Philip Sherrard
Dos diversos fatores que podem contribuir para as profundas divergências
subjacentes à formulação da doutrina metafísica, um dos mais cruciais – e um
dos menos reconhecidos – é o papel atribuído à lógica. Isso não significa que
algumas doutrinas sejam estruturalmente lógicas e outras ilógicas – por
exemplo, que a doutrina vedântica seja lógica e a doutrina cristã seja ilógica.
A coisa não é tão simples assim. A doutrina cristã, dadas suas premissas, é tão
lógica quanto a doutrina vedântica, ou mesmo tão lógica quanto qualquer sistema
profano de estrutura da realidade, como, por exemplo, o da ciência moderna,
cujos devotos garantem que esse não é o caso, seja em relação à doutrina cristã
ou a qualquer doutrina de caráter religioso. O que está em pauta aqui não é
saber se uma determinada doutrina metafísica, dadas suas premissas, é ou não é
lógica, mas saber qual o papel atribuído à lógica na determinação das premissas
– os dados primordiais – dessa doutrina.
Eu poderia explicar isso contrastando a abordagem cristã com
a abordagem, digamos, de Proclo em seus Elementos
de Teologia. Em vez disso, prefiro contrastar a abordagem cristã com a do
grande metafísico do século XX, René Guénon (1886-1951). Se podemos dizer que
nos últimos cem anos houve alguma restauração, no mundo ocidental, do que
significa metafísica e tradição metafísica, o crédito deve ser dado, acima de
todos, a Guénon. Em meio à confusão em que o pensamento ocidental moderno
mergulhou, chegando ao ponto de ameaçar de extinção os poucos traços
remanescentes do conhecimento espiritual genuíno das mentes e corações de seus
contemporâneos, Guénon, praticamente sozinho, tomou para si a tarefa de
reafirmar os valores e princípios que, segundo seu entendimento, constituem a
única base sólida sobre a qual a vida humana pode existir com dignidade e
propósito e sobre a qual uma civilização digna desse nome pode ser formada. Ele
jamais conseguiria ter contido a tendência da ignorância e da desintegração se
intensificarem, muito menos revertê-la, pois isso seria contraditório ao seu
entendimento acerca da fase cíclica na qual o mundo se encontra. O máximo que
ele esperava era despertar a consciência desses valores e princípios em algumas
pessoas; na verdade, das pessoas que hoje detêm essa consciência, poucas não a
devem à obra de Guénon.
Realizações dessa magnitude em geral vêm acompanhadas de
riscos e armadilhas; afirmar que pessoas assim são imunes a erros e
preconceitos humanos não serve a nenhum propósito: isso seria mera adulação
inócua. Certamente Guénon não estava livre deles. Em parte isso se deve a seu
temperamento, treinamento e experiência; em parte à ignorância a respeito da
natureza do assunto sobre a qual versava, como no caso em que relutou a aceitar,
sem razões suficientes, o fato de o Budismo ser uma tradição metafísica de
pleno direito, até que se lhe mostrassem evidências que o forçaram a concluir o
contrário. [1] Mais recentemente, algumas opiniões emitidas por Guénon em seu
livro Le Roi du Monde foram
criticadas por conta de alguns fatos obviamente distorcidos, distorção essa que
apelava mais ao senso do oculto do que ao senso do sagrado. [2] Em ocasiões
anteriores, algumas de suas conclusões acerca da tradição cristã foram
questionadas [3]; e pode haver outros artigos que questionem ou critiquem suas
ideias dos quais ainda não tomei ciência.
Contudo, meu objetivo aqui não é corrigir ou criticar os
erros de julgamento ou de interpretação que Guénon possa ter cometido por conta
de alguma avaliação apressada de sua parte ou porque dados insuficientes lhe
estavam disponíveis ou qualquer coisa do gênero. Meu objetivo é apenas e
tão-somente versar e esclarecer o assunto que citei acima: o papel da lógica em
determinar as premissas subjacentes, ou dados primordiais, da doutrina
metafísica.
A ideia fundamental da doutrina metafísica conforme exposta
por Guénon é a ideia do Infinito, isto é, da Possibilidade universal. Esta
ideia é provavelmente sua ideia central, isto é, a ideia que constitui para
Guénon o que podemos chamar de datum
primordial da genuína exegese metafísica e que distingue essa exegese das
estruturas de pensamento que, por mais que posem de metafísica, não passam de
meras construções filosóficas. Conforme o próprio Guénon escreveu: “É importante
notar que os filósofos, ao construírem seus sistemas, sempre impõem, consciente
ou inconscientemente, alguma limitação à Possibilidade universal, algo que é
contraditório, embora inevitável, às construções desse tipo. Seria interessante
escrever a história das diversas teorias filosóficas modernas sob o ponto de
vista das limitações impostas à Possibilidade universal”. [4] Essa observação
implica obviamente que, sob o ponto de vista metafísico, a Possibilidade universal
– o Infinito – é por definição livre de toda e qualquer limitação.
Ocorre que, se examinarmos com atenção a ideia de
Possibilidade universal conforme apresentada por Guénon, começaremos a
questionar se ele mesmo não lhe impõe “consciente ou inconscientemente” certas
limitações. Em um exame mais detido, fica claro que essa limitação – se é que se
trata de uma limitação – está implícita no próprio conceito da relação entre
lógica e o Absoluto, o qual Guénon eleva a status de axioma. Por fim, percebe-se
que há aspectos da metafísica de Guénon que não são conclusões extraídas de
dados recebidos por via revelatória ou iniciática, mas consequências diretas da
aplicação na ordem metafísica de princípios exegéticos radicados nesse axioma a
que me referi.
Para que fique claro o que quero dizer com tudo isso, devo explicar
brevemente a ideia de Possibilidade universal conforme Guénon a entendia. Para
isso, será suficiente consultar uma de suas principais obras, Les États multiples de l´Être. [5]
Conforme notamos acima, a ideia de Possibilidade universal é intercambiável com
a ideia de Infinito. O conceito de infinito, para Guénon, tem sua origem na
proposição de que “toda determinação é necessariamente uma limitação”. [6] Dado
que podemos demonstrar que toda limitação – ou seja, toda tentativa de tornar
finito – implica em uma negação do Infinito (omnis definitio est negatio é a famosa fórmula spinoziana deste
argumento), portanto qualquer determinação é também uma negação do Infinito.
Consequentemente, a ideia de Infinito só pode ser expressa em termos negativos.
O Infinito é aquilo que está para além de toda e qualquer determinação. Ele é
indeterminação absoluta, totalmente impessoal e inqualificado. Um corolário desse
raciocínio é que o Infinito coincide com a Possibilidade universal, pois se
houvesse uma única possibilidade ausente do Infinito, sua infinitude estaria
limitada e, portanto, negada por essa possibilidade da qual foi privada. Em
outras palavras, o Infinito é também Possibilidade universal – o Onipossível.
Portanto, é esta ideia de Infinito, a qual também pode ser designada como
Possibilidade universal, que constitui para Guénon o princípio metafísico
supremo, o Absoluto que, por sua vez, constitui o datum primordial de sua exegese doutrinal.
A ideia de possibilidade, porém, implica em seu oposto, isto
é, na ideia de impossibilidade. Guénon explica que impossibilidade é o puro
nada, a negatividade absoluta. [7] É aqui que vem a pergunta: como podemos
reconhecer ou determinar uma impossibilidade ou, formulando a pergunta inversamente,
como podemos reconhecer e determinar o que é possível? A resposta de Guénon a
este questionamento indica não apenas a limitação que ele impõe à Possibilidade
universal, mas também introduz o que será o principal interesse deste capítulo,
qual seja, explorar a maneira como a apresentação de Guénon da doutrina
metafísica é afetada por sua postura peculiar em relação à lógica e por sua
concepção peculiar a respeito da relação entre a ordem lógica e a ordem
metafísica – este é um ponto muito importante. Para Guénon, uma impossibilidade
é uma absurdidade no sentido lógico da palavra. O absurdo, no sentido lógico da
palavra, é tudo aquilo que implica em uma contradição lógica. Inversamente, a
ausência de contradição interna é o que logicamente
e ontologicamente (itálicos meus) definem uma possibilidade. [8]
Em que sentido essa conclusão implica na imposição de uma
limitação à Possibilidade universal é algo que veremos adiante. O que importa
agora é esclarecer a postura em relação à lógica e no que tange a relação entre
as ordens lógica e metafísica que ela pressupõe, além de mostrar quais as
consequências que essa postura implica na maneira como Guénon é levado a
imaginar a doutrina metafísica.
Já vimos que Guénon tipifica o Infinito em termos consistentes
– na verdade, dependentes – das leis da lógica. Segundo as leis da lógica, toda
determinação deve excluir todos os aspectos da realidade que não estejam
subordinados aos limites da determinação em questão. Uma parede não pode ser
uma árvore ou uma vaca ou outra coisa que não esteja subordinada à determinação
denotada pela palavra “parede”. Isso significa que, segundo as leis da lógica,
toda determinação implica em um grau maior ou menor de limitação quando
comparado com a soma total da realidade abarcada pelo Infinito. Em outras
palavras, a análise lógica suprema do Infinito deve estar para além de toda
determinação, já que qualquer determinação, como vimos, implica em alguma
limitação e, portanto, na exclusão de algum ou alguns aspectos da soma total da
realidade do Infinito, o que seria uma contradição em termos. Assim, em termos
consistentes às leis da lógica, o mais elevado princípio da ordem metafísica –
a que abrange toda a realidade possível e é infinita em sua natureza – deve
estar para além de toda determinação. Ele tem de ser totalmente indeterminado,
impessoal e inqualificado.
Por meio de uma demonstração desse tipo Guénon chega à ideia
do Infinito ou Onipossível, o qual, enquanto princípio supremo da ordem
metafísica, está para além até mesmo do próprio Ser. É também por meio de uma
demonstração desse tipo que Guénon estabelece a lei de que qualquer princípio
metafísico que possa ser logicamente distinto do Infinito indeterminado, e por
isso mesmo represente alguma determinação da soma total da realidade abarcada
pelo Infinito, deve por conseguinte possuir menos realidade do que o Infinito,
dado que, por definição, ele exclui algum aspecto ou aspectos da soma total da
realidade contida no Infinito. Quanto maior o grau de determinação, tanto mais aspectos
excluirá da soma total da realidade contida no Infinito e, portanto, tanto
menor será o grau de realidade.
Por exemplo, o Ser, que representa a determinação primordial
do Infinito e portanto é subsequente ao Infinito, possuirá ipso facto um grau menor de realidade absoluta em relação ao
Infinito; o mesmo se aplica, em graus cada vez maiores, a todas as
determinações que partem ou emanam do Ser e de tudo aquilo que está abaixo do
Ser. Assim, a ordem metafísica se estabelece como uma hierarquia de gradações –
os estados múltiplos do ser – cada qual real em seu próprio nível mas cada qual
possuindo um grau de realidade que depende de sua proximidade relativa ao
Infinito pré-ontológico. Somente o Infinito é absolutamente real; o que quer
que esteja subsequente ao Infinito, e logicamente distinto do Infinito pelo
grau de determinação que lhe é característico, será apenas relativamente real.
Contudo, Guénon vai ainda mais longe. Para ele, qualquer
determinação em relação ao Infinito é “rigorosamente nada” e não tem qualquer
relação com o Infinito. [9] Esta é apenas outra forma de dizer que qualquer
realidade que seja atribuída a uma determinação não pertence a ela por conta de
sua determinação, mas apenas na medida em que está implícita na ordem das
possibilidades infinitas. A realidade de uma determinação, mesmo em sentido
relativo, não é da determinação em si – pois ela é “rigorosamente nada” – mas do
conjunto das possibilidades de
determinação na medida em que elas não
manifestam a si mesmas mas apenas embutem manifestação em sua natureza (itálicos
meus). [10] Em última instância, somente aquilo que é possibilidade é real, e
mesmo assim somente se permanecer uma possibilidade, sem se actualizar.
Manifestação e multiplicidade são essencialmente irreais e ilusórias. [12]
Tudo isso se depreende lógica e necessariamente de duas
proposições básicas. A primeira é de que toda determinação é necessariamente
uma limitação e a segunda é de que não há nada na ordem metafísica de uma
natureza que possa ser expressa somente em termos que violem o princípio lógico
da não-contradição. Em outras palavras, não há nada na ordem metafísica que não
possa ser expresso em termos que se moldem às leis da lógica pois, para Guénon,
o que quer que não possa ser expresso dessa forma é uma impossibilidade e,
portanto, não tem vez na ordem metafísica nem em parte alguma. Isso não
significa dizer, nem implica em dizer, que a ordem metafísica não seja
supralógica, ou que a ordem lógica coincida com a ordem metafísica. Mas
implica, sim, em dizer que a ordem lógica espelha em si a estrutura da ordem
metafísica, de maneira que as leis da lógica não apenas derivam, mas aplicam-se
analogicamente à ordem metafísica. [13] Isso significa que quando a realidade
metafísica encontra-se refletida no plano lógico da mente humana, os conceitos
que formam de si serão – ou pelo menos deveriam ser em princípio – logicamente
consistentes e não contraditórios, pois, em última instância, nada na ordem
metafísica viola o princípio da consistência lógica e da não-contradição. Há uma
correlação ou adequação total entre a ordem metafísica e a ordem lógica. É por
isso que Guénon não pensa duas vezes em aplicar as leis da lógica à tipificação
do reino metafísico e em afirmar de maneira tão positiva que “logicamente,
assim como ontologicamente”, tudo nesse reino tem de conformar-se ao princípio
da não-contradição, no sentido lógico da palavra.
O que dissemos aqui pode ser melhor elucidado se a
formulação da doutrina metafísica de Guénon for contrastada com a doutrina
metafísica de uma tradição, tal como a tradição cristã ortodoxa, na qual a
correlação total entre ordem lógica e ordem metafísica não é pressuposta da
mesma forma. Pois para os mestres doutrinários dessa tradição o princípio
supremo da ordem metafísica não é o Infinito indeterminado e impessoal, como é
o caso de Guénon. O princípio supremo é a Trindade. Eles reconhecem que a
natureza suprema da Trindade – aquilo a que eles chamam de essência – é
incognoscível e, enquanto tal, está para além tanto da determinação quanto da
não-determinação; mas não é por causa disso que eles entendem que haja nessa
natureza um princípio metafísico superior à Trindade. Pelo contrário, eles
afirmam que a essência, embora esteja para além da determinação e da não-determinação,
não é um princípio impessoal ou não-pessoalizado, pois a essência subsiste
somente na medida em que está “hipostatizada” nas três pessoas da Trindade.
Eles recusam a ideia de uma essência indeterminada e impessoal – o Infinito –
que transcenda a Trindade, assim como concomitantemente recusam a ideia de que
a Trindade represente uma determinação da essência no sentido de que cada
pessoa da Trindade expresse a essência em um modo relativo ou que, por conta
disso, seja menos real ou menos absoluta e infinita do que a essência. Para eles,
cada pessoa da Trindade, embora distinta das demais pessoas, é tão real e tão
absoluta quanto cada uma das demais pessoas, e a realidade, a absolutez e a
infinitude possuída por cada pessoa são as da própria Realidade em si, e do
Absoluto e do Infinito em si, no sentido mais pleno e amplo das palavras.
É claro que isso não quer dizer que eles aceitam três
Absolutos, cada qual com uma essência independente, a qual, a propósito, seria
a mesma essência possuída pelas demais. Há apenas um Absoluto. No entanto, este
Absoluto singular não deve ser concebido como sendo constituído por uma
essência que seja um princípio subsistente e à parte da hipostatização nas três
pessoas, nem deve ser concebido como sendo constituído por uma das três pessoas
de maneira que ela situe-se à parte das outras duas e que possa ser considerada
como princípio independente com respeito às outras duas. Entre as pessoas da
Trindade há absoluta unidade e absoluta diversidade; e assim como não há
essência não-hipostatizada, assim também não há pessoas não-essencializadas: o
que há é apenas uma concomitância de uma essência e três pessoas, sem
prioridade ou subordinação de parte a parte. Portanto, imaginar uma essência
que não esteja hipostatizada ou uma pessoa que não esteja essencializada é
contrariar a riqueza plena e complexa do Absoluto. [14]
O corolário disso tudo é que, a despeito do quanto se
penetre no reino metafísico – para além de toda manifestação formal e informal,
para além do Ser, no interior das profundezas insondáveis do Urgrund pré-ontológico –, jamais a
pessoalidade do Absoluto será superada, pela simples razão de que não há nada
no reino metafísico que transcenda essa pessoalidade. A perspectiva suprema na
qual a mais exaltada ideia de ordem metafísica consegue almejar será sempre
pessoal.
Do que dissemos depreende-se que para os mestres dessa
tradição o Absoluto não apenas transcende a ordem lógica (como também é o caso
em Guénon), mas também não pode deixar de ser tipificado (sob pena de
adulterá-lo profundamente) em termos que violem as leis da consistência lógica
e da não-contradição. Ora, reconhecer distinções no Absoluto sem aceitar que
tais distinções impliquem em certa relatividade àquilo que é distinto – mesmo
que seja uma absolutez relativa – significa, logicamente falando, colocar-se na
posição de afirmar aquilo que Guénon chama de absurdidade. Em outras palavras,
a ideia da Trindade conforme apresentada pelos mestres doutrinários da tradição
cristã ortodoxa transcende a correlação entre a ordem lógica e a ordem metafísica,
a qual, para Guénon, é o suprassumo de qualquer doutrina metafísica digna desse
nome. A afirmação de que toda determinação implica em limitação é uma afirmação
da ordem lógica. Contudo, dado que para Guénon há uma correlação rígida entre a
ordem da lógica e a ordem metafísica, a verdade da ordem lógica pode ser
aplicada analogicamente à ordem metafísica. Assim, postular uma determinação na
ordem metafísica implicará necessariamente em postular um grau relativo de
limitação naquilo que é determinado em relação à natureza indeterminada e
inqualificada da própria Realidade infinita e absoluta.
No contexto específico do qual estamos versando, isso tudo
significa que cada Pessoa da Trindade representa uma determinação in divinis, cada Pessoa, segundo os
critérios de Guénon, não pode ser propriamente o Absoluto, pois na natureza das
coisas qualquer determinação implica em limitação e, portanto, não pode ser o
Absoluto no sentido pleno da palavra. Consequentemente, cada Pessoa da Trindade
deve ser algo menos absoluto e, portanto, menos real do que o Absoluto, pois a
absoluteza, neste sentido, é prerrogativa única e exclusiva de um princípio
totalmente indeterminado. Por conseguinte, se este princípio supremo e
indeterminado da ordem metafísica for designado pelo termo Essência, então para
Guénon a Essência deve transcender toda hipostatização e subsistir como
princípio independente, enquanto as Pessoas da Trindade devem expressar a
Essência de modo necessariamente relativo.
Desse ponto de vista, portanto, a afirmação de que o
princípio supremo da ordem metafísica é trinitário e pessoal denuncia pura e
simplesmente uma falha em apreender a natureza inqualificada e impessoal
daquilo que em verdade é o princípio supremo dessa ordem, e ressalta que se
está identificando o Absoluto com aquilo que, na verdade, já é certa
relativização, por menor que seja, do
próprio Absoluto, pois ele transcende toda e qualquer distinção. A partir da
concepção de Guénon da relação entre lógica e Absoluto, é absolutamente
impossível reconhecer ou admitir como adequada a seus propósitos uma ideia
doutrinal tal como a da Trindade, a qual implica ou postula que o Absoluto, no
sentido fundamental da palavra, pode ser tipificado somente em termos que, do
ponto de vista lógico, são contraditórios. É por causa disso que o próprio
Guénon foi levado a distinguir entre o que ele chamava de “verdadeira
metafísica” e a “teologia”, negando a esta o status de metafísica genuína.
Ora, mas será que as coisas são tão simples assim? A
doutrina da Trindade expressa a unidade e a diversidade das três Pessoas no
Absoluto: ela expressa o mistério de um Absoluto que é simultaneamente Um e
Três, Mônada e Tríade. Mas a ideia de que há três Pessoas no Absoluto, cada
qual concretizando o Absoluto por si mesma e portanto transcendendo toda e
qualquer forma de relatividade, não é para os cristãos uma questão de
especulação teológica. Para eles, a Trindade é a realidade primordial da
própria vida divina, um fato metafísico transmitido por meio de revelação divina,
o qual constitui para eles um datum
primordial da exegese doutrinal. Enquanto tal, trata-se de um princípio ao qual
a mente humana deve amoldar-se conquanto faça justiça à natureza da Verdade
suprema.
Em outras palavras, a ideia da Trindade, para os cristãos,
desempenha o mesmo papel na formulação de doutrinas que as ideias de Infinito e
Onipossibilidade desempenham para Guénon: é o ponto do qual a exegese doutrinal
parte. Que seja uma ideia antinômica e paradoxal, no sentido de que, do ponto
de vista lógico, ela não se conforma à lei da não-contradição, não significa
que seja arbitrária ou que falte à exegese cristã certas sutilezas e
refinamentos. É algo que lhes é imposto
pela maneira como o Absoluto foi tipificado pela revelação cristã. Isso
significa dizer que o Absoluto revelou-se como sendo essencialmente paradóxico
por natureza. Consequentemente, a tentativa de resolver esse paradoxo, seja
afirmando uma proposição do paradoxo à custa da outra, ou formulando uma ideia
“superior” na qual ambas acabem absorvidas de forma a aplainar quaisquer
contradições internas, é ipso facto
representar o Absoluto de maneira menos adequada. Na perspectiva cristã, a
ideia translógica e paradóxica da Trindade é a ideia mais primordial de todas.
Ela constitui o conceito-limite, o ne
plus ultra, do pensamento humano, e não há nem pode haver qualquer ideia
que represente o Absoluto de maneira mais adequada.
Todavia, para Guénon as coisas não podem ser assim pois,
conforme vimos, ele aceita como axiomática a proposição de que a ideia mais
adequada de Absoluto acessível à mente humana será, ou melhor, tem de ser, uma
ideia consistente com as leis da lógica. Isso significa que, a rigor, a
inteligência humana, ao formular sua ideia de Absoluto, não precisa se moldar a
um datum metafísico tipificado por
revelação divina, aceitando-o como um ponto de partida que determine a forma da
exegese doutrinal. Pelo contrário, qualquer datum
deve agora se sujeitar, no que tange sua tipificação, aos critérios da lógica,
e é a esses critérios que a inteligência humana deve se moldar ao formular a
ideia de Absoluto. É verdade que essa exigência – de que a inteligência humana,
ao tipificar o Absoluto, deva acomodar-se aos critérios da lógica – não é uma
exigência arbitrária, pois se supõe que há uma correlação entre a ordem da
lógica e a ordem metafísica que a justifique e a torne obrigatória. Mas a
consequência inevitável será de que o conceito-limite, o ne plus ultra, do pensamento humano, no que tange a ideia do
Absoluto, não será uma ideia que seja translógica e paradóxica, mas uma ideia obtida através de demonstrações
puramente lógicas. Pode-se dizer que, sob essa perspectiva, o árbitro supremo
da forma que a expressão doutrinal deve tomar é um datum tipificado pelas normas da discriminação e demonstração
lógicas.
Vamos agora sintetizar o contraste cujos contornos, digamos
assim, delineamos até aqui. Na perspectiva cristã, o árbitro supremo da forma que
a exegese doutrinal deve assumir é o datum
primordial tipificado pela revelação divina, e é a ele que a inteligência
humana deve se moldar, mesmo que sob pena de violar as leis da lógica. Por
outro lado, na perspectiva guénoniana, o árbitro supremo da forma que a exegese
doutrinal deve assumir não é o datum
tipificado pela revelação divina, mas um datum
tipificado pelas normas da discriminação e da demonstração lógicas, e é a ele que
a inteligência humana deve se moldar.
Assim, se o datum
primordial tipificado pela revelação divina – no caso da revelação cristã – é
de tal forma que obriga sua exegese doutrinal a se expressar em termos que
sejam logicamente contraditórios, na perspectiva guénoniana isso só pode
evidenciar que o datum primordial
dessa revelação corresponde não ao nível mais elevado da realidade metafísica,
mas apenas a algum nível subordinado – não ao Absoluto absoluto, mas a alguma
relativização do Absoluto. Para corresponder ao Absoluto absoluto, o datum primordial de uma revelação
específica deveria ser peremptoriamente tipificado em termos que se conformem
às leis da lógica. Novamente, o árbitro supremo da decisão se o datum primordial de uma revelação
específica corresponde ao Absoluto absoluto ou apenas a uma relativização do
Absoluto, e portanto a um Absoluto relativo, são as normas da discriminação e
demonstração lógicas. E tem de ser assim porque, na perspectiva guénoniana, não
pode haver, em última instância, contradições entre a ideia do Absoluto
absoluto e a demonstração supremamente lógica na qual a inteligência humana é
capaz de operar. Na natureza das coisas, a mais elevada demonstração lógica a
qual na inteligência humana é capaz de operar tem de corresponder ao Absoluto
absoluto.
Ora, é evidente que, da maneira como esse contraste se definiu,
a proposição da relação entre lógica e Absoluto estabelecida por Guénon assume
um valor axiomático que não tem a mesma autoridade para os mestres doutrinários
da tradição cristã ortodoxa. Evidentemente eles não podem aceitar que há esse correlação ou concordância entre a ordem
metafísica e a ordem da lógica, tão dominante para Guénon, pois se aceitassem
chegariam a conclusões similares, pois as conclusões, dadas as proposições em
questão, são óbvias mesmo para a mais
medíocre das inteligências. Ademais, os mandamentos da lógica aristotélica os
quais essas conclusões pressupõem, e as quais Guénon se apega tão intensamente,
são os lugares-comuns do treino filosófico que todos eles receberam. Portanto,
se eles rejeitam – e eles rejeitam – tanto as proposições quanto as conclusões,
eles sabem perfeitamente bem o que estão fazendo. Ora, então por que eles as
rejeitam? Será que é pelo simples fato de que o datum de sua revelação, aceito de maneira inconteste, não se molde a
elas? Não restam dúvidas de que, considerando-se o datum primordial de sua revelação como ponto de partida, eles
aplicam a faculdade de discriminação e demonstração lógicas tão plenamente
quanto Guénon a aplica. Mas eles o fazem apenas de maneira dedutiva. Eles não a
aplicam, digamos, para cima, ou seja, não a aplicam para tipificar o Absoluto,
pois consideram que tal operação excederia os limites aos quais as leis da
lógica se aplicam.
Para os mestres da tradição cristã ortodoxa, o Absoluto não
é um princípio lógico ou um princípio suscetível às leis da lógica. Não é da
competência da dialética defini-Lo. Sua essência não deve ser interpretada por
meio de silogismos ou demonstrada ou provada de acordo com critérios para além
de Si mesma. O Absoluto é Sua própria demonstração, Sua própria prova, e a
evidência que fornece de Si somente pode ser conhecida através de revelação
direta ou inspiração profética. Consequentemente, eles jamais concordariam que
aquilo que é logicamente necessário é, por isso mesmo, ontologicamente real, ou
que aquilo que é possível deve, por definição, ser livre de contradições
internas conforme estipuladas pelas normas da lógica.
Além disso, porém, e de maneira mais positiva, esses mestres
consideram a lógica como uma função da ratio;
e dado que a ratio é uma faculdade
relativa e finita, cuja operação se dá somente com referência a algum ponto de
partida, eles não consideram que o critério da lógica seja capaz de estabelecer
qual deve ou não deve ser o ponto de partida, pois o que está em questão é o
princípio máximo da ordem absoluta e infinita. Pensar de outra forma seria
colocar-se na posição absurda de dizer que a ratio, que por definição opera somente de um determinado ponto de
partida, é capaz de estabelecer o próprio ponto de partida do qual opera. Seria
o mesmo que dizer que a ratio
consegue operar sem ponto de partida, mas isso é precisamente aquilo que ela
não consegue fazer. Se ela fosse capaz de fazer isso, a ratio, relativa e finita, seria senhora não apenas de suas próprias
conclusões, mas também, no presente contexto, do próprio Absoluto. Assim,
conforme dissemos, os mestres cristãos ortodoxos entendem que eles não têm o
direito de aplicar os critérios da lógica para demonstrar, mesmo que seja em
termos estritamente negativos, como o Absoluto deve ou não deve ser.
Se é assim, então por que, ou com base em quê, essa mesma
proposição, que é tão consagrada e respeitável para Guénon a ponto de ele
aplicar os critérios da lógica para demonstrar, mesmo que em termos negativos,
o que o Absoluto deve ou não deve ser, assim como demonstrar o que tudo que se
segue ao Absoluto deve ou não deve ser, não apenas é legítima mas obrigatória?
Nem em Les États multiples de l´Être,
nem, até onde pude apurar, em suas demais obras, Guénon fornece alguma explicação que estabeleça sua validade de lei incondicional da exegese
metafísica. Em Les États multiples de
l´Être, ele meramente a anuncia como
uma espécie de ipse dixit ao
descrever como se distingue uma possibilidade de uma impossibilidade. Tudo o
que podemos dizer é que, a menos que seja totalmente arbitrário, essa
proposição pressupõe, conforme notamos, que a estrutura da ordem metafísica,
supra-lógica em si, esteja refletida na ordem lógica, de forma que é na
aplicação das leis da demonstração lógica que os princípios da ordem metafísica
são mais bem tipificados. Em outras palavras, seria perfeitamente legítimo
aplicar os critérios da lógica à ordem metafísica, e consequentemente tipificar
essa ordem – dizer o que deve ou não deve ser –, pois ao fazer isso estaríamos apenas
e tão-somente operando de uma forma que se justifica na própria ordem
metafísica. Ora, trata-se de uma forma argumentativa puramente circular, e que
ainda deixa sem resposta a questão de quem ou o quê valida a proposição da qual
depende, a saber, que há uma correlação ou adequação inerente e necessária
entre a ordem metafísica e a ordem lógica.
Portanto, a não ser que aceitar a proposição em questão seja
um ato de fé arbitrário ou inespecífico, ainda resta a tarefa de identificar
bases objetivas para aceitá-la. Pois ela de forma alguma se configura em uma
proposição auto-evidente, nem é uma proposição a qual a lógica em si possa demonstrar
sua natureza abalizada. Em verdade, não há maneira possível de que isso seja
demonstrado sem se apelar a princípios ou critérios de demonstração que em si
foram estabelecidos com base precisamente na mesma proposição, o que,
obviamente, significa nada demonstrar: trata-se de mera repetição do mesmo
argumento circular. Consequentemente, tudo o que nos restaria a fazer é assumir
que ela é válida e seguir aplicando as leis da lógica à formulação da doutrina
metafísica como se ela de fato fosse válida. Mas a autoridade da proposição em
si está para além da prova ou da refutação.
Ademais, a aplicação dessa proposição na apresentação da
doutrina metafísica parece revelar a incapacidade de validar o que ela afirma.
Se começamos, como Guénon faz, com a ideia de um Absoluto, lograda mediante a
aplicação dos critérios da lógica, que seja totalmente indeterminado, imutável,
impessoal etc., chegamos à questão de fornecer alguma explicação adequada a
como ou por que o Absoluto, no qual está incorporada a soma total da realidade,
“passa” para a manifestação, ou para a aparência de manifestação; ou como ou
por que o determinado surge do Indeterminado; o mutável do Imutável; o pessoal
do Impessoal. Na explicação de Guénon desse processo, o princípio da
manifestação é chamado de puro Ser. Enquanto princípio da manifestação, o Ser
em si transcende a ordem manifestada e pertence à ordem não-manifestada. Ao
mesmo tempo, ele diz que o Ser é a primeira determinação dessa ordem, e isso
seria precisamente o que torna possível o Ser determinar a hierarquia dos
estados múltiplos do ser que dele procede.
Ora, isso deixa sem resposta a questão sobre como o próprio
Ser é determinado. A ordem não-manifestada, escreve Guénon, é feita de Ser e
Não-Ser. O Ser engloba todas as possibilidades de manifestação, formal e
informal, na medida em que estas serão manifestadas; o Não-Ser engloba todas as
possibilidade de não-manifestação, incluindo o próprio Ser e a manifestação, na
medida em que permanecem puras possibilidades. [15] Mas será que isso significa
que o Não-Ser é o princípio do Ser no mesmo sentido que o Não-Ser determina o
Ser? Não podemos afirmar isso, pois aquilo que é completo e infinito em sua
não-determinação não pode determinar-se sem tornar-se menos e outro do que si
próprio, contradizendo assim sua própria natureza, o que seria uma
impossibilidade. Portanto, o Não-Ser não pode abarcar o princípio ou a
possibilidade de autodeterminação: ele não é determinado por nada (pois o
Não-Ser é “não-dual” e onde não há dualidade nada pode ser determinado por
nada) e ao mesmo tempo é impotente para determinar o que quer que seja (pois no
âmbito do Não-Ser Absoluto não há nada a determinar e nada que possa ser
determinado).
Isso significa que somos confrontados com um dilema. Tem de
haver uma primeira determinação, pois caso não haja uma primeira determinação
não é possível que haja determinações subsequentes e, assim, toda a teoria dos
estados múltiplos do ser perderia sua fundamentação ontológica. Por outro lado,
no Absoluto não há, de acordo com Guénon, um princípio que possa determinar a
primeira determinação. É da necessidade de resolver esse dilema que Guénon anuncia
o que poderíamos chamar de salto quântico metafísico. Diz ele: “O Ser não é
determinado, mas determina-se a si mesmo”. [16]
Vale a pena nos determos um pouco mais nessa afirmação. A
primeira parte da frase, em si, equivale a dizer que uma determinação não é
determinada, o que sem dúvida é uma contradição em termos; enquanto que a
segunda parte da frase assume novamente ares daquilo que Guénon chamava de
absurdidade, pois viola a lei da não-contradição, cuja conformidade caracteriza
para Guénon aquilo que é possível. Ora, em que sentido uma determinação pode
determinar-se a si mesma ou ser seu próprio princípio? Nenhuma determinação
pode possuir o princípio de seu próprio ser – ou seja, de sua própria
determinação – em si mesma, pois isso seria o mesmo que dizer que há um
princípio que existe à parte ou oposto ao Infinito, e isso acarretaria em
contradizer toda a ideia de Absoluto conforme ensinada por Guénon. Todavia,
conforme vimos acima, o Absoluto não pode, em Si, ser o princípio da
determinação sem ao mesmo tempo contradizer Sua própria natureza. Ora, se o Ser
realmente determina-se a si mesmo por meio de uma espécie de combustão
espontânea, então há aí uma possibilidade de uma impossibilidade: uma
possibilidade de que uma determinação que não possui o princípio de sua própria
determinação em si mesma e é, portanto, com respeito ao Absoluto, rigorosamente
nada e desprovida de qualquer ser ou existência [17], mas que mesmo assim é o
princípio de sua própria determinação e de fato determina-se a si mesma.
Percebemos desde logo por que é necessário postular esta
determinação inerentemente contraditória do Ser, pois do contrário seria
impossível explicar a passagem do Absoluto indeterminado para a primeira
determinação, o puro Ser, e assim construir toda a teoria subsequente da
estrutura do universo. Mas isso não deixa de ser um tipo de deus ex machina sem o qual o dilema
apresentado permaneceria insolúvel; nem deixa de ser uma violação da lei da
não-contradição, ou seja, uma absurdidade, conforme Guénon define esse termo.
Assim, a tentativa de apresentar um princípio metafísico supremo em termos que
sejam logicamente consistentes introduz necessariamente uma inconsistência
lógica na descrição de quaisquer determinações que sejam subsequentes a este
princípio, e na descrição de quaisquer manifestações (ou aparências de
manifestações) de quaisquer tipos.
Algo muito parecido acontece quando Guénon tenta “provar
metafisicamente a existência da liberdade”. [18] Pois, conforme observamos no
começo deste capítulo, a ideia de Absoluto, para Guénon, só pode ser expressa
em termos negativos, e portanto a liberdade em seu sentido mais elevado tem de
ser definida como a ausência de restrições, e não como um poder de
autodeterminação. De fato, é impossível, dadas as premissas de Guénon, que a
liberdade seja descrita em termos que não sejam negativos. Conforme também
notamos acima, para Guénon o Absoluto não apenas é totalmente indeterminado,
mas também não pode determinar-Se a Si mesmo ou ao que quer que seja; pois se
pudesse determinar-Se a Si mesmo ou ao que quer que seja, Ele obrigatoriamente teria
de determinar-Se a Si mesmo ou ao que quer que seja, pois do contrário violaria
seu axioma de que uma possibilidade tem de manifestar-se simplesmente porque é
uma possibilidade; o que significaria que não apenas o Absoluto estaria sob
restrições e, portanto, desprovido de liberdade, mas também que Ele teria de se
tornar menos do que o Absoluto, o que é uma impossibilidade. Daí que o Absoluto
quâ Absoluto não possui princípio ou
possibilidade de autodeterminação ou determinação; consequentemente, a
liberdade, em seu sentido supremo, pode ser descrita não como um poder de
autodeterminação, mas somente como ausência de restrições.
O argumento subsequente para “provar a existência da
liberdade” no âmbito do ser ou manifestação recai nas mesmas dificuldades da
argumentação acerca da determinação do Ser. O Ser, como a primeira
determinação, é uma unidade metafísica. Aquilo que é uno está isento de
quaisquer restrições. Portanto, o Ser possui liberdade, novamente no sentido
negativo, enquanto ausência de restrições. Assim, enquanto o Não-Ser está
isento de restrições e, portanto, livre porque é “não-dual” (conforme notamos,
onde não há dualidade nada pode ser determinado por nada), o Ser está isento de
restrições e, portanto, está livre porque é uno.
Este argumento, que ignora certas questões que lhe são
inerentes, novamente incorre em contradição. Pois o Ser é uma determinação –
por definição, ele é a primeira determinação. Uma determinação, conforme
explica o axioma de Guénon, é uma limitação; e, Guénon afirma também, [19] uma restrição
é uma limitação. Como pode então o Ser, por definição uma limitação e portanto
sob restrições, estar isento de restrições? Novamente, a tentativa de obter a
consistência lógica a todo custo resulta na introdução, mesmo que sutil, de uma
evidente contradição.
De fato, conforme poderíamos esperar das dificuldades
encontradas ao explicar a determinação do Ser, existe o que podemos chamar de
hiato no coração da metafísica de Guénon; e em parte alguma isso é mais
evidente do que na maneira pela qual, em função de sua tipificação inicial do
Absoluto (que lhe é imposta pelo sua doutrina acerca da relação necessária
entre lógica e Absoluto), Guénon está compelido a contemplar o mundo da
manifestação, o mundo dos fenômenos. Na realidade, dada a tipificação inicial
do Absoluto, podemos dizer que a coisa realmente inexplicável é a existência
deste mundo, ou a aparência de sua existência. Seria simples – dada a
tipificação em questão – explicar a não-existência deste mundo; mas –
novamente, dada a premissa – é virtualmente impossível explicar sua existência,
ou a aparência de sua existência. Consequentemente, a existência (ou aparência
de existência) só pode ser explicada invocando-se a ideia de que falta a ela a
realidade genuína, o que equivale a dizer que a existência é, na verdade,
não-existente.
A forma como esta conclusão se nos é imposta passa a ser
óbvia quando levamos em conta o ponto de partida do argumento de Guénon. Se,
como ele afirma, as possibilidades universais em seu estado não-manifestado são
completa e totalmente reais em si mesmas, em sua enclausurada exclusividade, de tal forma que
elas absorvem ou incorporam a soma total da realidade em si mesmas, então
qualquer desvio do estado de não-manifestação é também um desvio do Real, um
desvanecimento na não-realidade. Do contrário, não poderíamos dizer que uma
possibilidade possui a totalidade do Real em seu estado não-manifestado: se seu
estado não-manifestado quâ estado de
manifestação possuísse qualquer realidade, a conclusão teria necessariamente de
ser que uma possibilidade não possui em si, em seu estado não-manifestado (no
qual não podemos diferenciá-lo do Absoluto), a totalidade do Real, e tal
conclusão contradiz a alegação inicial de que uma possibilidade não-manifestada
seja total e exclusivamente real em si mesma.
De fato, conforme notamos, com respeito a seu estado
não-manifestado e indeterminado, o estado manifestado e determinado de uma
possibilidade universal é “rigorosamente nada”. Daí que somos forçados a
aceitar que a existência, ou aparência de existência, é basicamente
não-existente. Eis porque a tentativa de explicar o mundo da manifestação sai,
digamos, derrotada já desde o início, pois não há, nem poderia haver, qualquer
explicação plausível ou mesmo possível para o que não existe: a manifestação quâ manifestação é um tipo de ilusão ou
sonho. Qualquer doutrina que estabeleça que a soma total da realidade esteja
fora e acima não apenas da existência fenomênica mas do próprio Ser está fadada
a reduzir o Ser e a fortiori a
existência fenomênica a uma espécie de sombra insignificante. Ademais, tal
doutrina leva a uma forma extrema de panteísmo: não um panteísmo que divinize a
existência, mas um panteísmo que afirme a nulidade ou irrealidade da
existência. A criação – ou mesmo a simples ideia de criação – não teria nenhum
valor positivo ou significativo; enquanto que a criatura quâ criatura não teria nenhum destino eterno concreto.
Essa é a conclusão a que forçosamente chegamos se adotarmos
a concepção inicial de Guénon acerca da natureza das possibilidades não-manifestadas
e universais. Com efeito, tais possibilidades constituem uma espécie de
Divindade sem Deus, no sentido de que não têm autor. Eis outra maneira de
expressar esse raciocínio: se pudéssemos falar de Deus no contexto dessa
doutrina, então não seria o Deus que determina tais possibilidades
não-manifestadas e universais (pois, por definição, elas são essencialmente
indeterminadas e indetermináveis). É precisamente o contrário: são elas que
“determinam” o conteúdo ideal da natureza pré-ontológica de Deus. Em verdade,
elas constituem essa natureza, no sentido de que não há distinções entre os
dois: Deus enquanto Absoluto é a Possibilidade universal, o Onipossível. Isso
significa dizer que não pode haver uma ideia de Deus, enquanto Absoluto,
enquanto princípio livre determinante de suas próprias possibilidades, e
portanto não pode haver uma doutrina da criação no sentido cristão do termo,
pois tal doutrina pressupõe que Deus, enquanto Absoluto, não é idêntico somente
à sua natureza pré-ontológica. Substituir a ideia de um Deus que determina suas
próprias possibilidades por uma Divindade, ou Urgrund, de possibilidades universais que não apenas não têm autor
mas que constituem em si o Absoluto significa tipificar o Absoluto como sendo
um círculo essencialmente autocontido, autossuficiente e totalmente perfeito,
um círculo impessoal, indeterminado e pré-ontológico, um círculo incapaz de
relações vivas e reais ad extra. É
por isso que podemos dizer que o que caracteriza doutrinas metafísicas tais
como a de Guénon é a desvalorização radical da criação – ou da manifestação – a
tal ponto que a reduz a pouco mais do que uma dimensão puramente negativa. De
um ponto de vista especificamente cristão, podemos dizer sucintamente que o que
caracteriza tais doutrinas é sua natureza anti-encarnacional e
anti-sacramental.
No entanto, isso não significa que esse tipo de doutrina
metafísica não seja fundamentalmente verdadeiro: essa é uma questão
completamente diferente e não vou lidar com ela aqui. O que tentei ilustrar é
apenas e tão-somente como a formulação da doutrina metafísica de Guénon
deixa-se afetar por uma proposição particular acerca da relação entre a ordem
da lógica e a ordem metafísica, como isso levou Guénon a tipificar até mesmo o
princípio supremo da ordem metafísica em termos que se conformam à ordem da lógica
e como, por sua vez, tal postura afetou sua apresentação dos demais aspectos da
doutrina metafísica. Para Guénon, conforme dissemos diversas vezes, essa
relação é uma relação necessária e inerente à natureza das coisas, e eis porque
ele considera tal proposição como sendo axiomática. Mas na ausência de bases
objetivas sobre as quais seu status de princípio hermenêutico de validade
absoluta e universal possa se estabelecer, tal proposição parece ser nada mais
do que uma suposição cuja verdade elude tanto provas quanto refutações. Mais
importante, porém, é que sua aplicação prática parece destruir seu próprio
propósito e resultar precisamente no erro que Guénon acusa os filósofos, qual
seja, impor limitações à própria Possibilidade universal.
Vimos como a obediência da proposição em questão parece ser
infringida em casos como a determinação do Ser e a “prova da existência
metafísica da liberdade”. Mas para mostrar como tal proposição também resulta
em impor limitações à Possibilidade universal precisaremos remontar à
tipificação inicial de Guénon acerca do princípio metafísico supremo, ou seja,
do Absoluto que constitui o datum primordial
de sua exegese. Com base na verdade da ordem lógica segundo a qual toda
determinação é necessariamente uma limitação, Guénon chega à sua ideia de
Absoluto – de Infinito, ou Possibilidade universal – que pode ser expressa
somente em termos negativos – termos tais como “indeterminado”, “impessoal”,
“inqualificado” entre outros. No entanto, por uma espécie de duplicidade
inerente à própria lógica, até mesmo a aplicação de termos negativos ao
Absoluto como uma tentativa de preservá-Lo da determinação e, portanto, da
limitação, acaba por produzir precisamente o efeito contrário ao desejado. Pois
afirmar que o Absoluto é indeterminado, impessoal etc. é afirmar algo sobre Ele
e, portanto, limitá-Lo – sim, limitá-Lo, já que exclui dEle tudo o que seja de
natureza determinada, pessoal ou qualificada. Com efeito, até mesmo afirmar que
o Absoluto possa ser tipificado em termos exclusivamente negativos significa,
no fim das contas, afirmar algo sobre Ele e, portanto, limitá-Lo – sim,
limitá-Lo, já que exclui dEle a possibilidade de ser tipificado em termos
positivos. Parece-nos, portanto, um tanto paradoxal e irônico, que a aderência
de Guénon à premissa de que o princípio metafísico supremo deva ser tipificado
em termos consistentes com a lei da lógica – premissa essa que pressupõe a
proposição de que há uma correlação rígida entre a ordem da lógica e a ordem
metafísica – resulta em impor à Possibilidade universal precisamente o tipo de
limitação a qual originalmente se tentava não impor.
Não haveria, então, uma maneira de evitar esse tipo de
desagravo, ou desagravos similares? Talvez não, a não ser que adotemos uma
postura apofática, ou negativa, ao Absoluta que seja mais radical do que aquela
adotada por Guénon. Pois a via negativa de Guénon não confere ao
Absoluto a indeterminação que originalmente deseja, mas lhe impõe uma limitação
que afeta essencialmente toda a doutrina metafísica. Afinal, a ideia de
Absoluto que Guénon propõe nas páginas 17 e 18 de seu livro leva a essa
conclusão, já que ele propõe uma demonstração puramente lógica, ou seja, um
tipo de apofaticismo apodíctico. Um apofaticismo mais radical – um que não seja
autodestrutivo – deveria começar com uma espécie de santa agnosia que se recuse a aplicar qualquer conceito que seja, não
importa se formulado em termos positivos ou negativos, à natureza suprema ou
Essência do Absoluto.
Assim sendo, segundo essa forma mais radical de
apofaticismo, a Essência do Absoluto não pode ser tipificada como determinada
ou livre de determinações, como Ser ou Não-Ser, como pessoal ou impessoal: o
Absoluto está para além de qualquer afirmação assim como Ele está para além de
toda negação. Isso não significa, porém, que nada deve ser afirmado ou negado
acerca do Absoluto e que, portanto, não haveria a menor possibilidade de
formular uma doutrina. Esse seria o caso se igualássemos o Absoluto – a soma
total da Realidade – exclusivamente com sua Essência. Com efeito, é exatamente isso que faz Guénon:
ele iguala o Absoluto com a Essência. Para ele, Absoluto e Essência são termos
intercambiáveis, e ambos constituem o princípio supremo, o datum primordial de sua exegese – ideia essa lograda mediante a
aplicação do que poderíamos chamar de negatividade simples, cuja conclusão,
segundo Guénon, é de que o princípio supremo só pode ser descrito em termos
negativos. Mas o apofaticismo que se recusa a aplicar quaisquer conceitos que
sejam à Essência, não importa se positivos ou negativos, não iguala o Absoluto
com a Essência nem considera a Essência como sendo uma espécie de aspecto
supremo do Absoluto. Esse apofaticismo, portanto, representa não uma
negatividade simples, mas dupla: se o Absoluto é livre de determinações, Ele
também não é livre de determinações;
se Ele é Não-Ser, Ele também não é
Não-Ser; se Ele é impessoal, Ele também não
é impessoal; se Ele é não-manifestado, ele também não é não-manifestado; se Ele não está no tempo, ele também não
deixa de não estar no tempo; e assim por diante. Toda negativa é verdadeira sob
condição de que seja ao mesmo tempo negada, ou seja, contanto que a verdade
resida na simultaneidade desta dupla negação. Em outras palavras, isso
significa dizer que o Absoluto é livre de determinações e determinado, que é
pessoal e impessoal, que é Ser e Não-Ser etc., sem que qualquer superioridade
ontológica ou de qualquer outro tipo seja atribuída a nenhum dos dois termos de
cada uma das tipificações. E este é o caso mesmo que nenhum dos termos dessas
tipificações seja aplicado à própria Essência do Absoluto, pois o Absoluto não
deve ser igualado com a Essência. Em termos mais sucintos, podemos dizer que o
Absoluto transcende sua própria Essência.
Em outras palavras, a recusa em igualar o Absoluto somente
com a Essência exige que reconheçamos que o Absoluto, em Sua realidade
autocontida, Sua incognoscibilidade e cognoscibilidade, Seu Não-Ser e Ser, Sua
indeterminação e determinação, seja tal que a ideia mais adequada para a
inteligência humana concebê-Lo seja expressa em termos exclusivamente antinômicos
e paradoxais. Consequentemente, trata-se de uma ideia que não se molda às
demandas exigidas pela proposição a qual o próprio Guénon aderiu com tão
incontestável entusiasmo.
Por fim, somos levados de volta à questão que esteve
implícita ao longo de todo este capítulo. Por definição, a apresentação de uma
doutrina metafísica deve ter um ponto de partida. Esse ponto de partida será
identificado como sendo o princípio metafísico que se aceita como Absoluto, e
será este o Absoluto que constituirá nosso datum
primordial, ou ponto de partida, da exegese.
Porém, este Absoluto que constitui o datum primordial da exegese não será o Absoluto enquanto tal, ou
seja, o que podemos chamar de Sua quididade intipificada. Ele será um Absoluto
tipificado de uma maneira específica.
Isso significa dizer que Ele terá de ser tipificado como isto ou aquilo,
ou como não-isso ou não-aquilo: determinado ou indeterminado, pessoal ou
impessoal, Ser ou Não-Ser, Um ou Três, ou ambos os termos de cada uma dessas
tipificações simultaneamente. Em outras palavras, não será o Absoluto enquanto
tal, mas a ideia que se tem do Absoluto que constitui o datum primordial da exegese.
Essa ideia do Absoluto que constitui o datum primordial de uma exegese pode ser estabelecida, por exemplo,
por revelação divina. Na falta dela, porém, a única alternativa é aceitar como datum primordial uma ideia de Absoluto
estabelecida de acordo com algum outro critério. Neste caso, não seria a
revelação divina, mas este outro critério que estabeleceria o datum primordial da exegese; com efeito,
isso faria deste outro critério o princípio determinante supremo da própria
exegese. Portanto, é de crucial importância saber que critério é esse, e por
que nós daríamos nosso assentimento a ele, pois, em última análise, é este
critério, e não a ideia de Absoluto, menos ainda o Absoluto enquanto tal, que
determina a forma que a apresentação da doutrina metafísica irá tomar.
* * *
O próprio Guénon pleiteava que seu entendimento acerca da
doutrina metafísica deriva do Vedanta, mais especificamente da perspectiva
extrema não-dual que lhe confere Shankaracharya; e algumas das dificuldades
que, do ponto de vista cristão, são suscitadas por essa doutrina metafísica são
refletidas também nessa perspectiva metafísica do Vedanta. Pois segundo essa
perspectiva, a doutrina metafísica tem como ponto de partida uma ideia de
Aboluto, ou Infinito, que é totalmente inqualificada e totalmente livre de
qualquer determinação ou particularização. Afirmar o que quer que seja acerca
do Absoluto é, de certa forma, limitar e determinar, e portanto torná-Lo menos
do que Absoluto; qualquer distinção ou qualificação que seja feita é
transcendida pela não-determinação absoluta do “único verdadeiro não-dual” (o ekam ena advaitam) dos Upanishads. Indo
ao extremo de sua discriminação entre permanente e impermanente, imutável e
mutável, Ser e devir, e com a via
negativa, ou apofaticismo, que em última instância recusa toda e qualquer
ideia de determinação ou diferenciação no Absoluto por considerá-la como
intrinsecamente limitante e imperfeita, o pensamento vedântico tende a se
tornar “fixado” na ideia de puro isolamento (kaivalya) do Absoluto não-comunicável, não-participável (nirgunabrahma).
É aqui que a questão da manifestação, ou da aparência das
coisas, é colocada nesta perspectiva extrema não-dual. O que é, afinal, que vem
a ser, ou parece que vem a ser, na manifestação? Na forma extrema do advaita, a resposta é que, em última
instância, nada vem a ser; o mundo não existe, ou é apenas a aparência de maya (nem ser nem não-ser, nem mistura
de ser e não-ser nem ausência de mistura). De certa forma, não há questão sobre
manifestação, pois maya é a própria
categoria da questão, e a questão só pode ser colocada na medida em que o
indivíduo que a coloca esteja envolto em maya. Ora, assim que o indivíduo tenha superado a
consciência marcante de seu eu individual (que em si é uma ilusão) e esteja
livre da evanescente e deficiente categoria de maya, ambos, questão e questionador, desaparecem e são imersos no
Absoluto, no verdadeiro Eu, o nada-além-do-Eu.
O Absoluto nunca, jamais, poderá ser outro senão o que é; Ele não pensa
acerca do mundo ou do eu; Ele não pensa acerca de Si mesmo, mas em Si exclui
toda “alteridade”, todo “fora de Si”. Ele é não-dual.
A ideia da isolação e pureza do Absoluto guarda ,porém,
outro aspecto: Sua onipresença. É somente de um ponto de vista individual e
inferior que o Absoluto pode ser oposto a maya,
ou ao contingente. Na realidade, essas distinções não existem e são devidamente
transcendidas pelo Absoluto. A realidade de tudo é o Absoluto; pois se houvesse
uma realidade inferior ou distinta do Absoluto então o Absoluto não seria o
Tudo: haveria algo externo a Ele que o limitaria. Por conseguinte, a realidade
de tudo é o Absoluto: Ele está perfeitamente e exaustivamente imanente em todas
as coisas, pois não apenas não pode existir nada distinto de Si mesmo, mas
também Ele não pode conter nada que não seja Ele mesmo, pois Ele se dá a Si
mesmo inteiramente e infinitamente em Sua infinita generosidade. Toda a
realidade que a manifestação possui reside em seu principio não-manifestado e
na medida em que não seja diferente de seu princípio: toda aparência do efeito
enquanto tal, ou de sua diferença em relação a sua causa principial, é
ilusória. A realidade da manifestação é a mesma realidade de seu princípio e
não há outra realidade. Neste sentido a doutrina é panteísta: o Tudo e o
Absoluto são um,muito embora na famosa imagem do Upanishad diga-se que há dois
pássaros na mesma árvore, quando na realidade haveria apenas um pássaro, pois a
distinção entre o um e o muito é ilusória.
Dito isso, ainda temos de enfrentar a questão original, isto
é, a questão do jivatman que ainda
não percebeu que “o fluxo e o absoluto são a mesma coisa” ou que há uma
identidade, essencial e existencial, entre ele e o Eu infinito, o Brahma: de
onde vem a ilusão do ser particular e a aparência do mundo? Quais são suas
relações mútuas com o Eu, com o Absoluto? Qual seu sentido supremo? É aqui que
a metafísica vedântica, partindo da esfera do Não Ser e da Não-Dualidade,
decompõe-se em duas noções distintas, as quais, juntas, constituem as partes do
que parece ser um dilema irredutível: uma parte é a noção de transformação
ilusória (do Absoluto em Suas determinações: vivarta-vada) e a outra parte é a noção da transformação real (parinamavada).
A ideia da transformação ilusória do Absoluto – tudo o que
existe é em realidade o Absoluto, e só a ignorância individual faz com que a
realidade pareça outra coisa que não o Absoluto – preserva a pureza,
simplicidade, imutabilidade e permanência totais do Absoluto, mas deixa
inexplicado o fato, fictício ou real, da existência do erro. O Absoluto não
pode errar; pois de que causa, então, cósmica ou supracósmica, procede tal
ignorância segundo a qual eu erro ao pensar em mim como outro em relação ao
Absoluto? Se a ideia de minha identidade distinta ao Absoluto é uma ilusão da
qual devo escapar mediante a realização espiritual, como essa ideia pôde
existir antes de mais nada? E se essa ideia é tão-somente uma aparência, sem
realidade suprema, de maneira que em certo sentido nunca tenha realmente
existido, então por que essa aparência surgiu? Responder que errei porque foi
algo predestinado por causas passadas e mediatas, a despeito se sou ou não
responsável por elas, não faz sentido, pois deixa sem resposta a questão de por
que me inclinei, ou fui inclinado, a pensar que sou um ser particular antes de
mais nada, e por que a corrente causal da ignorância da qual sou agora uma
vítima foi ativada. Quem ou o que determinou em primeiro lugar que devo pensar
acerca de mim mesmo? E por que foi determinado dessa forma?
Se para respondermos essa e outras questões similares
tivermos de substituir a noção de transformação ilusória do Absoluto pela de
Sua transformação real, então é possível darmos algumas explicações sobre como
e por que o mundo, o eu, e sua identidade ou alteridade surgiram. Mas neste
caso a pureza, a não-particularização e a imutabilidade do Absoluto são
sacrificadas, e toda uma nova plêiade de dilemas se apresentam. É difícil
evitar a conclusão de que, segundo o Vedanta, a relação entre o Absolto e a
manifestação é algo incompreensível sem aventar a ideia de uma redução
“acósmica” do mundo e dos seres particulares a uma aparência misteriosa de maya e da ignorância que dela faz parte,
ou sem aventar a ideia da ruptura da simplicidade, imutabilidade e
transcendência absolutas da Essência divina.
O que chama a atenção nessa doutrina, de um ponto de vista
cristão, é sua aparente recusa em atribuir valores ou significados positivos à
criação. Sob esse ponto de vista, portanto, essa doutrina pode ser descrita
como sendo uma estrutura de pensamento pré- ou anti-encarnacional, no sentido
de que não pode abarcar, e de fato não abarca, a realidade que é revelada na
Encarnação do Absoluto na pessoa do Theanthropos, Cristo. Parece haver, a
despeito de noções tais como a transformação real do Absoluto em contingente,
um hiatus total entre o Absoluto e o
mundo sensível manifestado até o ponto que podemos dizer que a coisa realmente
inexplicável é a existência do mundo, ou a aparência de sua existência.
Conforme notamos em relação à metafísica guénoniana, conquanto era simples,
dadas as premissas da doutrina, explicar a não-existência do mundo, é
virtualmente impossível, dadas as mesmas
premissas, explicar sua existência, ou a aparência de sua existência.
Consequentemente, a existência (ou a aparência de existência) do mudo só pode
ser explicada se afirmarmos que lhe falta toda e qualquer realidade genuína, o
que equivale a dizer que o existente é realmente não-existente, ou que é um
tipo de categoria de pensamento “maligno” e negativo.
Pois se o Absoluto em Seu estado não-manifestado é
completamente e totalmente real em Si mesmo, em Sua exclusividade
auto-enclausurada, de tal forma que Ele absorve ou exaure o pleroma da
Realidade em Si mesmo, segue-se que qualquer afastamento desse estado de
autossuficiência não-manifestado é também um afastamento da Realidade, um
desvanecimento na não-existência. Se a condição de manifestação enquanto
manifestação possui alguma realidade, a conclusão é que o Absoluto não possui a
totalidade do Real em Si mesmo em Seu estado não-manifestado. Somos forçados,
logicamente, a dizer que a existência, ou aparência de existência, é
basicamente, enquanto tal, uma ilusão. Eis porque as tentativas de explicar a
existência do mundo da manifestação guardam um certo aspecto de deus ex machina, pois na verdade não
pode haver nenhuma explicação plausível ou mesmo possível para explicar o que
é, antes de mais nada, uma ilusão. Qualquer doutrina que considere o Absoluto
como a Realidade total, fora e acima não apenas da “existência” fenomênica mas
do próprio Ser, está fadada a reduzir ambos, Ser e a fortiori a existência, a uma espécie de sombra insignificante.
Ademais, conforme também notamos, tal doutrina conduz a uma
forma extrema de panteísmo: não que ela divinize a existência, mas afirma sua
nulidade e irrealidade supremas. A criatura quâ
criatura não pode ter destino concreto e eterno. Na verdade, a criatura quâ criatura representa um estado de cativeiro,
mental ou físico, na irrealidade, cuja total libertação só é possível sob a condição
de que cesse de existir enquanto criatura, sob qualquer forma e sob qualquer
pretexto. Em outras palavras, não há espaço para a criatura no Absoluto.
Conforme afirmamos acima, o Absoluto é um círculo essencialmente autocontido,
autossuficiente e totalmente perfeito, impessoal e livre de distinções, sem a
menor possibilidade de conter relações reais e vivas ad extra, sem nada alia a se,
e por causa disso podemos afirmar que o que tipifica essa doutrina, como a de
Guénon, é sua recusa em reconhecer significados positivos ou eternos na criação
enquanto tal, ou seja, uma postura anti-encarnacional; e é precisamente isso
que se reflete na visão desencarnacional da realização espiritual.
Evidentemente, a doutrina cristã de um Absoluto que seja
triuno e pessoal, e sua ideia de que o que é criado e relativo tenha um destino
eterno dentro do Absoluto, sem por causa disso deixar de ser criado e relativo,
conflita com a forma não-dual extrema dessa doutrina. Do ponto de vista desse
tipo de doutrina, a doutrina cristã reduz-se a uma espécie de idolatria, ou
pelo menos reduz o Absoluto a um plano inferior ao que a doutrina originalmente
Lhe confere. Com efeito, do ponto de vista dessa não-dualidade radical, e
também, conforme vimos, do ponto de vista da metafísica guénoniana, qualificar
o Absoluto do que quer que seja – afirmar que Ele é triuno e pessoal, por
exemplo – é de certa forma defini-Lo. Qualquer definição, ou seja, qualquer
tentativa de tornar o Absoluto finito, é por sua vez selecionar e enfatizar
algum aspecto particular do Absoluto às custas de outro aspecto, e isso seria
torná-Lo menos abarcante, menos inclusivo, do que antes dessa definição; é
reduzi-Lo a uma espécie de Absoluto relativo. Toda determinação, portanto, é
necessariamente uma limitação que envolve certa negação da natureza infinita do
Absoluto, e eis porque a qualificação cristã do Absoluto enquanto triuno e
pessoal não pode se referir ao Absoluto enquanto tal, mas a alguma determinação
do Absoluto, rigorosamente e absolutamente transcendida pelo Absoluto e que com
Ele não detém absolutamente nenhuma relação. O Absoluto absoluto é, e deve ser,
totalmente indefinível, totalmente inqualificado, totalmente não-determinado,
ou seja, Ele não pode admitir quaisquer particularizações ou participações.
O argumento novamente parece ser lógico; e se os cristãos
quiserem manter sua visão acerca de um Absoluto triuno e pessoal que não
represente um ponto de vista mais limitado do que o ponto de vista radical da
não-dualidade, então eles têm de admitir também que não compartilham os mesmos
conceitos acerca da relação entre lógica e metafísica que subsistem no
argumento. Pois o que essa forma extrema de não-dualidade, como a doutrina
neoplatônica ou a metafísica guénoniana, parece pressupor é que se ela pode
demonstrar em termos puramente lógicos que certo princípio metafísico é
superior – mais inclusivo, menos limitado e menos determinado – do que outro,
então este primeiro princípio deve situar-se metafisicamente acima do segundo.
Assim sendo, passa a ser possível demonstrar a superioridade da ideia não-dual
do Absoluto em relação à ideia cristã, pois em termos lógicos qualquer
qualificação do Absoluto implica necessariamente um grau de limitação e,
portanto, de imperfeição, de maneira que somente o Absoluto totalmente
inqualificado pode ser totalmente infinito e perfeito.
Eis porque os cristãos, caso queiram pleitear que sua ideia
de Absoluto represente a Verdade mais plenamente do que a ideia de Absoluto da
metafísica não-dual, também têm de pleitear que essa maneira de argumentar com
demonstrações lógicas para se atingir conclusões metafísicas oculta a questão da relação entre lógica e
metafísica, questão sobre a qual detêm visões muito diferentes das visões que
estão implícitas em tais doutrinas não-duais; e que sua ideia de um Absoluto
triuno e pessoal, a despeito de qualificada e, portanto, aparentemente mais
limitada de um ponto de vista lógico, não obstante reflete mais adequadamente a
natureza do Absoluto do que a ideia não-dual. Na mesma linha, os cristãos
também têm de afirmar que suas ideias sobre o significado positivo e eterno da
criação, embora impliquem em um entendimento totalmente paradóxico e contraditório
das relações entre o Absoluto e o relativo, não obstante refletem a verdade das
coisas mais adequadamente do que as doutrinas não-duais da manifestação.
Conforme dissemos, o que marca para os cristãos o conceito-limite, o ne plus ultra do pensamento humano, não
pode ser a demonstração lógica, mas a contradição lógica.
* * *
A titulo de sumário, podemos dizer, de maneira um tanto
elíptica, o seguinte: das duas visões que contrastamos, a primeira vislumbra o
que podemos chamar de forma extrema de não-dualidade, enquanto a segunda visão
é a da tradição cristã, sobretudo em sua forma ortodoxa.
Do ponto de vista da não-dualidade extrema, o Absoluto é supra-individual,
supra-pessoal, supra-formal e divino. Daí que a verdade metafísica, a qual é
identificada com o Absoluto, ser também supra-individual, supra-pessoal,
supra-formal e divina.
Embora o Absoluto seja a Realidade em Si, ou seja, nada tem
realidade a não ser o Absoluto, toda diferenciação e individuação, tudo o que
possui forma e seja pessoal e que, portanto, possa ser distinto do Absoluto,
representa uma ruptura, uma alienação do Real. Em última instância, representa
algo irreal e ilusório.
Toda diferenciação e individuação necessariamente implica em
limitação; e já que tudo o que é limitado não pode ser identificado com o
Absoluto, o qual por definição é ilimitado, conclui-se que tudo o que é
limitado tem de ser outro coisa que não o Absoluto.
Mas o Absoluto possui a totalidade do Real. Portanto, o que
quer que seja distinto, ou que se distinga, do Absoluto e que seja, ou que se
considere ser, outra coisa que não o Absoluto, deve ser cativo do irreal e do
ilusório.
Isso significa que não há, nem pode haver, princípio de
diferenciação ou individuação no Absoluto; pois, se houvesse, teria de operar
e, portanto, produzir, o que é diferenciado e individuado.
Embora aquilo que é diferenciado e individuado seja, por causa
disso, outro que não o Absoluto, e enquanto tal tem de ser irreal e ilusório, afirmar
que o Absoluto possui um princípio de diferenciação e individuação o qual está
obrigado a operar é o mesmo que afirmar que o Absoluto está obrigado a produzir
o que é irreal e ilusório, o que seria um absurdo.
Daí que a unidade do homem com o Absoluto, a identidade do
conhecido com o conhecedor, um pré-requisito de qualquer conhecimento
metafísico, não possa ser uma bi-unidade, um estado de dois-em-um, unus-ambo, abarcando a pessoa individual
e o Absoluto. Não pode ser uma unidade que não demande que todas as distinções
entre um e outro sejam transcendidas.
Pelo contrário, a unidade do homem com o Absoluto, a
identidade do conhecido com o conhecedor, pode ser alcançada somente mediante a
pessoa individual transcendendo sua pessoalidade individuada e mediante a
identificação de si com o supra-formal, supra-individual, supra-pessoal do
Absoluto.
Essa visão, portanto, traz em si a completa negação do valor
e da realidade do pessoal. Ela exige como condição de conhecimento metafísico
um total impessoalismo – o anulamento e alienação da pessoa.
Ela também traz em si a negação do princípio apofático,
segundo o qual, a despeito do grau de conhecimento metafísico que a pessoa
possua, há sempre graus acima desse grau, já que a gnose divina é infinita.
Todavia, como é possível ao pensamento humano expressar-se
em relação à verdade supra-formal a não
ser em termos apofáticos?
Diz-se que o princípio da não-dualidade pode ser bem
expresso pela fórmula tat tvam asi:
“isto (o Absoluto) tu (o Eu ou ego) és também”.
Mas como o Eu dessa fórmula ainda pode ser o Eu se é
igualado com o Absoluto supra-individual e supra-pessoal?
Ou em que sentido o “eu” que diz “eu sou” pode ser identificado
com o Absoluto?
É o homem real ou é o ego ilusório que declara “Eu sou isto”?
Será suficiente que o ego diga “Eu sou isto” para deixar de
ser ilusório?
E se há uma identidade essencial entre e Eu individuado e o
Absoluto supra-pessoal, como é possível que o Eu caia na ilusão de pensar que
não é o Absoluto supra-pessoal mas que possua uma existência individuada?
E se não há princípio de diferenciação ou individuação no
Absoluto, como é possível que um Eu que seja igualado ao Absoluto diferencie-se
do Absoluto e pense a si mesmo como uma existência pessoal individual?
Um princípio de diferenciação, mesmo que sua ação se limite
a produzir a ilusão de ser diferenciado, não pode subsistir em um vácuo. Ou é
inerente ao Absoluto, ou é um princípio que existe fora do Absoluto, ou seja,
um princípio distinto do Absoluto. Mas neste caso o Absoluto não é o Absoluto,
pois há um princípio ativo que opera independentemente dEle, e portanto um
dualismo irredutível reside na base das coisas. [20]
Neste ponto podemos nos perguntar: por que esta recusa em
reconhecer um princípio de diferenciação e individuação no Absoluto?
Por que esta recusa em reconhecer que o Absoluto existe em
uma multiplicidade de existências individuais que Lhe são distintas? Por que se
considera como uma forma básica de ignorância afirmar que a realidade é
múltipla?
Que metafísica é essa que nega ao Absoluto um princípio de
diferenciação e individuação?
E se há um princípio de diferenciação e individuação no
Absoluto, como pode ele se expressar, ou seja, como pode o Absoluto agir de
acordo com Sua própria natureza, a não ser postulando a realidade dos existentes individuais que não Lhe são iguais?
Em si, a individuação não é uma ilusão: ela advém da
existência do próprio Absoluto – um devir em formas individuais que são
espirituais e pessoas, imperecíveis e inalienáveis.
Em verdade, deste ponto de vista – o qual é o ponto de vista
cristão –, podemos dizer que o segredo do Absoluto reside nas múltiplas formas
em que Ele se manifesta, assim como o segredo dessas formas reside no Absoluto.
Não é minha individuação, ou minha existência pessoal, que é
uma ilusão. É meu insucesso em afirmar, em termos ativos, minha existência
individual, pessoal e espiritual em Deus que produz a ilusão; pois dessa forma
eu atribuo a mim mesmo um tipo de existência independente, antinômica, na qual
sou meu próprio Deus, e é esta concepção de mim mesmo que é ilusória e, para os
cristãos, que expressa o estado decaído do homem.
Assim, na visão cristã, o homem é por definição uma forma na
qual o Absoluto manifesta uma virtualidade de Sua própria natureza; e sua
faculdade cognitiva suprema – o intelecto – embora deiforme e capaz, quando
purificado, de conhecimento metafísico direto e experiencial de Deus, não deve
ser identificado com o Absoluto (embora não seja, por isso, não-Absoluto), ou
ser considerado como indiferenciado do Absoluto, ou supra-pessoal e
supra-formal.
Isso significa que não importa por quais transformações um
ser humano possa passar – e elas são ilimitadas – e não importa o grau de
profundidade de sua união com Absoluto, ele jamais perderá sua identidade
pessoal, espiritual e distinta, pois essa identidade é integral a seu destino
eterno.
O ser humano é obrigado, portanto, a aceitar que jamais conseguirá
exaurir a plenitude da gnose divina e que sua postura vis-à-vis a esta gnose deve ser sempre uma postura apofática.
Ademais, o ser humano está obrigado a aceitar que, a
despeito da profundidade de sua união com o Absoluto, não apenas esta unidade
será sempre bi-unitária, uma dupla unicidade, unus-ambo, mas também jamais conseguirá exaurir a capacidade para
uma união ainda mais profunda.
Por sua vez, isso significa que o ser humano jamais possuirá
in actu mais conhecimento metafísico
do que o estado de sua união com o Absoluto lhe permitirá possuir.
Por fim, o ser humano vê-se obrigado a aceitar que o estado
de divinização, ou theosis, que ele alcance, qualquer que seja ele, jamais
transcenderá a forma espiritual e pessoal por meio da qual o Absoluto
manifesta, e que por conseguinte dá existência concreta, a virtualidade
inalienável e imperecível de Seu próprio Ser.
Isso equivale a afirmar que o conhecimento e a experiência
da verdade metafísica do ser humano jamais excederá o conhecimento e a experiência
acerca de seu próprio ser, de seu próprio eu.
Consequentemente, qualquer que seja o estado do ser e,
portanto, o grau de conhecimento metafísico que alcance, esse conhecimento será
sempre correspondente e matizado por seu estado de ser, pelo estado de sua
própria identidade pessoal.
Qualquer tentativa de transcender essa identidade com o
objetivo de adquirir absoluto conhecimento metafísico deve, sob a perspectiva
cristã, representar nada menos do que uma tentativa de transcender os modos
hierárquicos da harmonia universal. “Se o sol não se mantiver na órbita que lhe
foi prescrita, os Eríneos, ministros da justiça, saberão recolocá-lo em seu
caminho correto”. [21]
O contraste dessas duas visões reflete-se e sustenta-se
evidentemente em seus respectivos entendimentos acerca do Absoluto. O princípio
da não-dualidade sustenta-se por um entendimento do Absoluto que O iguala a uma
Essência não apenas unitária, mas também totalmente indiferenciada: não se
aceitam nela quaisquer distinções .
A visão cristã sustenta-se por um entendimento do Absoluto
ao mesmo tempo unitário e triádico, ou seja, há distinções nas Pessoas do
Absoluto e essas distinções, embora reais e indissolúveis, não por isso dividem
Sua unitariedade.
Por conseguinte, o Absoluto cristão, o qual admite
diferenciações, não é, do ponto de vista do Absoluto que se sustenta no
princípio da não-dualidade, o Absoluto absoluto: as Pessoas da Trindade, neste
último caso, só podem ser limitações do Absoluto, e não podem portanto ser
identificadas com o Absoluto, que em Si deve transcender toda limitação e,
consequentemente, todo personalismo.
Isso está em franca oposição ao entendimento cristão,
segundo o qual é incorreto imaginar um Absoluto que seja não-pessoal, ou uma
Pessoa que seja não-Absoluto. [22]
Poderíamos afirmar este contraste em termos mais simples e
dizer que destas duas visões, a primeira confere alta prioridade à consistência
lógica e daí tender a ser catafática, enquanto a segunda é mais antinômica em
sua abordagem, e dai tender a ser apofática.
Assim, na primeira visão a consistência lógica é levada a ponto
de afirmar que, dado um Absoluto essencialmente não-diferenciado, o que quer
que seja diferenciado é menos real do que o Absoluto e, portanto, relativo, ou
ao menos apenas relativamente Absoluto; e o que é relativo não pode ser
Absoluto de maneira alguma.
Na segunda visão, por outro lado, a antinomia é levada a
ponto de afirmar não apenas que o diferenciado não precisa ser menos do que
Absoluto, e portanto relativo, mas também que é perfeitamente possível que o
relativo seja Absoluto, e o Absoluto seja relativo, sem com isso comprometer a
relatividade do relativo ou o absolutismo do Absoluto no mais mínimo que seja.
Pode-se dizer dessas duas visões que a primeira implica uma
metafísica cuja primazia de origem no Absoluto é dada à Essência
não-diferenciada, enquanto a segunda implica uma metafísica na qual tal
primazia é dado ao ato de ser, a qual confere diferenciação: é o ato de ser que
em si determina a Essência, enquanto na metafísica da primeira visão o ato de
ser é visto como não-essencial, até mesmo irreal e ilusório, um acidente
super-adicionado ou super-imposto ao Absoluto.
Devemos dizer ainda que a noção, implícita no conceito de
não-dualidade, de que seja possível a nós seres humanos realizar nesta vida
presente nossa identidade essencial com o Absoluto supra-pessoal e, por
conseguinte, atingir um estado nesta vida presente cujo conhecimento seja não
apenas universal e infalível, mas também que sejamos impermeáveis à vicissitude
e ao erro, não é válida para o modo cristão de ver as coisas; pois nesta visão
todos, a despeito de seu grau de perfeição, estão ainda expostos nesta vida
presente a ambas contingências. Pensar de outra forma seria, sob o ponto de
vista cristão, ignorar o mistério da liberdade humana, a qual é inalienável,
não importa o estado de graça na qual se encontre.
[1] Cf.
Marco Pallis, “A Fateful Meeting of Minds”, em Studies in Comparative Religion, Verão-Outono 1978, pág. 178-188.
[2] Cf. Whitall N. Perry, resenha da tradução inglesa de Le Roi du Monde, em Studies in Comparative Religion, Verão-Outono 1983, pág. 244-247.
Cf. Marco Pallis, “Ossendowski´s sources”, em Studies in Comparative Religion, Inverno-Primavera 1983, pág.
30-41.
[3] Cf. Marco Pallis, “Le Voile du Temple”, em Études Traditionnelles, Julho-Agosto,
Setembro-Outubro 1964, pág. 155-176; Novembro-Dezembro 1964, pág. 263-267;
Março-Abril 1965, pág. 55-66.
[4] René Guénon, Le
Symbolisme de la Criox (Paris, 1950), pág. 20, nota 2. A tradução deste
trecho é de Philip Sherrard.
[5] As citações desta obra, cujas traduções são minhas,
foram extraídas da edição de 1947 (Paris), e todas as páginas mencionadas nas
notas de rodapé são dessa edição. Há uma edição inglesa, traduzida por Jocelin
Godwin, publicada com o título de The
Multiple States of Being pela Larson Publications (Nova York, 1984).
[6] René
Guénon, Les États, pág. 17.
[7] Ibid. pág. 40.
[8] Ibid. pág. 17 e nota 1, pág. 17.
[9] Ibid. pág. 19 e nota 2.
[10] Ibid.
pág. 123.
[11] Ibid.
pág. 127.
[12] Ibid.
pág. 83, 107, 122.
[13] Ou, como disse Guénon, “a metafísica não pode
contradizer a razão, pois ela situa-se acima da razão”. Cf. Introduction
to the Study of Hindu Doctrines (Londres, 1945), pág. 116.
[14] Uma descrição mais completa da doutrina da Trindade
encontra-se no meu Church, Papacy and
Schism (Londres, 1978), pág. 96-110.
[15] René
Guénon, Les États, pág. 31-32.
[16] Ibid.
pág. 132.
[17] Ibid.
pág. 19.
[18] Ibid.
pág. 127.
[19] ibid.
pág. 127.
[20] O dualismo, que traz em si realidades completamente não-recíprocas
e não-mutuamente interpenetrantes, não deve ser confundido com dualidade.
[21] Herakleitos, Diels-kranz 94.
[22] Este entendimento é em certa medida modificado pela
tradição teológica que deriva de Santo Agostinho e passa através de Santo
Anselmo e São Boaventura até os escolásticos; pois nesta tradição há uma
tendência a se afirmar a primazia da essência não-pessoal da Trindade sobre a
realidade concreta das Pessoas, obnubilando a integridade e coerência plenas da
doutrina trinitária cristã.
Fonte:
Philip Sherrard, Christianity: Lineaments
of a Sacred Tradition, capítulo 4, pág. 76-114, Holy Cross Orthodox Press, Brookline,
MA, EUA, 1998.