São Paulo viveu durante o período inicial do desenvolvimento do que mais tarde seria chamado de misticismo Merkabah ("Carruagem") no contexto do mundo judaico do Segundo Templo. [1] Esse elemento místico do Judaísmo do século I seria mais tarde podado da tradição judaica rabínica, sobrevivendo apenas no Cristianismo. A tradição Merkabah (ou Carruagem) se refere especificamente ao trono-carruagem de Yahweh na visão de Ezequiel (cf Ezequiel 1), que foi carregado por quatro criaturas que apresentavam face de boi, leão, águia e ser humano. Dado que o primeiro templo já havia sido destruído nos tempos em que o Livro de Ezequiel foi redatado, Ezequiel vê o trono divino nos céus dos quais Yahweh governa a criação em vez de ver o Deus de Israel entronado no templo com o altar como escabelo como havia visto Isaías. No período do Segundo Templo, no qual São Paulo vivia, quando Israel já não se encontrava exilado, essa visão se tornou o paradigma a partir do qual as futuras visões seriam interpretadas, como uma visão do Deus de Israel em que o ser humano poderia experimentar sem perder sua vida.
O misticismo Merkabah, portanto, incluía meditar sobre a visão de Ezequiel na esperança de ver o que ele havia visto. Embora a maioria dos praticantes dessa forma de misticismo tenha admitido nunca haver recebido essa visão, relatos dos que a receberam estão registrados na literatura apocalíptica do período do Segundo Templo, na qual uma gramática comum começou a desenevolver-se a fim de descrever tais experiências visionárias. [2] Essas narrativas frequentemente descrevem um conjunto de céus, geralmente sete, pelos quais se ascende um a um. Nesse caminho os peregrinos eram auxiliados pela oração contemplativa, que centrava-se na repetição de trechos da Escritura, sobretudo na Shema (uma oração diária mais ou menos baseada em Deuteronômio 6:4, "Ouve, Israel, o Yahweh nosso Deus é o único Yahweh"). Também não eram incomuns os encontros e intercâmbios com seres angélicos enquanto ascendiam através dos diversos níveis celestes. Nas formas mais puras e elevadas dessas visões, a ascensão culminava na contemplação do trono-carruagem do Deus de Israel, no qual sentava-se a Glória de Deus ou a figura do Anjo do Sehor.
Há vários indícios nas cartas de São Paulo de que ele estava familiarizado com tais práticas místicas. O texto mais importante neste sentido é 2 Coríntios 12:1-6, no qual São Paulo descreve uma ascesão ao terceiro céu e depois ao Paraiso. Embora ele afirme que tenha ouvido de alguém esse relato, o consenso entre os Padres e estudiosos é que São Paulo estava descrevendo sua própria experiência, conforme aludida no versículo 6, quando ele afirma que se fosse gloriar-se de tal visão estaria dizendo a verdade. De qualquer forma, a visão e a linguagem que ele utiliza correspondem muitíssimo às antigas fontes do misticismo Merkabah. O "terceiro céu" (v. 2) e o Paraíso (v. 3) se referem a um conjunto de asceses. De maneira similar, ele menciona palavras inefáveis que ao homem não é lícito falar (v. 4).
Ao aceitarmos, portanto, que São Paulo era um praticante dessa tradição orante, uma nova perspectiva se abre para que entendamos sua visão de Cristo em Atos 9. É razoável crer que em sua longa jornada de Jerusalém a Damasco (deve ter levado no mínimo vários dias), São Paulo teria empregado boa parte do seu tempo em orações e meditações, especialmente nas horas dedicadas às orações. Isso significa que embora sua visão de Cristo tenha sido tão repentina a ponto de derrubá-lo, ela ainda assim situou-se dentro de seu campo interpretativo. No contexto da tradição mística Merkabah na qual ele estava imerso, essa visão deve ter sido considerada um dom concedido a pouquíssimas pessoas abençoadas por compartilhar a experiência de Ezequiel e dos demais profetas. No entanto, quando São Paulo recebe essa visão, não é a uma figura angélica que ele contempla, mas a Jesus Cristo sentado no trono-carruagem de Yahweh. A visão de São Paulo na estrada de Damasco lhe impõe a realidade inegável de que Jesus Cristo não é apenas o Messias, mas o próprio Deus. Esta é a base na qual São Paulo se assenta para afirmar em suas epístolas que Jesus Cristo é o Deus de Israel encarnado.
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Desde os tempos apostólicos que a ascensão de Cristo aos céus e Seu entronamento são fenômenos interpretados no contexto das asceses celestes e do trono-carruagem de Deus que já haviam ocorrido na religião e na prática mística do Segundo Templo. É por essa razão que, na tradição iconográfica ortodoxa, Cristo é visto entronado sobre as quatro criaturas da visão de Ezequiel. Estes ícones servem como uma meio visual de meditação paralelo à maneira como a meditação no Segundo Templo se concentrava em textos, neste caso no relato de Ezequiel. O Deus entronado das visões do Antigo Testamento Se fez conhecer através de Sua encarnação antes de ascender novamente à Sua glória anterior. Em vez de repudiar a prática mística, os primeiros cristãos, a exemplo de São Paulo, continuaram a recorrer à oração contemplativa, que para alguns culminava na visão de Cristo em Sua glórica incriada. Essa tradição, rejeitada no Talmude, prosseguiu no Cristianismo Ortodoxo, florescendo no que posteriormente se passou a chamar de hesicasmo. A Oração de Jesus, ao identificar Cristo como Senhor e Deus, substituiu a Shema por essa prática.
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São Paulo via o Cristo como a figura central na identidade de Yahweh no Antigo Testamento. Ele expressa essa ideia de maneira muito clara ao integrar a Pessoa de Jesus Cristo na confissão de fé do antigo Israel. Embora chamá-lo de "credo" seja um tanto anacrônico, o fato é que a Shema era tanto uma afirmação doutrinária quanto uma oração meditativa da fé dos judeus, inclusive de São Paulo. Em sua primeira epístola aos coríntios, São Paulo usa a forma grega deste texto sacro e o adapta. A forma grega do texto substitui o nome do Deus de Israel pela palavra Kyrios, ou seja, Senhor. Diz o seguinte: "Todavia para nós há um só Deus, o Pai, de quem é tudo e para quem nós vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, pelo qual são todas as coisas, e nós por ele". (1 Coríntios 8:6)
São Paulo inseriu Jesus Cristo na Shema ao identificar o Deus único de sua confissão como o Pai e o Senhor único como Jesus Cristo. Ao modificar o grego do Deuteronômio, ele apresentou o Deus único de Israel, Yahweh, como duas hipóstases: o Pai e Jesus Cristo. Isso acaba servindo para identificar Jesus Cristo como a segunda hipóstase do Deus de Israel e, aliado ao que diz em Filipenses, O retrata como a Pessoa divina preexistente que Se fez carne nesses dias derradeiros.
São Paulo faz uso de tais construções linguísticas de maneira relativamente frequente. Em 1 Coríntios 12:4-6 ele correlaciona todas as três Pessoas da Santíssima Trindade mutuamente. A fórmula "o mesmo Espírito, o mesmo Senhor, o mesmo Deus" identifica os três como Pessoas distintas ao mesmo tempo que as une. A fórmula também enfatiza a tarefa comum que compartilham já que as três são consideradas de maneira igual. Bendições como as que lemos em 2 Coríntios 13:14 ("A graça do Senhor Jesus Cristo, e o amor de Deus, e a comunhão do Espírito Santo seja com todos vós") também situa a bênção do Deus de Israel na estrutura das três Pessoas.
Longe de revelar um estágio primitivo da crença cristã a respeito de Cristo, que mais tarde supostamente se desenvolveria em dogmas sobre a Santíssima Trindade e a Cristologia em geral, os textos de São Paulo revelam uma Cristologia e uma fé trinitária plenamente formadas. Esses textos primitivos do Novo Testamento foram capazes de já apresentar tal entendimento porque São Paulo estava interpretando a revelação de Jesus Cristo encarnado e a vinda do Espírito Santo através das lentes do entendimento judaico corrente a respeito do Deus de Israel. Em vez de inventar um meio-campo entre monoteísmo e politeísmo, São Paulo revela a verdadeira natureza das figuras divinas com as quais seus leitores já estavam familiarizados através da tradição na qual haviam recebido as Escrituras.
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A Revelação de São João apresenta repetidas vezes a imagem do trono de Yahweh, o Deus de Israel, reinando no céu em meio a Seu concílio divino. Em Relevação 4 ele descreve uma cena de adoração celestial ante o Senhor Deus de Israel extraindo sua linguagem diretamente e por várias vezes de Ezequiel 1. Deus Pai é por vezes descrito na Revelação como "o Único", uma clara referência à Shema. Ao mesmo tempo, quando Cristo aparece a São João (1:12-16), a descrição de Seu surgimento é uma combinação da descrição do Filho do Homem em Daniel 10 e a figura do trono em Ezequiel 1. Yahweh, o Deus de Israel, é Único, e mesmo assim as descrições proféticas a Seu respeito são distribuiídas na visão de São João entre a Pessoa do Pai e a Pessoa de Jesus Cristo.
[1] O misticismo Merkabah desenvolveu-se mais plenamente em paralelo ao Judaísmo Rabínico, embora como prática espiritual nunca tenha sido acolhido pela corrente principal dessa religião. No século X já se encontrava formalmente morto, embora elementos dessa prática persistam na tradição cabalística.
[2] Isso pde ser verificado sobretudo na literatura enóquica, assim como em outros apocalipses.
Fonte: Stephen De Young, The Religion of the Apostles: Orthodox Christianity in the First Century, Ancient Faith Publishing, Chesterton, IN, EUA, 2021, trechos selecionados.