Vamos
tentar aqui resumir o tomismo em seus pontos mais importantes. Tomei por base o
estudo feito pelo historiador português João Ameal.
De maneira
geral, Tomás se apoia em dois axiomas basilares:
- A
realidade objetiva do universo.
- A
inteligência humana é capaz de conhecer o universo.
Conceitos funamentais
Há, no
entanto, alguns conceitos fundamentais que são necessários para que entendamos
mais claramente a doutrina tomista. Vejamos:
a) Ser. O ser é
uma constante irredutível da realidade a qual a inteligência descobre por
abstração. O ser é tudo quanto existe. Se por um lado surgem novos modos e
novos aspectos de existência, por outro apenas o ser permanece. Quanto ao não-ser, já o estudamos em outras
oportunidades (cf. Mário Ferreira, Frederick Wilhelmsen etc.) e ele escapa às
nossas faculdades. Não está claro se Ameal, ou o próprio Tomás, se refere ao
não-ser (nada) absoluto ou relativo (me
on vs. ouk on). De qualquer
forma, para que o conceito de ser se solidifique na mente do estudante é
necessário distinguir bem entre o que existe sempre e o que deixa de existir,
entre o que fica e o que passa, entre o idêntico e o diverso.
b) Primeiros princípios. São os princípios supremos, os “alicerces ontológicos”, aos quais a
inteligência humana não tem alternativa senão subordinar-se. São eles: não-contradição (uma coisa não pode ser
e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto), identidade (o ser é sempre idêntico a si mesmo), causalidade (todo ser contingente tem
uma causa), razão suficiente (todo
ser tem sua razão de ser), finalidade
(todo agente opera para um fim).
c) Potência e ato.
Nem tudo é ser ou não-ser. Há uma terceira hipótese: o poder-ser, ou seja, coisas que não
são ainda ou que já não são. A
potência é a capacidade de vir-a-ser
(ou devir). Para que o vir-a-ser
venha a ser, é necessário que o ato intervenha. Difícil defini-lo, mas pode-se
dizer que o ato equivale a perfeição.
O ato completa o incompleto, determina o indeterminado. A potência limita o
ato, pois do contrário o ato seria ilimitado, imutável, perfeição pura.
d) Essência e existência. Essência (ou natureza, ou quididade, ou forma) é o que caracteriza o
ser, é o que faz o ser pertencer a determinada espécie ou gênero, é o que
distingue o ser dos seres pertencentes a outros gêneros e espécies. As
essências podem ser agrupadas em “ideias universais”, que por sua vez
dividem-se em ideias universais-diretas
(dizem respeito aos elementos constitutivos das essências, mas sem relação com
quaisquer indivíduos) e ideias
universais-reflexas, ou predicáveis (dizem respeito à relação das essências
com os seres: são elas espécie, gênero, diferença, propriedade e acidente). Por
outro lado, existência é o que dá realidade à essência, é o que eleva a
essência à categoria de ser, é o que faz a essência emergir do nada. A essência
em potência torna-se essência em ato mediante a existência. No entanto, mesmo
em ato a essência representa certos tipos de seres sob uma forma abstrata: é uma vez mais a existência
que lhes dá conteúdo concreto.
Segundo Tomás, quando a existência não se encontra limitada por nenhuma
essência, estaremos diante do Ser absolutamente único e simples, cuja essência
confunde-se com o próprio ato de existir.
e) Substância e acidente. A substância é o elemento permanente do ser, ou seja, aquele elemento
do ser no qual a essência existe nesse ser e não em outro, enquanto acidente é
o elemento ocasional (ou “adventício”) do ser, ou seja, aquele elemento do ser
no qual a essência existe nesse e em outros seres. Todos os seres criados têm
substância e acidentes. Quanto ao modo de existir, há dez categorias. Ameal
introduz um útil exemplo que os resume todos: Paulo é homem – substância; Paulo
é alto – qualidade, Paulo é um corpo orgânico (dotado de diversos órgãos) –
quantidade; Paulo é tio de Luís – relação; Paulo empurra Luís – ação; Paulo é
empurrado por Luís – paixão; Paulo vive há trinta anos – quandocação; Paulo
está sentado – estado; Paulo foi à rua – localização; Paulo está fardado –
hábito.
f)
Causa. Das categorias de ação e paixão deduzimos que
causa é a origem de qualquer ação, ou seja, é aquilo que intervém na produção
de uma coisa. Há quatro causas, que novamente Ameal as resume todas lançando
mão do famoso exemplo da estátua de um rei: o mármore é a causa material, a
figura do rei é a causa formal, o escultor é a causa eficiente, a glorificação
do rei, o adorno da praça ou a ambição do artista é a causa final.
g) Unidade, verdade, bondade. São os três grandes atributos do ser (Ameal cogita incluir um quarto
atributo, a beleza, mas vacila reduzindo-a a uma forma especial de bondade). O
ser é uno (indiviso), verdadeiro (se conforma à inteligência) e bom (solicita e
satisfaz a vontade).
Deus
São famosas
as provas de Tomás de Aquino acerca da existência de Deus. Mas menos famosa é a
ideia de que tais provas não são provas como uma demonstração geométrica é uma
“prova”. O grau de certeza dessas provas não provém de um raciocínio lógico,
mas de uma meditação ontológica. Por isso tais provas, embora levem este
pomposo nome, não são tão convincentes quanto uma prova matemático-geométrica:
o raciocínio lógico parte de uma proposição e, desde aí e para “fora”, atinge
outras certezas. É algo que qualquer um que esteja minimamente desperto e
consciente deverá assentir à sua conclusão. Mas uma meditação ontológica, ou
poderíamos dizer, à moda de Mário Ferreira, um “raciocínio ontológico”, é algo
que parte de uma evidência e, desde aí e para “dentro”, investiga essa
evidência e a explica, a esmiúça. Se o indivíduo, mesmo que esteja desperto e
consciente, não for capaz de ver a evidência, menos ainda será capaz de
assentir às suas conclusões. Veja que a meditação ontológica se faz menos com
raciocínios e mais com intelecções. Aqueles que têm facilidade para a abstração
matemática, caso se apaixonem por essa via, terão dificuldades em assentir ao
terceiro grau de abstração, ao qual pertence a ontologia geral.
A
inteligência humana está ordenada ao absoluto. Isso significa dizer que ela
está dirigida à pesquisa das causas; em última instância, a investigar a origem
do ser. No entanto, no seio do tomismo, investigar a origem do ser significa
investigar a origem do próprio Deus. Trata-se de um salto temerário: uma vez
apreendido o ser e meditado a seu respeito, quem disse que a inteligência
humana, por mais que esteja ordenada ao absoluto, capta o Ser enquanto tal?
Quem disse que o ser supremo é o Ser Supremo? O melhor é contentar-se com a
noção de que a inteligência humana, por si só, intui o Ser, mas o máximo que
pode fazer é inspirar, dar ímpeto, à vontade para que busque o Ser por outras
vias, a saber, pelo contato direto com Ele, e não por meio das coisas criadas.
Por sinal, Ameal o admite ao afirmar que “só nos será lícito demonstrar a
existência de Deus pelos seus efeitos; mas não
há proporção alguma entre Deus e os seus efeitos: estes são finitos, ao
passo que Deus é infinito” (por sua vez inspirado na Sum. Theol., I, Q, 2, art. 2, Videtur quod). Por outro lado, também
diz, de maneira ambígua:
“[...] não
se contestará que haja desproporção absoluta entre os efeitos finitos e a
Divina Causa infinita. Essa desproporção faz com que seja extremamente
imperfeito [por que “extremamente imperfeito” e não “absolutamente
impossível”?] o nosso conhecimento de Deus, mas não afecta a possibilidade de O
conhecermos. Das Suas obras poderemos deduzir a Sua existência, não atingi-lO
na Sua natureza essencial. O que se discutia, porém, era apenas o primeiro
ponto – e, quanto a esse, chegâmos ao fim que desejávamos: estabelecer que a
existência de Deus é susceptível de demonstração”. (cf. Sum. Theol., I, Q, 2, art 2, Resp + Idem, ad tertium)
Como se
verá, Tomás não se limita a provar a existência de Deus, mas Lhe confere
atributos não a partir de alguma revelação divina, mas a partir da mesma
especulação metafísica. A abordagem de Sertillanges me parece mais sã: “não se
trata de definir ou compreender Deus – por si mesmo indefinível e
incompreensível – mas de definir e compreender um mundo que, sem Ele, não teria
razão de ser, nem poderia subsistir, nem mesmo se tornaria acessível ao nosso
conhecimento” (S. Thomas d’Aquin).
Eis em suma
as cinco vias de Tomás de Aquino:
(1) Primeiro Motor (ou “ato-potência”). Todo
objeto que se move, seja de lugar, seja em qualidade, aumento ou diminuição,
seja de ação interna sobre si mesmo, tem de ser movido por outro, já que não é,
ao mesmo tempo, o que move e o que é movido. E assim sucessivamente, até necessariamente
encontrarmos o Primeiro Motor, imóvel, ato puro, ou seja, desprovido de
potência.
(2) Primeira Causa (ou “causa-efeito”).
Partindo da ideia de causa eficiente, não podemos admitir a existência de
efeitos sem causa. Portanto, existe uma Primeira Causa, que é eficiente, mas em
si incausada: Deus. Aqui nota-se o evidente parentesco com a via (1) acima.
(3) Ser Necessário (ou
“necessário-contingente”). Todas as coisas podem ou não existir. Isso significa
que todas as coisas são contingentes. E isso também significa que é forçoso que
o necessário exista. Por conseguinte, deverá haver apenas um único ser
necessário: Deus.
(4) Ser Perfeito (ou
“perfeição-participação). Consideramos as coisas mais ou menos belas, mais ou
menos boas, mais ou menos perfeitas. Isso significa que há um ponto de
referência, um máximo dentro das diversas qualidades, que o atributo
participado tem a sua origem e razão fora dos seres em que se manifesta. Aqui a
influencia de Platão é patente: reduz-se o múltiplo ao uno. Há um Belo
absoluto, uma Bondade absoluta, uma Perfeição absoluta. É claro que esse
raciocínio só ode ser válido no caso dos atributos transcendentes. E também
está claro que, se a inteligência extrai essas qualidade do sensível, então
essas qualidade são também reais.
(5) Primeira Inteligência (ou “causa
final”). Vemos as coisas atuarem segundo um fim, mas não por acaso, e sim em
virtude de determinada intenção (ex
intentione). Ora, nada pode tender a um fim se não for dirigido por um ser
inteligente. O conjunto dessas ações intencionais, e que visam o bem de quem as
opera, pressupõe uma unidade de ordem. É necessário que o bem universal seja
também um fim universal.
Novamente,
como dissemos acima, nenhuma dessas vias versa essencialmente sobre Deus, mas
apenas sob determinados aspectos. Conclui-se que, em Deus, existir é a Sua
essência. Em outras palavras, essência e existência são a mesma coisa em Deus. Ego sum qui sum.
E,
novamente, cabe reforçar que as provas vêm não de raciocínios lógicos, mas de
raciocínios ontológicos. Elas não servem portanto somente para alicerçar a fé,
mas acima de tudo para balizar os pensamentos e ações humanos, orientando-os à
Causa das causas.
Embora se
possa provar a existência de Deus, não é possível defini-lo, por motivos
óbvios: não há gênero próximo nem diferença específica a qual se possa apelar.
Mas pelo menos é possível conferir-lhe atributos, tanto negativos quanto
positivos.
(a) Atributos negativos: aseidade (Deus é o único ser que existe por si (a se); infinito (a existência de Deus não tem fim e nenhuma perfeição lhe
falta); simples (todos os seres são
compostos, menos Deus, pois Ele não é fisicamente composto de matéria e forma,
nem metafisicamente composto de ato e potência ou essência e existência ou
substância e acidente, nem logicamente composto de gênero e diferenças); imutável (Deus não é determinado a
qualquer transformação por outro ser); eterno
(todos os seres existem no tempo); imenso
(todos os seres são localizáveis em determinado ponto do espaço); unicidade (Deus não faz parte da
pluralidade das essências criadas).
(b) Atributos positivos: Deus é a eminência
das perfeiçoes das criaturas, embora, evidentemente, de modo inexato, devido à
enfermidade de nossa razão, a saber: Inteligência, Bondade, Verdade, Vontade (o
instrumento pelo qual o homem tende à própria perfeição; “em todo ser dotado de
inteligência existe vontade”, diz Tomás), Bem, Beleza, Liberdade, Amor. Não
somente aqui, mas sobretudo aqui, Tomás lança mão da doutrina da analogia. Não cabe repetir o que já foi
ensinado por Mortimer Adler sobre analogia, mas cabe sim registrar que o tipo de
analogia empregado por Tomás é a analogia
de proporcionalidade, ou seja, a analogia por semelhança e diferença. Essa
analogia representa uma propriedade atribuída a várias coisas que a possuem
intrinsecamente, mas de modo diverso
e quando a atribuição é feita pelo fato da relação de uma das coisas com tal
propriedade ser semelhante à relação
da outra com a mesma propriedade. Então, no caso de Deus e as coisas criadas,
elas possuem intrinsecamente o ser, mas de modo diverso (em Deus, identificado à essência, nas criaturas ligado
transitoriamente à essência); por outro lado, a relação que as criaturas
finitas tem com o ser finito é semelhante
à de Deus Infinito com o Ser Infinito. Vale a pena reproduzir o que diz Tomás a
esse respeito, pois trata-se de um assunto nuclear para a doutrina tomista:
Com grande
precisão, desenvolve São Tomás a doutrina da analogia aplicada ao nosso
conhecimento de Deus, no tratado De
Veritate. Reproduzimos um trecho elucidativo: -- “Pode haver proporção e,
portanto, conveniência e analogia entre duas coisas pela razão de existir entre
elas uma relação de grau, de distância, de medida, isto é, uma relação real a
reciproca --como, por exemplo, o número 2 está em proporção com a unidade, da
qual é o dobro. Mas pode-se afirmar também uma conveniência entre duas coisas
que não tenham proporção direta, pela razão de uma delas ser a uma terceira o
que a segunda é a uma quarta. Assim, o número 6 parece-se com o número 4 em que
6 é o dobro de 3 como 4 é o dobro de 2. O primeiro gênero de conveniência é de
proporção direta, o segundo de proporcionalidade.
Sucede que, segundo o primeiro destes modos, certas noções se aplicam a duas
coisas que possuem direta relação entre si: diz-se que existe o ser na
substância e no acidente por causa da relação em que se encontram... Noutros casos,
uma noção atribui-se analogicamente: assim a palavra ver tanto se entende do órgão da vista como da inteligência, por a
inteligência ser para a alma o que os olhos são para o corpo. Como o primeiro modo
de analogia requer uma direta e determinada relação entre as coisas que se dizem
análogas, é impossível haver analogia desta ordem entre os atributos comuns a
Deus e à criatura; pois nenhuma criatura se acha em tal relação com Deus que
essa relação possa servir para determinar a perfeição divina. Mas quanto ao
segundo modo de analogia, em que não é requerida uma relação direta e
determinada entre as coisas que participam duma noção comum, nada impede que,
dentro desse modo, certos nomes sejam ao mesmo tempo ditos de Deus e da
criatura”.
Vê-se,
portanto, que Deus tem de conter a totalidade das perfeições das coisas
criadas, mas as contém de modo analógico.
Vê-se, portanto, que há uma semelhança analógica entre o criado e o Incriado.
No entanto, Ameal não deixa de salientar que “[a teodiceia de São Tomás] é
insuficiente para traduzir, mesmo de longe, a verdadeira natureza de Deus.
[...] Tudo que a inteligência humana tente para ir além da afirmação da
existência de Deus, para saber como Deus
é¸ está condenado a seguro malogro. [...] Já que não nos é dado conhecer e
pensar Deus como Deus é (por não ser
enquadrável nas categorias da nossa inteligência) conhecemo-lO e pensamo-lO como nós somos: só assim a nossa
inteligência logra alcançá-lO. Desde que nunca percamos de vista a desproporção
entre o que atribuímos a Deus e o que Deus é”. E, por fim, cita São Dionísio
Areopagita em sua Teologia Mística: “— A ciência mais alta que poderemos ter de
Deus, nesta vida, é saber que Deus está acima de tudo que pensarmos a seu
respeito”.
Mundo
Deus criou
o mundo do nada, mas esse nada não
pode ser algo pré-existente, algo que tenha realidade, mas algo do Ser pré-existente. O mundo, portanto,
nasce por emanação do Ser. A criação,
por sua vez, contém uma relação de dependência
com o Princípio do qual emana, ou seja, a criação adere ao próprio ser – enquanto
o ser exista. Depois de existente, o ser dura por si. Mas, de inicio, é
indispensável que haja o ser. E o ser, por sua vez, depende essencialmente de
sua origem.
Como não há
relação unívoca, mas apenas analógica, entre Deus e o mundo, não podemos deduzir
da imortalidade de Deus que, por conseguinte, o mundo também seja eterno.
Racionalmente falando, o mundo não é evidentemente eterno nem é evidentemente
temporário.
Quanto á
multiplicidade dos seres ante a unicidade de Deus, Tomás explica que a variedade
das criaturas é necessária porque o efeito parece-se com sua causa e, portanto,
as criaturas finitas parecem-se imperfeitamente com as perfeições simples de
Deus. A graduação da perfeição nos seres é a maneira sábia de Deus para que se
manifestem nela Suas perfeições.
Ora, assim
como em qualquer perfeição, é impossível que as criaturas finitas reflitam a
bondade infinita de Deus. Novamente apelando a São Dionísio, Tomás conclui que
o mal não existe. O que existe é a ausência de bem, ou seja, certa deficiência,
a privação de qualidade que deveria
possuir. O mal não é nem uma essência, nem tem realidade. Mal e privação
são, portanto, sinônimos. Sim, é paradoxal, mas é assim: a causa do mal é o bem
porque esse bem é limitado, imperfeito, contingente, que, ao degradar-se,
alcança a condição de “não-bem”.
Pouco direi
sobre o hylemorfismo empregado por Tomás. Bata dizer que os princípios físicos
do mundo não são nem a matéria (átomos) nem a imatéria (forças), mas a matéria prima e a forma substancial. A matéria prima é determinada pela forma
substancial no ser substancial, enquanto a matéria segunda é determinada pela
forma acidental no ser acidental. Portanto, a matéria é especificada pela forma enquanto a forma é individuada pela matéria. A mudança substancial (não a acidental),
portanto, centra-se na forma substancial. A matéria prima é comum às duas
substâncias, mas o que mudou foi a forma substancial. Na mudança não há nenhuma
criação propriamente, mas literalmente uma transformação.
Os corpos
apresentam diversas propriedades. Cabe menção as seguintes: (1) derivadas da
matéria: quantidade (ou “extensão”), lugar e tempo; (2) derivadas da forma:
qualidades, como figura, cor, som, cheiro, sabor, resistência, temperatura e
forças (mecânicas, físicas e químicas).
O infinito,
segundo Tomás, é algo que não existe em ato na ordem do espaço, mas somente na
ordem do tempo e pertence a Deus, pois somente Ele está acima das categorias do
real.
Quanto à
contingência dos seres criados, cabe notar que Deus, apesar de ser a Causa
Primeira, não faz parte por isso da série de causas do mundo: Ele deve ser
entendido mais como uma Super-Causa que, ao conferir às causas criadas o seu
ser, confere-lhes a qualidade de produzir efeitos necessários ou contingentes.
Ambas as modalidades – contingente e necessário – fazem parte da essência do
ser relativo, mas não do Ser Absoluto. Portanto, Deus determina o contingente a ser indeterminado. A inteligência
humana só é capaz de conhecer o necessário. A nós o contingente é algo incognoscível.
Por fim,
quanto à vida, Tomás a define os seres vivos como aqueles que se movem. O
princípio vital nunca deve ser encontrado na matéria, mas sempre na forma
substancial. Ele é uma espécie de força da qual provêm as operações imanentes
dos seres vivos. A esse princípio vital chamamos alma.
Homem
O corpo,
enquanto potência, tem na alma seu ato. Similarmente, o corpo, enquanto
matéria, tem na alma sua forma. E daqui podemos deduzir sua espiritualidade: a
alma é incorruptível, imaterial e, portanto, imortal. No entanto, a alma não é
espirito puro nem substância pura porque tende a um corpo e, ademais, não consegue
sozinha realizar as operações vegetativas e sensitivas que lhe são próprias.
Conclui Tomás, portanto, que “o homem não é apenas alma, é um ser composto de
alma e de corpo”. Em ainda outras palavras, a alma é o principio ativo que faz
a matéria ser em ato, conferindo-lhe
a ambos, alma e corpo, unidade. Há uma união imediata da alma ao corpo como a
forma é unida imediatamente à matéria.
Embora o
ser humano seja composto, ou seja, não haja realmente duas “partes” existencialmente
distintas, na sua intelectualidade a alma pode ser independente do corpo por
ser esta intelectualidade imaterial e incorruptível. E pelo fato de ser
imortal, a alma tende necessariamente para a felicidade imortal. Não para uma
felicidade que se possa encontrar em bens particulares, uma vez que a alma não descansará
nesses bens, mas no Bem Infinito, na contemplação inefável da essência divina.
Em outras palavras, na beatitude eterna.
Quanto aos
princípios das operações (ou “potências”, ou “faculdades”) a alma humana
estrutura-se da seguinte forma:
(a) Faculdades vegetativas. Ínfimo grau e
importância. Pouco nos interessamos por elas.
(b) Faculdades sensitivas. Há quatro espécies:
a perceptiva (sentidos externos e internos, a saber:
sentido comum (pelo qual o homem cataloga
as sensações externas, segundo as suas afinidades e diferenças), imaginação (pela qual conserva as
imagens sensíveis e as reproduz mesmo na ausência dos objetos que as
motivaram), estimativa ou juízo
instintivo (pelo qual atribui, aos objetos externos percebidos pelos sentidos,
certas propriedades benéficas ou maléficas), memória sensitiva (pela qual conserva as suas percepções sensitivas
passadas)), a apetitiva (que
leva o homem a tender para os bens sensíveis convenientes à sua natureza), a locomotora (pela qual se desloca
dum lugar para outro) e a vocal (pela
qual se exprime e comunica com os outros homens).
(c) Faculdades intelectivas. É a capacidade
de penetrar na essência das coisas e “ler” no interior dos seres (intus-legere, intelecto). É o intelecto
que se comunica com o ser das coisas, ou seja, com sua inteligibilidade
fundamental. É no seu ser que as criaturas contingentes participam do Necessário,
que as criaturas mutáveis participam do Imutável, que as criaturas imperfeitas
participam do Perfeito. É por isso, pelo seu ser, que as criaturas são susceptíveis
de conhecimento “intelectual” (que possam ser interiormente “lidas”). E aqui se
introduz um interessante e fundamental conceito: o modo intencional do conhecimento humano. Trata-se da capacidade do
sujeito que conhece converter-se no
objeto conhecido. O homem despoja as formas da matéria que lhes mascara o “fulgor
inteligível” e é capaz de contemplar a unidade absoluta das ideias que se reproduzem
na gama dos seus modelos, tornando-se capaz, portanto, de ser outro, de se
tornar outro. Isto, claro, sob certo aspecto apenas, visto “o objeto conhecido
estar naquele que conhece segundo a maneira de ser deste último”, ou seja, a aptidão
para ter em si todas as coisas pelas suas formas.
Eis as duas faculdades intelectivas: o intelecto
agente (ou “força abstrativa”, o “luz derivada de Deus”, segundo Tomás),
que isola as essências contidas na realidade concreta formando a imagem inteligível (a “imagem da
essência”), ou fantasma, ou ainda a species impressa, isto é, a fusão da
inteligência com o ser intencional do objeto; e o intelecto possível, que recebe a species impressa e se determina em ato, gerando a species expressa (ou “verbo mental”),
que encerra em si a ideia abstrata, a ideia em si (ideia de humanidade, por
exemplo). A partir dessa intelecção espontânea e instantânea, o intelecto é
capaz de alçar novos voos e, pela reflexão introspectiva e por silogismos,
adquirir novos conhecimentos, generalizações e juízos.
Por fim,
cabe mencionar a importantíssima relação entre inteligência e vontade. A
vontade não é um simples apetite sensitivo, mas um apetite intelectivo. É inato
no homem o agir com conhecimento de causa, o agir para um fim. Os atos
voluntários são os atos que, além da inclinação própria do homem, são acompanhados
de algum conhecimento. O homem naturalmente tende a seu fim último, que é o Ser
Supremo, o Bem Último. Entretanto, as criaturas também contêm em si algo desse
Ser, o que motiva o homem a buscar o conhecimento também destas criaturas
contingentes. O home, enquanto ser racional, não tem o direito de desligar seu
intelecto e não entregar-se ao Fim Último, que está nas criaturas e,
evidentemente, para além delas. A vontade é o apetite que impulsiona o homem a
buscar o encontro com este Fim. Observe, portanto, que inteligência e vontade
alimentam-se e impulsionam-se mutuamente. Evidentemente o apetite sensitivo
também influencia a vontade.
A
inteligência é superior à vontade porque a inteligência é simples e seu objeto
é a ideia do bem. A vontade tem por objeto o bem. No entanto, e eis o reverso
da medalha, se o bem a desejar for superior à própria alma que deseja, então a
vontade é eminente à inteligência. Entenda-se: se o bem a desejar é Deus,
torna-se muito mais importante amá-Lo do que conhecê-Lo. Se o bem a desejar são
as coisas criadas, torna-se muito mais importante conhecê-las do que amá-las.
As
qualidades da alma que a leva a fazer o bem se chamam virtudes. Tomás destaca algumas que considera fundamentais: as
intelectuais (para aperfeiçoar a inteligência: sabedoria, ciência,
entendimento) e as morais (para aperfeiçoar a vontade: prudência, justiça, fortaleza,
temperança).
Fonte: João Ameal, São Tomaz de Aquino, Livraria Tavares Martins, Porto, Portugal,
1947.