a nenhum objeto real. O que nós chamamos de "eu" é, na verdade, um conjunto de inter-relações com o que chamamos de "não-eu". A subjetividade é um pólo do mundo, e não outra coisa. No entanto, explica Buda, a raiz desse "eu" é uma mente capaz de perceber o mundo. Então, ele se pergunta: "O que é essa mente?" Essa mente não é nenhuma das relações. Então, a idéia de "eu" do Budismo corresponde precisamente ao "composto" de Aristóteles, qual seja, o conjunto psicofísico do indivíduo, enquanto a "mente" do Budismo corresponde ao "intelecto" dos escolásticos, pois não está determinada por nenhuma relação -- sua característica é a capacidade de ser testemunha de toda e qualquer relação possível. Portanto, o conjunto psicofísico das pessoas é tão "mundo" quanto os objetos que definem suas relações. Por outro lado, a mente é independente de qualquer relação; ela é a consciência da captação de uma realidade. O "saber que eu percebo" é da natureza da mente/intelecto. Mas, Buda se perguntou, "qual a natureza dessa mente?". Ele concluiu que a mente não tem uma natureza própria. Mas então qual a realidade da mente? O intelecto é tão real quanto aquilo que ele contempla, quanto o ser que ele percebe. Portanto, a mente/intelecto é a garantia da realidade das coisas. É o testemunho do testemunho. Quando Buda fez isso, ele percebeu a verdadeira natureza da mente/intelecto, atribuindo-lhe as características que nós atribuímos a Deus. Esse é o "despertar": perceber a verdadeira natureza da mente/intelecto, que é a verdadeira natureza de todos os seres. Assim, a cessação do sofrimento é possível porque a causa real do sofrimento é uma ignorância fundamental acerca de nossa natureza. A idéia do "eu" é como que "inventada", uma muleta, um substituto, porque você ignora a natureza fundamental, e esta é a causa do sofrimento. O "eu" é um epifenômeno do mundo, um "eco subjetivo" do mundo, dos objetos. Ele não é o sujeito verdadeiro. O sujeito verdadeiro é a mente/intelecto.

4) A verdade das causas da cessação do sofrimento. Essa causa possui 8 componentes ("nobre caminho óctuplo"). a) Visão correta. Ter uma suficiente clareza intelectual para entender a doutrina da iluminação (entender os conceitos de "eu", "não-eu", "natureza fundamental", as três nobres verdades anteriores etc.). Em outras palavras: o Budismo é para pessoas inteligentes. b) Intenção correta. É necessário intencionar, querer, a iluminação constantemente. c) Linguagem correta. É necessário reexpressar a doutrina constantemente, reelaborando-a constantemente, sem deixar que ela te desvie. d) Conduta correta. Não violar 5 preceitos, a saber: não matar, não roubar, não mentir, não ser incasto, não ingerir bebidas ou substâncias inebriantes. e) Ocupação correta. Encontrar uma ocupação que são obstaculize a iluminação. f) Esforço correto. É necessário fazer muitas ações que visam exclusivamente a iluminação. g) Atenção correta. A atenção tem de se voltar constantemente à testemunha (mente/intelecto) que percebe as relações psicofísicas. h) Concentração correta. Consiste em alcançar um estado de absorção completa na atenção à testemunha (mente/intelecto), ou seja, um estado de abstração contemplativa -- você só percebe a testemunha.

Todas estas quatro verdades são comuns a todas as escolas budistas. Entre 50 e 300 anos após a morte do Buda, começam a surgir os escritos Mahayana (grande veículo -- adaptações do método original budista), em oposição ao Hinayana (pequeno veículo). Alguns Budas, na sucessão do Buda, criaram métodos alternativos, que ora se assemelham a métodos cristãos, ora hindus etc. Eis porque há tantas escolas budistas.

As diferenças entre estados póstumos cristãos e budistas. Os budistas fazem uma análise puramente natural da questão. O ser, para os budistas, não é o ser psicofísico, mas a testemunha fundamental. Ora, é evidente que essa testemunha sempre existiu e sempre existirá, independe das relações do ser psicofísico.

Portanto, a reencarnação budista não é a pessoa humana, pois essa pessoa é o conjunto do intelecto com o organismo psicofísico. É evidente, por conseguinte, que a pessoa jamais reencarna.

Depois da morte (1) ou você chegou ao conhecimento da sua verdadeira natureza antes da morte, e então tudo o que define a sua pessoa é contemplado por essa testemunha original em sua realidade última, (2) ou você não chegou a esse conhecimento, e como não tem mais o aparato psicofísico para atingi-lo, essa pessoa irá se dissolver -- mas ela não se dissolverá imediatamente, pois você tem memória, e a memória não pertence à parte física do organismo psicofísico, mas à parte psíquica, que é capaz de duração indefinida (não há um limite predeterminado). Este ponto (2) é exatamente o que o cristão chama de "inferno". No inferno, a pessoa humana se perdeu para sempre, mas não a testemunha, o intelecto. Mas a duração dessa decomposição psíquica não é propriamente temporal, mas algo que os escolásticos chamavam de "eviternidade", ou seja, ela tem um começo, mas pode não ter um fim. O inferno é como uma doença incurável -- não há mais retorno. Ele é um psiquismo que perdeu o meio de ação sobre o mundo, embora conserve a memória dessa interação. No inferno, você não tem olhos para ver, ouvidos para ouvir, língua para saborear etc. No começo, é até um estado de alívio, mas depois a pessoa percebe que não consegue acordar. Depois de totalmente decomposto, a testemunha/intelecto assumirá outra forma que não era você, mas não neste mundo, uma vez que a eviternidade impossibilita a chance de voltar em uma determinada data no tempo. Então, segundo o Budismo, há indefinidos mundos. A mente/intelecto transmigra para outro mundo.

Bibliografia recomendada:

(1) O pensamento vivo de Buda -- Ananda Coomaraswami (o principal a ser lido, os demais podem ser lidos em qualquer ordem)

(2) A tigela e o bastão -- Mestre Taisen Deshimaru

(3) Mitos hindus e budistas -- Ananda K. Coomaraswamy e Irmã Nivedita

(4) A arte cavalheiresca do arqueiro zen -- Eugen Herrigel

(5) Buddhist Spectrum -- Marco Pallis

(6) O Buda da luz infinita (Daisetz T. Suzuki, escrito em resposta a um brasileiro)

(7) A doutrina zen da não-mente -- Daisetz T. Suzuki

Aula 7: Considerações Finais Sobre o Ramo Ariano

Se o budista pratica o caminho óctuplo o suficiente, ele atinge um estado de equilíbrio natural da psique. Esse estado é comparável ao que os cristãos chamam de santidade. A santidade está muito aquém do objetivo do Budismo. A santidade é um estado a partir do qual tornar-se desperto é inevitável. A ordem da psique não permite que ela se desintegre.

O método óctuplo tem por objetivo que sua psique sirva de "espelho" do seu intelecto, na qual você pode se perceber. Por exemplo, quando você tem um desejo, esse desejo ocorre na psique, mas a raiz dessa atividade é o sujeito cognoscente. Portanto, entendemos alguma coisa do sujeito observando algumas atividades que derivam dele.

As atividades do psiquismo estão mais relacionadas umas às outras do que as partes do corpo estão relacionadas entre si. Se você criar uma ordem de inter-relacionamento entre as diversas atividades do seu psiquismo, essa forma pode permitir que você perceba sua psique como um todo. Por exemplo, você aprende uma doutrina até que você possa concebê-la e compreendê-la; depois você educa seus sentimentos para que eles sejam uma imagem dessa doutrina; depois você organiza suas ações para que elas também sejam uma imagem dessa mesma doutrina; assim, é fácil dar à psique como um todo uma forma coerente. Se essa forma coerente não for estranha à natureza da psique, essa forma pode permanecer na psique indefinidamente. Similarmente, há posturas corpóreas que você pode permanecer por muito tempo (uma postura nada mais é que uma disposição das partes do corpo). O caminho óctuplo nada mais é do que uma forma de disposição das diversas partes da psique. Uma vez que essa disposição é alcançada, ela pode permanecer indefinidamente na psique. Se você alcança essa disposição, mas ainda não tem penetração contemplativa suficiente para perceber, na psique organizada, a imagem do sujeito cognoscente, você pode manter essa ordem indefinidamente, e uma hora você perceberá qual a natureza do sujeito cognoscente. É como se em sua psique estivesse cristalizada uma fotografia, ou representação artística, do sujeito cognoscente, e você fixa ela. Quando ela alcança precisão suficiente, ela se fixa como que miraculosamente.

Para uma pessoa de psique desordenada, é muito difícil percebê-la como um objeto, pois essa psique está mudando o tempo todo. A estrutura permanente da psique não é evidente para uma pessoa comum, pois ela está como que mergulhada nessa psique.

Buda e Cristo criaram estados póstumos que antes não existiam. Se eles não tivessem criado esses estados póstumos, existiriam os estados póstumos naturais, ou seja, as possibilidades que decorrem naturalmente da psique humana. Mas, dentro destas possibilidades, algumas só podem ser efetivadas por pessoas como Cristo, Buda etc. Ou seja, elas são em princípio possíveis, mas de fato só podem ser efetivadas diante de uma causa eficiente suficientemente poderosa. Existiam possibilidades de salvação para a alma humana que não estavam realizadas até a vinda do Cristo (ou até a vinda do Buda). Embora fossem teoricamente possíveis, na prática era impossível, pois dependiam das realizações espirituais desses seres.

Por exemplo, Cristo desceu aos infernos e libertou inúmeros seres humanos. Dizer que essas pessoas "não mereciam" estar no Paraíso, é um símbolo antropomórfico para explicar uma realidade que transcende a percepção humana. Nós falamos como se isso fosse uma escolha arbitrária de Deus. Da mesma maneira, poderíamos dizer que a natureza das coisas é que exigia que esta possibilidade fosse efetivada para a psique dessas pessoas. No entanto, nenhuma dessas duas explicações simbólicas seria plenamente verdadeira. Neste, uso como exemplo a necessidade natural, ou seja, a ordem cega da natureza. Naquela, estou usando a ordem arbitrária do desejo. As duas são apenas símbolos de uma realidade em Deus; nenhuma das duas traduz exatamente porque aquelas pessoas estavam ali. Um símbolo enfatiza um aspecto, o outro símbolo enfatiza outro aspecto.

Muitas verdades das religiões são apenas símbolos que se referem a verdades metafísicas, que, numa certa medida, conseguimos traduzir em um discurso teórico. Uma parte é possível explicitar teoricamente (é o elemento de evidência), outra parte é misteriosa, isto é, não tem como ser traduzida dentro de um determinado contexto. Por exemplo, o contexto budista não permite que explicitemos intelectualmente a idéia de "graça" -- não existe a possibilidade de "ganhar alguma coisa sem merecer". Todas as religiões têm um elemento de mistério, isto é, algo que fica inexplicado.

Existe uma espécie de "intermediário" entre o Absoluto e o Infinito e a psique humano: é o Verbo Divino. O Verbo é o elo entre o limitado e o Ilimitado. Se você não pode entender tudo, você pode, no entanto, fazer com que cada ato psíquico seja perfeito, que seja completo na sua própria ordem. É isso que o Verbo faz. Sua alma pode estar organizada de uma forma tal que mesmo antes de entender as coisas você já sente como elas são. O liame entre a psique e o Infinito, que mesmo antes de entender ele já sente que não deveria pensar isso ou desejar aquilo etc. É por isso que o dom de inteligência não é o dom supremo. Muito além desse dom, está o dom de sabedoria, que consiste em pressentir a ordem das coisas com o Infinito antes de entender. A ordem da psique está além da atividade meramente intelectiva. A ordem intrínseca da psique leva ao estado de disposição constante e plena para satisfazer-se apenas com o Infinito. É por isso que muitos santos não satisfaziam plenamente sua fome, a fim de não enganar a alma com falsas satisfações.

Há três métodos para moderar a satisfação de determinado desejo. (1) Compreensão do objeto, enquandrando-o na realidade. É voltado à inteligência. (2) Acrescentar objetivamente à ação uma motivação compassivo-generosa. É voltado à vontade. (3) Abstinência. É voltado à afetividade.

O problema que se enfatiza das religiões semíticas é que a realização suprema é possível, mas Deus continua sendo Deus e você continua sendo não-Deus. Como o indivíduo humano estabelece uma relação com Deus? O problema do Hinduísmo e do Budismo não é esse, mas "O que é a realidade?", "O que é comum entre Deus e não-Deus?". Então, nas religiões semíticas, fica a impressão que Deus e não-Deus são entes radicalmente diferentes e radicalmente separados. Nas religiões semíticas, nunca se encontrará alguém dizendo "você e Deus são a mesma coisa".

Aula 8: O Ramo Semítico: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo

As religiões arianas chegaram à conclusão que a natureza última de qualquer ser real é a mesma da natureza última do Absoluto. Embora a realização plena dessa verdade seja um objetivo espiritual supremo, ele não se torna Onipotente ou Onisciente. Entre o indivíduo iluminado e o poder que governa o Universo existe uma diferença. Portanto, o poder que governa o Universo não é a natureza última de todos os seres.

Essa natureza última se realiza de muitas formas. Mesmo depois da realização da identidade suprema, existe ainda uma diferença entre as formas dos seres. O Buda, quando percebe que ele é o mesmo que tudo o que há, ele não se torna uma árvore, um peixe, ou Deus. Existe, portanto, um princípio de ordem para cada ser. Todo ser está ordenado para um fim que lhe é próprio. O fim do ser não é estabelecido pelo próprio ser. Para que um fim natural exista, ele depende da existência de um princípio comum ordenador entre o sujeito para o qual aquilo é fim e o fim. Esse princípio comum -- a garantia ontológica de qualquer finalidade natural -- é Deus. Se o conhecimento é uma finalidade natural, existe um "deus" para o conhecimento. É esse "deus" que garante que, existindo um possível conhecer, existe também um conhecimento que corresponde a esse possível conhecedor. Esse "deus" abarca em seu ser todas as possibilidades de relação entre um conhecedor e o conhecido, e ele observa quais entes naturais correspondem, de algum modo, a essas possibilidades, e a esses ele garante alguns conhecimentos. Isso acontece porque a causa eficiente imediata da sua existência não é a mesma causa eficiente dos seus propósitos. Ora, a probabilidade de um ente natural se encontrar com seus objetivos é ínfima.

Por exemplo, um dos primeiros objetivos naturais do coelho é querer a alface, mas ele é incapaz de determinar a existência da alface. É muito mais provável que ele encontre elementos hostis aos seus propósitos do que elementos favoráveis a seus propósitos. No entanto, os seres continuam existindo porque encontram meios favoráveis a seus propósitos, pois existe um princípio comum dos coelhos e de todos os objetos que são propósitos para os coelhos. É esse princípio particular que governa a existência dos coelhos. Esse é o "deus dos coelhos", que cuida deles para que a espécie "coelho" continue existindo. Ocorre que esse "deus" está em conflito com o "deus" das alfaces. A coexistência de seres cujos propósitos são contrários subentende a existência de um princípio comum, que coordena as diversas existências divergentes. Assim, Deus é um princípio último ou supremo de coordenação de todo o Universo.

Se esses princípios são ordenados hierarquicamente, então a perduração do Universo na existência depende de o princípio último ser único. Dois princípios na mesma ordem hierárquica em algo divergiriam. As características desse princípio único são (1) onipotência, ou seja, não há outro princípio que possa resistir à ação desse princípio último -- Deus pode fazer tudo, menos aquilo que é contrário à natureza última, que é idêntica nEle e em todos os seres (Deus não pode decidir que Ele não é mais Deus, por exemplo), ou seja, Deus não governa o fundamento último da realidade; (2) onisciente, ou seja, Ele tem de abarcar em sua própria realidade ontológica todas as possibilidades dos existentes (afinal, não existe poder sem conhecimento) -- o "deus" dos coelhos conhece não apenas todos os coelhos mas também todos os coelhos possíveis; (3) onibondade (bondade é a medida em que um ente é desejável, seja por suas características objetivas, seja por sua disposição subjetiva para o qual ele é um fim).

Não é possível compensar a Deus de maneira alguma. A idéia de "compensação" é aplicável a qualquer deus não-supremo, pois qualquer deus que rege um aspecto ou uma área do real é limitado pelos outros deuses que regem os outros aspectos, portanto você pode fazer alguma coisa por ele. Assim, não é possível estabelecer uma relação com Deus. Ele o tempo todo se relaciona conosco, pois tudo o que somos deriva ontologicamente do influxo de ser que Ele nos garante. Só há um sentido no qual é possível corresponder. Se Deus é um só, você também é uma coisa só. A unidade é um atributo que deriva do fundamento último da realidade. Tudo o que é, é um, e não dois. Isso significa que um ser só pode se relacionar com Deus na razão da sua unidade.

O que faz do indivíduo humano "um" é o ato pelo qual ele sintetiza tudo o que ele é; é o ato no qual aquele ser põe em jogo tudo o que há no ser dele. Esse ato é justamente a liberdade da vontade. O ato de livre escolha sintetiza tudo o que você é. Por exemplo, nos seus desejos e emoções passivas, o ato das emoções não sintetiza tudo o que você é. Você pode ter convicções contrárias a seus desejos. A livre escolha se exerce justamente nessa zona indeterminada entre suas idéias e convicções e seus desejos. Então, uma relação com Deus só é possível na medida em que ele dedica essa liberdade a estabelecer uma relação com Deus. O próprio Deus só pode estabelecer uma relação com o indivíduo na medida em que esse indivíduo entrega sua liberdade a essa relação. Na Bíblia, por exemplo, todas as relações com Deus começam com um pedido de Deus: "Faça isso, e não faça aquilo".

No Universo, existem duas zonas: uma de determinação e outra de indeterminação. Existem certas coisas que não podem ser diferentes do que elas são; existem coisas que podem ser de diversas maneiras. No ser humano, a zona de indeterminação é justamente o campo de ação da vontade. Os seus desejos e conhecimentos não estão na raiz de sua unidade: eles são apenas componentes de sua unidade. Mas a sua vontade se origina na própria raiz da sua unidade. Este é o ponto, no ser humano, em que você é seu próprio deus. "Vós sois deuses e filhos de Deus". É esta parte que pode se relacionar com Deus e, assim, se relacionar com os outros domínios do Universo sobre os quais ela não se exerce. Isso quer dizer que Deus só estabelecerá uma relação integral com alguns poucos indivíduos excepcionais, isto é, com aqueles que (1) estão plenamente cônscios de possuírem sua vontade livre (todas as forças de influência são meras sugestões), que (2) tenham a idéia ou conceito de Deus Supremo e que (3) tenham a firme determinação de colocar essa vontade livre diretamente sob o domínio desse Deus Supremo (exemplo: Abraão). A relação com Deus é, então, sempre uma aposta. Você não sabe se haverá alguma vantagem. Você sabe que sua liberdade é boa para você, mas você não sabe se aproximar-se de Deus será uma coisa boa.

O propósito da narrativa bíblica é apenas colocar você diante da escolha de seguir a Deus, e não apresentar essa escolha como vantajosa caso decida-se pelo "sim". A Bíblia esclarece os diversos valores possíveis aos quais você pode ordenar sua vontade, e que não estão suficientemente explícitos pela sua experiência de vida. A simples leitura atenta da Bíblia permite que o sujeito tome posse de sua liberdade, das possibilidades acerca da sua vontade.

A história da família de Abraão é a história de alguns indivíduos que apostam na relação com Deus. A família cresceu tanto que virou um povo. Mas, para transmitir essa experiência a um povo inteiro, é necessário acrescentar alguma coisa. Esta é a primeira questão que o Judaísmo se coloca: a relação com Deus na razão da unidade do povo, e não de um indivíduo.

Buscar o fundamento último das coisas, como fazem os hindus, não é uma aposta. O caminho para a descoberta desse fundamento é igual para todos, é sempre o mesmo, não tem uma história. Mas a relação com Deus tem uma história, pois não é sempre a mesma. Ela é uma entrega concreta de uma liberdade concreta, que poderia ter acontecido ou não. Não há um meio de participar da experiência de Abraão pela mera especulação abstrata, pois precisamos do relato, pois essa história é contingente. A família de Abraão, além de passar certos valores morais, culturais e espirituais, ela também passa a lembrança de certos fatos históricos. Os hindus não se preocupam em saber quando, como e para quem os Vedas foram revelados, mas apenas que foram revelados. Os Vedas não tratam de uma relação pessoal de um indivíduo humano com Deus, mas com coisas que são mais bem explicadas na forma de mitos, e não fatos históricos. Mas não é possível estabelecer um mito que explique a experiência concreta de uma relação com Deus. Os mitos só servem para expressar realidades permanentes que são conteúdos da inteligência. Mas uma relação pessoal com Deus não é um conteúdo permanente da inteligência, mas o que pode acontecer ou não. O mito pode explicar o sentido da experiência, mas não a experiência da relação com Deus em si. Para os judeus, o sentido de história é muito mais importante do que para outros povos.

O iluminado nada sabe acerca de como e por que Deus governa o Universo. A busca de iluminação olha o aspecto de necessidade que há no real, e não o aspecto de liberdade. A iluminação não explica por que você nasceu nessa forma, por que existe este indivíduo. Quem decide que este indivíduo existe ou não é o Deus que governa o Universo. E mais: uma relação com Deus é garantia suficiente de iluminação futura. Há seres para os quais a iluminação é impossível, mas Abraão abriu uma possibilidade para esses seres que não tem o karma bom para atingir a iluminação.

Aula 9: Introdução ao Judaísmo

Os princípios básicos do Hinduísmo e do Budismo podem ser demonstrados, de uma maneira ou de outra, porque derivam de conteúdos universais da inteligência. São como os princípios básicos da Geometria. No entanto, uma relação pessoal com Deus não é algo assim, demonstrável. Não há princípios antropológicos, psicológicos ou sociológicos dos quais possamos derivar uma relação real entre dois indivíduos humanos.

Uma relação com um indivíduo humano é uma sucessão de encontros nos quais você vai lapidando sua liberdade, seja na direção da amizade, seja na direção da inimizade. A cada encontro, você toma uma decisão do que pode ou não fazer em relação àquela pessoa. Aquela pessoa, então, vai se destacando para você, mesmo que seja um inimigo. Por exemplo, talvez você aceite uma ofensa vinda de determinada pessoa porque a relação com aquela pessoa na sua vida vale a pena.

Os judeus justamente começam a registrar os momentos em que esse relacionamento avança, a saber, os episódios em que os judeus renunciaram uma parte de sua liberdade para manter o relacionamento. Enquanto o número de membros era pequeno, o chefe da família tinha esse encontro com Deus, no qual se marcava as áreas de liberdade e necessidade. Foi assim para Abraão, Isaque e Jacó. Mas a família cresce e se torna um povo, que inclui várias famílias e, mais ainda, é um povo em servidão, um povo escravo.

O relacionamento, assim, tem de mudar de plano, uma vez que um povo em servidão não tem líder. Tudo o que os judeus preservavam era a memória dessa relação. A religião de Abraão era a religião de uma família. O Judaísmo (ou Mosaísmo) é a religião de um povo.

O primeiro valor espiritual marcante dos judeus é entender porque Deus os estava "escravizando". Quando os judeus são libertados do Egito, eles obtêm a primeira expressão coletiva do por que Deus fazia isso com eles. É isso que os tornará uma nação, com uma identidade religiosa clara.

Se a razão de unidade de uma pessoa é sua liberdade de fato, então a razão da unidade de uma pessoa ou povo é a expressão em leis de seus valores espirituais mais íntimos. O processo de saída do Egito vai explicitar para o povo hebreu seus valores espirituais mais íntimos, culminando na forma de leis.

Quando Deus revela essas leis, Ele se declara soberano do povo hebreu. Um povo não pode ter uma relação mais íntima com Deus do que essa. Outra forma de expressão que Moisés dá esses valores de inspiração divina é o relato do Gênesis. Esse relato explica muito sobre o povo hebreu e seu Deus.

A vegetação (criada no 3º dia da criação, tida como a única criatura perfeita que não fere nenhum mandamento) passa a representar o conjunto de bens espirituais e materiais que surgem da restrição de sua liberdade em uma determinada relação. Se Deus não perfaz esse conjunto de restrições, os judeus só têm seus desejos em relação a Deus; eles não sabem como é Deus, mas só o que eles querem de Deus. O que caracteriza o judeu é precisamente a fé inabalável de que dessa restrição voluntária só surge o bem, só surgem coisas que aliviam e facilitam sua vida, por mais difícil que essa restrição possa parecer de início.

No decorrer da história, os sofrimentos são encarados pelos judeus como restrições temporárias à sua liberdade, para que outro aspecto possa se destacar. Surge então a idéia de que "tudo tem um sentido", que se explica depois, na própria história. Para hindus e budistas, o sentido se encontra fora da história. Para o povo hebreu, todo sentido se revela no tempo.

Nessa relação com Deus, os judeus descobriram o segredo da prosperidade, tanto espiritual quanto material. A única maneira de perceber como as coisas são é restringindo seus desejos em relação a elas. Cada episódio da história do povo hebreu mostra isso: uma sucessão de restrições de liberdades, até que aceitam os sofrimentos como um modo de restrição para se relacionar com Deus -- uma nova realidade, como a relva, se abre para eles.

Outra idéia que surge para os judeus é de que há uma justiça invencível no mundo. Tudo o que acontece é perfeitamente justo. A aceitação da justiça termina sempre em uma abertura para o que há de melhor na realidade. Fazer o bem esperando ganhar uma recompensa é pouco.

Por isso Abraão era o "amigo de Deus": ele sabia sacrificar sua liberdade em nome de sua relação com Deus. Abraão queria sempre a companhia de Deus, queria sempre preservar essa amizade. A partir daí, ao longo da história, os judeus aprenderam a desenvolver uma relação de extrema confiança com Deus.

A facilidade que os judeus têm de lidar com os bens materiais vem da percepção que têm de que esses bens são "presentes de um Amigo".

Além disso, os judeus nunca desenvolveram um "credo", ou seja, um conjunto de crenças formais. Por exemplo, há judeus que acreditam na imortalidade da alma, enquanto outros não. Isso porque o Judaísmo é um corpo de práticas diante do sofrimento. Mesmo as leis não são acordadas entre as diversas escolas judaicas. Por exemplo, "encher uma pessoa de porrada" pode ser uma infração ao "não matarás", de acordo com uma escola, e não ser, de acordo com outra.

A salvação, no Judaísmo, é um processo constante. A salvação consiste (1) na preservação dessa "amizade" histórica, (2) na ativação dessa lembrança por meio do cumprimento das leis. O vício fundamental na religião judaica é a ilimitação mental: esquecer a "amizade", substituindo-a por inúmeros outros pensamentos. Quando o judeu limita a sua própria liberdade ipso facto é a salvação. O Messias é a culminação histórica desse processo. A vinda do Messias apenas tornará evidente aquilo que se fez ao longo de todos os séculos anteriores. Para os judeus, então, não faz sentido pensar sobre seu destino depois da morte.

O Cristianismo se dirigiu, em primeiro lugar e de imediato, para as pessoas que percebiam que os valores espirituais judaicos tinham diluído tanto em suas almas que se tornou algo insuportável. Eles perderam sua relação de amizade com Deus. Esses foram os primeiros discípulos do Cristo. Ele se dirigiu aos membros daquele povo que não tinham mais uma relação pessoal com Deus. Os primeiros cristãos tinham uma consciência clara de não estarem mais conseguindo ser judeus. É por isso que Cristo usa a parábola da ovelha perdida, e também por isso que Cristo disse que veio para os doentes, não para os sãos. O Cristianismo não é um "Judaísmo mais profundo", porque senão todos os judeus teriam se convertido. Além disso, o Cristianismo também se volta para aqueles que não são de origem judaica.

Cristo sabia que quem o condenaria à morte eram os bons, porque os maus o iriam seguir. É por isso que Ele os perdoou. Ele não perdoou o mau ladrão, mas perdoou os sacerdotes porque eles não eram inimigos de Deus. Na perspectiva de Cristo, não tinha jeito dos sacerdotes judeus perceberem o que Ele estava fazendo. Cristo veio salvar a humanidade que ainda não estavam salvos na relação de amizade com Deus. Não fazia sentido salvar os bons judeus porque esses já estavam salvos.

Aula 10: Introdução ao Cristianismo

É natural que, ao longo dos séculos, alguns judeus perdessem a relação de amizade tipicamente judaica. Qualquer religião, no decorrer das gerações, tende a um número crescente de determinações. E é inevitável que essas determinações se tornem mais "exteriores". Criam-se meios automáticos de manter as relações, pois, do contrário, desapareceriam. As amizades não conseguem manter-se no mesmo nível de espontaneidade inicial.

Todas as relações prolongadas tendem a se tornar no fim relações de amor ou de ódio. No início de uma relação qualquer, a ênfase da mente está nos sentimentos e emoções que aquela pessoa desperta em você. Com o passar do tempo, a ênfase passa para a pessoa como ela realmente é.

No caso do Judaísmo, passam-se os séculos, e temos acumulados centenas de costumes que servem para manter a relação de amizade inicial. Chega um determinado momento, aqueles costumes podem se tornar inabarcáveis para determinado indivíduo. Se o sujeito perde a noção de conjunto, ele perde a relação de amizade. Mas ele conhece bastante do Deus de Abraão para saber que não foi Deus quem o abandonou.

Para entender o Cristianismo, é necessário entender essa situação.

A primeira e segunda geração do Cristianismo (os primeiros 50 anos), quatro tipos de pessoas se convertiam: (1) os judeus que tinham consciência de ter pecado em abandonar sua relação pessoal com Deus, (2) as camadas mais pobres da população do Império Romano, isto é, pessoas com forte senso de privação, (3) membros da aristocracia romana que estavam cientes da decadência da sua classe e (4) pensadores e filósofos virtuosos de cunho helenista, que possuíam uma forte sensação de estarem separados do objeto de seu conhecimento, uma forte sensação de isolamento.

O Cristo não veio para pregar que as pessoas deveriam reconquistar os valores perdidos, mas Ele veio para mostrar que o fundamento desses valores é a presença divina, para restaurar essa presença e resgatar de volta os valores perdidos. Era algo como dizer: "Você não precisa de nada; você só precisa de Deus". "O céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão".

No entanto, como fazer (5) um sujeito que já nasce no seio do Cristianismo tomar consciência dessa mensagem inicial? É tornando-o consciente de sua mortalidade. É dando para ele um instrumento de percepção da privação, afinal, ele pode não ter nascido pobre, nem doente, nem membro virtuoso de uma aristocracia decadente etc. É por isso que se desenvolveu a doutrina do pecado original e do pecado em geral: para despertar nele a percepção das falhas que há nele e no mundo, algo que está fixo na estrutura natural, e que em última instância causará sua morte. Quando a consciência da morte se torna importante, o sujeito se pergunta: por que eu tenho de acabar? O Cristianismo responde: porque você está desligado, desgarrado, do seu fundamento, da sua causa. Todo efeito desconectado de sua causa tende a desaparecer.

A proposta cristã não é recuperar o valor perdido, mas aproveitar essa oportunidade para tornar mais profunda a consciência da perda para lançar o sujeito em busca de algo que vai além daquele valor.

Mas Cristo veio resgatar os valores humanos, mas também entregar um valor divino. Os valores humanos são aqueles em que qualquer pessoa consegue perceber sua privação (poder andar etc.). Os valores divinos não estão contidos na estrutura ontológica humana. Tanto o Judaísmo quanto o Cristianismo propõe que o ser humano é mais do que humano: o ser humano é filho de Deus. Há uma dimensão no homem que é supra-humana. Ser criado à imagem e semelhança significa (1) imagem = todos os valores humanos positivos são símbolos da realidade divina (virtudes, conhecimento, riqueza, saúde, beleza); (2) semelhança = tem o sentido de semelhança do filho para com o pai, uma comunidade de natureza, é o próprio Deus em um sentido diminuído.

Cristo veio como um meio de realização dessa semelhança. A aspiração para realização dessa semelhança é muito pequena no ser humano. A vida da "imagem divina" é ser rico, poderoso, belo, longevo, saudável, sábio, etc. Mas a vida da "semelhança divina" é ainda melhor, dispensando a vida da imagem divina. É por isso que no Cristianismo há uma ênfase no "Reino dos Céus", que tem um duplo significado: (1) um estado de vida no qual se recebe em plenitude as características da imagem divina (são as "coisas velhas tiradas do baú"), (2) coisas inusitadas, desconhecidas, não concebidas anteriormente, completamente novas (são as "coisas novas tiradas do baú").

Esse duplo sentido já divide os cristãos em duas categorias: (1) aqueles cujas mentes estão voltadas para as coisas velhas, fixando-se nas coisas em que foi privado, não passando desse plano e (2) aqueles cujas mentes estão voltadas para as coisas novas.

Logo na primeira geração, os bispos ensinam que toda comunidade cristã tem três categorias: (1) santos, (2) santificados (receberá a semelhança só no Reino dos Céus, pois não tem aspiração para isso agora, mas está em comunhão com os santos) e (3) hipócritas (sempre os tereis).

"Fazer caridade é dar aquilo que a gente não quer dar". Caridade implica em sacrifício; é fazer porque Cristo fez para você. A caridade é o único ato humano que não é ambíguo. Dar bens internos não é perdê-los (conhecimento etc.); dar bens externos é perdê-los, é causar privação. Essa privação só pode acontecer com bens externos (dinheiro, saúde etc.).

A imagem (valores simbólicos) e a semelhança (valores reais) só têm um único ponto de contato: sua consciência, e não as relações humanas.

Aula 11: Introdução ao Cristianismo

O Buda nunca apresentou sua mensagem como se fosse para todos. Pelo contrário, é para uma minoria. O Cristianismo diz que em princípio qualquer um pode entrar. É uma diferença específica entre o Cristianismo e as religiões anteriores: nenhuma religião anterior era voltada para toda a humanidade. O Judaísmo era um meio de ligação entre uma família e Deus, e se dirige a essa família e seus descendentes. O Hinduísmo exclui qualquer possibilidade de conversão para o si, pois também está ligado a uma hereditariedade. O Cristianismo é transcultural, é universal. O Islã veio depois como outra mensagem universal.

O motivo para se tornar cristão é diferente do motivo para se tornar budista. É a idéia de privação de algo, de um valor essencial e irrecuperável. O motivo que o Cristo apresenta é poli-sintético, ou seja, inclui diversas motivações humanas possíveis. É isso que faz do Cristianismo uma religião universal. Não há um motivo específico, mas uma situação circunstancial que pode se apresentar para qualquer ser humano.

O Cristianismo diz que a pessoa está num mundo de limitação e sofrimento, mas poderia estar em um mundo de ilimitação. Esse é o motivo central. Tanto o Judaísmo quanto o Hinduísmo possuem meios de exteriorização de sua tradição, para que o indivíduo possa vê-la e assimilá-la posteriormente. Isso é algo que o Cristianismo não dispõe. Todas as sociedades cristãs foram modeladas temporalmente pelos costumes locais. A Europa Medieval espiritualmente foi moldada pelo Cristianismo, mas temporalmente as instituições não se originavam do Cristianismo. Há uma descontinuidade entre o Cristianismo enquanto religião e as sociedades cristãs. As sociedades são arranjos provisórios para facilitar a vida cristã dos sujeitos dessas sociedades. É como um quarto de hotel: você até adaptar uma coisa ou outra para sua estadia, mas o quarto não será a expressão da sua personalidade, como seria uma casa, por exemplo. É isto que Cristo quis dizer com "Meu Reino não é deste mundo".

Só tinha um meio de ter uma amostra do que é Cristianismo e por que deveria ter aquilo: os exemplos de santidade. Cristo não propõe a seus discípulos imediatos (apóstolos) meios de regenerar a sociedade. A história do Cristianismo não é a história das sociedades cristãs, mas é a história dos santos. Também não é a história dos padres, bispos e papas. Como ser cristão é uma realidade interna, e não externa, há um meio diferente para identificar quem é cristão: amar-vos uns aos outros como eu vos amei. Por isso não há "maus cristãos", mas "falsos cristãos".

Para entender o Cristianismo, é necessário entender os cristãos, e não suas sociedades. Quem julga o Cristianismo pelas sociedades não entendeu o que é Cristianismo. Quem não cumpre o critério para ser cristão não é discípulo do Cristo, ponto. Se há aqueles que dizem ser cristãos, mas não o são, é pelo motivo que é impossível em uma sociedade excluir os maus. Judas Iscariotis é o primeiro deles, e uma espécie de símbolo da presença de falsos cristãos em meio dos cristãos.

Quando Moisés resumiu o Judaísmo, ele fez isso pelos Dez Mandamentos, que são normas rígidas, precisas. Quanto Cristo resume o Cristianismo, ele o faz no Sermão da Montanha, mas não são normas rígidas, exteriormente falando. É uma diferença muito grande em relação às outras religiões: o Cristianismo não é uma proposta social ou civilizacional, mas uma proposta pessoal, para o qual há o testemunho da História de que ele funciona.

"Santo" é aquele que leva uma vida cristã exemplar. Há muitos santos que nunca foram formalmente canonizados. No Protestantismo também há santos, mas não há um processo formal que os declare santos. A diferença entre Igreja Católica e as igrejas evangélicas é muito menor do que parece.

O Cristo citou seis normas que devem ser seguidas por todos os cristãos, ao responder ao jovem rico sobre como obter a salvação. Nesse sentido, hindus, judeus e muçulmanos, por exemplo, também são cristãos. Assim, é praticamente impossível determinar se uma igreja é verdadeira ou falsa.

Até o século IV, era proibido entregar um manuscrito das Escrituras para um não-cristão, pois o modo de vida dele era muito abaixo daquele exigido por Cristo para entendê-las.

Aula 12: Introdução ao Islamismo

Do ponto de vista dos muçulmanos, judeus, cristãos e muçulmanos são irmãos, cujo núcleo fundamental é o monoteísmo de Abraão. O Judaísmo teria nacionalizado essa mensagem, e Cristo foi enviado para corrigir tal adaptação judaica. No entanto, o Cristianismo, ao longo dos séculos, dilui o monoteísmo puro, em função da idéia de Trindade e da natureza divina do Cristo. O Islã vem justamente compensar essa atitude, confirmando o monoteísmo mais puro possível.

O nome "Allah" significa "o Digno de Adoração". Ele se refere fundamentalmente à natureza divina, e não às pessoas da Trindade, sendo que essa natureza é indivisível.

Entre os árabes pré-islâmicos, havia tribos capazes de retraçar sua genealogia até Abraão, e que eles eram modelos de comportamento, a despeito de serem politeístas (havia 360 deuses). Havia pessoas ali que tinham uma idéia do que os árabes deveriam ser, em termos de comportamento. Eles eram a nobreza do mundo árabe.

Maomé nasce de uma dessas tribos nobres (embora de família muito pobre), que é, portanto, cônscio de sua ancestralidade. O tio de Maomé, que o criou a partir dos 8 anos, era um sujeito piedoso, que cuidava dos peregrinos que iam à Meca, a capital da religião dos árabes, onde existia um templo no qual estavam presentes os 360 ídolos dos deuses árabes, que iam pelo menos uma vez ao ano visitar esses ídolos. Esse tio influenciou grandemente a formação de Maomé.

Aos 40 anos, Maomé subitamente tem uma visão em um de seus retiros na caverna. Surge-lhe um homem de branco dizendo "Recita". Maomé diz que não sabe recitar, por não ser poeta. O homem insiste, apertando-lhe a ponto de desmaiá-lo, dizendo na quarta vez: "Recita em nome do teu Senhor que criou o homem de um coágulo. Recita e diz que o teu Senhor é generosíssimo, e que ensinou o homem pelo cálamo (letra), e ensinou ao homem o que ele não sabia. Ó, Maomé, eu sou Gabriel, e tu serás o profeta do teu povo".

Ao tentar pregar a nova fé monoteísta, os primeiros membros do Islã começaram a sofrer obstáculos e perseguições. Quando nada havia efetivamente funcionado, as tribos árabes fizeram um acordo de que era proibido comerciar com os muçulmanos. Os muçulmanos, apesar de começarem a morrer de fome, o Islã começa a crescer. Alguns nobres árabes, vendo o sofrimento muçulmano, acabam se convertendo também, e alguns muçulmanos são enviados à Abissínia, um reino cristão. Ao explicarem ao rei a religião islâmica, o rei faz um traço do chão, dizendo que a diferença entre a religião cristã e a islâmica era ainda mais sutil que aquele traço. Mais tarde, as 27 tribos de Meca conspiram contra a vida de Maomé. A informação acaba chegando até Maomé, e um primo (filho do tio que o criou, chamado Ali) propõe substituir Maomé por si próprio na trama armada para matá-lo. No entanto, Ali também escapa, e Maomé chega a Yathrib (futura Medina). É nesta fuga, conhecida como Hégira, que se dá início ao calendário islâmico, e Maomé é empossado líder da cidade. Meca e Medina entram em conflito, e Meca por fim é derrotada.

Toda a shariah (Lei) é baseada em duas fontes: (1) os versículos do Alcorão e (2) a sunnah (o exemplo do Profeta) e os ahadith (os ditos do Profeta).

Uma das características importantes do Islã é que devemos evitar as comparações entre Maomé e Jesus Cristo ou Buda. Ele é muito mais semelhante aos profetas do VT do que a Cristo ou Buda. Cristo e Buda também são modelos espirituais, mas nunca poderíamos imaginar como eles governariam um Estado, criariam seus filhos etc. Maomé se incumbiu de todas essas tarefas, cumprindo uma ampla gama delas. Maomé fazia milagres, mas com pouca ênfase, desempenhando-os apenas para os muçulmanos. O modelo muçulmano é diferenciado, e não se compara diretamente ao modelo espiritual dos cristãos e budistas. Moisés é um caso mais próximo de Maomé do que Cristo ou Buda.

O "estilo" do Islã é mais próximo ao Judaísmo do que ao Cristianismo ou Budismo. A religião islâmica apresenta coisas que são, em princípio, evidentes para a mente humana. O Cristianismo e o Budismo não são assim: Buda, por exemplo, disse "Você mesmo é a natureza iluminada", ou quando Cristo disse "Deus é Trino e Uno, há o Pai, o Filho e o Espírito Santo" -- nada disso é evidente. No entanto, a simples idéia da unidade divina é auto-evidente. Toda a religião islâmica se baseia em princípios evidentes para a razão humana.

Os muçulmanos consideram a religião como um pagamento de uma dívida a Deus: (1) há evidência teológica para isso e (2) o número de coisas boas que existem no mundo (a gratidão é o fundamento do sentimento islâmico). No Cristianismo, esse sentimento é a privação, e isso explica porque as conversões Islã-Igreja e Igreja-Islã são tão raras.

Segundo os muçulmanos, a religião é dividida em três partes: (1) Islã (submissão, paz, ou "a paz que vem da submissão a Deus"), composto de cinco pilares: (a) o testemunho de fé ("Não há Deus exceto Deus" e "Maomé é seu profeta"), (b) a oração, que deve ser rezada 5 vezes por dia, exceto se estiver em perigo, (c) a esmola compulsória (ceder anualmente 1/40 dos bens para os pobres, excetuando-se a casa e os instrumentos de trabalho), (d) o jejum no mês do Ramadã, que é o nono mês do calendário lunar, a ser cumprido por todos os adultos saudáveis, (e) a peregrinação à Meca pelo menos uma vez na vida; (2) Iman (fé), que é a doutrina que o muçulmano deve crer, cujo credo contém 77 artigos; (3) Ihsan (excelência, ou que há de melhor), o modelo de comportamento ao qual o muçulmano deve aspirar, qual seja, ter a convicção de que está diante de Deus todo o tempo.

O Islã não tem uma autoridade central, embora contenha escolas que explicam os três componentes acima. Os juristas são exatamente as pessoas que se especializaram no Islã, os teólogos no Iman e os sufis no Ihsan. Essas formas de autoridade são independentes. Há quatro escolas de jurisprudência, há duas escolas teológicas e inúmeras escolas sufistas, chamadas tariqas.

Aula 13: Considerações Finais Sobre o Ramo Semítico

A diferença específica entre Islã e Cristianismo/Judaísmo é a ausência de ênfase nos fatos históricos. Os judeus dirão que sua religião é aquela em que Deus os salvou da escravidão no Egito -- é dessa maneira que caracterizam Deus. Os cristãos dirão que sua religião é aquela em que Deus salvou a ovelha perdida -- Deus é misericordioso e salvador. A diferença entre esses dois é apenas a idéia judaica de que Deus salva Seu povo e a idéia cristã de que Deus salva a todas as ovelhas. O muçulmano não explicará sua religião contando um fato histórico: dirá simplesmente que sua religião é a religião de Deus. A instrução de Deus para o homem sempre foi a mesma. A ênfase do Islã está, portanto, na estrutura da mensagem. A força de persuasão da religião islâmica está na imutabilidade de Deus: Ele não mudou depois de Adão, depois de Moisés ou depois de Cristo. Esse aspecto também está presente no Cristianismo e no Judaísmo, com a diferença de que nelas não há essa ênfase. É por isso que os muçulmanos dizem que sua religião é "razoável", ou seja, é fácil de entender.

A ênfase que os cristãos colocam na culpa deriva da sua certeza de ser libertado daquela culpa -- é a certeza da redenção, e não uma "pressão psicológica", que só poderia ser assim identificada por quem está de fora. A ênfase que os muçulmanos colocam na espada deriva justamente de sua certeza de que o Islã é uma religião de paz -- a paz deriva da fé muçulmana de estar participando de uma relação imutável. Por isso o cristão é capaz de tolerar falhas e defeitos alheios mais do que o muçulmano, assim como o muçulmano é capaz de tolerar o estado de guerra mais do que o cristão. Os exemplos de santidade muçulmana são exemplos de manter a serenidade interior diante de adversidades: doenças, misérias ou perseguições. Os grandes santos do Islã sofreram uma ou mais dessas coisas.

As expressões místicas de muitas religiões são paradoxais, dando ao místico a chave para se aproximar de Deus e entendê-Lo: "Cristo é Deus e homem", "Deus é Trino e Uno", "você é a natureza búdica, mas você não existe". No Islã, a chave é "No princípio Deus era e nada era com Ele, e Ele é agora tal como Ele era", que é a imutabilidade divina.

A mensagem de Buda é dirigida a todos os seres sensientes, ou seja, a demônios, homens, animais, anjos. A mensagem das religiões abraâmicas é dirigida somente aos seres humanos. É por isso que somente no ambiente das religiões semíticas surge o conceito de "direitos humanos". A mensagem abraâmica não se dirige àqueles que podem sofrer, mas àqueles que podem pensar (objetividade da inteligência), escolher (liberdade da vontade) e amar (nobreza dos sentimentos).

Aula 14: O ramo extremo oriental: Taoísmo, Confucionismo e Xintoísmo

Taoísmo e Confucionismo derivam das mesmas raízes tradicionais chinesas antigas -- por exemplo, ambas utilizam o I-Ching --, mas as diferenças doutrinais muito distintas, porque possuem finalidades opostas. O Xintoísmo, por sua vez, possui origem completamente diferente.

O primeiro propósito do Confucionismo é tentar explicar quais são as causas fundamentais da coesão social e da harmonia entre os indivíduos humanos, tentando restaurar essa harmonia no cenário chinês. Confúcio se propõe a essa restauração, contemplando os conteúdos da tradição chinesa original (+/- séc. VI a.C.). Confúcio foi um professor que passou a vida toda estudando e viajando pela China na tentativa de convencer um governante chinês a deixá-lo aplicar os princípios que ele compreendia da tradição chinesa original. Nessas viagens, ele acumulou dezenas de discípulos.

O Taoísmo não tem interesse pela coesão social. Ele apenas pretende resgatar a metafísica simbolizada nos textos originais da tradição chinesa, e a mística conseqüente com essa metafísica. Sabe-se pouquíssimo sobre Lao-Tsé, sendo que alguns taoístas até mesmo afirmam que talvez Lao-Tsé nem tenha existido, o que por si só já diz muito sobre o espírito do Taoísmo. Diz-se que Lao-Tsé foi um funcionário do governo, em sua província natal, que viveu uma vida obscura, sem discípulos, sem nada ensinar, e que no final da vida, decepcionado pela incapacidade mística de seu povo, decidiu abandonar o país. Quando chegou à fronteira, o guarda perguntou por que estava deixando o país. Após a explicação, o guarda lhe pede para que escreva algo sobre suas idéias para aquele povo que havia desprezado suas idéias. Lao-Tsé escreve um pequeno livro (Tao Te Ching) e o entrega ao guarda, que passou, então, a ser o primeiro e único discípulo de Lao-Tsé. Aliás, durante as primeiras gerações, o Taoísmo foi uma tradição que passou de um mestre a apenas um discípulo. Foi só algumas gerações mais tarde que um mestre transmitiu a tradição a dois discípulos.

A partir do Tao Te Ching é impossível construir uma ordem social. Por exemplo, a moralidade gera a imoralidade: não adianta tentar conferir moralidade a uma sociedade, pois isso só a tornará mais imoral. Vê-se o contraste flagrante com o Confucionismo.

Para entender o Confucionismo, é necessário entender que havia duas teorias políticas predominantes que tentavam restaurar a ordem social: realismo (o único poder efetivo para criar a ordem social é mediante a força bruta) e idealismo (a maior força para organização da sociedade é a compaixão). Confúcio buscou estudar, na história da China, se alguma dessas teorias havia sido aplicada. Ele percebe que na história da China foram aplicadas essas teorias ao máximo que puderam, mas que a ordem social era mantida somente durante a vida do governante. Ele conclui que essas teorias não eram suficientes para restaurar essa ordem: era necessário, na verdade, transmitir os valores fundamentais que equilibram o apreço à força e o apreço à compaixão de uma geração para outra. O maior problema dessas teorias é, portanto, sua incapacidade de transmitir seus valores à geração humana seguinte, pois acabam necessariamente se alternando no decorrer da história.

O I-Ching é um dos três livros sagrados da antiga tradição chinesa (séculos antes de Lao-Tsé e Confúcio). Os outros dois se perderam. O I-Ching ensina o Wang, o princípio fundamental, que significa literalmente "pontífice" (fabricante de pontes). Deus estabelece o mundo entre o céu e a terra, e Wang é a ponte entre um plano e outro. O homem é uma síntese dessa mesma "ponte". A religião chinesa original tem uma tríade fundamental de princípios cósmicos: céu, homem e terra. O homem é filho do céu e da terra, e estabelece uma ponte entre eles. O Taoísmo diz que esses três princípios são modos de manifestação de outro princípio mais fundamental: o Tao. O Wang é diferente do Tao: o Tao não atua, não opera, as coisas brotam espontaneamente dele. O objetivo do Taoísmo é explicar ou aprofundar a noção desse princípio supremo, dessa essência divina, dessa raiz última da realidade. Por isso, no Taoísmo, o estudo do I-Ching também é fundamental. O Wang é uma antropomorfização do Tao. O Tao é mais profundo que o Wang.

O interesse do Confucionismo é o contrário: enquanto o Taoísmo parte do I-Ching "para cima", o Confucionismo parte do I-Ching "para baixo". O Judaísmo é semelhante, no sentido de que tem a Kaballah (Taoísmo) e a Lei (Confucionismo). A instituição dos rabinos é herdeira histórica dos sacerdotes judeus da era profética com os cabalistas: é uma fusão dessas duas instituições. Isso o torna diferente da situação chinesa, pois nunca houve uma fusão de Taoísmo e Confucionismo, salvo em questões práticas.

O Xintoísmo é um interessante caso de uma tradição que serve de ponto ou elo de transição entre uma religião tribal/indígena japonesa e uma civilização organizada. O Xintoísmo consagra a aristocracia japonesa, formando sua unidade e civilização. O Xintoísmo é um equivalente vivo da religião egípcia: uma religião que começa historicamente como religião tribal e que posteriormente consagra uma aristocracia e forma uma civilização. O Xintoísmo é étnico e só pode ser praticado por japoneses de determinada linhagem, sendo que determinados ritos estão ligados a locais sagrados no Japão (rios, montanhas, bosques), que só podem ser realizados nesses locais, por pessoas de determinadas famílias.

O I-Ching, o "Livro das Mutações", é o primeiro elemento da cosmovisão chinesa original que devemos estudar. Ele se utiliza de símbolos muito simples: um círculo fechado para simbolizar o princípio transcendente (pois o Wang se completa em si mesmo). O Wang cria o Tae-Chi, que é a unidade suprema, ou seja, o princípio imediato do cosmo, representado pelo famoso símbolo metade branco (Yang, metade ativa) e metade preto (Yin, metade passiva) e uma linha sinuosa a lhes separar. Mas o Yin e o Yang só surgem como princípios quando o Tae-Chi se abre nessas duas metades, sendo que da metade Yang surge o céu e da metade Yin surge a terra, e entre elas surgem todas as coisas da criação. Todas as coisas naturais são, portanto, imagens parciais de Yin e Yang, e cada uma delas tende mais para o princípio Yin ou mais para o princípio Yang. A perfeição de todo e qualquer objeto natural consiste em reequilibrar essas tendências naturais a fim de formar uma imagem do Tae-Chi em cada ser. Por exemplo, segundo a cosmovisão chinesa, o homem é Yang e a mulher é Yin, e a perfeição consiste em atingir um equilíbrio. Essa é uma das razões pelas quais a mística taoísta nunca foi celibatária.

É por isso que o fenômeno "civilização" é tão precoce na China: a idéia de que o indivíduo tenha de cultivar um lado que não lhe é natural, tornando-o equilibrado a desempenhar um papel social mais adequadamente, é da natureza da cultura chinesa. A perfeição taoísta é do tipo místico: tende a ser maximamente individual e extremamente difícil de ser transmitida a outro indivíduo -- por isso é raro um místico taoísta possuir um discípulo tão elevado quanto ele. A perfeição confucionista é voltada ao coletivo, à transmissão para o maior número possível de indivíduos tal perfeição.

Não existe uma ênfase para o que acontece depois da morte no Taoísmo e no Confucionismo. O místico não quer o contato com o transcendente depois da morte, assim como o pai de família não quer transmitir valores ao filho depois da morte. Apenas o Cristianismo e o Islamismo dão alguma ênfase aos estados póstumos, mas mesmo assim não os situam no centro da religião.

Eis, pois, as duas questões fundamentais da antiga cultura chinesa: (1) como garantir o bem-estar das gerações futuras e (2) como atingir a transcendência. O I-Ching era uma idéia que permeava a sociedade chinesa, mas sem um revestimento existencial concreto. Por exemplo, no I-Ching não há instruções sobre a vida mística nem instruções sobre como organizar a sociedade. Há símbolos que são matrizes para esses dois problemas, mas podemos dizer que restou da religião antiga apenas a teoria. O que faltava era um método espiritual. No caso do Judaísmo dos tempos de Cristo, a situação era pior: não apenas faltava o método, mas a teoria também faltava (vide, por exemplo, o caso dos sacerdotes judeus que não sabiam o que era "nascer de novo", julgando ser uma reentrada e resaída do ventre da mãe). Faltava também uma organização social. Em suma: o I-Ching não passava de um código enigmático.

A diferença entre a orientação mística e a orientação social é a seguinte: a orientação social é como orientar uma pessoa a chegar a minha casa (eu posso lhe fornecer informações como quantidade de quadras a passar, posto de gasolina, prédios característicos, virar à direita, à esquerda etc.), enquanto a orientação mística é como caminhar no deserto ou no mar (todas as direções são iguais, há apenas as estrelas no céu, que mesmo assim também se movem). Orientar alguém na vida mística é como orientar alguém no deserto: indiretamente, sutilmente. É por isso que os taoístas, quando se tornam uma comunidade, se transformam em três comunidades, que quase não se entendem. No Confucionismo há certa estilização da vida religiosa, excluindo in limine outras possibilidades religiosas.

Aula 15: Introdução ao Taoísmo e Confucionismo

A experiência mística sobre a sociedade se dá mediante símbolos pertencentes à linguagem humana, que representam a vida mística e seu conteúdo. É necessária uma qualificação intelectual semelhante à vida mística, ou pelo menos uma assimilação vital, cotidiana, que representa simbolicamente o sentido daquela experiência mística e que serve de veículo para ela. O propósito da religião é, portanto, sempre duplo: (1) garantir para alguns o ápice da vida mística e (2) garantir que se transmita, de geração em geração, costumes, gostos, idéias, pensamentos e sentimentos que são afins ou familiares com a vida mística. Por exemplo, não podemos realizar no nosso ser tudo de Deus que o Cristo realiza, mas podemos repetir ou reproduzir determinada ação do Cristo. Quando vinha alguém pedir alguma coisa para o Cristo, Ele nunca dizia "não". Ele sempre dava alguma coisa ao sujeito. Nós podemos reproduzir isso na nossa vida, embora isso não seja suficiente para nos dizermos "cristãos". No entanto, se fazemos isso e simultaneamente procuramos nos símbolos da presença do Cristo sobre a terra entender o Cristo, então participamos de Sua vida mística.

É possível fazermos uma comparação com a sala de cinema. A luz que é projetada é o Cristo, ou o objeto mesmo da experiência mística, o transcendente. O filme pelo qual a luz passa é o conjunto de símbolos que expressa o sentido dessa luz para aqueles que não tiveram uma vida mística. A tela é seu comportamento, sua vida cotidiana. Se a tela está cheia de características, cores e formas próprias, é incapaz de mostrar o que está no filme: ela mesclará as duas imagens, e não perceberemos nenhuma delas claramente. Por isso todas as religiões ensinam que o fundamento da vida religiosa é, em certa medida, apagar nossas preferências pessoais, sentimentos, idéias, crenças e convicções e reproduzir determinadas crenças, idéias, convicções, sentimentos que nos antecedem. Nesse processo de "reproduzir", uma tensão como que anula a outra, tornando-nos assim uma "tela em branco". As preferências do fundador da religião "cancelam" nossas preferências pessoais, sobrando uma "tela em branco", na qual se projeta o conteúdo da vida mística do fundador. Uma coisa é preparar o indivíduo para que ele perceba aquela luz e se torne ele mesmo, em certa medida, uma fonte daquela luz; outra coisa é preparar o indivíduo para seja essa "tela em branco" e receba passivamente essa luz. Uma coisa é irradiar a luz, outra coisa é receber a luz. A vida religiosa é, em geral, uma mescla dessas duas coisas, com a predominância de um dos aspectos.

Na tradição chinesa, o ser humano é a única coisa que ligava o céu (habitado pelos antepassados) e a terra. Os antepassados, não sendo diferentes dos homens, não eram indiferentes aos homens, ajudando a mover o céu em favor dos homens. O ser humano estava presente nos dois planos. Na prática, a religião era constituída de dois elementos:

(1) augúrios, ou "iniciativas do céu", para transmitir as mensagens urgentes ao ser humano. Os chineses dividiam os eventos terrestres em duas categoriais: (a) atos humanos (derivam da liberdade) e (b) atos sem intervenção humana. Toda a religião consiste em um esforço duplo de apreender no que acontece sem intervenção humana a dimensão celeste (tudo o que acontece sem intervenção humana pode ser uma mensagem para o ser humano). Os augúrios naturais eram simplesmente os eventos naturais, que podiam trazer um significado celeste, e os augúrios artificiais, que consiste em um método de jogar varetas, interpretando o modo no qual as varetas caíam (I-Ching é o único elemento que sobrou desses augúrios artificiais).

(2) ritos, que eram de duas espécies: (a) sacrifícios (animais, vegetais) e (b) virtudes (acrescentar aos seus interesses certas formas e interesses celestes).

Na época de Confúcio, as intenções dos ritos haviam se perdido, além da própria forma dos ritos ter se alterado ao longo dos tempos. Havia uma dúvida se aqueles ritos efetivamente ligavam o praticante ao céu. Confúcio afirmou que o problema era a ausência de educação na tradição: os ritos eram, quando muito, um conjunto de formalismos. Para reeducar as pessoas, Confúcio propõe que as pessoas de índole estudiosa se dediquem à compreensão de cinco conceitos fundamentais e os transmitam ao maior número de pessoas possível:

(a) Jen. Está relacionado à coesão social. Amor: é impossível que as pessoas sintam concretamente o mesmo amor por uma pessoa distante em relação ao amor que sente pelo filho. Na prática, a idéia do amor como coesão social é irrealizável. Força bruta: é eficaz em curto prazo, em casos emergenciais, mas não em longo prazo. Confúcio propõe um terceiro conceito, que é talvez o mais fundamental no Confucionismo: Jen ("benevolência" ou "bondade"). O ideograma usado é uma combinação do ideograma "ser humano" com o ideograma "dois". O princípio da coesão social é a relação entre dois seres humanos. Jen acaba servindo para significar a sensibilidade que caracteriza o coração e a mente humana, pois essa sensibilidade é a diferença específica entre o relacionamento humano e os outros relacionamentos. Jen é a capacidade que permite você se colocar na situação do outro.

(b) Xun-Tsé ("homem superior" ou "spoudaios" aristotélico). É a pessoa que preza o seu Jen acima de tudo, é o homem capaz de sacrificar sua própria vida para preservar seu Jen.

(c) Li ("o que é próprio", "modéstia" tomística). A virtude de realizar cada coisa segundo seu modo próprio, necessário para tornar-se Xun-Tsé. É composto de cinco atitudes ou esforços fundamentais e indispensáveis: (1) retificação dos nomes, ou cuidado extremo no uso das palavras para que o ser humano se comporte de maneira adequada, garantindo que na literatura exista uso constante de palavras com significado muito preciso, de maneira a permitir que na mente da maior parte das pessoas aquele significado esteja incluído no núcleo semântico daquela palavra; muitos conflitos interpessoais derivam do mau uso das palavras, (2) doutrina do meio; todas as ações virtuosas são o meio de extremos viciosos; quando não se tem um modelo de conduta, examine a situação e verifique qual a conduta intermediária, (3) cinco relações constantes, que devem deixar de ser instintivas apenas no começo para se tornarem humanas sempre: pais e filhos ("os pais devem ser amorosos e os filhos devem ser reverentes"), marido e mulher ("os maridos devem ser bondosos e as mulheres devem ouvir"), irmãos mais velhos e irmãos mais novos ("os irmãos mais velhos devem ser gentis com os irmãos mais novos e os irmãos mais novos devem ser respeitosos para com os irmãos mais velhos"), amigos mais velhos e amigos mais novos (não basta mimetizar o costume dos mais velhos, mas é preciso ser deferente ou tolerante para com seus defeitos, e os mais velhos devem ser atenciosos para as necessidades dos mais novos), súdito e governante ("o súdito deve ser leal e o governante deve ser benevolente; os súditos devem ser leias à própria idéia de governança e, assim, a obediência deve se dar somente dentro do espírito de lealdade; não basta que o governante seja bondoso e que faça o que os súditos querem, mas que faça o que é bom para eles"), (4) respeito à idade, (5) respeito à família.

(d) Teh ("poder", "força"). Significa o principal poder pelo qual se exerce a governança. É um conceito derivado de três fatores: (1) auto-suficiência econômica (conceito de base), (2) auto-suficiência militar (conceito de base) e (3) confiança na pessoa do governante (conceito essencial, porque é por este que começa o poder). A confiança é adquirida mediante o exemplo radicado nos exemplos e costumes tradicionais.

(e) Wen ("as artes da paz"). É o conjunto de todas as artes que se exercem nos tempos de paz e para propósitos pacíficos. Essas artes devem transmitir o modelo constantemente. Confúcio chega à conclusão final de sua obra: a coesão só pode ser mantida se você superar os inimigos externos; sempre vence a sociedade cuja cultura é mais rica. A sociedade pode ser derrotada militarmente, mas englobará a sociedade invasora e a invasora passará a ser a invadida (exemplo: Roma domina os gregos, mas a sociedade romana se heleniza). é por isso que Confúcio dizia que seus discípulos deveriam se tornar excelentes artistas (literatos, pintores etc.), pois é por aí que sobrevive a civilização. A influência de uma obra de arte se estende no tempo e no espaço muito mais do que uma ação política.

Aula 16: Introdução ao Taoísmo e Confucionismo (continuação)

Taoísmo e Confucionismo têm uma linguagem comum. Mas o Taoísmo volta sua atenção ao princípio comum de céu e terra, diferentemente do Confucionismo, que se volta mais à terra.

Há quatro princípios fundamentais no Taoísmo:

1) o Tao, que é de acordo com ele mesmo

2) o céu, que segue o Tao

3) a terra, que segue o céu

4) o homem, que segue a terra, o céu e o Tao.

O Taoísmo volta sua atenção para o Tao, para aquilo que não é diretamente captado. Segundo o Taoísmo, o conseqüente não cancela o antecedente, ou seja, o Tao, o Absoluto, já existia antes do relativo e não foi cancelado pela presença do relativo. O ser humano médio tem a mesma cosmovisão do chinês médio: céu e terra, a vida no paraíso e a vida aqui. O problema de pensar assim é que, no máximo, você consegue equilibrar as tensões terrestres com as tensões celestes. Mas mesmo isso é difícil, pois a terra está próxima e o céu distante. Na prática, na consciência humana, a terra aparece como grande e o céu aparece como pequeno.

No entanto, para que o indivíduo atinja o máximo da experiência do transcendente -- o objetivo do Taoísmo --, essa cosmovisão não é suficiente. Não se deve tomar os pensamentos habituais, as opiniões expressas espontaneamente, os comportamentos, e usá-los para representar a realidade como um todo; o comportamento individual expressa a fragmentação da realidade, e não a integração dela no todo. Se observarmos nós mesmos, nossa existência não explica nada acerca do sentido da existência humana ou do sentido do universo.

Mas há pessoas que não são assim. O que caracteriza os santos e os grandes místicos é que sua existência revela o sentido da existência humana. Parece que a alma do sujeito é uma imagem constante da realidade total, portanto, dessa proporção real entre a terra e o céu. A diferença entre um santo e um não-santo não é uma diferença de grau (grau de piedade, grau de conhecimento), mas uma diferença estrutural. O sentido da existência humana e do universo se revela em cada ato dos santos. O santo é como que uma espécie humana, e não um indivíduo. O místico é aquele que experimenta diretamente a resposta para a pergunta: "Em quê consiste o ser das coisas que são?"

Existem três aspectos em um objeto que são estudáveis: (1) acidentalidade, que é o conjunto de acidentes ou atributos (esta garrafa é translúcida, tem uma tampa assim, um rótulo assado etc.); (2) quididade, é o que responde à pergunta "o que é isso?", é aquilo que está presente constantemente em todas as coisas da mesma espécie (é o que faz da garrafa uma garrafa); a quididade é pensada antes de o objeto existir pela primeira vez; (3) essência, (ato de ser da garrafa, antes de ser garrafa é preciso ser, algo do ser da garrafa chega até nós), é a realidade mesma da coisa, é o objeto de estudo do místico. O ser de ser garrafa é o mesmo ser de ser humano e o mesmo ser de ser pedra etc. É como o ar, que é comum a todas as palavras. Todo ato de existir é um ato de irradiar-se sobre o outro. Mas o que é isso que se irradia sobre o outro? Não há uma resposta discursiva e formal. O ser não tem uma definição própria. Por isso os taoístas dizem do Tao que quem sabe não fala e quem fala não sabe. Os místicos transmitem os meios pelos quais a captação desse objeto se torna mais fácil. Por um lado, diferenciam seu objeto negativamente de outro, e por outro lado dando instruções acerca da captação desse objeto. Apenas quididades são ensináveis, mas não a essência. Tudo o que vemos é uma sombra da essência. A acidentalidade e a quididade estão sempre presas a determinados aspectos do real, elas só podem acontecer em alguns aspectos do real e não em outros. A característica desse princípio -- o ato de ser -- é que ele não está preso a nenhuma dessas formas, está solto delas, está livre delas, e está em todas elas. Nada o limita.

O Confucionismo implica que tudo seja educado para determinado jeito. O Taoísmo diz que o esforço constante em moldar as coisas pela educação implica no efeito contrário: afiar a faca constantemente a torna cega. Em vez de tentar criar uma imagem de acordo com a realidade, por que não simplesmente aceitar a realidade e deixar que as imagens surjam espontaneamente? Essa é a idéia do Taoísmo. Afinal, o mesmo princípio que põe as coisas na realidade completa as coisas na realidade e tira as coisas da realidade. O mesmo princípio que tornou algo real é o princípio que torna real a perfeição desse algo e que torna real o fim desse algo. Por isso os taoístas dizem que a maior perfeição é a água, que simplesmente repousa nos lugares mais baixos.

Enquanto o Confucionismo tem por ideal supremo a preservação do Jen, o Taoísmo tem como propósito supremo preservar o seu Wu-Wei ("não-ação" ou "ação de presença" ou "quietude criativa"). Se a pessoa tiver paciência e esperar o lodo baixar, a água se tornará limpa. Assim, a ação correta surge naturalmente por si mesma, sem fazer esforço nem em uma direção nem na contrária. Se a mente for mantida quieta, o lodo que a infecta baixará naturalmente, limpando a mente daquilo que a infecta. É disso que Cristo fala quando diz que Deus faz nascer o sol para todos e faz chover na horta dos justos e dos injustos. É o princípio que atua sempre do mesmo modo, bastando que não haja nenhum obstáculo.

Assim, todas as técnicas taoístas são voltadas para não confundir esse Absoluto com outras coisas, o que é muito mais difícil do que parece. Por exemplo, o sujeito que treinar sua percepção para uma captação mais intensa e mais constante da raiz das coisas no real, captará muito mais coisas acerca da realidade do que as pessoas comuns: ele captará muitos mais modos intermediários de ser, que estão mais próximos do Absoluto de que o nosso modo de ser, do que nós mesmos. Primeiro, ele captará a "vontade do céu", as "potências celestiais", que para os cristãos são os anjos, as potências celestiais. O meio de ação dessas forças de tal modo transcende nosso meio de ação que é muito fácil confundi-las com o Absoluto. Por exemplo, quando dizemos que Deus quis que esta ou aquela coisa boa acontecesse em nossa vida, não foi propriamente Deus, pois há uma multidão enorme de anjos à Sua disposição, cuja força e realidade não calculamos. Só uma mente treinada para essas percepção pode perceber essas ações. Deus não é uma realidade que escapa à percepção humana: Ele escapa, na verdade, às nossas tentativas de defini-lo, de delimitá-lo ao nosso aparato cognitivo. Não dá para empacotar Deus em nosso aparato cognitivo. É como a mosca que percebe o ser humano, mas o ser humano transcende em muito à realidade da mosca. Deus é captável, mas não é compreensível. Não dá para pôr o Absoluto dentro da psique porque é a psique que está dentro do Absoluto. É impossível fechar o Absoluto em uma fórmula.

O Taoísmo se divide em três ramos completamente independentes. A diferença entre elas está na diferença de interpretação de Teh ("poder", "força"). Basicamente, Teh significa a operação do Absoluto sobre as coisas.

(1) Taoísmo filosófico. Visa ensinar a aproveitar o Teh (as operações do Absoluto) que está presente naturalmente em todas as coisas. Para aproveitar essa influência, é necessário distinguir o mais claramente possível o relativo do Absoluto. Por exemplo, Sócrates ensinava que do bem só procede o bem, ou seja, do bem só procedem coisas boas. No entanto, quando damos dinheiro a um mendigo e ficamos levemente tristes ao refletirmos sobre o que poderíamos ter feito com esse dinheiro. O Taoísmo diria que não foi o ato que causou essa tristeza; se foi o próprio ato, a tristeza é na verdade uma forma de felicidade, e é você que está confundindo as coisas, ou o ato não foi realmente bom. Nós temporariamente anulamos nossos juízos auto-evidentes sobre as coisas em nome de juízos que são adequados à circunstância concreta. Por exemplo, a maior parte das pessoas concorda que "ser justo é bom" ou "a justiça é um bem"; muitos também experimentam o contrário, e somos tentados a dizer "ser justo é relativamente bom" -- na prática, o juízo universal foi anulado; nesse momento, fechamos nossos olhos à presença celeste.

(2) Taoísmo "yóguico". Seu propósito é dizer que não adianta apenas fazer bom uso das influências celestes, mas é necessário atrair mais dessas influências em sua vida. Ele propõe uma série de métodos de oração, jejum, meditação, abstinências etc. que atraiam as influências celestes. Esses mestres dizem pouco sobre a doutrina taoísta. A doutrina está expressa no Taoísmo filosófico.

(3) Taoísmo religioso, ou "igreja taoísta". O propósito é delegar a influência celeste para as pessoas, resolvendo problemas específicos por meio de influências celestes acumuladas. Há exorcismos e bênçãos.

Os três ramos são meios para pacificação da psique, visando levar ao repouso os três aspectos fundamentais da psique humana: inteligência, vontade e sentimento. Só a alma serena é capaz de captar a realidade como ela é. Essa serenidade é a correspondência da psique individual a uma ordem estrutural a qual efetivamente está ordenada aquela psique. A característica do santo é o fato de ele ter ultrapassado a essas três restrições: ele continua sendo exatamente fiel à realidade mesmo quando tudo nele é infiel a essa realidade, ou seja, sua inteligência não está captando o real, sua vontade não quer obedecer o real e seus sentimentos são contrários ao real; mesmo assim, ele faz exatamente a mesma coisa. É assim, então, que se conclui que a psique foi integrada à ordem do real.

Quando se exercita ao máximo a psique nos três campos -- oração (inteligência), jejum (vontade) e esmola (sentimento) --, a pessoa estará na pista certa para a captação do Absoluto. Do contrário, a pessoa não terá autoridade para falar desse Absoluto: ninguém pode falar daquilo que desconhece.

Aula 17: Considerações Finais sobre o Ramo Extremo Oriental

A pergunta fundamental do Taoísmo é: o que é o céu? Ou: qual o princípio comum entre céu e terra? Na concepção tradicional chinesa, o céu se reflete na terra pela regularidade dos fenômenos terrestres (estações, desenvolvimento das plantas, chuva, sol, rios, marés etc. são reflexos dessa influência). Por outro lado, o próprio céu prefigura a terra pela distribuição aparentemente irregular das estrelas. A vida ritual e religiosa é marcada por regularidades apresentadas na natureza.

Os chineses foram o primeiro povo a fazer observações astronômicas regulares, antes até de babilônicos e egípcios. A essência de todas as tradições tribais/indígenas consiste justamente no aproveitamento ritual das direções do espaço.

(1) A dimensão vertical era chamada pelos chineses de "Tao do céu", que é o "luminoso" e o "obscuro", pois o céu nunca é apreendido por completo: por um lado a mente percebe o real imediatamente ("luminoso") e entender a descontinuidade do indivíduo e a realidade como um todo ("obscuro"). Por um lado há o problema de apreender o que é a verdade ("luminoso"), por outro há o problema de apreender como assimilar essa verdade de modo que ela aparece na minha mente no momento em que ela for realmente necessária ("obscuro"). Essa é a diferença entre os cristãos de "inteligência" e "sabedoria". É para isso que existe a vida ritual. É por isso também que todas as religiões tradicionais possuem um padrão mínimo de entendimento, abaixo do qual não é aceitável a participação na vida ritual. Para que a religião não tenha o efeito contrário, é preciso que ela exija a fé e a compreensão intelectual de determinadas verdades: o corpo doutrinal é pré-condição para participação nos ritos. Os ritos servem para que o cristão assimile a compreensão intelectual: eis por que é exigida dos fiéis a compreensão da doutrina. Quando alguém vai à missa todos os dias sem ter entendido a doutrina cristã, o rito não lhe fará assimilar nada, pois não há nada a ser assimilado.

(2) Os chineses também ensinam que o "Tao do homem" é a generosidade e a justiça. Nas relações humanas, a norma para a conduta humana é esta: ou uma aplicação da justiça, ou uma aplicação da generosidade. Há ocasiões em que a indulgência é conivência, e outras em que a justiça é vingança. Lidar com essas dimensões é fundamentalmente aprender a ser um ser humano para com os outros.

(3) Além disso, os taoístas também ensinam que o "Tao da terra" é o firme e o maleável. Em relação ao ambiente terrestre, a pessoa tem de aprender quando avançar e quando recuar. Em qualquer coisa que nos propomos a fazer, há aspectos maleáveis, que são moldáveis pela ação, e aspectos que são firmes. Os aspectos firmes são aqueles que servirão de alicerce para nossa existência.

Para captar a relação entre esses seis caminhos e as direções em relação ao sujeito: diante do maleável nós avançamos, diante do firme nós recuamos, diante da situação que exige generosidade nós oferecemos (a generosidade une), diante da situação que exige justiça nós rompemos (a justiça separa), diante do luminoso nós assimilamos, diante do obscuro nós nos aproveitamos do que já está assimilado. Assim como há seis direções, há seis modos do ser humano se relacionar com a realidade: o Tao do céu é o modo de se relacionar com o que transcende o ser humano, o Tao do homem é o modo de se relacionar com o que está no mesmo nível do ser humano, e o Tao da terra é o modo de se relacionar com aquilo que é inferior ao ser humano. Esse esquema abarca todas as relações fundamentais do ser humano. Quem o aprender terá aprendido a arte da vida.

Essas três dimensões da existência estão resumidas nos ritos fundamentais das religiões. Por exemplo, na missa há (1) apresentação das oferendas de pão e vinho, (2) consagração e (3) partilhamento (comunhão). Elas também correspondem às três tensões fundamentais da psique humana: contração (separar da alma aquilo que é contrário ao espírito; o homem se separa do mundo; aprender a lidar com o firme e maleável, separando o sujeito de suas preferências), expansão (crescimento com a bênção divina até o limite de sua possibilidade; Deus se aproxima do homem; as preferências individuais serão substituídas por preferências de outra ordem) e união (o homem sobe e Deus desce; Deus e homem se encontram; a realidade é compreendida segundo o ponto de vista espiritual).

A prova da religião é dada pela sua comparação com a medida da individualidade humana. A única identidade entre Deus e a religião é que a religião não tem limites, pois possui normas de crescimento ilimitado para o indivíduo. Inevitavelmente surgirá no seio de cada religião alguém que será o contrário daquela religião. Não existe comunidade religiosa pura, composto exclusivamente por santos. Religião não é uma máquina para produzir santos, mas é uma arte pela qual se produz a santidade.

Aula 18: Introdução às tradições indígenas

Para entender a tradição indígena, é necessário entender como os indígenas entendem as coisas. As coisas não são tratadas como coisas ou objetos. Temos de reviver a experiência das coisas sem um grande suporte conceitual: os índios são em geral nômades, e seu universo acaba sendo "nômade" também. Nossa experiência é modulada pelas adaptações que criamos para nos mantermos no mesmo lugar. A sobrevivência do índio passa pela capacidade de ele entender as diferenças, por ser nômade.

A passagem de uma sociedade nômade para uma sociedade sedentária não é natural, é uma ruptura. A questão é tentar entender por que os índios não fizeram essa ruptura. Não é uma questão de incompetência.

Os índios sentiram a mesma ojeriza pelos europeus que os germanos e os gauleses sentiram quando entraram em contato com os romanos. O motivo é que a natureza, por mais que estivesse além da compreensão do sujeito, era dotada de sentido da mesma maneira que um templo é dotado de sentido para um cristão. Um lugar é seguro na medida em que é dotado de sentido. O cristão em uma mesquita se sente "solto no ar", e o muçulmano em uma igreja se sente "oprimido". Os índios sentiam que a natureza possuía um sentido e que possuíam contato com a origem desse sentido. A habilidade de captar a qualidade de "não-coisa" dos elementos e relacioná-la a esse transcendente é a habilidade essencial para sobreviver em uma religião índígena. É assim que o índio se sente seguro na natureza.

Se uma tribo não há um número suficiente de pessoas que captem esse sentido na natureza, a tribo se desintegrará. Nas religiões não-indígenas, a preservação da doutrina em livros e a fixação de templos em locais determinadas ajuda a preservar a civilização por mais tempo. Em uma sociedade civilizada, é possível que se passe muito tempo com "água suja" na cabeça, e os mecanismos de sobrevivência se preservem por séculos. É por isso que a história das tribos tem mais extremos do que a história das civilizações: em apenas duas ou três gerações, uma sociedade tribal de homens espirituais pode se transformar em uma sociedade tribal de canibais assassinos.

Os traços comuns entre as tradições indígenas é (1) a idéia de que toda experiência que se destaca deriva de um "espírito", ou seja, de um poder que está para além do objeto; (2) a idéia de que a compreensão do sentido dessas intervenções se dá por meio da reflexão silenciosa: há uma importância de se estar só; (3) o modelo dos tipos de sentido fundamentais é geralmente dado pelo simbolismo das direções do espaço.

O nomadismo deriva da necessidade do ser humano em absorver as qualidades simbolizadas pelas direções do espaço. A natureza, para o índio, é simultaneamente templo e escritura. A natureza é vista pelo índio como uma escritura sagrada no sentido de que a natureza não se engana a respeito da realidade transcendente. A escritura e a natureza podem, sim, enganar a respeito da realidade fenomênica, pois não é possível conseguir o mesmo tipo de conhecimento que se pode conseguir de Deus. Uma cobra pode se tornar um galho e vice-versa, mas Deus não pode se tornar um não-Deus.

Aula 19: Introdução às tradições indígenas (continuação)

Há uma correlação entre os povos indígenas da América e das tradições do extremo-oriente. A relação entre céu e terra, bem como a intermediação do homem, possui a mesma importância nas civilizações indígenas da América. O símbolo fundamental dos índios, desde o extremo norte até o extremo sul americano, é a cruz inscrita num círculo. A primeira aplicação imediata desse símbolo é a cruz das direções cardeais e o indivíduo no centro da cruz. Outra aplicação é a cruz vertical dos quatro momentos do ciclo solar (amanhecer, meio-dia, pôr-do-sol e meia-noite).

O fato de a cruz ser fechada por uma circunferência é um indício dos três graus da existência: o centro, os raios e a própria circunferência. Em um sentido o centro representa a individualidade humana, os raios são o caminho de acesso ao círculo/divindade que engloba todo o universo. O ciclo solar também relembra estes três planos: o sol está abaixo do indivíduo, no mesmo nível do indivíduo e acima do indivíduo.

A relação do homem indígena com a natureza envolve três graus. Quando o homem mata o lobo porque o lobo o ameaça, em certo sentido o lobo é maior do que homem. Essas criaturas existem para evidenciar certas perfeições divinas que estão muito além da individualidade humana. É por isso que elas têm certo direito a um predomínio em relação ao homem como indivíduo. As coisas existem na terra em função de sua inteligência contemplativa. Em segundo plano, há uma assimilação moral ao apreender a perfeição das coisas (lebre = humildade; felinos = ausência do medo, domínio da vontade sobre a corporalidade). O terceiro plano ou grau é a formação de um equilíbrio ecológico. Não se caçam lebres até desaparecerem, pois senão perde-se a fonte de alimento.

As religiões indígenas são as mais fáceis de comparar com as demais religiões porque são as menos mentais/verbais e as mais sintéticas.

Os indígenas eram incapazes de se deixar escravizar pelo enorme individualismo que lhes era característica. Em grande parte, esse individualismo deriva do caráter existencial do indivíduo em relação a Deus: o indivíduo é único e tudo o que lhe acontece é proposital. Deus não trata as pessoas como pó: somente Deus diz à pessoa seu destino.

A população americana assimilou grandemente o tipo espiritual indígena e isso se manifesta claramente em sua liberdade individual.

Aula 20: Considerações finais e encerramento

Há três pré-requisitos para podermos comparar as religiões: (1) ter uma vida religiosa suficientemente rica, pois, do contrário, não terá um conceito claro do que é religião; não se trata de ter "sentimentos religiosos", ou seja, acreditar em um Absoluto acima do indivíduo e moldar sua vida a partir desse Absoluto; não é o indivíduo que conversa com Deus, mas Deus é que conversa com o indivíduo dentro do quadro religioso montado por Ele; (2) adquirir uma imaginação suficientemente grande para permitir que se posicione dentro de outro universo religioso; (3) adquirir os elementos fundamentais de uma "antropologia espiritual" e uma certa liberdade abstrata para responder às perguntas (a) quais os problemas espirituais fundamentais do ser humano, (b) explicar por que essas soluções só são possíveis por iniciativa divina, (c) o que é esse Ser de onde partem as soluções para esses problemas, ou seja, o que é o Absoluto.

O intuito aqui é resumir os problemas fundamentais modernos para entender o que é uma religião.

O primeiro problema é acreditar que as maiores monstruosidades da história são fruto da religião: a Igreja perseguiu a ciência moderna, o Taoísmo é responsável pela China comunista etc. Quem afirma essas coisas não tem idéia do que é uma religião. Religiões são teofanias, manifestações do Absoluto. Enquanto teofanias, são conteúdos divinas revestidos de formas humanas. O humano, não sendo o Absoluto, possui certas brechas ou aberturas ontológicas que podem ser preenchidas pelo infra-humano. Por outro lado, Deus não pode se apresentar aos homens por inteiro, todavia não pode se apresentar menos do que perfeito. Quando Deus aparece aos homens, ele oculta parte de Si e preenche essa ocultação com características humanas perfeitas: justiceiro etc. É por isso que as grandes virtudes quase que induzem à veneração e ao respeito. Mas essas características não são divinas; elas apenas indicam o divino. As religiões são brechas preenchidas por perfeições humanas; ocorre que tais perfeições são limitadas, ou seja, também possuem suas brechas, que por sua vez são preenchidas por características humanas normais: ignorância, instinto animal, diabólico. No corpo espiritual da religião, de pouco em pouco, tais brechas originais são substituídas por elementos cada vez mais baixos da hierarquia do ser -- como as células saudáveis que são substituídas por células doentes.

Sem o sujeito adquirir um princípio de identidade pessoal que não dependa em nada do quadro de referência fornecido pela corporalidade é impossível que ele se mantenha consciente de quem ele é depois da morte. Ele perderá essa identidade no decorrer das experiências psíquicas, como em um sonho, no qual esquecemos quem somos e perdemos nosso quadro de referência. A idéia de "quem somos" neste mundo não tem sentido no mundo depois da morte. Esse "eu" depende do mundo corpóreo, do mundo físico. As leis do mundo físico são condições que permitem minha existência no mundo corpóreo. Depois da morte, é uma questão de tempo o efeito desaparecer. Na morte, só nos resta a identidade que nós criamos para nós mesmos. A morte não é a perda das coisas deste mundo, mas é a perda da estrutura deste mundo. A morte é como perder-se a si mesmo. Se a identidade é espiritual, ela permanecerá, se a identidade é corpórea, ela desaparecerá. As capacidades psíquicas continuarão, mas a identidade subjetiva delas desaparecerá. A esquizofrenia é um símbolo do inferno. São precisamente nos momentos em que percebemos que não queremos, não desejamos e não cremos nos mandamentos e práticas religiosas é que devemos plantar a semente da identidade espiritual, fazendo justamente aquilo que não queremos, desejamos ou pensamos. A religião implica sempre em um desafio -- um esforço pessoal -- para transcender-se, aproveitando essa oportunidade para criar um solo fértil para a identidade espiritual.

Isso significa que, numa certa medida, religião é tornar-se amigo de Deus tornando-se inimigo de si próprio. Há três tipos de graça que se apresentam ao homem: (1) a graça que afasta o homem do mundo, de sua própria identidade psicofísica; (2) a graça pela qual Deus entra no homem; (3) a graça pela qual isto que surgiu no sujeito em decorrência da morte de um aspecto e o nascimento de outro aspecto é lançado para Deus -- são as características que transcendem as próprias qualidades humanas da pessoa. Deus apareceu ao homem não como o homem se entende ou se sente, portanto o homem também deve se apresentar a Deus mais do que apenas se entende ou sente.

A religião só é possível quando existe integridade formal (perfeição). A perfeição é o elo entre homem e Deus. Essa integridade formal é o instrumento fundamental da construção de uma identidade espiritual. O sujeito que é meio budista, meio judeu, meio muçulmano etc. não é nada. Os aspectos que Deus escondeu dEle mesmo em cada uma das grandes religiões são diferentes. O sujeito ficará somente com as brechas de cada religião, ou seja, somente com os elementos humanos delas. É melhor ser mau cristão, mau muçulmano ou mau judeu do que ser meio alguma coisa. O sincretismo é uma anti-religião, é o "fundo do poço" da ilusão espiritual, porque dá a impressão de tornar o sujeito mais espiritual, quando na verdade está afastando o sujeito da integridade formal. Em geral, essas pessoas são boas, têm boas qualidades, mas essas qualidades morrerão com o corpo.