Livro I – Do nascimento aos quinze anos
Tu amas e não Te apaixonas; Tu és cioso, porém tranquilo; Tu
Te arrependes sem sofrer; entras em ira, mas és calmo; mudas as coisas sem
mudar o Teu plano; recuperas o que encontras sem nunca teres perdido; nunca
estás pobre, mas Te alegras com os lucros; não és avaro e exiges os juros; nós
Te damos em excesso, para que sejas nosso devedor. Mas, quem possui alguma
coisa que não seja Tua? Pagas as dívidas, sempre sem que devas a ninguém, e
perdoas o que Te é devido, sem nada perderes.
Mas, que estamos dizendo, meu Deus, vida da minha vida,
minha divina delícia? Que consegue dizer alguém quando fala de Ti? Mas ai dos
que não querem falar de Ti, pois são mudos que falam.
* * *
Eu mesmo nada lembro daquele tempo [de criança pequena].
Pouco a pouco ia reconhecendo o lugar onde me encontrava, e queria manifestar
meus desejos às pessoas que deviam satisfazê-los, mas não conseguia, porque
eles estavam dentro de minha alma e elas estavam fora, e através de nenhuma
percepção teriam podido penetrar no âmago de minha alma. E assim eu me debatia
e gritava, exprimindo uns poucos sinais proporcionais aos meus desejos, como eu
podia e de maneira inadequada. Se não me obedeciam, ou porque não me entendiam
ou por medo de me fazerem mal, eu me indignava com essas pessoas grandes e
insubmissas que, sendo livres, recusavam ser minhas escravas, chorando, eu me
vingava delas. Assim são as crianças, como depois pude observar.
Quem me poderá lembrar os pecados cometidos na infância, já
que ninguém há que diante de Ti seja imune ao pecado, nem mesmo o recém-nascido
com um dia apenas de vida sobre a terra?
Ou seria justo, mesmo tendo em conta a idade, exigir
chorando o que seria prejudicial, indignar-se com violência contra homens
adultos e de condição livre, e contra os pais e outras pessoas sensatas que não
aceitavam satisfazer a certos desejos? Seria justo fazer todo o possível para
prejudicá-los, porque eles não se prestavam a obedecer a ordens que seriam
nocivas? Portanto, a inocência das crianças reside na fragilidade dos membros,
não na alma. Vi e observei bem uma criança dominada pela inveja: não falava
ainda, mas olhava, pálida e incitada para seu irmão de leite. Sem dúvida não é
inocente a criança que, diante da fonte generosa e abundante de leite, não
admite dividi-la com um irmão, embora muito necessitado desse alimento para
sustentar a vida. No entanto, tais fatos são tolerados com indulgência, não por
serem de pouca ou nenhuma importância, mas porque desaparecerão ao correr dos
anos. Prova disso é que nos irritamos contra tal procedimento quando o
surpreendemos em pessoa de mais idade.
* * *
Rogo-Te, meu Deus, que me mostres por qual desígnio foi
adiado o meu batismo: as rédeas do pecado me foram soltas, por assim dizer,
para o meu bem, ou não? Por esse motivo é que ainda hoje ouvimos dizer deste ou
daquele: “Deixe que ele faça o que quiser: ainda não foi batizado”! Mas, em
relação à saúde do corpo, não dizemos: “Deixe que se fira mais, pois ainda não
foi curado”! Quanto teria sido preferível ser logo curado e esforçar-me para
conservar intacta a saúde da minha alma, sob a proteção que me terias dado! Sem
dúvida teria sido melhor.
Eu não Te amava. Prevaricava longe de Ti. E, enquanto
prevaricava, de toda parte ressoavam aplausos: Muito bem! Coragem! A amizade a
este mundo é de fato adultério, prevaricação e infidelidade a Ti, e as palavras
“Muito bem! Coragem” são proferidas para que o homem se envergonhe se não for
como os outros. Eu era terra que tenha para a terra.
* * *
Nada é tão digno de censura como o vício; no entanto, para
não ser censurado, eu mergulhava ainda mais no vício; quando não me podia
igualar a meus companheiros corruptos, fingia ter praticado o que não
praticara, para não parecer desprezível pela inocência ou ridículo por ser
casto.
Livro II – Os dezesseis anos
E a ambição, o que procura senão honras e glórias, enquanto
somente Tu és digno de ser honrado e glorificado eternamente?
A crueldade dos poderosos deseja ser temida; mas, quem deve
ser temido, senão Tu, meu Deus? Ao Teu domínio nada pode fugir: quem o poderia
fazer, e como, e quando?
Os carinhos dos voluptuosos buscam a reciprocidade do amor,
mas nada é mais acariciante do que Tua caridade, e nada mais salutar para ser
amado, que a Tua verdade, a mais bela e resplandecente de todas as coisas.
A curiosidade quer aparentar interesse pela ciência, mas só
Tu conheces plenamente tudo.
Até a ignorância e insipiência cobrem-se com o manto da
simplicidade e da inocência; mas nada é mais simples, nada é mais inocente do
que Tu. As próprias obras que prejudicam os malvados.
A preguiça parece desejar apenas a tranquilidade, mas que
repouso seguro existe fora de Ti, Senhor?
A luxúria quer ser chamada de saciedade e abundância; mas,
só Tu és a plenitude, Tu és a fonte da suavidade inexaurível e incorruptível.
A prodigalidade cobre-se com a sombra da liberalidade;
porém, és Tu o mais generoso doador de todos os bens.
A avareza quer possuir muito, mas Tu possuis todas as
coisas.
A inveja pleiteia a primazia, mas quem mais excelente do que
Tu?
A cólera procura a vingança; qual a vingança mais justa que
a Tua?
O temor, enquanto zela pela segurança, detesta os
acontecimentos insólitos e inesperados, que ameaçam os objetos amados; mas,
para Ti, que há de insólito ou inesperado? Quem pode separar-Te daquilo que
amas? Onde se encontra segurança, senão a Teu lado?
A tristeza definha na perda dos bens, nos quais a cobiça se
satisfaz, porque desejaria que nada, como a Ti, se lhe pudesse tirar.
É assim que o homem peca, quando se afasta de Ti e busca
fora de Ti a pureza e a limpidez, que ele não pode encontrar senão voltando
para Ti.
Todos aqueles que se afastam de Ti e contra Ti se rebelam, a
Ti estão imitando de forma pervertida. Ainda que imitando-Te desse modo,
mostram que és o criador do universo e, portanto, que não há para onde nos
posamos afastar totalmente de Ti.
Livro III – Jovem estudante
Por que o homem procura no teatro o sofrimento, assistindo a
acontecimentos trágicos e tristes, cuja experiência não desejaria sofrer na
vida real? No entanto, o espectador busca aí o sofrimento dessas situações que,
afinal, para ele constitui o seu prazer.
Que é isso senão deplorável loucura?
Com efeito, quanto mais alguém se comove com tais cenas,
tanto menos imune se encontra das paixões apresentadas. Todavia, enquanto
habitualmente chamamos de desgraça o sofrimento em si, a participação na dor
alheia se chama compaixão. Mas, afinal, que compaixão é essa das cenas
fictícias do teatro? O espectador não é solicitado a prestar auxilio, mas
apenas convidado a afligir-se; e tanto mais aplaude o ator, quanto mais é
levado a sofrer. E se essas tragédias humanas, remotas ou fictícias, são
representadas de modo a não suscitar compaixão, o espectador retira-se
aborrecido e cheio de críticas, se, pelo contrário, fazem sofrer, ele se mantém
atento e chora de satisfação.
* * *
Eu, miserável, gostava de sofrer e buscava motivos de dor;
no sofrimento alheio, imaginário, teatral, os gestos do ator, quanto mais me
faziam chorar, mais me agradavam e mais me seduziam. Portanto, não é de admirar
que eu, ovelha infeliz, erando longe do Teu rebanho e me opondo à Tua guarda,
fosse atingido por essa tão vergonhosa corrupção. Daí o meu amor pelos
sofrimentos, mas não pelos que me atingissem profundamente, pois eu não
desejava suportar as dores que amava contemplar; as ficções que eu via e ouvia
tocavam-me a superfície da alma.
* * *
Há certos atos que se assemelham a pecados e crimes;
contudo, não o são, porque não ofendem nem a Ti, Senhor nosso Deus, nem à
sociedade humana. Tal é o caso de quem procura alcançar algum bem para usá-lo
na vida em tempo oportuno, sem que se possa afirmar se é por desejo desregrado
de possuir; ou o caso de legítima autoridade, quando pune com intuito de
corrigir o culpado, e não se sabe se ela sentiu prazer em fazê-lo sofrer.
Portanto, muitas ações que aos homens pareciam reprováveis, na realidade são
aprovadas por Ti, enquanto outras que os homens elogiam, Tu as condenas. De
fato, sucede muitas vezes que a aparência de um ato não corresponde à intenção
de quem o pratica ou às circunstâncias desconhecidas no momento.
Livro IV – O professor
Perguntei-lhe [a um homem sagaz, ótimo e famoso médico, que
abandonara o estudo dos livros de horóscopo] por qual motivo muitos presságios
se realizavam. Respondeu-me, como pôde, que era pela força do acaso, presente
por toda parte na natureza. Se alguém, explicava ele, consultando por acaso
qualquer poeta que canta e pensa uma coisa totalmente diversa, muitas vezes
depara um verso extraordinariamente adequado à preocupação do momento. Assim,
não é para admirar que, em virtude de alguma inspiração superior, venha a soar,
na alma humana, embora inconsciente do que lhe está acontecendo, alguma palavra
que se harmonize, não por arte, mas por acaso, com a situação e os atos da pessoa
que interroga.
* * *
Na época em que eu começava a ensinar na cidade em que
nasci, travei relações com um amigo que, tendo os mesmos interesses de estudo,
veio a ser muito querido. Era da minha idade e estava, como eu, na flor da
juventude. Crescemos juntos desde meninos, fomos colegas de escola e de
folguedos; mas só então tornou-se verdadeiramente meu amigo, embora não fosse
essa a verdadeira amizade, pois a amizade só é verdadeira quando une pessoas
ligadas a Ti pelo “amor derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que
nos foi dado”. [Rm 5,5]
* * *
Eu era infeliz, como infeliz é o espírito subjugado pelo
amor às coisas mortais, cuja perda o dilacera, e então deixa perceber a
extensão da infelicidade que já o oprimia antes de perdê-las. Parecia-me
estranho que a vida continuasse para os outros mortais, já que estava morta a
pessoa que eu tinha amado como se ela não devesse morrer nunca [Santo Agostinho
refere-se a um grande amigo]. Que loucura não saber amar os homens como eles
são! Tolo de quem não sabe suportar a condição humana. Assim eram meus
sentimentos de então, e por isso me inquietava, gemia, chorava e me agitava,
sem encontrar paz, sem saber o que fazer. Como poderia tão facilmente ter
atingido o mais íntimo do meu ser aquele sofrimento, senão por haver eu
derramado a alma na areia, amando uma criatura mortal, como se imortal fosse?
As conversas e risadas em comum, a troca de afetuosas
gentilezas, a leitura em comum de livros agradáveis, o desempenho de tarefas em
conjunto, ora insignificantes, ora importantes, contradições passageiras, sem
rancor, como acontece a cada um até consigo mesmo, e com tais contradições,
assim mesmo bastante raras, tornar mais agradável a habitual concordância de
pontos de vista, o ensino recíproco de novidades, o sentir intensamente a
nostalgia dos ausentes e o alegre acolhimento no retorno: eis o que amamos nos
amigos, o que amamos de tal modo que sentimos a consciência culpada quando não
pagamos amor com amor, sem nada esperar de outro senão sinais de afeto. Daí o
luto quando morre um amigo, daí as trevas da dor, a doçura que se transforma em
amargura, o coração inundado de pranto e a morte dos vivos pela vida perdida
dos que morrem.
Feliz aquele que Te ama, e que, por Teu amor, ama o amigo e
o inimigo! Somente não perde nenhum ente querido aquele para quem todos são
queridos, aquele que nunca perdemos. E quem é ele senão o nosso Deus, o Deus
que criou o céu e a terra e que lhe confere plenitude, pois foi plenificando-os
que os fez?
Para qualquer parte que se volte a alma humana, se não se
fixa em Ti, se agarra À dor, ainda que se detenha nas belezas que estão fora de
Ti e fora de si mesma. Estas nada teriam de belo, se não proviessem de Ti.
Nascem e morrem: nascendo, começam a existir e a crescer para chegar à
maturidade; porém, uma vez maduras, decaem e morrem.
Que minha alma te louve por tudo isso, ó meu Deus, criador
de todas as coisas, mas a elas não se deixe apegar por amor aos sentidos. Elas
caminham para o seu destino, para deixarem de existir e dilaceram a alma com
paixões pestilentas, porque o desejo da alma é existir e repousar no objeto que
ama. Mas ele não encontra lugar de repouso nas coisas, porque não são estáveis:
fogem.
* * *
Mas sendo escravo das piores paixões, de que me servia ter
lido e compreendido por mim mesmo todos os livros que pude ler sobre as artes
chamadas liberais? Tu sabes, Senhor meu Deus, quantas noções de arte e
dialética, de geometria e aritmética eu aprendi sem grande dificuldade e sem
auxílio humano, já que a agilidade da inteligência e a perspicácia crítica são
dons Teus. No entanto, eu não os oferecia a Ti. E assim, longe de me serem
úteis, causavam-me dano ainda maior.
Que me adiantava então possuir talento tão ágil para
entender as ciências humanas, e deslindar, sem ajuda de ensino humano, tantos
livros intrincados, se depois errava de modo tão monstruoso e sacrílego na
doutrina religiosa? E que prejuízo sofriam Teus humildes filhos por terem menos
inteligência, se de Ti não se afastavam, se no ninho da Tua Igreja lhe cresciam
as penas, nutrindo as asas da caridade com o alimento de uma fé sadia?
Livro V – Da África à Itália
Investigando esses mistérios [das ciências mais nobres] com
a inteligência e a perspicácia de Ti recebidas, fizeram [os filósofos] muitas
descobertas: predisseram com antecipação de muitos anos os eclipses do sol e da
lua, precisando o dia, a hora e o modo de cada evento, sem erro de cálculo. E
tudo sucedeu conforme tinham previsto. De suas descobertas resultaram as leis até
hoje consultadas e usadas para predizer o ano, o mês, o dia, a hora dos
eclipses totais ou parciais do sol e da lua; e o fenômeno se realiza segundo as
previsões. O povo se admira, os ignorantes ficam estupefatos, os sábios
cientistas exultam e se orgulham, mas, afastados e eclipsados de tua luz por
sua vã soberba, preveem com tanta antecipação o eclipse do sol e enxergam o seu
próprio, já presente, porque não procuram indagar, com espírito religioso,
Aquele de quem receberam a inteligência que usam em tais pesquisas. Como se
fossem seus próprios criadores, não se oferecem a Ti; não sacrificam as
próprias ambições, como se abatem os pássaros que voam; não sufocam as próprias
curiosidades que, como peixes do mar, perscrutam os segredos do abismo; nem extirpam
as luxúrias como se caçam os animais do campo, a fim de que Tu, meu Deus, fogo
devorador, possas recriar suas pessoas para uma vida nova, destruindo nelas os
desejos mortais.
Perdem-se em vãs reflexões. Proclamam-se sábios, atribuindo
a si dons que são Teus; e se empenham, cegos e perversos, em atribuir-Te o que
propriamente pertence a eles: transferem suas falsidades a Ti, que és a
Verdade, e assim “trocam a glória de Deus incorruptível por imagens do homem
corruptível, de aves, quadrúpedes e répteis; trocam a verdade de Deus pela
mentira, e adoram e servem a criatura em lugar do Criador”. (Rm 1,23ss.)
Senhor, Deus da verdade, será suficiente conhecer essas
coisas para Te agradar? Infeliz o homem que conhece tudo isso e não Te conhece.
Feliz aquele que Te conhece, ainda que ignore o resto. De fato, aquele que se
reconhece possuidor de uma árvore e Te é grato pelo uso que dela pode fazer,
ainda que não saiba qual a altura ou largura dela, é melhor do que aquele que a
mede, lhe conta os galhos, mas não a possui e não conhece nem ama o criador
dela. Do mesmo modo, a pessoa de fé possui todas as riquezas do mundo e, mesmo
que nada tenha, é como quem tudo possui, pois está unida a Ti, Senhor, de todas
as coisas, pouco importando se nada sabe sobre o percurso da Ursa Maior!
Eu já havia aprendido de Ti que uma coisa não deve ser
aceita como verdade apenas pelo fato de ser afirmada em belo estilo, e não deve
ser tida por falsa porque as palavras saem dos lábios de modo confuso; por
outro lado, não deve ser julgada verdadeira porque expressa sem cuidado, ou
falsa porque apresentada com elegância. A sabedoria e a ignorância são mais ou
menos como os alimentos úteis ou nocivos: podem ser apresentadas através de
palavras polidas ou rudes, como os bons e maus alimentos podem ser servidos em
pratos finos ou grosseiros.
Livro VI – Agostinho aos trinta anos
Mas, assim como acontece muitas vezes, depois de
experimentar um médico mau, receia-se confiar num bom, o mesmo acontecia à
saúde de minha alma, que somente poderia curar-se pela fé, mas, para não acabar
novamente acreditando em coisas falsas, recusava a cura, resistindo a Ti que
fabricaste o remédio da fé e, dotando-o de tão grande poder, o derramaste sobre
todas as enfermidades da terra.
Eu aspirava às honras, à riqueza, ao matrimônio, e Tu rias
de mim. Nesses desejos amargos eu sofria dissabores, e Tu me querias tanto mais
bem quanto menos consentias que eu experimentasse consolação naquilo que não
eras Tu.
Pereça tudo isso, abandonemos todas essas vãs frivolidades.
Dediquemo-nos à busca da verdade. A vida é infelicidade, a hora da morte é
incerta. Esta surge de repente: e eu, em que condições deixarei este mundo?
Onde poderei aprender o que nesta vida negligenciei saber? Não terei antes que
pagar com duras penas essa negligência?
E me indagava: se fôssemos imortais e vivêssemos num
perpétuo prazer do corpo, sem temor de perdê-lo, por que não seríamos felizes?
Que coisa mais seria preciso procurar? Eu não percebia que nisso consistia a
minha miséria. Imerso no vício e cego como estava, não conseguia pensar no
esplendor da luz e da beleza, desejáveis por si mesmas, invisíveis aos olhos do
corpo e só percebidas no íntimo da alma.
Livro VII – A busca da verdade
Observando as outras coisas que estão abaixo de Ti,
compreendi que absolutamente não existem, nem totalmente deixam de existir. Por
um lado existem, pois provém de Ti; por outro não existem, pois não são aquilo
que és. Só existe realmente aquilo que permanece imutável. “Bom para mim é
apegar-me a Deus” (Sl 72,28), porque, se eu não permanecer nele, tampouco
poderei permanecer em mim mesmo. “Ele, imutável em si mesmo, renova todas as
coisas (Sb 7,27). Tu és o meu Senhor, porque não tens necessidade de meus bens”
(Sl 16,2).
* * *
Depois de ter lido os livros dos platônicos, que me
estimularam a procurar a verdade incorpórea, aprendi a descobrir Teus atributos
invisíveis através das coisas criadas, e compreendi, à custa de derrotas, qual
a verdade que eu, imerso nas trevas, não tinha conseguido contemplar.
Interiormente cheio do meu castigo, comecei a desejar que me
considerassem como sábio. Eu não chorava: ao contrário, estava orgulhoso da
minha ciência. Onde estava aquela caridade que edifica quando fundada sobre a
humildade, isto é, sobre Jesus Cristo? Poderia acaso tê-la aprendido naqueles
livros? No entanto, creio que tenhas desejado que eles [os livros platônicos]
viessem cair em minhas mãos, antes de aplicar-me à meditação de Tuas
Escrituras, para que se imprimissem na minha memória os sentimentos que nelas
experimentei. Desse modo, quando Teus Livros me tivessem tornado humilde e as
feridas me fossem curadas por Tuas mãos benfazejas, eu conseguiria finalmente
notar e distinguir a diferença entre confiar em mim mesmo e confessar meus
próprios limites entre aqueles que veem a meta a atingir, mas não enxergam o
caminho que dá a ela acesso nem o caminho que leva à pátria bem-aventurada, que
precisa ser não apenas contemplada, mas também habitada.
Começando a leitura, descobri que tudo o que de verdade
tinha encontrado nos livros platônicos, aqui [na Bíblia] é dito com a garantia
da Tua graça, para que não se ensoberbeça quem consegue ver, como se não
tivesse recebido, não só aquilo que vê, mas até a própria faculdade de ver. De
fato, que possui o homem que não tenha recebido? Além disso, ele não só é
induzido a ver-Te, a Ti que és sempre o mesmo, mas também a curar-se para poder
possuir-Te.
Nada disso é mencionado nos livros platônicos. Suas páginas
não contêm a imagem de um amor tão grande, as lágrimas de confissão, o Teu
sacrifício, “a alma abatida, o coração contrito e humilhado”, a salvação do
povo, a cidade desposada, o penhor do Espírito Santo, o cálice da nossa
redenção.
Livro VIII – A conversão
Ainda hesitava em converter-me. Dirigi-me portanto a
Simpliciano, pai do bispo Ambrósio [Santo Ambrósio de Milão], segundo a graça.
Na verdade, este o amava como a um pai. Narrei-lhe os labirintos do meu erro.
Quando lhe contei ter lido alguns livros de filósofos platônicos traduzidos
para o latim por Vitorino – outrora retórico em Roma e de quem ouvira dizer que
tinha morrido cristão – ele me felicitou por não ter caído nos escritos de
outros filósofos, cheios de erros e de mentiras “segundo os elementos do mundo”
[Cl 2,8]. As obras platônicas insinuavam, de todos os modos, a ideia de Deus e
de Seu Verbo.
Da vontade pervertida nasce a paixão; servindo à paixão,
adquire-se o hábito e, não resistindo ao hábito, cria-se a necessidade. Com
essa espécie de anéis entrelaçados, mantinha-me ligado à dura escravidão. Não
podia mais invocar a desculpa habitual para me persuadir de que, se ainda não
desprezava o mundo e não me decidia a servir-Te, era porque para mim a verdade
ainda não estava clara. Pois agora ela era bem conhecida. Sentindo-me ainda
ligado à terra, recusava combater em Tuas fileiras, e temia desligar-me dos
laços, enquanto o que devia recear era permanecer preso a eles.
Os pensamentos e reflexões sobre Ti eram como os esforços
daqueles que desejam despertar, mas, vencidos pela profundeza do sono, nele
tornam a mergulhar. Eu não sabia como responder quando me dizias: “Ó tu que
dormes, desperta e levanta-te de entre os mortos, que Cristo te iluminará” [Ef
5,14]. Tu me mostravas que estavas dizendo a verdade, e eu, que já estava
convencido, nada tinha a responder senão palavras preguiçosas e sonolentas: “Um
momento”, “daqui a pouco”, “espera um instante”. Mas esses “momentos” não
tinham fim. Aquele “espera um instante” se prolongava. Quem me libertará deste
corpo de morte, senão a Tua graça, mediante o Senhor nosso, Jesus Cristo?
Por que razão a vontade é ineficaz? A alma comanda o corpo,
e este lhe obedece imediatamente; comanda-se a si mesma, e esta resiste. A alma
ordena à mão que se mova, e a obediência é tão fácil, que mal se distingue a
ordem da execução. No entanto, a alma é espírito, e a mão é matéria. A alma
ordena que a alma queira; e, ainda que se trate da mesma alma, ela não obedece.
Qual a origem dessa monstruosidade, e qual a sua razão? A alma ordena o querer;
não ordenaria se não o quisesse; no entanto, não executa aquilo que ela mesma
ordena. Mas, como ela não quer totalmente, também não ordena totalmente. Ela
ordena na proporção do querer. De fato, não é a vontade plena que ordena, por
isso ela não é o que ela mesma ordena. Se a vontade fosse plena, não ordenaria que
fosse vontade, pois ela já o seria. Portanto, não é um absurdo querer em parte,
e em parte não querer. É antes uma doença da alma, porque, embora sustentada
pela verdade, a alma não consegue erguer-se totalmente, por estar abatida pelo
peso do hábito. Trata-se portanto de duas vontades, mas nenhuma é completa: o
que existe numa, falta na outra.
Sentia-me ainda preso ao passado, e por isso gritava
desesperadamente: “Por quanto tempo, por quanto tempo direi ainda: amanhã,
amanhã? Por que não agora? Por que não pôr fim agora à minha indignidade?”
Livro IX – O batismo e a volta para a África
[Santa Mônica, mãe do Abençoado Agostinho] suportou
infidelidades conjugais, sem jamais hostilizar, demonstrar ressentimento contra
o marido por isso. Esperava que Tua misericórdia descesse sobre ele, para que
tivesse fé em Ti e se tornasse casto. Embora de coração afetuoso, ele se
encolerizava facilmente. Minha mãe havia aprendido a não o contrariar com atos
ou palavras, quando o via irado. Depois que ele se refazia e acalmava, ela
procurava o momento oportuno para mostrar-lhe como se tinha irritado sem refletir.
Muitas senhoras, embora casadas com homens mais mansos, traziam sinais de
pancadas que lhes desfiguravam o rosto e, nas conversas entre amigas,
deploravam o comportamento dos maridos. Minha mãe, pelo contrário, ainda que
com ar de brincadeira, lhes reprovava as conversas, lembrando-lhes que o
contrato lido no casamento devia ser considerado como o documento da própria
submissão, não tendo elas condição de assumirem atitudes de soberba contra seus
senhores. Conhecendo o tipo de marido colérico que minha mãe suportava, muito
se admiravam por nunca se ouvir dizer ou se revelar, por algum indício, que
Patrício tivesse batido na mulher, nem que algum dia tivessem brigado em casa.
As amigas perguntavam-lhe confidencialmente a razão disso, e ela explicava-lhes
o comportamento que acabo de descrever. Algumas então adotavam o mesmo sistema
e congratulavam-se por havê-lo experimentado. Aquelas que não o observavam
continuavam a sofrer violências.
Ouvi também dizer que um dia, estando eu ausente de casa,
quando já vivíamos em Óstia, ela [Santa Mônica], conversando com alguns amigos
meus, falava com maternal confiança sobre o seu menosprezo por esta vida e
sobre o grande bem que é a morte. Maravilhados diante da coragem dessa mulher –
dádiva Tua – perguntaram-lhe se não tinha medo de deixar o corpo tão longe de
sua cidade natal. E ela respondeu: “Para Deus nada é longe, nem devo temer que
no fim dos séculos ele não reconheça o lugar onde me ressuscitará”.
Quando ela exalou o último suspiro, o jovem Adeodato prorrompeu
em soluços, mas, instado por nós, calou-se. Assim também eu, naquele resto de
infância que tendia a manifestar-se em lágrimas, também eu calava, vencido pela
voz do adulto, pela voz do espírito. De fato, não nos parecia justo celebrar o
funeral com lamentos e choros, pois essas demonstrações servem usualmente para
deplorar a morte como infelicidade ou como aniquilamento total, ao passo que
essa morte não era uma desgraça, nem era para sempre. Estávamos certos disso
pelo testemunho de seus costumes, pela sinceridade de sua fé, e por outros
motivos bem fundados.
Eu não chegava a romper em pranto, nem mudava a expressão,
mas eu sabia o que estava sentindo no coração. Desagradava-me muito que essas
fraquezas humanas, inevitáveis na ordem da natureza e em nossa condição humana,
tivessem tão grande poder sobre mim; e uma nova dor vinha exacerbar a minha
dor, e afligia-me assim com dupla tristeza.
Depois, pouco a pouco, voltava a recordar os primeiros
pensamentos sobre Tua serva, seu comportamento piedoso para contigo, tão
solícito e discreto para conosco, e do qual eu fora subitamente privado; e queria
ainda chorar diante de Ti, a respeito dela e por ela, a respeito de mim e por
mim. Afinal, não mais reprimi as lágrimas, que correram à vontade; e sobre elas
pousei o coração que nelas encontrou repouso. Só Tu compreendias, e não
qualquer pessoa, que teria interpretado com desdém o meu pranto.
Confesso-Te agora tudo isso, Senhor. Leia-o quem quiser,
interprete-o como lhe aprouver. Se alguém julgar que pequei, ao chorar minha
mãe por alguns instantes – arrancada momentaneamente aos meus olhos aquela que
por tantos anos havia chorado a fim de que eu vivesse em Tua presença – não se
ria de mim; mas, se for dotado de suficiente caridade, chore também ele por
meus pecados diante de Ti, ó Pai de todos os irmãos de Jesus Cristo.
Curado já o meu coração dessa ferida, pela qual podia ser
repreendido por um apego demasiadamente carnal, derramo agora diante de Ti, meu
Deus, por Tua serva, um tipo bem diferente de lágrimas, aquelas que brotam de
um coração comovido pelos perigos que corre todo homem que deve morrer em Adão.
É verdade que ela, regenerada em Cristo, ainda antes de ser libertada da carne,
vivia de tal modo, que o Teu nome era glorificado na sua fé e nos seus bons
costumes. Contudo, não ouso afirmar que desde o tempo em que a regeneraste pelo
batismo não tenha escapado de sua boca alguma palavra contra a Tua Lei. Foi
afirmado pela própria Verdade, que é Teu Filho: “Aquele que chamar a seu irmão:
‘louco’, terá de responder ao julgamento da geena de fogo”. E ai do homem,
mesmo de vida irrepreensível, se Tu o julgares sem misericórdia! Mas, como não
perscrutas nossas faltas com rigor, esperamos confiantemente um lugar junto a
Ti. Quem quiser enumerar os próprios méritos diante de Ti, que poderá enumerar
senão os Teus dons? Oh! Se os homens se reconhecessem como homens, e “aquele
que se gloria, se glorie no Senhor”!
Por isso, “Deus do meu coração”, minha glória e minha vida, esquecendo
por um momento as boas obras de minha mãe, pelas quais Te dou graças
alegremente, peço-Te perdão por seus pecados. Ouve-me, pelos méritos daquele Médico
das nossas férias, que foi suspenso no madeiro e que, sentado à Tua direita,
intercede por nós. Sei que ela agiu sempre com misericórdia e que perdoou de
coração as faltas contra ela cometidas. Perdoa-lhe também as suas faltas, se
algumas cometeu em tantos anos de vida depois do batismo. Perdoa, Senhor,
perdoa, eu Te suplico, e “não chames a juízo a Tua serva” [Sl 142,2]. Que a
misericórdia triunfe sobre a justiça. Tuas palavras são verdadeiras, e
prometeste misericórdia aos misericordiosos. Se alguém foi misericordioso, o
foi por dom recebido de Ti, Tu que serás misericordioso com quem tiveres
misericórdia e terás piedade de quem tiveres piedade.
Livro X – Santo Agostinho reflete não mais sobre o passado,
mas sobre o presente
A Ti, Senhor, que conheces os abismos da consciência humana,
poderia eu esconder algo, ainda que não quisesse confessar-Te? Eu poderia
esconder-Te de mim, mas nunca esconder-me de Ti!
* * *
Grande é o poder da memória, Senhor; tem algo de terrível,
uma infinita e profunda complexidade. Mas isto é o espírito, isto sou eu
próprio. Que sou eu, então, ó meu Deus? Qual a minha natureza? Uma vida variada
e multiforme, imensamente ampla.
Irei além dessa faculdade que se chama memória, para chegar
a Ti, ó doce luz. Que me dizes? Subindo, através de minha alma a Ti, que estás
acima de mim, transporei também essa minha faculdade que se chama memória, no
desejo de alcançar-Te onde podes ser atingido e prender-me a Ti onde é possível
fazê-lo. Portanto, ultrapassarei a memória para atingir Aquele que me fez
diferente dos quadrúpedes, mas sábio que as aves do céu. Ultrapassarei a
memória, para encontrar-Te. Mas onde, ó bondade verdadeira e suavidade segura?
Encontrar-Te onde? Se Te encontro fora de minha memória, é porque me esqueci de
Ti. E como poderei encontrar-Te, se não me lembro de Ti?
* * *
Há uma alegria que não é concedida aos ímpios, mas àqueles
que Te servem por puro amor: essa alegria és Tu mesmo. É esta felicidade, e não
outra. Quem acredita que exista outra felicidade, persegue uma alegria que não
é a verdadeira.
Portanto, não podemos dizer com segurança que todos queiram
ser felizes, pois aqueles que não querem alegrar-se em Ti – única felicidade –
certamente não querem ser felizes. Ou talvez o queiram, mas “não fazem o que
desejariam, porque a carne tem aspirações contrárias ao espírito e o espírito
contrárias à carne”. [Gl 5,17]
Por que a verdade gera o ódio, e o homem que anuncia a
verdade em Teu nome se torna inimigo daqueles que amam a felicidade, a qual
consiste exatamente na alegria oriunda da verdade? De fato, o amor da verdade é
tal, que os que amam algo diferente querem que aquilo que amam seja a verdade.
Como não admitem ser enganados, detestam ser convencidos do seu erro. Assim,
odeiam a verdade porque amam aquilo que supõem ser a verdade. Amam-na quando
ela brilha, e a odeiam quando ela os repreende. Não querendo ser enganados e
desejando enganar, eles a amam quando se manifesta, e a odeiam quando os
denuncia. Mas a verdade sabe retribuir: como eles não querem ser por ela
revelados, ela os denunciará contra a vontade deles, e não mais se revelará a
eles. Assim é o espírito humano: cego e preguiçoso, torpe e indecente; deseja
permanecer escondido, mas não quer que nada lhe seja ocultado. E sucede-lhe o
contrário: ele não se esconde da verdade, mas é esta que se lhe oculta. E
apesar de tanta miséria, prefere encontrar alegria no que é verdadeiro, a encontrá-la
no que é falso. Portanto, ele será feliz quando, sem obstáculos nem
perturbações, puder gozar daquela única verdade, fonte de tudo o que é
verdadeiro.
* * *
Fome e sede são sofrimentos, queimam e matam como a febre se
não recebem o remédio do alimento. E como esse remédio está ao nosso alcance,
graças ao conforto de Teus dons, através dos quais terra, água e céu são postos
a serviço de nossa fraqueza, essa desgraça recebe o nome de prazer.
Ensinaste-me a considerar os alimentos como remédio. No
entanto, quando passo da ânsia da fome ao repouso da saciedade, é nesta mesma
passagem que me aguarda a cilada da concupiscência. De fato, passagem é um
prazer, e não há outro por onde se possa chegar até onde nos obriga a
necessidade. É pela saúde que como e bebo, mas acrescenta-se a isso o perigo do
prazer, que na maioria das vezes procura tomar a dianteira, e, assim, o que
digo querer fazer pela saúde, acabo fazendo pelo prazer. Ora, a medida não é
igual para ambos os casos, pois, o que é suficiente para saúde, é pouco para o
prazer. Muitas vezes, é pouco claro se é indispensável o cuidado corporal que
pede o reforço do alimento, ou a enganadora satisfação da gula que deseja ser
servida. Nossa pobre alma alegra-se com essa incerteza, encontrando aí a defesa
de uma desculpa, e regozija-se por não poder determinar o que é suficiente para
o cuidado com a saúde, e, sob o pretexto de conservá-la, encobre a busca do
prazer. Procuro todos os dias resistir a essas tentações e invoco Tua destra
para que me socorra. A Ti confio as minhas lutas, pois meu juízo neste ponto
não é seguro ainda.
* * *
Além da concupiscência da carne, uma ânsia diferente se
insinua pelos sentidos do corpo, não de prazer na carne, mas de tudo conhecer
através da carne. Esse desejo se disfarça sob o nome de saber e ciência. Como
nasce do desejo de conhecer, é chamado na Sagrada Escritura de “concupiscência
dos olhos” [Sl 39,12]; por serem estes os sentidos mais aptos para o
conhecimento. De fato, é aos olhos que compete ver, mas muitas vezes usamos
este termo também para os outros sentidos, quando os empregamos para obter
qualquer conhecimento. Assim, não dizemos: “Ouve como brilha”, ou “cheira como
resplandece”, ou, ainda, “saboreia como reluz”, ou “apalpa como cintila”. Para
tudo se usa dizer: “Veja”. Não só dizemos: “Veja como brilha”, o que somente os
olhos podem perceber; mas também: “Veja como ressoa, como cheira, como tem
sabor, como é duro”.
A curiosidade procura ter a satisfação de tudo experimentar
e conhecer. Por causa dessa mórbida tendência da curiosidade, exibem-se tantas
cenas estranhas nos espetáculos. É ela que nos impele a descobrir os segredos
da natureza que estão longe de nós, que de nada nos servem, mas que os homens
procuram só pelo gosto de conhecer.
E minha vida está repleta dessas misérias. Minha única
esperança é a Tua imensa misericórdia. De fato, sendo o nosso coração o
recipiente de todas essas misérias, e trazendo dentro de si grande quantidade
dessas vaidades, nossas orações são muitas
vezes interrompidas e perturbadas.
Fonte: Santo Agostinho, Confissões, Paulus, São Paulo, 1997, trechos selecionados.