19 de outubro de 2023

Dietética


Quem se dedica a estudar psicologia certamente já se deu conta da diferença não apenas de grau, mas de tipo, entre as obras de um Rudolph Allers e um Donald Robertson, de um Viktor Frankl e um Massimo Pigliucci, de uma Magda Arnold e uma Ayn Rand ou, para ficarmos em um exemplo local, de um Mário Ferreira e um Flávio Gikovate. A diferença reside na fundamentação de seus pensamentos: aqueles delineiam de maneira clara os preceitos que presidem seu pensamento, enquanto estes se limitam a orientar o leitor em situações cotidianas. Popularmente, diríamos que aqueles são “teóricos” e estes “práticos”.

Isso não significa que Flavio Gikovate ou Ayn Rand não apresentem um quadro de referência a partir do qual fundamentam seus preceitos. É famosa a ideia de “medo da felicidade” de Gikovate ou a “virtude do egoísmo” de Rand, por exemplo, mas nenhum deles preocupa-se em apoiar tais quadros em uma visão minimamente precisa do ser humano. Como se divide o ser humano, quais suas emoções básicas, a qual fim se destina, o que deveria almejar? O que é felicidade, ego e medo? E qual a diferença entre esses conceitos e contentamento, eu e temor?

Sou levado a concluir que a autoajuda e a maior parte do que se passa em consultórios de psicoterapia não são atividades que se encontram no âmbito da psicologia. A maioria desses profissionais não apenas não tem claros os preceitos fundamentais de sua prática, como não mostram saber por que escolheram esta terapia e não aquela. No supermercado da psicoterapia vale o gosto do freguês. Behaviorismo, logoterapia, terapia cognitiva, psicanálise, uma pitada de estoicismo, um pouco de Freud aqui, Jung ali, Rogers, Frankl e, por que não?, Mario Sergio Cortella. Vale tudo e qualquer coisa sob a batuta do gosto pessoal.

No entanto, em parte é compreensível, e mesmo desejável, essa situação. Parece que a relação entre psicologia -- sejamos mais precisos, antropologia -- e aconselhamento nunca foi unívoca. E a confusão reside no fato de que a terapia não tem a ver com psicologia mas com dietética. A arte de bem aconselhar tem raízes na antropologia, claro, mas de maneira longínqua e, ademais, jamais exclusiva. Elementos culturais, históricos, econômicos, profissionais, familiares e muitos outros influenciam no surgimento de neuroses e curá-las implica em compreender quais, e em que medida, esses elementos as sustentam, e saber identifica-los no indivíduo. A terapia é uma arte, não uma ciência, e confiná-la à psicologia é um erro crasso. A arte, ou técnica, é um conjunto heterogêneo de conhecimentos que só são unificados em vista de um fim. É como montar a cavalo: é necessário algum conhecimento, mesmo que rudimentar, das leis do equilíbrio e algum conhecimento de comportamento animal, mas ambos os conhecimentos não guardam entre si nenhuma conexão lógica.

A filósofa chilena Diana Aurenque tangencia esse tema ao lembrar que a dietética é uma arte antiga, cujo objetivo é ordenar a forma de viver, é organizar a existência e a vida em todos os seus aspectos. Os filósofos de antigamente não apenas ofereciam explicações sobre as grandes questões metafísicas, mas também proporcionavam indicações sobre o modo adequado de viver. Em suma, davam fundamentações éticas para alcançar uma “boa vida”. E o faziam porque os filósofos eram antes de tudo homens sábios, de saber amplo, não necessariamente, muito menos exclusivamente, psicólogos.

O filósofo, mais precisamente o dietético, incentivava seus discípulos a se conhecerem de tal forma a terem condições de assumir o controle de suas vidas, de diferenciar entre aquilo que lhes é benéfico e o que lhes é nocivo. Sua prática se centrava em conduzir o interlocutor à liberdade, a assumir com responsabilidade o que ele é, a liberar-lhe de falsas dependências e amarrar-lhe com liberdade àquilo que o fortalece e assume como imperioso. Essa responsabilidade livre é precisamente aquilo que chamamos “saúde”.

Portanto, as pessoas aptas a nos guiar a esta liberdade são os sábios, que podem ou não portar um diploma de psicologia.

Leia: Diana Aurenque, Animales enfermos, Fondo de Cultura Económica, Santiago, Chile, 2022.

5 de outubro de 2023

O intelecto angélico


A mente angélica é puramente intelectual. Não passa de intelecto e, enquanto tal, é puro poder de compreender.

Diferente do intelecto humano, cujos poderes incluem também o juízo e o raciocínio, o intelecto angélico não pensa. Não encadeia nem desencadeia conceitos para formar juízos, tal como o faz a mente humana; tampouco reúne juízos segundo um processo de raciocínio que leva a uma conclusão. Em suma, sua ação não é nem reflexiva, nem discursiva. É puramente intuitiva.

Quando descrevemos os processos humanos de juízo, reflexão ou raciocínio como discursivos, o uso da palavra “discursivo” traz consigo a ideia de que se desenvolve no tempo. Somente o simples ato intelectual de compreender, de conhecer um objeto de pensamento, é instantâneo. O mesmo se pode dizer do simples ato sensorial de compreender um objeto perceptível.

Ambos os atos, intelectual e sensorial, podem chamar-se mais intuitivos que discursivos, pois são instantâneos, não demandam um espaço de tempo.

[...]

As ideias inatas, que são conaturais aos anjos, constituem as naturezas que eles possuem por serem criaturas de Deus.

Ao criar uma multidão de anjos, Deus diversificou suas distintas naturezas ao implantar diferentes grupos de ideias em cada um. Por isso podemos concluir que não há dois anjos iguais.

Cada um é superior ou inferior em hierarquia a outro, em virtude das ideias inculcadas pelas quais compreende e sabe. Os anjos superiores compreendem mais por meio de menos ideias, embora mais universais e abarcadoras. Os anjos inferiores compreendem menos por meio de um número maior de ideias, que são menos universais e abarcadoras.

Essa diferenciação das naturezas angélicas parece incluir as diferenças essenciais e não as acidentais. Um anjo é o que é em virtude das ideias que tem. Se for assim, isso favorece a visão de que um anjo difere de outro, assim como uma espécie de substância difere de outra, mais do que um individuo difere de outro dentro de uma mesma espécie.

Dado que as ideias pelas quais os anjos, de forma intuitiva, sabem e compreendem, provêm de Deus, o intelecto angélico é tão infalível quanto o intelecto divino. No entanto, a diferença entre o ser infinito de Deus e o ser finito dos anjos traz consigo o reconhecimento de que o intelecto angélico pode ser infalível sem, contudo, ser onisciente.

Fonte: Mortimer J. Adler, Los ángeles y nosotros, Javier Vergara Editor, Buenos Aires, Argentina, 1996.

2 de outubro de 2023

Breve introdução à obra de Tomás de Aquino


Vamos tentar aqui resumir o tomismo em seus pontos mais importantes. Tomei por base o estudo feito pelo historiador português João Ameal.

De maneira geral, Tomás se apoia em dois axiomas basilares:

- A realidade objetiva do universo.

- A inteligência humana é capaz de conhecer o universo.

Conceitos funamentais

Há, no entanto, alguns conceitos fundamentais que são necessários para que entendamos mais claramente a doutrina tomista. Vejamos:

a)      Ser. O ser é uma constante irredutível da realidade a qual a inteligência descobre por abstração. O ser é tudo quanto existe. Se por um lado surgem novos modos e novos aspectos de existência, por outro apenas o ser permanece. Quanto ao não-ser, já o estudamos em outras oportunidades (cf. Mário Ferreira, Frederick Wilhelmsen etc.) e ele escapa às nossas faculdades. Não está claro se Ameal, ou o próprio Tomás, se refere ao não-ser (nada) absoluto ou relativo (me on vs. ouk on). De qualquer forma, para que o conceito de ser se solidifique na mente do estudante é necessário distinguir bem entre o que existe sempre e o que deixa de existir, entre o que fica e o que passa, entre o idêntico e o diverso.

b)      Primeiros princípios. São os princípios supremos, os “alicerces ontológicos”, aos quais a inteligência humana não tem alternativa senão subordinar-se. São eles: não-contradição (uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto), identidade (o ser é sempre idêntico a si mesmo), causalidade (todo ser contingente tem uma causa), razão suficiente (todo ser tem sua razão de ser), finalidade (todo agente opera para um fim).

c)       Potência e ato. Nem tudo é ser ou não-ser. Há uma terceira hipótese: o poder-ser, ou seja, coisas que não são ainda ou que já não são. A potência é a capacidade de vir-a-ser (ou devir). Para que o vir-a-ser venha a ser, é necessário que o ato intervenha. Difícil defini-lo, mas pode-se dizer que o ato equivale a perfeição. O ato completa o incompleto, determina o indeterminado. A potência limita o ato, pois do contrário o ato seria ilimitado, imutável, perfeição pura.

d)      Essência e existência. Essência (ou natureza, ou quididade, ou forma) é o que caracteriza o ser, é o que faz o ser pertencer a determinada espécie ou gênero, é o que distingue o ser dos seres pertencentes a outros gêneros e espécies. As essências podem ser agrupadas em “ideias universais”, que por sua vez dividem-se em ideias universais-diretas (dizem respeito aos elementos constitutivos das essências, mas sem relação com quaisquer indivíduos) e ideias universais-reflexas, ou predicáveis (dizem respeito à relação das essências com os seres: são elas espécie, gênero, diferença, propriedade e acidente). Por outro lado, existência é o que dá realidade à essência, é o que eleva a essência à categoria de ser, é o que faz a essência emergir do nada. A essência em potência torna-se essência em ato mediante a existência. No entanto, mesmo em ato a essência representa certos tipos de seres sob uma forma abstrata: é uma vez mais a existência que lhes dá conteúdo concreto. Segundo Tomás, quando a existência não se encontra limitada por nenhuma essência, estaremos diante do Ser absolutamente único e simples, cuja essência confunde-se com o próprio ato de existir.

e)      Substância e acidente. A substância é o elemento permanente do ser, ou seja, aquele elemento do ser no qual a essência existe nesse ser e não em outro, enquanto acidente é o elemento ocasional (ou “adventício”) do ser, ou seja, aquele elemento do ser no qual a essência existe nesse e em outros seres. Todos os seres criados têm substância e acidentes. Quanto ao modo de existir, há dez categorias. Ameal introduz um útil exemplo que os resume todos: Paulo é homem – substância; Paulo é alto – qualidade, Paulo é um corpo orgânico (dotado de diversos órgãos) – quantidade; Paulo é tio de Luís – relação; Paulo empurra Luís – ação; Paulo é empurrado por Luís – paixão; Paulo vive há trinta anos – quandocação; Paulo está sentado – estado; Paulo foi à rua – localização; Paulo está fardado – hábito.

f)        Causa. Das categorias de ação e paixão deduzimos que causa é a origem de qualquer ação, ou seja, é aquilo que intervém na produção de uma coisa. Há quatro causas, que novamente Ameal as resume todas lançando mão do famoso exemplo da estátua de um rei: o mármore é a causa material, a figura do rei é a causa formal, o escultor é a causa eficiente, a glorificação do rei, o adorno da praça ou a ambição do artista é a causa final.

g)       Unidade, verdade, bondade. São os três grandes atributos do ser (Ameal cogita incluir um quarto atributo, a beleza, mas vacila reduzindo-a a uma forma especial de bondade). O ser é uno (indiviso), verdadeiro (se conforma à inteligência) e bom (solicita e satisfaz a vontade).

Deus

São famosas as provas de Tomás de Aquino acerca da existência de Deus. Mas menos famosa é a ideia de que tais provas não são provas como uma demonstração geométrica é uma “prova”. O grau de certeza dessas provas não provém de um raciocínio lógico, mas de uma meditação ontológica. Por isso tais provas, embora levem este pomposo nome, não são tão convincentes quanto uma prova matemático-geométrica: o raciocínio lógico parte de uma proposição e, desde aí e para “fora”, atinge outras certezas. É algo que qualquer um que esteja minimamente desperto e consciente deverá assentir à sua conclusão. Mas uma meditação ontológica, ou poderíamos dizer, à moda de Mário Ferreira, um “raciocínio ontológico”, é algo que parte de uma evidência e, desde aí e para “dentro”, investiga essa evidência e a explica, a esmiúça. Se o indivíduo, mesmo que esteja desperto e consciente, não for capaz de ver a evidência, menos ainda será capaz de assentir às suas conclusões. Veja que a meditação ontológica se faz menos com raciocínios e mais com intelecções. Aqueles que têm facilidade para a abstração matemática, caso se apaixonem por essa via, terão dificuldades em assentir ao terceiro grau de abstração, ao qual pertence a ontologia geral.

A inteligência humana está ordenada ao absoluto. Isso significa dizer que ela está dirigida à pesquisa das causas; em última instância, a investigar a origem do ser. No entanto, no seio do tomismo, investigar a origem do ser significa investigar a origem do próprio Deus. Trata-se de um salto temerário: uma vez apreendido o ser e meditado a seu respeito, quem disse que a inteligência humana, por mais que esteja ordenada ao absoluto, capta o Ser enquanto tal? Quem disse que o ser supremo é o Ser Supremo? O melhor é contentar-se com a noção de que a inteligência humana, por si só, intui o Ser, mas o máximo que pode fazer é inspirar, dar ímpeto, à vontade para que busque o Ser por outras vias, a saber, pelo contato direto com Ele, e não por meio das coisas criadas. Por sinal, Ameal o admite ao afirmar que “só nos será lícito demonstrar a existência de Deus pelos seus efeitos; mas não há proporção alguma entre Deus e os seus efeitos: estes são finitos, ao passo que Deus é infinito” (por sua vez inspirado na Sum. Theol., I, Q, 2, art. 2, Videtur quod). Por outro lado, também diz, de maneira ambígua:

“[...] não se contestará que haja desproporção absoluta entre os efeitos finitos e a Divina Causa infinita. Essa desproporção faz com que seja extremamente imperfeito [por que “extremamente imperfeito” e não “absolutamente impossível”?] o nosso conhecimento de Deus, mas não afecta a possibilidade de O conhecermos. Das Suas obras poderemos deduzir a Sua existência, não atingi-lO na Sua natureza essencial. O que se discutia, porém, era apenas o primeiro ponto – e, quanto a esse, chegâmos ao fim que desejávamos: estabelecer que a existência de Deus é susceptível de demonstração”. (cf. Sum. Theol., I, Q, 2, art 2, Resp + Idem, ad tertium)

Como se verá, Tomás não se limita a provar a existência de Deus, mas Lhe confere atributos não a partir de alguma revelação divina, mas a partir da mesma especulação metafísica. A abordagem de Sertillanges me parece mais sã: “não se trata de definir ou compreender Deus – por si mesmo indefinível e incompreensível – mas de definir e compreender um mundo que, sem Ele, não teria razão de ser, nem poderia subsistir, nem mesmo se tornaria acessível ao nosso conhecimento” (S. Thomas d’Aquin).

Eis em suma as cinco vias de Tomás de Aquino:

(1) Primeiro Motor (ou “ato-potência”). Todo objeto que se move, seja de lugar, seja em qualidade, aumento ou diminuição, seja de ação interna sobre si mesmo, tem de ser movido por outro, já que não é, ao mesmo tempo, o que move e o que é movido. E assim sucessivamente, até necessariamente encontrarmos o Primeiro Motor, imóvel, ato puro, ou seja, desprovido de potência.

(2) Primeira Causa (ou “causa-efeito”). Partindo da ideia de causa eficiente, não podemos admitir a existência de efeitos sem causa. Portanto, existe uma Primeira Causa, que é eficiente, mas em si incausada: Deus. Aqui nota-se o evidente parentesco com a via (1) acima.

(3) Ser Necessário (ou “necessário-contingente”). Todas as coisas podem ou não existir. Isso significa que todas as coisas são contingentes. E isso também significa que é forçoso que o necessário exista. Por conseguinte, deverá haver apenas um único ser necessário: Deus.

(4) Ser Perfeito (ou “perfeição-participação). Consideramos as coisas mais ou menos belas, mais ou menos boas, mais ou menos perfeitas. Isso significa que há um ponto de referência, um máximo dentro das diversas qualidades, que o atributo participado tem a sua origem e razão fora dos seres em que se manifesta. Aqui a influencia de Platão é patente: reduz-se o múltiplo ao uno. Há um Belo absoluto, uma Bondade absoluta, uma Perfeição absoluta. É claro que esse raciocínio só ode ser válido no caso dos atributos transcendentes. E também está claro que, se a inteligência extrai essas qualidade do sensível, então essas qualidade são também reais.

(5) Primeira Inteligência (ou “causa final”). Vemos as coisas atuarem segundo um fim, mas não por acaso, e sim em virtude de determinada intenção (ex intentione). Ora, nada pode tender a um fim se não for dirigido por um ser inteligente. O conjunto dessas ações intencionais, e que visam o bem de quem as opera, pressupõe uma unidade de ordem. É necessário que o bem universal seja também um fim universal.

Novamente, como dissemos acima, nenhuma dessas vias versa essencialmente sobre Deus, mas apenas sob determinados aspectos. Conclui-se que, em Deus, existir é a Sua essência. Em outras palavras, essência e existência são a mesma coisa em Deus. Ego sum qui sum.

E, novamente, cabe reforçar que as provas vêm não de raciocínios lógicos, mas de raciocínios ontológicos. Elas não servem portanto somente para alicerçar a fé, mas acima de tudo para balizar os pensamentos e ações humanos, orientando-os à Causa das causas.

Embora se possa provar a existência de Deus, não é possível defini-lo, por motivos óbvios: não há gênero próximo nem diferença específica a qual se possa apelar. Mas pelo menos é possível conferir-lhe atributos, tanto negativos quanto positivos.

(a) Atributos negativos: aseidade (Deus é o único ser que existe por si (a se); infinito (a existência de Deus não tem fim e nenhuma perfeição lhe falta); simples (todos os seres são compostos, menos Deus, pois Ele não é fisicamente composto de matéria e forma, nem metafisicamente composto de ato e potência ou essência e existência ou substância e acidente, nem logicamente composto de gênero e diferenças); imutável (Deus não é determinado a qualquer transformação por outro ser); eterno (todos os seres existem no tempo); imenso (todos os seres são localizáveis em determinado ponto do espaço); unicidade (Deus não faz parte da pluralidade das essências criadas).

(b) Atributos positivos: Deus é a eminência das perfeiçoes das criaturas, embora, evidentemente, de modo inexato, devido à enfermidade de nossa razão, a saber: Inteligência, Bondade, Verdade, Vontade (o instrumento pelo qual o homem tende à própria perfeição; “em todo ser dotado de inteligência existe vontade”, diz Tomás), Bem, Beleza, Liberdade, Amor. Não somente aqui, mas sobretudo aqui, Tomás lança mão da doutrina da analogia. Não cabe repetir o que já foi ensinado por Mortimer Adler sobre analogia, mas cabe sim registrar que o tipo de analogia empregado por Tomás é a analogia de proporcionalidade, ou seja, a analogia por semelhança e diferença. Essa analogia representa uma propriedade atribuída a várias coisas que a possuem intrinsecamente, mas de modo diverso e quando a atribuição é feita pelo fato da relação de uma das coisas com tal propriedade ser semelhante à relação da outra com a mesma propriedade. Então, no caso de Deus e as coisas criadas, elas possuem intrinsecamente o ser, mas de modo diverso (em Deus, identificado à essência, nas criaturas ligado transitoriamente à essência); por outro lado, a relação que as criaturas finitas tem com o ser finito é semelhante à de Deus Infinito com o Ser Infinito. Vale a pena reproduzir o que diz Tomás a esse respeito, pois trata-se de um assunto nuclear para a doutrina tomista:

Com grande precisão, desenvolve São Tomás a doutrina da analogia aplicada ao nosso conhecimento de Deus, no tratado De Veritate. Reproduzimos um trecho elucidativo: -- “Pode haver proporção e, portanto, conveniência e analogia entre duas coisas pela razão de existir entre elas uma relação de grau, de distância, de medida, isto é, uma relação real a reciproca --como, por exemplo, o número 2 está em proporção com a unidade, da qual é o dobro. Mas pode-se afirmar também uma conveniência entre duas coisas que não tenham proporção direta, pela razão de uma delas ser a uma terceira o que a segunda é a uma quarta. Assim, o número 6 parece-se com o número 4 em que 6 é o dobro de 3 como 4 é o dobro de 2. O primeiro gênero de conveniência é de proporção direta, o segundo de proporcionalidade. Sucede que, segundo o primeiro destes modos, certas noções se aplicam a duas coisas que possuem direta relação entre si: diz-se que existe o ser na substância e no acidente por causa da relação em que se encontram... Noutros casos, uma noção atribui-se analogicamente: assim a palavra ver tanto se entende do órgão da vista como da inteligência, por a inteligência ser para a alma o que os olhos são para o corpo. Como o primeiro modo de analogia requer uma direta e determinada relação entre as coisas que se dizem análogas, é impossível haver analogia desta ordem entre os atributos comuns a Deus e à criatura; pois nenhuma criatura se acha em tal relação com Deus que essa relação possa servir para determinar a perfeição divina. Mas quanto ao segundo modo de analogia, em que não é requerida uma relação direta e determinada entre as coisas que participam duma noção comum, nada impede que, dentro desse modo, certos nomes sejam ao mesmo tempo ditos de Deus e da criatura”.

Vê-se, portanto, que Deus tem de conter a totalidade das perfeições das coisas criadas, mas as contém de modo analógico. Vê-se, portanto, que há uma semelhança analógica entre o criado e o Incriado. No entanto, Ameal não deixa de salientar que “[a teodiceia de São Tomás] é insuficiente para traduzir, mesmo de longe, a verdadeira natureza de Deus. [...] Tudo que a inteligência humana tente para ir além da afirmação da existência de Deus, para saber como Deus é¸ está condenado a seguro malogro. [...] Já que não nos é dado conhecer e pensar Deus como Deus é (por não ser enquadrável nas categorias da nossa inteligência) conhecemo-lO e pensamo-lO como nós somos: só assim a nossa inteligência logra alcançá-lO. Desde que nunca percamos de vista a desproporção entre o que atribuímos a Deus e o que Deus é”. E, por fim, cita São Dionísio Areopagita em sua Teologia Mística: “— A ciência mais alta que poderemos ter de Deus, nesta vida, é saber que Deus está acima de tudo que pensarmos a seu respeito”.

Mundo

Deus criou o mundo do nada, mas esse nada não pode ser algo pré-existente, algo que tenha realidade, mas algo do Ser pré-existente. O mundo, portanto, nasce por emanação do Ser. A criação, por sua vez, contém uma relação de dependência com o Princípio do qual emana, ou seja, a criação adere ao próprio ser – enquanto o ser exista. Depois de existente, o ser dura por si. Mas, de inicio, é indispensável que haja o ser. E o ser, por sua vez, depende essencialmente de sua origem.

Como não há relação unívoca, mas apenas analógica, entre Deus e o mundo, não podemos deduzir da imortalidade de Deus que, por conseguinte, o mundo também seja eterno. Racionalmente falando, o mundo não é evidentemente eterno nem é evidentemente temporário.

Quanto á multiplicidade dos seres ante a unicidade de Deus, Tomás explica que a variedade das criaturas é necessária porque o efeito parece-se com sua causa e, portanto, as criaturas finitas parecem-se imperfeitamente com as perfeições simples de Deus. A graduação da perfeição nos seres é a maneira sábia de Deus para que se manifestem nela Suas perfeições.

Ora, assim como em qualquer perfeição, é impossível que as criaturas finitas reflitam a bondade infinita de Deus. Novamente apelando a São Dionísio, Tomás conclui que o mal não existe. O que existe é a ausência de bem, ou seja, certa deficiência, a privação de qualidade que deveria possuir. O mal não é nem uma essência, nem tem realidade. Mal e privação são, portanto, sinônimos. Sim, é paradoxal, mas é assim: a causa do mal é o bem porque esse bem é limitado, imperfeito, contingente, que, ao degradar-se, alcança a condição de “não-bem”.

Pouco direi sobre o hylemorfismo empregado por Tomás. Bata dizer que os princípios físicos do mundo não são nem a matéria (átomos) nem a imatéria (forças), mas a matéria prima e a forma substancial. A matéria prima é determinada pela forma substancial no ser substancial, enquanto a matéria segunda é determinada pela forma acidental no ser acidental. Portanto, a matéria é especificada pela forma enquanto a forma é individuada pela matéria. A mudança substancial (não a acidental), portanto, centra-se na forma substancial. A matéria prima é comum às duas substâncias, mas o que mudou foi a forma substancial. Na mudança não há nenhuma criação propriamente, mas literalmente uma transformação.

Os corpos apresentam diversas propriedades. Cabe menção as seguintes: (1) derivadas da matéria: quantidade (ou “extensão”), lugar e tempo; (2) derivadas da forma: qualidades, como figura, cor, som, cheiro, sabor, resistência, temperatura e forças (mecânicas, físicas e químicas).

O infinito, segundo Tomás, é algo que não existe em ato na ordem do espaço, mas somente na ordem do tempo e pertence a Deus, pois somente Ele está acima das categorias do real.

Quanto à contingência dos seres criados, cabe notar que Deus, apesar de ser a Causa Primeira, não faz parte por isso da série de causas do mundo: Ele deve ser entendido mais como uma Super-Causa que, ao conferir às causas criadas o seu ser, confere-lhes a qualidade de produzir efeitos necessários ou contingentes. Ambas as modalidades – contingente e necessário – fazem parte da essência do ser relativo, mas não do Ser Absoluto. Portanto, Deus determina o contingente a ser indeterminado. A inteligência humana só é capaz de conhecer o necessário. A nós o contingente é algo incognoscível.

Por fim, quanto à vida, Tomás a define os seres vivos como aqueles que se movem. O princípio vital nunca deve ser encontrado na matéria, mas sempre na forma substancial. Ele é uma espécie de força da qual provêm as operações imanentes dos seres vivos. A esse princípio vital chamamos alma.

Homem

O corpo, enquanto potência, tem na alma seu ato. Similarmente, o corpo, enquanto matéria, tem na alma sua forma. E daqui podemos deduzir sua espiritualidade: a alma é incorruptível, imaterial e, portanto, imortal. No entanto, a alma não é espirito puro nem substância pura porque tende a um corpo e, ademais, não consegue sozinha realizar as operações vegetativas e sensitivas que lhe são próprias. Conclui Tomás, portanto, que “o homem não é apenas alma, é um ser composto de alma e de corpo”. Em ainda outras palavras, a alma é o principio ativo que faz a matéria ser em ato, conferindo-lhe a ambos, alma e corpo, unidade. Há uma união imediata da alma ao corpo como a forma é unida imediatamente à matéria.

Embora o ser humano seja composto, ou seja, não haja realmente duas “partes” existencialmente distintas, na sua intelectualidade a alma pode ser independente do corpo por ser esta intelectualidade imaterial e incorruptível. E pelo fato de ser imortal, a alma tende necessariamente para a felicidade imortal. Não para uma felicidade que se possa encontrar em bens particulares, uma vez que a alma não descansará nesses bens, mas no Bem Infinito, na contemplação inefável da essência divina. Em outras palavras, na beatitude eterna.

Quanto aos princípios das operações (ou “potências”, ou “faculdades”) a alma humana estrutura-se da seguinte forma:

(a) Faculdades vegetativas. Ínfimo grau e importância. Pouco nos interessamos por elas.

(b) Faculdades sensitivas. Há quatro espécies: a perceptiva (sentidos externos e internos, a saber: sentido comum (pelo qual o homem cataloga as sensações externas, segundo as suas afinidades e diferenças), imaginação (pela qual conserva as imagens sensíveis e as reproduz mesmo na ausência dos objetos que as motivaram), estimativa ou juízo instintivo (pelo qual atribui, aos objetos externos percebidos pelos sentidos, certas propriedades benéficas ou maléficas), memória sensitiva (pela qual conserva as suas percepções sensitivas passadas)), a apetitiva (que leva o homem a tender para os bens sensíveis convenientes à sua natureza), a locomotora (pela qual se desloca dum lugar para outro) e a vocal (pela qual se exprime e comunica com os outros homens).

(c) Faculdades intelectivas. É a capacidade de penetrar na essência das coisas e “ler” no interior dos seres (intus-legere, intelecto). É o intelecto que se comunica com o ser das coisas, ou seja, com sua inteligibilidade fundamental. É no seu ser que as criaturas contingentes participam do Necessário, que as criaturas mutáveis participam do Imutável, que as criaturas imperfeitas participam do Perfeito. É por isso, pelo seu ser, que as criaturas são susceptíveis de conhecimento “intelectual” (que possam ser interiormente “lidas”). E aqui se introduz um interessante e fundamental conceito: o modo intencional do conhecimento humano. Trata-se da capacidade do sujeito que conhece converter-se no objeto conhecido. O homem despoja as formas da matéria que lhes mascara o “fulgor inteligível” e é capaz de contemplar a unidade absoluta das ideias que se reproduzem na gama dos seus modelos, tornando-se capaz, portanto, de ser outro, de se tornar outro. Isto, claro, sob certo aspecto apenas, visto “o objeto conhecido estar naquele que conhece segundo a maneira de ser deste último”, ou seja, a aptidão para ter em si todas as coisas pelas suas formas. Eis as duas faculdades intelectivas: o intelecto agente (ou “força abstrativa”, o “luz derivada de Deus”, segundo Tomás), que isola as essências contidas na realidade concreta formando a imagem inteligível (a “imagem da essência”), ou fantasma, ou ainda a species impressa, isto é, a fusão da inteligência com o ser intencional do objeto; e o intelecto possível, que recebe a species impressa e se determina em ato, gerando a species expressa (ou “verbo mental”), que encerra em si a ideia abstrata, a ideia em si (ideia de humanidade, por exemplo). A partir dessa intelecção espontânea e instantânea, o intelecto é capaz de alçar novos voos e, pela reflexão introspectiva e por silogismos, adquirir novos conhecimentos, generalizações e juízos.

Por fim, cabe mencionar a importantíssima relação entre inteligência e vontade. A vontade não é um simples apetite sensitivo, mas um apetite intelectivo. É inato no homem o agir com conhecimento de causa, o agir para um fim. Os atos voluntários são os atos que, além da inclinação própria do homem, são acompanhados de algum conhecimento. O homem naturalmente tende a seu fim último, que é o Ser Supremo, o Bem Último. Entretanto, as criaturas também contêm em si algo desse Ser, o que motiva o homem a buscar o conhecimento também destas criaturas contingentes. O home, enquanto ser racional, não tem o direito de desligar seu intelecto e não entregar-se ao Fim Último, que está nas criaturas e, evidentemente, para além delas. A vontade é o apetite que impulsiona o homem a buscar o encontro com este Fim. Observe, portanto, que inteligência e vontade alimentam-se e impulsionam-se mutuamente. Evidentemente o apetite sensitivo também influencia a vontade.

A inteligência é superior à vontade porque a inteligência é simples e seu objeto é a ideia do bem. A vontade tem por objeto o bem. No entanto, e eis o reverso da medalha, se o bem a desejar for superior à própria alma que deseja, então a vontade é eminente à inteligência. Entenda-se: se o bem a desejar é Deus, torna-se muito mais importante amá-Lo do que conhecê-Lo. Se o bem a desejar são as coisas criadas, torna-se muito mais importante conhecê-las do que amá-las.

As qualidades da alma que a leva a fazer o bem se chamam virtudes. Tomás destaca algumas que considera fundamentais: as intelectuais (para aperfeiçoar a inteligência: sabedoria, ciência, entendimento) e as morais (para aperfeiçoar a vontade: prudência, justiça, fortaleza, temperança).

Fonte: João Ameal, São Tomaz de Aquino, Livraria Tavares Martins, Porto, Portugal, 1947.

19 de setembro de 2023

A potência cogitativa na TCC


O psicólogo italiano Giuseppe Butera expõe interessantes pontos de contato que antecipam em Tomás de Aquino alguns tópicos que mais tarde seriam desenvolvidos no âmbito das terapias cognitivo-comportamentais.

A potência cogitativa , que nos animais se encontra subdesenvolvida na forma de potência estimativa, é o sentido interno mais importante no homem. É ela que, uma vez alimentada pelos sentidos externos,  apreende os objetos, situações e experiências como "adequadas" ou "inadequadas", como se fossem juízos instintivos. No entanto, se nos animais ela é simples intuição sensível, nos homens ela é alimentada pelo conhecimento adquirido pela experiêcia direta (memória) e pela instrução (razão). Como a razão lê o que há de universal, por conseguinte ela é capaz de informar a cogitação, que funciona como uma espécie de "razão particular". Por outro lado, a memória, ao acumular experências prévias, desenvolve certos hábitos imaginativos que informam a cogitação, dando-lhe mais velocidade a aprensões familiares.

Observa-se, portanto, que enquanto nos animais a estimação é fixa, nos homens a cogitação é programável, como se fosse um computador. No entanto, mesmo nos homens ela não é racional nem irracional, mas simplesmente "não-racional".

É a ação da potência cogitativa que desencadeará a reação das paixões (emoções) da alma. Aqui pouco importa se a apreensão é "correta" ou "incorreta", "verdadeira" ou "falsa". A cogitação é incapaz de alcançar tais juízos.

Pois bem, Butera conclui que os "pensamentos automáticos", tão extensamente popularizados por Aaron Beck e sua terapia cognitivo-comportamental, são precisamente as reações pré-conscientes da potência cogitativa. São automáticas, mas são reprogramáveis. São pensamentos, mas não são conscientes. Precisamente o que a cogitação é: um sentido interno cuja resposta é automática e age sobre o restante da alma com a vivacidade de pensamentos. É possível perscrutar e identificar as reações da cogitação e reprogramá-las racionalmente, assim como séculos mais tarde Beck descobriu que é possível perscrutar e identificar os pensamentos automáticos e reprogramá-los racionalmente.

A cura não é imediata como a programação de um computador. As potências da alma sensitiva, sejam externas ou internas, estão intimamente ligadas ao corpo e, portanto, são pouco maleáveis. É possível reorientá-las, mas é necessário tempo, consistência e paciência.

Fonte: Giuseppe Butera, La anticipación de Tomás de Aquino a la terapia cognitiva, Interpsiquis Vol. XXII, 2021.

16 de setembro de 2023

Abstração e projeção


Podemos ser levados a crer que quanto mais naturalista, detalhada e fiel à realidade pictórica for uma obra de arte tanto mais desenvolvida e superior ela será em relação às representações abstratas e de inspiração geométrica. Inspirado pela obra e ensinos de Alois Riegl, o historiador alemão Wilhelm Worringer chega a conclusões não só divergentes como de certa forma contrárias a tal senso comum.

Worringer parte da ideia de que o gozo estético é um autogozo objetivado. Em outras palavras, a beleza extraída de uma obra de arte é resultado do contraste, ou mesmo fusão, da ampliação do olhar interno até o ponto que abarque toda a obra com a delimitação da imaginação para que a isole de seu ambiente originário. Se posso abandonar-me sem antagonismo interior à tal atividade de ampliação/delimitação, então disso resultará um sentimento de liberdade e prazer. O objeto estará como que compenetrado por minha atividade, por minha vida interior. Eis o “autogozo objetivado”. O “belo” seria uma projeção positiva, enquanto o “feio” uma projeção negativa.

Concomitantemente, identifica dois polos estilísticos claramente distintos encontrados na estética das obras de arte: (1) o afã de projeção sentimental (Einfühlung, ou “empatia”), cuja satisfação se encontra na beleza do orgânico, e (2) o afã de abstração, cuja satisfação se encontra na beleza do inorgânico, do que nega a vida, do cristalino.

Ora, se o autogozo objetivado é a definição mesma de gozo estético, então Worringer rejeita a ideia de que somente a projeção sentimental possa cumprir com louvor os critérios para extrair tal gozo da criação artística. Isso porque, com base no método criado por Riegl, a vontade artística absoluta, ou seja, a vontade artística desligada de quaisquer objetos, sendo uma exigência interior latente nos homens, se manifesta como vontade de forma. Toda obra de arte é, em seu mais intimo ser, tão-somente uma objetivação dessa vontade de forma.

Observe que a arte genuína é uma satisfação profunda de uma necessidade psíquica. Não cabe, portanto, confundir “arte” com “imitação”. Trata-se de um erro muito comum: a imitação é mera habilidade manual (um “gosto brincalhão pela reprodução de modelos naturais”) e carece de importância estética. A arte genuína é a expressão estilística da vontade artística absoluta.

O estilo resultante do afã de abstração – como nas formas de uma pirâmide ou nos mosaicos bizantinos – se trata de um impulso diametralmente oposto ao afã de projeção. A tendência abstrata se revela na vontade de arte dos povos em estado de natureza, na vontade de arte de todas as épocas primitivas e de certos povos orientais de cultura superior. Trata-se de uma tendência resultante de uma intensa inquietação interior ante os fenômenos do mundo circundante. Worringer lança mão da expressão agorafobia espiritual para designar tal impulso: algo como uma ansiedade em ficar em situações ou locais sem uma maneira de escapar facilmente ou em que a ajuda pode não estar disponível no caso de a ansiedade intensa se desenvolver. Há uma intensa necessidade por quietude, por desprender cada coisa individual pertencente ao mundo exterior de sua condição arbitrária e de sua aparente casualidade e eternizá-la mediante a aproximação a formas abstratas e em encontrar dessa maneira um ponto de repouso na fuga dos fenômenos. Observe: não há intromissão do intelecto no estilo abstrato, ou seja, não há nenhum tipo de aspiração a conformar-se a supostas leis de regularidade geométrica, mas sim uma necessidade interior elementar.

Os dois polos – projeção e abstração – são, ao fim e ao cabo, diferentes níveis de uma necessidade comum: a ânsia de alienar-se do próprio ego. Tal ânsia de alienação é incomparavelmente mais intensa e mais consequente no afã de abstração. Worringer não deixa de notar que a ânsia de alienação do ego é a essência suprema do gozo estético e, por que não, da felicidade humana mesmo.

Concluo portanto que a arte abstrata, embora primitiva em termos cronológicos, é primordial em termos ontológicos, pois é ela que retrata melhor o anseio dos homens em escapar da escravidão ao ego e alçar novos e maiores voos no plano sobrenatural. Os povos que não aposentaram sua arte abstrata mas, pelo contrário, a sofisticaram e aprofundaram, são provavelmente aqueles que melhor combinaram gozo estético e elevação espiritual.

Fonte: Wilhelm Worringer, Abstracción y naturaleza, Fondo de Cultura Económica, Cidade do México, México, 1953.

14 de setembro de 2023

A educação da espontaneidade


É possível educar os sentimentos? Ou, pelo contrário, os sentimentos devem ser o guia em torno do qual devem orbitar nossos pensamentos, condutas e juízos? Vejamos o que diz o filósofo espanhol Julián Marías.

O homem tem um caráter convivial, social e histórico. Em outras palavras, se imagina e se projeta dentro de uma forma histórico-social. Mas é necessário acrescentar que é possível sair dessa forma, que é algo que muitas vezes tem sido negado com notória falsidade. Mais ainda: sempre se sai dessa forma porque toda situação é instável, e justamente por isso existe a história.

É um grave erro portanto a “programação”, a fixação das formas, que nunca podem ser mais do que um ponto de partida. Isso elimina algo decisivo: a espontaneidade. Na vida é essencial o aporte dos impulsos, dos desejos, da imaginação – realidades sobre as quais pesa certo “descrédito”. É fundamental a reação viva, imediata, direta aos elementos da circunstância, especialmente às pessoas. É preciso que reivindiquemos a importância e a validade do “gosto”, que não coincide necessariamente com o prazer.

É preciso dar o devido valor à atração pessoal imediata, que costuma ser muito mais ampla e completa que a atração deliberada ou “racional” (aquela é mais racional, mas da razão vital).

Alguém poderia pensar que esta insistência na espontaneidade, esta preferência por ela, exclui a educação ou a relega a uma posição secundária. Acredito que, pelo contrário, ela a exige: é preciso educar a espontaneidade. Ela se nutre de experiências, imaginações, ensaios, explorações do desconhecido. Ora, a espontaneidade deseducada é pobre, limitada à herança, não somente biológica, mas sobretudo social. Entendo a educação como cultivo e incremento à espontaneidade.

É evidente a enorme influência que a ficção tem aqui: poesia, teatro, literatura, cinema; e não menos importante, a conversação. Aliada às vivências e experiências reais, as virtuais que se recebem do outro – do próximo presente com quem se conversa ou do criador, talvez falecido há séculos – são ótimos instrumentos de dilatação e intensificação da vida.

A diversidade de idades, a convivência com várias gerações, é essencial. Isso permite a libertação da circunstância temporal, a ampliação do horizonte.

[...]

O “estar” carrega em si o conceito de instalação, que é a maneira como o homem “se encontra” na vida, fazendo algo e sendo alguém. Poderíamos definir temperamento como a modulação dessa instalação. O temperamento portanto é uma modulação essencial daquilo em que se está quando se está vivendo. [...] Alegria e tristeza, austeridade e jovialidade, severidade e piada, secura e afetuosidade; eis alguns exemplos possíveis de temperamento, que contêm incontáveis variedades e matizes. Existem temperamentos habituais que poderíamos chamar de vigentes. E existe a possibilidade de sua alteração estimulada ou artificial, como festas, orgias, álcool, drogas.

A afetividade, o mundo dos sentimentos, é o envolvente da vida. [...] A vida apresenta certos sintomas de grosseria, de pobreza, de monotonia, de instabilidade; e, mais ainda, de secura, de prosaísmo (achatamento, insipidez). Será que não nos falta uma educação sentimental adequada?

Fonte: Julián Marías, La educación sentimental, Alianza Editorial, Madrid, Espanha, 1992.

5 de setembro de 2023

A metafísica do amor


Frederick Wilhelmsen acredita que o amor é algo que reside no coração de todo ser humano, e a melhor forma de abordar o tema, para aqueles que são mais voltados à meditação filosófica, é por meio da ontologia da existência. Aqueles que seguem o Cristo sabem que a lei final é a lei do amor e que a cidade a que estamos destinados é a Cidade de Deus. Como inspiração da importância do tema, eis alguns ensinamentos de Jesus Cristo e do Apóstolo:

E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas. Mateus 22:37-40

E no Sermão da Montanha disse Jesus: Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo.  Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem; para que sejais filhos do vosso Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre justos e injustos. Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim? Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus. Mateus 5:43-48

O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha; mas havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas, cessarão; havendo ciência, desaparecerá; porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos; mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado. 1 Coríntios 13:4-10.

É importante que antes o leitor tome contato com as descobertas de Wilhelmsen quanto à estrutura paradoxal da existência. Em suma, a existência não existe, ou seja, a existência não é um ente existente como um homem, uma árvore, um cachorro, um anjo, uma montanha, um planeta etc. Estes entes singulares actualizam a estrutura contida em seus universais, ou seja, em suas essências, mas a existência, em si mesma, não se manifesta como ente, ela é desprovida de estrutura.

As dimensões da existência humana: trágica e extática

Com base nesse entendimento, Wilhelmsen identifica duas ordens, ou dimensões, da existência humana.

Uma é a dimensão trágica, na qual o homem se vê como ser contingente, finito, sem fundamento em si mesmo, sem apoio do mundo (que supostamente é seu); em outras palavras, como se estivesse perpetuamente caminhando à beira de um abismo que leva ao nada. Enfrentar a morte e dar-lhe sentido é uma realidade da qual nenhum homem tem o direito de querer escapar. Que terrível estado de insegurança vive o homem: embora ameaçado pelo não-ser, o homem continua sendo.

Outra é a dimensão extática, na qual o homem se vê obrigado a entregar-se ao mundo das coisas e especialmente ao mundo das pessoas. O ser do homem é estruturalmente um ser com outros: (1) na comunicação, ou seja, na exigência por compartilhar sentido com outra pessoa, (2) no cuidado, ou seja, quando o contingente zela por outro contingente; e (3) no amor, o ápice do êxtase, ou seja, quando o ser do homem se torna ser-para-o-outro, isto é, o ser autenticamente humano. O homem inautêntico é, portanto, aquele que não se doa ao outro, mas, pelo contrário, se apropria do ser do outro para si próprio. Em vez de superar sua pobreza ontológica abrindo-se para amar o outro, o homem inautêntico acentua essa pobreza preenchendo seu ser com o ser do outro: ao invés de ser-para-o-outro, se transforma no ser-para-o-apropriado.

Que profundo paradoxo vive o homem: extaticamente deseja dar, tragicamente deseja ser preenchido; extaticamente precisa jogar-se fora, tragicamente precisa ser acolhido. Não há nada no homem, nem em suas partes, nem no todo, sobre o qual possa assentar-se e declarar candidamente que encontrou sua identidade. A personalidade do homem, ou seja, o aperfeiçoamento de sua pessoa, não é constituído por um “eu”, mas por um “nós”.

Este entendimento começou a romper-se na Renascença, quando pouco a pouco o desenvolvimento de uma pessoa (i.e. personalidade) foi sendo entendido como o cultivo de um ego. Note que o homem medieval desconhecia a dicotomia sujeito-objeto. Para ele, sujeito é aquilo que há de supremo, de eminente, no ser, enquanto objeto é o conhecimento desse sujeito. O homem conhecedor era apenas mais um sujeito dentre tantos outros sujeitos no cosmos. Para o homem moderno, no entanto, o sujeito é somente o ego pensante, enquanto objeto é o conteúdo desse sujeito pensante.

Este rompimento foi posteriormente, ou concomitantemente, potencializado pela palavra escrita. Enquanto o homem antigo e medieval filosofava com coisas e pessoas diante de si, o homem da modernidade clássica filosofava com folhas de papel diante de si. Homens solitários como Descartes, Spinoza, e mesmo Leibniz, estavam envoltos em uma cultura livresca na qual as imagens sensoriais eram eminentemente espaciais, carentes de movimento, posteriormente congeladas em abstrações transformadas em absolutos ontológicos. Observe como na psique da filosofia moderna o ego pensante torna-se o centro da existência, o juiz do mundo, em oposição aos objetos “lá fora”. O ego pensante eleva-se à categoria de personalidade abstrata, a qual toda a realidade curva-se ante sua validação e racionalidade. O ego pensante ganha pois ares de divindade.

Mas talvez o motivo mais importante esteja no seio mesmo da Idade Média. Wilhelmsen nota que se abateu na Europa do começo do século XIV uma espécie de “ansiedade coletiva”. O bom combate ao qual o Apóstolo havia chamado os seguidores do Cristo, a civilização de camponeses, soldados e monges, começou a cansar em meio ao nada e à falta de sentido do mundo natural. Pouco a pouco essa civilização começou a buscar alívio desse fardo da contingência. O homem renascentista começou a enxergar na natureza uma excelência e uma beleza antes despercebidas. O corpo humano bem formado e estético, uma racionalidade baseada na moderação moral da Ética a Nicômaco; a Renascença começou a negar insistentemente a trágica situação humana e o mistério da contingência de sua existência temporal. A abertura do ser no homem foi fechada e selada.

A pessoa humana é aquele todo no ser que, experimentando-se como finito e contingente, sem qualquer domínio sobre o seu próprio ser, existe, no entanto, dentro de uma ordem de ser à qual o seu próprio ser está aberto e na qual deve procurar o seu destino, a ponto de almejar a superação do mundo e a doação de si mesmo a um Ser que, não necessitando dele em nenhum sentido, no entanto se dá e cura assim as feridas da contingência.

Wilhelmsen nota, no entanto, que o ser não deve ser reduzido a um mero “ser-para”, ou seja, o ser não é apenas a relação que estabelece. O ser é, em suas palavras paradoxais, “simplesmente ser, mas todo ser está aberto de si mesmo”.

Observe como a metafísica do ser pode nos ajudar a entender como, e por que, o homem tende a distanciar-se do todo que é em favor de seu ego. Por exemplo, quando estamos doentes sentimos que nosso ser está como que se dissolvendo, se despedaçando, se estilhaçando. É como se o corpo doente de repente estivesse “aí”, flutuando diante do espírito observador, como se o corpo fosse uma peça adjacente, um elemento meramente contíguo à alma. Em termos morais algo semelhante acontece. Observamos nosso passado com certo assombro e mesquinhez, e nos perguntamos como, afinal, desperdiçamos tanto tempo com bobagens e negligenciamos o desenvolvimento de nossas qualidades, de nossos relacionamentos, de nossas carreiras, de nosso crescimento espiritual. Uma vida reduzida às cinzas da esperança. Ou mesmo em nossas experiências filosóficas que, por meio da introspecção típica da meditação cognitiva, termina por concluir de maneira afobada que o homem é seu ego e que apenas tem um corpo. Quando estou morrendo, não devo concluir que meu ser permanece no ego, mas, pelo contrário, a angústia da morte é sinal de que o corpo também é meu ser. Aqui chama a atenção que Montserrat Calvo Artes chegará à mesma conclusão: sou meu corpo, não tenho um corpo.

Sim, claro, é evidente que há um senso de distância entre corpo, alma e espirito. É evidente que o corpo não participa do ser da mesma forma que o espírito participa do ser. Mas é evidente também que somos um ser, que somos uma unidade, e não vários seres meramente aglutinados. Somos um ser (um esse), que na verdade é um ente (um ens), um “está sendo”. Este é o ponto: somos inseparáveis de nossa existência. Sou meu corpo, minhas operações, minhas faculdades: o esse não é a alma nem o corpo, mas o esse toca a alma, a parte formal do corpo. Como demonstrou Santo Tomás de Aquino, por participação, o corpo também faz parte do ser do participante. É notável o que acontece quando o homem divorcia o corpo da alma. Quando o exercício do poder é divorciado do corpo, o homem perde o senso de responsabilidade sobre seus efeitos. Bernanos comenta sobre o piloto que, embora capaz de apertar um botão e matar milhares de pessoas, é incapaz de matar uma borboleta com as mãos.

Modernamente, o humanismo em suas diversas formas é uma maneira de tentar escapar da dimensão trágica da existência humana. O humanismo é incapaz de entender que, temporalmente falando, o homem não está acima do cosmos das coisas e valores. O homem é um ser relacionado a, e não um ser que se relaciona. O efeito de abafar a dimensão trágica é bloquear o chamado ao êxtase. Desde a psicologia de Jung à educação liberal de Mortimer Adler, todo humanismo está convicto de que o homem contém em si (mesmo que admita a existência de Deus) a fonte e o fundamento de sua própria perfeição: o humanismo veda, sela, isola a pessoa em seu ego e busca dentro da pessoa selada a sua personalidade, negligenciando a abertura do ser, a finalidade mesma do homem. O humanismo se esquece de que a pobreza do homem é sua glória.

A filosofia espanhola

Para melhor esclarecer como se dá a relação do homem com essas dimensões da existência, Wilhelmsen lança mão de dois filósofos espanhóis: José Ortega y Gasset e Xavier Zubiri. O fato de ter vivido alguns anos na Espanha e ensinado na Universidade de Pamplona lhe garantiu um extenso contato com a filosofia deste país. Ademais, a filosofia nunca se divorcia dos temas e problemas típicos do local onde se desenvolve, e no caso da Espanha, após a queda do império espanhol e certo complexo de inferioridade perante os países do norte europeu, Wilhelmsen não deixa de notar como os filósofos espanhóis do século XX procuraram entender a relação do passado e do futuro da Espanha no contexto da Cristandade ocidental, permitindo assim que se concentrassem mais na dimensão histórico/temporal da existência humana, precisamente o que Wilhelmsen busca para, a partir desse patamar histórico, elucidar a dimensão aberta (“extática”) da existência humana.

É notável portanto que a especulação metafísica espanhola se recuse em aceitar uma teoria do ser que o veja de maneira estática, isolada, fechada. Pelo contrário, os grandes filósofos espanhóis sempre admitiram, a despeito das orientações religiosas que defendam, que a existência humana possui uma estrutura histórica e aberta. É precisamente acerca desse ponto que Ortega cunhou sua hoje famosa máxima da razão vital: Yo soy yo y mi circunstancia. O ser humano, para Ortega, não é propriamente um ser, mas um “vai sendo” (va siendo), ou seja, se por um lado uma realidade físico-matemática é regida e expressa por uma lei, uma realidade humana é expressa por uma história. Observe que para Ortega a vida é maior do que o ser porque a vida humana se lança não para aquilo que não foi, mas para aquilo que pode ser à luz do que foi. Em outras palavras, o passado está aqui em mim. Eu sou o passado, mas eu também sou maior do que meu passado e, portanto, mais amplo que meu ser. O ser estático, isolado, fechado, é um mero cenário, mas o ser dinâmico, relacional, aberto, é um drama. Tal ser estático é paralítico assim como são paralíticos os corpos geométricos. O ser dinâmico é ao mesmo tempo história e tradição porque o ser dinâmico é ao mesmo tempo um progresso para o eu e um engendramento desse mesmo eu.

Zubiri concorda que o ser estático, aquele que provém do “é” subsistente às coisas, tem de ser corrigido à luz do ser quando aplicado à inteligência. O ser do homem é um “ser-aberto-às-coisas”, um “ser-é-outro”. Ao mesmo tempo, este “ser-outro” é um retorno da inteligência a si mesma: quanto mais me estendo ao próximo, tanto mais me torno o eu que sou. Ao ponderar sobre o ser das coisas, o ser do homem e o ser de Deus, Zubiri alcança um entendimento do ser que, a exemplo de Ortega, é aberto, extenso, descerrado, destapado. Além disso, Zubiri também nota a diferença entre a concepção de amor entre cristãos latinos e cristãos gregos. Para o Padres gregos, o amor (agape) tão reiteradamente mencionado por São Paulo e São João deve ser entendido em um sentido estritamente metafísico. Não se trata de um amor moral, mas de um amor ontológico.

Ao mesmo tempo, Zubiri também nota que a energeia aristotélica, própria dos seres vivos (ver post anterior sobre Wilhelmsen) -- ao contrário da enteléquia, própria das coisas, que era designada como atualidade --, é melhor designada como atividade, ou seja, como algo que está sendo, que se está desenvolvendo, que é “ec-stático” (extático), que se difunde a si mesmo dinamicamente. Zubiri sustenta que o ser estático – fixo e completo – sempre recebe enquanto o ser dinâmico – ação primitiva e radical – sempre executa. Para os gregos, essência não é o correlativo de uma definição, como entendiam os latinos, mas uma atividade radical constituinte do próprio ser, a própria raiz de toda sua manifestação. A essência é algo ativo, é como se a essência fosse uma “para-essência” manifestada numa dinâmica que é a própria verdade da ousia, pois é esta essência dinâmica que torna a ousia cognoscível. Zubiri sagazmente diz que Deus não é Ato Puro, mas Ação Pura. E tal atualidade, no caso do homem, é dada, segundo Zubiri, por sua origem. É assim, portanto, que se dá a personalidade: ela tende para a origem e fundamento de seu ser e, ao mesmo tempo, àqueles que compartilham da mesma natureza. Estamos falando, claro, de uma abertura, de uma doação, à Deus e aos demais homens. Estamos falando não de um simples eros, mas de um agape, de um amor místico. Eis também por que Zubiri concorda com os Padres gregos sobre o primado da personalidade sobre a natureza, e, por extensão, sobre o primado da Trindade sobre a Unidade divina, ao contrário do que entendiam os latinos.

Mais bela ainda é a meditação empreendida por Wilhelmsen quando nota que algo de agape está presente em eros também. Quando nos dedicamos à manufatura de algo, à decoração de um aposento, por exemplo, algo dele retorna a nós. Em outras palavras, obtemos aperfeiçoamento mediante o eros que nos ligou à construção e uso daquele objeto. No caso dos seres humanos, algo mais amplo ocorre: quando nos relacionamos em amor (agape) a outros seres humanos, não só este amor se difunde de nós a eles, mas deles a nós também. É o típico caso do amor de uma homem por uma mulher, por exemplo. No caso das coisas, o aperfeiçoamento é uma certeza; no caso dos homens, o aperfeiçoamento é uma esperança.

Ser, não-ser e amor

No entanto, ao longo da história da filosofia, alguns pensadores concluíram que o amor não é o aspecto eminente do ser, mas sim o poder. Isso é compreensível porque precisamente em função da dimensão trágica da existência, isto é, a tentativa de escapar da aniquilação, do “não-ser”, da inexistência, o ser tem de afirmar-se na existência, arraigar-se no real. Observe que há aí uma dupla negação: o ser é a negação da negação do ser, ou seja, a negação do não-ser. É o “poder do ser”: a autoafirmação do ser sem o não-ser não seria autoafirmação, mas uma mera autoidentidade imóvel. É o não-ser que impele o ser a abandonar sua reclusão e o força a afirmar-se dinamicamente.

Assim pensava o filósofo alemão Paul Tillich, que influenciou grandemente o Protestantismo. Se ser é poder, então esse poder tem de ser exercido contra alguma coisa. Essa alguma coisa é o não-ser. É o poder que melhor representa o ser, eis o aspecto mais eminente da existência.

Mas Wilhelmsen não aceita esse entendimento. A exemplo do que fará em sua obra sobre a estrutura paradoxal da existência, o filósofo americano não deixa de notar que o não-ser simplesmente não pode ser articulado intelectualmente e nem mesmo experienciado imaginativamente. Se cremos que o fizemos é porque transformamos o não-ser em algo que ele não é, em algo extravagante e evanescente, sem duvida, mas ainda assim algo. Esse algo, que evidentemente não é o não-ser, é precisamente o veículo do caos, o arauto da destruição da personalidade humana. É precisamente a contemplação, a consideração, que um individuo ou sociedade faça do seu “ser” que determinará como manejará a ansiedade ante o “não-ser”. Para os antigos gregos, por exemplo, ser é estrutura, forma, autoconsistência, identidade, ordem. O não-ser então é o devir, a mudança, a corrupção, a desordem. Antonio Millan Puelles resumiu brilhantemente a coisificação do não-ser em uma frase genial: El no ser es aqui, no la falta de forma, sino la forma del faltar. A ansiedade grega é conquistada pelo amor grego à ordem. Os gregos nunca questionaram o ser enquanto tal porque nunca lhes havia ocorrido a ideia de que o cosmos fosse uma dádiva de Deus e que, portanto, poderia o ser não ser.

Wilhelmsen acredita refutar, ou ao menos responder, à ideia do não-ser com um raciocínio simples. O universo do ser é simplesmente porque Deus o causou. Por que Deus o causou? Porque Ele quis. Por que Ele quis? A pergunta não admite resposta porque se perde no mistério da liberdade divina. Não há uma “razão” para Deus querer, mas algo que transcende todas as razões: o amor. Há o ser e não o nada porque há o amor. O amor não é uma razão, mas é uma causa. A criação não é uma dádiva de Deus para nós; nós somos a dádiva.

A pergunta não é, portanto, por que há o ser e não antes o nada, mas por que todos esses “nadas” ontológicos estão exercendo o ato de ser? Somos ontologicamente pobres, somos radicalmente insuficientes. A alternativa à ansiedade do “não-ser” de um mundo criado por Jesus Cristo é uma só: gratidão.

O fundamento do poder do ser contra as forças da corrupção e do nada é o amor a si mesmo. Quando amo a mim mesmo eu amo todo o ser do qual eu sou uma parte. Ao amar o todo eu amo a mim mesmo. O homem é, e ao mesmo tempo não é, o todo no qual participa – esse todo é evidentemente o ser –, mas o homem somente participa no ser ao abrir-se à realidade de sua totalidade. Amar a si mesmo é amar o próximo porque o amor a si mesmo é o próprio ser do homem. Um ato cujo término é o próximo ama seu término ao amar a si mesmo e ama a si mesmo ao amar seu término. Em suma, amar a si mesmo é amar o próximo.

Abrir-se de si mesmo e acolher o próximo. Que tolo paradoxo: ganhamos nossa alma ao tirá-la fora. O verdadeiro amor é tolo, afinal, mas eis a herança que compete à raça humana. Ao invés de fugir dela, melhor abraçá-la.

Fonte: Frederick Wilhelmsen, The Metaphysics of Love, Angelico Press, Brooklyn, NY, EUA, 2022.

24 de agosto de 2023

Evolução mística


O teólogo e sacerdote espanhol Juan Arintero influenciou de maneira importante a teologia católica do início do século XX ao reunir em uma série de livros e ensaios os ensinamentos místicos dos santos da Igreja. Uma de suas queixas, que aliás se aplicam igualmente ao ambiente ortodoxo, é de que a vida religiosa e paroquial perde o sentido se não estiver conectada à vida místico-espiritual. A ideia de que a vida mística é exclusiva daqueles que estão vocacionados para ela equivale a dizer que há homens e mulheres que não estão vocacionados a serem humanos. O objetivo da vida humana é a união com Deus, e tal união não é algo que o ser humano tenha o direito de não querer.

Anotei aqui apenas os aspectos que considero convenientes e úteis à minha vida e aos meus estudos, mesmo porque há uma série de aspectos que, não sem surpresa, se assemelham ao que é ensinado na Igreja Ortodoxa, mas o leitor não fará mal em aprofundar-se na obra deste dedicado sacerdote e amante da vida mística. Ademais, por se tratar de descrições e classificações de experiências místicas, a linguagem empregada frequentemente se assemelha à linguagem poética, uma vez que os referentes àquilo que está sendo dito estão em um plano para além do plano que operamos deste lado da realidade.

Na sua obra mais famosa, Arintero explica que a expressão evolução mística significa o progresso da vida da graça no homem. É quando se forma em nós o próprio Cristo. Mas há duas sendas na vida espiritual: (1) a vida ascética da união conformativa, vivida um tanto inconscientemente, na qual a imensa maioria dos fiéis ao mortificarem as paixões e exercitarem metodicamente as virtudes e práticas piedosas procura adquirir moralmente algum tipo de contemplação e, com o tempo, suas almas começam a sentir os toques do Espírito (embora não os sinta como sobrenaturais), e (2) a vida mística da união transformativa, guiada pelo próprio Espírito, que habita substancialmente (e não apenas acidentalmente, como no caso das virtudes e ciências) a alma ao moldar o caráter por fora e por dentro, penetrando até o mais intimo do coração, estabelecendo uma relação não moral, mas ontológica, com o fiel.

A revelação divina nos faz ver como a vida intima de Deus não é a de um Deus uno e solitário, típico do Deus encontrado pelos filósofos, o Deus absoluto, o “Ser Supremo”, o Deus da unidade nas obras da criação, mas um Deus trino. O Deus dos filósofos é aquele que encontramos com base nas simples e naturais relações de causalidade na criação, mas o Deus vivo é aquele que encontramos nas sobrenaturais relações de amizade cordial, pois supõe uma verdadeira semelhança. Por isso dizia Santa Teresa de Ávila que os livros demasiadamente “concertados” (combinados, encadeados, “lógicos”) a repugnavam e até lhe faziam perder a devoção, pois o excesso de abstração faz com que percamos de vista o todo real e vivente que somos.

Arintero lança mão do termo “graça criada” para explicar a ação do Espírito na vida humana, mas cabe lembrar que tal expressão serve apenas para diferenciar a graça do próprio Espírito. Parece-me algo semelhante à distinção entre “essência” e “energia”, ambas incriadas, típica da teologia ortodoxa. Arintero parece admitir que qualificar tal graça de “criada” pode trazer problemas de interpretação, assim que explicaque o melhor seria chamá-la de “graça participada” enquanto o Espírito é a “graça em si”.

Ademais, quanto às virtudes, Arintero as classifica como “naturais” (ou seja, adquiridas) e “infusas” (ou seja, inspiradas, comunicadas gratuitamente, emprestadas). As virtudes cardeais são tanto naturais quanto infusas. As virtudes teologais e os dons do Espírito, apenas infusas. Da união das virtudes com o exercício dos dons do Espírito resultam os frutos do Espírito, entre as quais, as bem-aventuranças.

Arintero detalha as virtudes, os dons, os frutos, a “noite escura” pela qual perpassam os santos a caminho da contemplação divina. Há três graus de contemplação: (1) a breve oração de recolhimento (infusa, muito superior à oração adquirida com esforços e diligência humana), na qual não há meditação, nem raciocínio, mas apenas um simples e tranquilo olhar contemplativo, (2) a longa oração de quietude, na qual, além do entendimento, a vontade se torna cativa ao Espírito, (3) oração de união, na qual a alma é introduzida na “câmara régia” e todas as suas energias se encontram unidas a Ele. Arintero belamente assim a descreve:

Às vezes, o uso dos sentidos externos não é completamente perdido; Estes, principalmente no início, funcionam um pouco, embora com dificuldade, fazendo com que o que está sendo falado ou cantado de perto seja ouvido como à distância, e todos os objetos sejam percebidos como muito confusos. Os poderes internos também não estão perdidos, mas apenas como se estivessem adormecidos para tudo o que está fora; porque, estando a alma assim, completamente absorta em Deus, ainda não tem forças suficientes para se ocupar com as coisas externas ao mesmo tempo. E se a caridade ou a obediência a compelem, enquanto durar esse doce cativeiro, deve ser praticada uma violência tão extrema - que faz com que muitos derramem sangue pela boca - causando-lhes não pouco dano; e mesmo assim, a maioria deles, para prestar atenção ao que está fora, tem que se soltar na atenção interna que os absorveu. Tudo o que eles virem lhes causará tédio e desgosto, e tudo parecerá estranho e como nunca visto antes. Já são habitantes do céu e concidadãos dos santos e, vendo as belezas celestiais, consideram vil tudo neste mundo, e não podem deixar de lamentar ao verem como se prolonga o seu exílio, onde se julgam estrangeiros e peregrinos. E, verdadeiramente, tais almas encontram-se exiladas entre pessoas ferozes, que as obrigam a zelar por si mesmas para não caírem nas suas armadilhas e não se perderem ou correrem o risco de perder os seus ricos tesouros.

Fonte: Juan Arintero, Evolución Mística, Editorial San Esteban, Salamanca, Espanha, 1989.