10 de dezembro de 2015

A metafísica da lógica


Philip Sherrard

Dos diversos fatores que podem contribuir para as profundas divergências subjacentes à formulação da doutrina metafísica, um dos mais cruciais – e um dos menos reconhecidos – é o papel atribuído à lógica. Isso não significa que algumas doutrinas sejam estruturalmente lógicas e outras ilógicas – por exemplo, que a doutrina vedântica seja lógica e a doutrina cristã seja ilógica. A coisa não é tão simples assim. A doutrina cristã, dadas suas premissas, é tão lógica quanto a doutrina vedântica, ou mesmo tão lógica quanto qualquer sistema profano de estrutura da realidade, como, por exemplo, o da ciência moderna, cujos devotos garantem que esse não é o caso, seja em relação à doutrina cristã ou a qualquer doutrina de caráter religioso. O que está em pauta aqui não é saber se uma determinada doutrina metafísica, dadas suas premissas, é ou não é lógica, mas saber qual o papel atribuído à lógica na determinação das premissas – os dados primordiais – dessa doutrina.

Eu poderia explicar isso contrastando a abordagem cristã com a abordagem, digamos, de Proclo em seus Elementos de Teologia. Em vez disso, prefiro contrastar a abordagem cristã com a do grande metafísico do século XX, René Guénon (1886-1951). Se podemos dizer que nos últimos cem anos houve alguma restauração, no mundo ocidental, do que significa metafísica e tradição metafísica, o crédito deve ser dado, acima de todos, a Guénon. Em meio à confusão em que o pensamento ocidental moderno mergulhou, chegando ao ponto de ameaçar de extinção os poucos traços remanescentes do conhecimento espiritual genuíno das mentes e corações de seus contemporâneos, Guénon, praticamente sozinho, tomou para si a tarefa de reafirmar os valores e princípios que, segundo seu entendimento, constituem a única base sólida sobre a qual a vida humana pode existir com dignidade e propósito e sobre a qual uma civilização digna desse nome pode ser formada. Ele jamais conseguiria ter contido a tendência da ignorância e da desintegração se intensificarem, muito menos revertê-la, pois isso seria contraditório ao seu entendimento acerca da fase cíclica na qual o mundo se encontra. O máximo que ele esperava era despertar a consciência desses valores e princípios em algumas pessoas; na verdade, das pessoas que hoje detêm essa consciência, poucas não a devem à obra de Guénon.

Realizações dessa magnitude em geral vêm acompanhadas de riscos e armadilhas; afirmar que pessoas assim são imunes a erros e preconceitos humanos não serve a nenhum propósito: isso seria mera adulação inócua. Certamente Guénon não estava livre deles. Em parte isso se deve a seu temperamento, treinamento e experiência; em parte à ignorância a respeito da natureza do assunto sobre a qual versava, como no caso em que relutou a aceitar, sem razões suficientes, o fato de o Budismo ser uma tradição metafísica de pleno direito, até que se lhe mostrassem evidências que o forçaram a concluir o contrário. [1] Mais recentemente, algumas opiniões emitidas por Guénon em seu livro Le Roi du Monde foram criticadas por conta de alguns fatos obviamente distorcidos, distorção essa que apelava mais ao senso do oculto do que ao senso do sagrado. [2] Em ocasiões anteriores, algumas de suas conclusões acerca da tradição cristã foram questionadas [3]; e pode haver outros artigos que questionem ou critiquem suas ideias dos quais ainda não tomei ciência.

Contudo, meu objetivo aqui não é corrigir ou criticar os erros de julgamento ou de interpretação que Guénon possa ter cometido por conta de alguma avaliação apressada de sua parte ou porque dados insuficientes lhe estavam disponíveis ou qualquer coisa do gênero. Meu objetivo é apenas e tão-somente versar e esclarecer o assunto que citei acima: o papel da lógica em determinar as premissas subjacentes, ou dados primordiais, da doutrina metafísica.

A ideia fundamental da doutrina metafísica conforme exposta por Guénon é a ideia do Infinito, isto é, da Possibilidade universal. Esta ideia é provavelmente sua ideia central, isto é, a ideia que constitui para Guénon o que podemos chamar de datum primordial da genuína exegese metafísica e que distingue essa exegese das estruturas de pensamento que, por mais que posem de metafísica, não passam de meras construções filosóficas. Conforme o próprio Guénon escreveu: “É importante notar que os filósofos, ao construírem seus sistemas, sempre impõem, consciente ou inconscientemente, alguma limitação à Possibilidade universal, algo que é contraditório, embora inevitável, às construções desse tipo. Seria interessante escrever a história das diversas teorias filosóficas modernas sob o ponto de vista das limitações impostas à Possibilidade universal”. [4] Essa observação implica obviamente que, sob o ponto de vista metafísico, a Possibilidade universal – o Infinito – é por definição livre de toda e qualquer limitação.

Ocorre que, se examinarmos com atenção a ideia de Possibilidade universal conforme apresentada por Guénon, começaremos a questionar se ele mesmo não lhe impõe “consciente ou inconscientemente” certas limitações. Em um exame mais detido, fica claro que essa limitação – se é que se trata de uma limitação – está implícita no próprio conceito da relação entre lógica e o Absoluto, o qual Guénon eleva a status de axioma. Por fim, percebe-se que há aspectos da metafísica de Guénon que não são conclusões extraídas de dados recebidos por via revelatória ou iniciática, mas consequências diretas da aplicação na ordem metafísica de princípios exegéticos radicados nesse axioma a que me referi.

Para que fique claro o que quero dizer com tudo isso, devo explicar brevemente a ideia de Possibilidade universal conforme Guénon a entendia. Para isso, será suficiente consultar uma de suas principais obras, Les États multiples de l´Être. [5] Conforme notamos acima, a ideia de Possibilidade universal é intercambiável com a ideia de Infinito. O conceito de infinito, para Guénon, tem sua origem na proposição de que “toda determinação é necessariamente uma limitação”. [6] Dado que podemos demonstrar que toda limitação – ou seja, toda tentativa de tornar finito – implica em uma negação do Infinito (omnis definitio est negatio é a famosa fórmula spinoziana deste argumento), portanto qualquer determinação é também uma negação do Infinito. Consequentemente, a ideia de Infinito só pode ser expressa em termos negativos. O Infinito é aquilo que está para além de toda e qualquer determinação. Ele é indeterminação absoluta, totalmente impessoal e inqualificado. Um corolário desse raciocínio é que o Infinito coincide com a Possibilidade universal, pois se houvesse uma única possibilidade ausente do Infinito, sua infinitude estaria limitada e, portanto, negada por essa possibilidade da qual foi privada. Em outras palavras, o Infinito é também Possibilidade universal – o Onipossível. Portanto, é esta ideia de Infinito, a qual também pode ser designada como Possibilidade universal, que constitui para Guénon o princípio metafísico supremo, o Absoluto que, por sua vez, constitui o datum primordial de sua exegese doutrinal.

A ideia de possibilidade, porém, implica em seu oposto, isto é, na ideia de impossibilidade. Guénon explica que impossibilidade é o puro nada, a negatividade absoluta. [7] É aqui que vem a pergunta: como podemos reconhecer ou determinar uma impossibilidade ou, formulando a pergunta inversamente, como podemos reconhecer e determinar o que é possível? A resposta de Guénon a este questionamento indica não apenas a limitação que ele impõe à Possibilidade universal, mas também introduz o que será o principal interesse deste capítulo, qual seja, explorar a maneira como a apresentação de Guénon da doutrina metafísica é afetada por sua postura peculiar em relação à lógica e por sua concepção peculiar a respeito da relação entre a ordem lógica e a ordem metafísica – este é um ponto muito importante. Para Guénon, uma impossibilidade é uma absurdidade no sentido lógico da palavra. O absurdo, no sentido lógico da palavra, é tudo aquilo que implica em uma contradição lógica. Inversamente, a ausência de contradição interna é o que logicamente e ontologicamente (itálicos meus) definem uma possibilidade. [8]

Em que sentido essa conclusão implica na imposição de uma limitação à Possibilidade universal é algo que veremos adiante. O que importa agora é esclarecer a postura em relação à lógica e no que tange a relação entre as ordens lógica e metafísica que ela pressupõe, além de mostrar quais as consequências que essa postura implica na maneira como Guénon é levado a imaginar a doutrina metafísica.

Já vimos que Guénon tipifica o Infinito em termos consistentes – na verdade, dependentes – das leis da lógica. Segundo as leis da lógica, toda determinação deve excluir todos os aspectos da realidade que não estejam subordinados aos limites da determinação em questão. Uma parede não pode ser uma árvore ou uma vaca ou outra coisa que não esteja subordinada à determinação denotada pela palavra “parede”. Isso significa que, segundo as leis da lógica, toda determinação implica em um grau maior ou menor de limitação quando comparado com a soma total da realidade abarcada pelo Infinito. Em outras palavras, a análise lógica suprema do Infinito deve estar para além de toda determinação, já que qualquer determinação, como vimos, implica em alguma limitação e, portanto, na exclusão de algum ou alguns aspectos da soma total da realidade do Infinito, o que seria uma contradição em termos. Assim, em termos consistentes às leis da lógica, o mais elevado princípio da ordem metafísica – a que abrange toda a realidade possível e é infinita em sua natureza – deve estar para além de toda determinação. Ele tem de ser totalmente indeterminado, impessoal e inqualificado.

Por meio de uma demonstração desse tipo Guénon chega à ideia do Infinito ou Onipossível, o qual, enquanto princípio supremo da ordem metafísica, está para além até mesmo do próprio Ser. É também por meio de uma demonstração desse tipo que Guénon estabelece a lei de que qualquer princípio metafísico que possa ser logicamente distinto do Infinito indeterminado, e por isso mesmo represente alguma determinação da soma total da realidade abarcada pelo Infinito, deve por conseguinte possuir menos realidade do que o Infinito, dado que, por definição, ele exclui algum aspecto ou aspectos da soma total da realidade contida no Infinito. Quanto maior o grau de determinação, tanto mais aspectos excluirá da soma total da realidade contida no Infinito e, portanto, tanto menor será o grau de realidade.

Por exemplo, o Ser, que representa a determinação primordial do Infinito e portanto é subsequente ao Infinito, possuirá ipso facto um grau menor de realidade absoluta em relação ao Infinito; o mesmo se aplica, em graus cada vez maiores, a todas as determinações que partem ou emanam do Ser e de tudo aquilo que está abaixo do Ser. Assim, a ordem metafísica se estabelece como uma hierarquia de gradações – os estados múltiplos do ser – cada qual real em seu próprio nível mas cada qual possuindo um grau de realidade que depende de sua proximidade relativa ao Infinito pré-ontológico. Somente o Infinito é absolutamente real; o que quer que esteja subsequente ao Infinito, e logicamente distinto do Infinito pelo grau de determinação que lhe é característico, será apenas relativamente real.

Contudo, Guénon vai ainda mais longe. Para ele, qualquer determinação em relação ao Infinito é “rigorosamente nada” e não tem qualquer relação com o Infinito. [9] Esta é apenas outra forma de dizer que qualquer realidade que seja atribuída a uma determinação não pertence a ela por conta de sua determinação, mas apenas na medida em que está implícita na ordem das possibilidades infinitas. A realidade de uma determinação, mesmo em sentido relativo, não é da determinação em si – pois ela é “rigorosamente nada” – mas do conjunto das possibilidades de determinação na medida em que elas não manifestam a si mesmas mas apenas embutem manifestação em sua natureza (itálicos meus). [10] Em última instância, somente aquilo que é possibilidade é real, e mesmo assim somente se permanecer uma possibilidade, sem se actualizar. Manifestação e multiplicidade são essencialmente irreais e ilusórias. [12]

Tudo isso se depreende lógica e necessariamente de duas proposições básicas. A primeira é de que toda determinação é necessariamente uma limitação e a segunda é de que não há nada na ordem metafísica de uma natureza que possa ser expressa somente em termos que violem o princípio lógico da não-contradição. Em outras palavras, não há nada na ordem metafísica que não possa ser expresso em termos que se moldem às leis da lógica pois, para Guénon, o que quer que não possa ser expresso dessa forma é uma impossibilidade e, portanto, não tem vez na ordem metafísica nem em parte alguma. Isso não significa dizer, nem implica em dizer, que a ordem metafísica não seja supralógica, ou que a ordem lógica coincida com a ordem metafísica. Mas implica, sim, em dizer que a ordem lógica espelha em si a estrutura da ordem metafísica, de maneira que as leis da lógica não apenas derivam, mas aplicam-se analogicamente à ordem metafísica. [13] Isso significa que quando a realidade metafísica encontra-se refletida no plano lógico da mente humana, os conceitos que formam de si serão – ou pelo menos deveriam ser em princípio – logicamente consistentes e não contraditórios, pois, em última instância, nada na ordem metafísica viola o princípio da consistência lógica e da não-contradição. Há uma correlação ou adequação total entre a ordem metafísica e a ordem lógica. É por isso que Guénon não pensa duas vezes em aplicar as leis da lógica à tipificação do reino metafísico e em afirmar de maneira tão positiva que “logicamente, assim como ontologicamente”, tudo nesse reino tem de conformar-se ao princípio da não-contradição, no sentido lógico da palavra.

O que dissemos aqui pode ser melhor elucidado se a formulação da doutrina metafísica de Guénon for contrastada com a doutrina metafísica de uma tradição, tal como a tradição cristã ortodoxa, na qual a correlação total entre ordem lógica e ordem metafísica não é pressuposta da mesma forma. Pois para os mestres doutrinários dessa tradição o princípio supremo da ordem metafísica não é o Infinito indeterminado e impessoal, como é o caso de Guénon. O princípio supremo é a Trindade. Eles reconhecem que a natureza suprema da Trindade – aquilo a que eles chamam de essência – é incognoscível e, enquanto tal, está para além tanto da determinação quanto da não-determinação; mas não é por causa disso que eles entendem que haja nessa natureza um princípio metafísico superior à Trindade. Pelo contrário, eles afirmam que a essência, embora esteja para além da determinação e da não-determinação, não é um princípio impessoal ou não-pessoalizado, pois a essência subsiste somente na medida em que está “hipostatizada” nas três pessoas da Trindade. Eles recusam a ideia de uma essência indeterminada e impessoal – o Infinito – que transcenda a Trindade, assim como concomitantemente recusam a ideia de que a Trindade represente uma determinação da essência no sentido de que cada pessoa da Trindade expresse a essência em um modo relativo ou que, por conta disso, seja menos real ou menos absoluta e infinita do que a essência. Para eles, cada pessoa da Trindade, embora distinta das demais pessoas, é tão real e tão absoluta quanto cada uma das demais pessoas, e a realidade, a absolutez e a infinitude possuída por cada pessoa são as da própria Realidade em si, e do Absoluto e do Infinito em si, no sentido mais pleno e amplo das palavras.

É claro que isso não quer dizer que eles aceitam três Absolutos, cada qual com uma essência independente, a qual, a propósito, seria a mesma essência possuída pelas demais. Há apenas um Absoluto. No entanto, este Absoluto singular não deve ser concebido como sendo constituído por uma essência que seja um princípio subsistente e à parte da hipostatização nas três pessoas, nem deve ser concebido como sendo constituído por uma das três pessoas de maneira que ela situe-se à parte das outras duas e que possa ser considerada como princípio independente com respeito às outras duas. Entre as pessoas da Trindade há absoluta unidade e absoluta diversidade; e assim como não há essência não-hipostatizada, assim também não há pessoas não-essencializadas: o que há é apenas uma concomitância de uma essência e três pessoas, sem prioridade ou subordinação de parte a parte. Portanto, imaginar uma essência que não esteja hipostatizada ou uma pessoa que não esteja essencializada é contrariar a riqueza plena e complexa do Absoluto. [14]

O corolário disso tudo é que, a despeito do quanto se penetre no reino metafísico – para além de toda manifestação formal e informal, para além do Ser, no interior das profundezas insondáveis do Urgrund pré-ontológico –, jamais a pessoalidade do Absoluto será superada, pela simples razão de que não há nada no reino metafísico que transcenda essa pessoalidade. A perspectiva suprema na qual a mais exaltada ideia de ordem metafísica consegue almejar será sempre pessoal.

Do que dissemos depreende-se que para os mestres dessa tradição o Absoluto não apenas transcende a ordem lógica (como também é o caso em Guénon), mas também não pode deixar de ser tipificado (sob pena de adulterá-lo profundamente) em termos que violem as leis da consistência lógica e da não-contradição. Ora, reconhecer distinções no Absoluto sem aceitar que tais distinções impliquem em certa relatividade àquilo que é distinto – mesmo que seja uma absolutez relativa – significa, logicamente falando, colocar-se na posição de afirmar aquilo que Guénon chama de absurdidade. Em outras palavras, a ideia da Trindade conforme apresentada pelos mestres doutrinários da tradição cristã ortodoxa transcende a correlação entre a ordem lógica e a ordem metafísica, a qual, para Guénon, é o suprassumo de qualquer doutrina metafísica digna desse nome. A afirmação de que toda determinação implica em limitação é uma afirmação da ordem lógica. Contudo, dado que para Guénon há uma correlação rígida entre a ordem da lógica e a ordem metafísica, a verdade da ordem lógica pode ser aplicada analogicamente à ordem metafísica. Assim, postular uma determinação na ordem metafísica implicará necessariamente em postular um grau relativo de limitação naquilo que é determinado em relação à natureza indeterminada e inqualificada da própria Realidade infinita e absoluta.

No contexto específico do qual estamos versando, isso tudo significa que cada Pessoa da Trindade representa uma determinação in divinis, cada Pessoa, segundo os critérios de Guénon, não pode ser propriamente o Absoluto, pois na natureza das coisas qualquer determinação implica em limitação e, portanto, não pode ser o Absoluto no sentido pleno da palavra. Consequentemente, cada Pessoa da Trindade deve ser algo menos absoluto e, portanto, menos real do que o Absoluto, pois a absoluteza, neste sentido, é prerrogativa única e exclusiva de um princípio totalmente indeterminado. Por conseguinte, se este princípio supremo e indeterminado da ordem metafísica for designado pelo termo Essência, então para Guénon a Essência deve transcender toda hipostatização e subsistir como princípio independente, enquanto as Pessoas da Trindade devem expressar a Essência de modo necessariamente relativo.

Desse ponto de vista, portanto, a afirmação de que o princípio supremo da ordem metafísica é trinitário e pessoal denuncia pura e simplesmente uma falha em apreender a natureza inqualificada e impessoal daquilo que em verdade é o princípio supremo dessa ordem, e ressalta que se está identificando o Absoluto com aquilo que, na verdade, já é certa relativização, por menor que seja,  do próprio Absoluto, pois ele transcende toda e qualquer distinção. A partir da concepção de Guénon da relação entre lógica e Absoluto, é absolutamente impossível reconhecer ou admitir como adequada a seus propósitos uma ideia doutrinal tal como a da Trindade, a qual implica ou postula que o Absoluto, no sentido fundamental da palavra, pode ser tipificado somente em termos que, do ponto de vista lógico, são contraditórios. É por causa disso que o próprio Guénon foi levado a distinguir entre o que ele chamava de “verdadeira metafísica” e a “teologia”, negando a esta o status de metafísica genuína.

Ora, mas será que as coisas são tão simples assim? A doutrina da Trindade expressa a unidade e a diversidade das três Pessoas no Absoluto: ela expressa o mistério de um Absoluto que é simultaneamente Um e Três, Mônada e Tríade. Mas a ideia de que há três Pessoas no Absoluto, cada qual concretizando o Absoluto por si mesma e portanto transcendendo toda e qualquer forma de relatividade, não é para os cristãos uma questão de especulação teológica. Para eles, a Trindade é a realidade primordial da própria vida divina, um fato metafísico transmitido por meio de revelação divina, o qual constitui para eles um datum primordial da exegese doutrinal. Enquanto tal, trata-se de um princípio ao qual a mente humana deve amoldar-se conquanto faça justiça à natureza da Verdade suprema.

Em outras palavras, a ideia da Trindade, para os cristãos, desempenha o mesmo papel na formulação de doutrinas que as ideias de Infinito e Onipossibilidade desempenham para Guénon: é o ponto do qual a exegese doutrinal parte. Que seja uma ideia antinômica e paradoxal, no sentido de que, do ponto de vista lógico, ela não se conforma à lei da não-contradição, não significa que seja arbitrária ou que falte à exegese cristã certas sutilezas e refinamentos. É algo que lhes é imposto pela maneira como o Absoluto foi tipificado pela revelação cristã. Isso significa dizer que o Absoluto revelou-se como sendo essencialmente paradóxico por natureza. Consequentemente, a tentativa de resolver esse paradoxo, seja afirmando uma proposição do paradoxo à custa da outra, ou formulando uma ideia “superior” na qual ambas acabem absorvidas de forma a aplainar quaisquer contradições internas, é ipso facto representar o Absoluto de maneira menos adequada. Na perspectiva cristã, a ideia translógica e paradóxica da Trindade é a ideia mais primordial de todas. Ela constitui o conceito-limite, o ne plus ultra, do pensamento humano, e não há nem pode haver qualquer ideia que represente o Absoluto de maneira mais adequada.

Todavia, para Guénon as coisas não podem ser assim pois, conforme vimos, ele aceita como axiomática a proposição de que a ideia mais adequada de Absoluto acessível à mente humana será, ou melhor, tem de ser, uma ideia consistente com as leis da lógica. Isso significa que, a rigor, a inteligência humana, ao formular sua ideia de Absoluto, não precisa se moldar a um datum metafísico tipificado por revelação divina, aceitando-o como um ponto de partida que determine a forma da exegese doutrinal. Pelo contrário, qualquer datum deve agora se sujeitar, no que tange sua tipificação, aos critérios da lógica, e é a esses critérios que a inteligência humana deve se moldar ao formular a ideia de Absoluto. É verdade que essa exigência – de que a inteligência humana, ao tipificar o Absoluto, deva acomodar-se aos critérios da lógica – não é uma exigência arbitrária, pois se supõe que há uma correlação entre a ordem da lógica e a ordem metafísica que a justifique e a torne obrigatória. Mas a consequência inevitável será de que o conceito-limite, o ne plus ultra, do pensamento humano, no que tange a ideia do Absoluto, não será uma ideia que seja translógica e paradóxica, mas  uma ideia obtida através de demonstrações puramente lógicas. Pode-se dizer que, sob essa perspectiva, o árbitro supremo da forma que a expressão doutrinal deve tomar é um datum tipificado pelas normas da discriminação e demonstração lógicas.

Vamos agora sintetizar o contraste cujos contornos, digamos assim, delineamos até aqui. Na perspectiva cristã, o árbitro supremo da forma que a exegese doutrinal deve assumir é o datum primordial tipificado pela revelação divina, e é a ele que a inteligência humana deve se moldar, mesmo que sob pena de violar as leis da lógica. Por outro lado, na perspectiva guénoniana, o árbitro supremo da forma que a exegese doutrinal deve assumir não é o datum tipificado pela revelação divina, mas um datum tipificado pelas normas da discriminação e da demonstração lógicas, e é a ele que a inteligência humana deve se moldar.

Assim, se o datum primordial tipificado pela revelação divina – no caso da revelação cristã – é de tal forma que obriga sua exegese doutrinal a se expressar em termos que sejam logicamente contraditórios, na perspectiva guénoniana isso só pode evidenciar que o datum primordial dessa revelação corresponde não ao nível mais elevado da realidade metafísica, mas apenas a algum nível subordinado – não ao Absoluto absoluto, mas a alguma relativização do Absoluto. Para corresponder ao Absoluto absoluto, o datum primordial de uma revelação específica deveria ser peremptoriamente tipificado em termos que se conformem às leis da lógica. Novamente, o árbitro supremo da decisão se o datum primordial de uma revelação específica corresponde ao Absoluto absoluto ou apenas a uma relativização do Absoluto, e portanto a um Absoluto relativo, são as normas da discriminação e demonstração lógicas. E tem de ser assim porque, na perspectiva guénoniana, não pode haver, em última instância, contradições entre a ideia do Absoluto absoluto e a demonstração supremamente lógica na qual a inteligência humana é capaz de operar. Na natureza das coisas, a mais elevada demonstração lógica a qual na inteligência humana é capaz de operar tem de corresponder ao Absoluto absoluto.

Ora, é evidente que, da maneira como esse contraste se definiu, a proposição da relação entre lógica e Absoluto estabelecida por Guénon assume um valor axiomático que não tem a mesma autoridade para os mestres doutrinários da tradição cristã ortodoxa. Evidentemente eles não podem aceitar que há  esse correlação ou concordância entre a ordem metafísica e a ordem da lógica, tão dominante para Guénon, pois se aceitassem chegariam a conclusões similares, pois as conclusões, dadas as proposições em questão,  são óbvias mesmo para a mais medíocre das inteligências. Ademais, os mandamentos da lógica aristotélica os quais essas conclusões pressupõem, e as quais Guénon se apega tão intensamente, são os lugares-comuns do treino filosófico que todos eles receberam. Portanto, se eles rejeitam – e eles rejeitam – tanto as proposições quanto as conclusões, eles sabem perfeitamente bem o que estão fazendo. Ora, então por que eles as rejeitam? Será que é pelo simples fato de que o datum de sua revelação, aceito de maneira inconteste, não se molde a elas? Não restam dúvidas de que, considerando-se o datum primordial de sua revelação como ponto de partida, eles aplicam a faculdade de discriminação e demonstração lógicas tão plenamente quanto Guénon a aplica. Mas eles o fazem apenas de maneira dedutiva. Eles não a aplicam, digamos, para cima, ou seja, não a aplicam para tipificar o Absoluto, pois consideram que tal operação excederia os limites aos quais as leis da lógica se aplicam.

Para os mestres da tradição cristã ortodoxa, o Absoluto não é um princípio lógico ou um princípio suscetível às leis da lógica. Não é da competência da dialética defini-Lo. Sua essência não deve ser interpretada por meio de silogismos ou demonstrada ou provada de acordo com critérios para além de Si mesma. O Absoluto é Sua própria demonstração, Sua própria prova, e a evidência que fornece de Si somente pode ser conhecida através de revelação direta ou inspiração profética. Consequentemente, eles jamais concordariam que aquilo que é logicamente necessário é, por isso mesmo, ontologicamente real, ou que aquilo que é possível deve, por definição, ser livre de contradições internas conforme estipuladas pelas normas da lógica.

Além disso, porém, e de maneira mais positiva, esses mestres consideram a lógica como uma função da ratio; e dado que a ratio é uma faculdade relativa e finita, cuja operação se dá somente com referência a algum ponto de partida, eles não consideram que o critério da lógica seja capaz de estabelecer qual deve ou não deve ser o ponto de partida, pois o que está em questão é o princípio máximo da ordem absoluta e infinita. Pensar de outra forma seria colocar-se na posição absurda de dizer que a ratio, que por definição opera somente de um determinado ponto de partida, é capaz de estabelecer o próprio ponto de partida do qual opera. Seria o mesmo que dizer que a ratio consegue operar sem ponto de partida, mas isso é precisamente aquilo que ela não consegue fazer. Se ela fosse capaz de fazer isso, a ratio, relativa e finita, seria senhora não apenas de suas próprias conclusões, mas também, no presente contexto, do próprio Absoluto. Assim, conforme dissemos, os mestres cristãos ortodoxos entendem que eles não têm o direito de aplicar os critérios da lógica para demonstrar, mesmo que seja em termos estritamente negativos, como o Absoluto deve ou não deve ser.

Se é assim, então por que, ou com base em quê, essa mesma proposição, que é tão consagrada e respeitável para Guénon a ponto de ele aplicar os critérios da lógica para demonstrar, mesmo que em termos negativos, o que o Absoluto deve ou não deve ser, assim como demonstrar o que tudo que se segue ao Absoluto deve ou não deve ser, não apenas é legítima mas obrigatória? Nem em Les États multiples de l´Être, nem, até onde pude apurar, em suas demais obras, Guénon fornece alguma explicação que estabeleça sua validade de lei incondicional da exegese metafísica. Em Les États multiples de l´Être, ele meramente a anuncia  como uma espécie de ipse dixit ao descrever como se distingue uma possibilidade de uma impossibilidade. Tudo o que podemos dizer é que, a menos que seja totalmente arbitrário, essa proposição pressupõe, conforme notamos, que a estrutura da ordem metafísica, supra-lógica em si, esteja refletida na ordem lógica, de forma que é na aplicação das leis da demonstração lógica que os princípios da ordem metafísica são mais bem tipificados. Em outras palavras, seria perfeitamente legítimo aplicar os critérios da lógica à ordem metafísica, e consequentemente tipificar essa ordem – dizer o que deve ou não deve ser –, pois ao fazer isso estaríamos apenas e tão-somente operando de uma forma que se justifica na própria ordem metafísica. Ora, trata-se de uma forma argumentativa puramente circular, e que ainda deixa sem resposta a questão de quem ou o quê valida a proposição da qual depende, a saber, que há uma correlação ou adequação inerente e necessária entre a ordem metafísica e a ordem lógica.

Portanto, a não ser que aceitar a proposição em questão seja um ato de fé arbitrário ou inespecífico, ainda resta a tarefa de identificar bases objetivas para aceitá-la. Pois ela de forma alguma se configura em uma proposição auto-evidente, nem é uma proposição a qual a lógica em si possa demonstrar sua natureza abalizada. Em verdade, não há maneira possível de que isso seja demonstrado sem se apelar a princípios ou critérios de demonstração que em si foram estabelecidos com base precisamente na mesma proposição, o que, obviamente, significa nada demonstrar: trata-se de mera repetição do mesmo argumento circular. Consequentemente, tudo o que nos restaria a fazer é assumir que ela é válida e seguir aplicando as leis da lógica à formulação da doutrina metafísica como se ela de fato fosse válida. Mas a autoridade da proposição em si está para além da prova ou da refutação.

Ademais, a aplicação dessa proposição na apresentação da doutrina metafísica parece revelar a incapacidade de validar o que ela afirma. Se começamos, como Guénon faz, com a ideia de um Absoluto, lograda mediante a aplicação dos critérios da lógica, que seja totalmente indeterminado, imutável, impessoal etc., chegamos à questão de fornecer alguma explicação adequada a como ou por que o Absoluto, no qual está incorporada a soma total da realidade, “passa” para a manifestação, ou para a aparência de manifestação; ou como ou por que o determinado surge do Indeterminado; o mutável do Imutável; o pessoal do Impessoal. Na explicação de Guénon desse processo, o princípio da manifestação é chamado de puro Ser. Enquanto princípio da manifestação, o Ser em si transcende a ordem manifestada e pertence à ordem não-manifestada. Ao mesmo tempo, ele diz que o Ser é a primeira determinação dessa ordem, e isso seria precisamente o que torna possível o Ser determinar a hierarquia dos estados múltiplos do ser que dele procede.

Ora, isso deixa sem resposta a questão sobre como o próprio Ser é determinado. A ordem não-manifestada, escreve Guénon, é feita de Ser e Não-Ser. O Ser engloba todas as possibilidades de manifestação, formal e informal, na medida em que estas serão manifestadas; o Não-Ser engloba todas as possibilidade de não-manifestação, incluindo o próprio Ser e a manifestação, na medida em que permanecem puras possibilidades. [15] Mas será que isso significa que o Não-Ser é o princípio do Ser no mesmo sentido que o Não-Ser determina o Ser? Não podemos afirmar isso, pois aquilo que é completo e infinito em sua não-determinação não pode determinar-se sem tornar-se menos e outro do que si próprio, contradizendo assim sua própria natureza, o que seria uma impossibilidade. Portanto, o Não-Ser não pode abarcar o princípio ou a possibilidade de autodeterminação: ele não é determinado por nada (pois o Não-Ser é “não-dual” e onde não há dualidade nada pode ser determinado por nada) e ao mesmo tempo é impotente para determinar o que quer que seja (pois no âmbito do Não-Ser Absoluto não há nada a determinar e nada que possa ser determinado).

Isso significa que somos confrontados com um dilema. Tem de haver uma primeira determinação, pois caso não haja uma primeira determinação não é possível que haja determinações subsequentes e, assim, toda a teoria dos estados múltiplos do ser perderia sua fundamentação ontológica. Por outro lado, no Absoluto não há, de acordo com Guénon, um princípio que possa determinar a primeira determinação. É da necessidade de resolver esse dilema que Guénon anuncia o que poderíamos chamar de salto quântico metafísico. Diz ele: “O Ser não é determinado, mas determina-se a si mesmo”. [16]

Vale a pena nos determos um pouco mais nessa afirmação. A primeira parte da frase, em si, equivale a dizer que uma determinação não é determinada, o que sem dúvida é uma contradição em termos; enquanto que a segunda parte da frase assume novamente ares daquilo que Guénon chamava de absurdidade, pois viola a lei da não-contradição, cuja conformidade caracteriza para Guénon aquilo que é possível. Ora, em que sentido uma determinação pode determinar-se a si mesma ou ser seu próprio princípio? Nenhuma determinação pode possuir o princípio de seu próprio ser – ou seja, de sua própria determinação – em si mesma, pois isso seria o mesmo que dizer que há um princípio que existe à parte ou oposto ao Infinito, e isso acarretaria em contradizer toda a ideia de Absoluto conforme ensinada por Guénon. Todavia, conforme vimos acima, o Absoluto não pode, em Si, ser o princípio da determinação sem ao mesmo tempo contradizer Sua própria natureza. Ora, se o Ser realmente determina-se a si mesmo por meio de uma espécie de combustão espontânea, então há aí uma possibilidade de uma impossibilidade: uma possibilidade de que uma determinação que não possui o princípio de sua própria determinação em si mesma e é, portanto, com respeito ao Absoluto, rigorosamente nada e desprovida de qualquer ser ou existência [17], mas que mesmo assim é o princípio de sua própria determinação e de fato determina-se a si mesma.

Percebemos desde logo por que é necessário postular esta determinação inerentemente contraditória do Ser, pois do contrário seria impossível explicar a passagem do Absoluto indeterminado para a primeira determinação, o puro Ser, e assim construir toda a teoria subsequente da estrutura do universo. Mas isso não deixa de ser um tipo de deus ex machina sem o qual o dilema apresentado permaneceria insolúvel; nem deixa de ser uma violação da lei da não-contradição, ou seja, uma absurdidade, conforme Guénon define esse termo. Assim, a tentativa de apresentar um princípio metafísico supremo em termos que sejam logicamente consistentes introduz necessariamente uma inconsistência lógica na descrição de quaisquer determinações que sejam subsequentes a este princípio, e na descrição de quaisquer manifestações (ou aparências de manifestações) de quaisquer tipos.

Algo muito parecido acontece quando Guénon tenta “provar metafisicamente a existência da liberdade”. [18] Pois, conforme observamos no começo deste capítulo, a ideia de Absoluto, para Guénon, só pode ser expressa em termos negativos, e portanto a liberdade em seu sentido mais elevado tem de ser definida como a ausência de restrições, e não como um poder de autodeterminação. De fato, é impossível, dadas as premissas de Guénon, que a liberdade seja descrita em termos que não sejam negativos. Conforme também notamos acima, para Guénon o Absoluto não apenas é totalmente indeterminado, mas também não pode determinar-Se a Si mesmo ou ao que quer que seja; pois se pudesse determinar-Se a Si mesmo ou ao que quer que seja, Ele obrigatoriamente teria de determinar-Se a Si mesmo ou ao que quer que seja, pois do contrário violaria seu axioma de que uma possibilidade tem de manifestar-se simplesmente porque é uma possibilidade; o que significaria que não apenas o Absoluto estaria sob restrições e, portanto, desprovido de liberdade, mas também que Ele teria de se tornar menos do que o Absoluto, o que é uma impossibilidade. Daí que o Absoluto quâ Absoluto não possui princípio ou possibilidade de autodeterminação ou determinação; consequentemente, a liberdade, em seu sentido supremo, pode ser descrita não como um poder de autodeterminação, mas somente como ausência de restrições.

O argumento subsequente para “provar a existência da liberdade” no âmbito do ser ou manifestação recai nas mesmas dificuldades da argumentação acerca da determinação do Ser. O Ser, como a primeira determinação, é uma unidade metafísica. Aquilo que é uno está isento de quaisquer restrições. Portanto, o Ser possui liberdade, novamente no sentido negativo, enquanto ausência de restrições. Assim, enquanto o Não-Ser está isento de restrições e, portanto, livre porque é “não-dual” (conforme notamos, onde não há dualidade nada pode ser determinado por nada), o Ser está isento de restrições e, portanto, está livre porque é uno.

Este argumento, que ignora certas questões que lhe são inerentes, novamente incorre em contradição. Pois o Ser é uma determinação – por definição, ele é a primeira determinação. Uma determinação, conforme explica o axioma de Guénon, é uma limitação; e, Guénon afirma também, [19] uma restrição é uma limitação. Como pode então o Ser, por definição uma limitação e portanto sob restrições, estar isento de restrições? Novamente, a tentativa de obter a consistência lógica a todo custo resulta na introdução, mesmo que sutil, de uma evidente contradição.

De fato, conforme poderíamos esperar das dificuldades encontradas ao explicar a determinação do Ser, existe o que podemos chamar de hiato no coração da metafísica de Guénon; e em parte alguma isso é mais evidente do que na maneira pela qual, em função de sua tipificação inicial do Absoluto (que lhe é imposta pelo sua doutrina acerca da relação necessária entre lógica e Absoluto), Guénon está compelido a contemplar o mundo da manifestação, o mundo dos fenômenos. Na realidade, dada a tipificação inicial do Absoluto, podemos dizer que a coisa realmente inexplicável é a existência deste mundo, ou a aparência de sua existência. Seria simples – dada a tipificação em questão – explicar a não-existência deste mundo; mas – novamente, dada a premissa – é virtualmente impossível explicar sua existência, ou a aparência de sua existência. Consequentemente, a existência (ou aparência de existência) só pode ser explicada invocando-se a ideia de que falta a ela a realidade genuína, o que equivale a dizer que a existência é, na verdade, não-existente.

A forma como esta conclusão se nos é imposta passa a ser óbvia quando levamos em conta o ponto de partida do argumento de Guénon. Se, como ele afirma, as possibilidades universais em seu estado não-manifestado são completa e totalmente reais em si mesmas, em sua  enclausurada exclusividade, de tal forma que elas absorvem ou incorporam a soma total da realidade em si mesmas, então qualquer desvio do estado de não-manifestação é também um desvio do Real, um desvanecimento na não-realidade. Do contrário, não poderíamos dizer que uma possibilidade possui a totalidade do Real em seu estado não-manifestado: se seu estado não-manifestado quâ estado de manifestação possuísse qualquer realidade, a conclusão teria necessariamente de ser que uma possibilidade não possui em si, em seu estado não-manifestado (no qual não podemos diferenciá-lo do Absoluto), a totalidade do Real, e tal conclusão contradiz a alegação inicial de que uma possibilidade não-manifestada seja total e exclusivamente real em si mesma.

De fato, conforme notamos, com respeito a seu estado não-manifestado e indeterminado, o estado manifestado e determinado de uma possibilidade universal é “rigorosamente nada”. Daí que somos forçados a aceitar que a existência, ou aparência de existência, é basicamente não-existente. Eis porque a tentativa de explicar o mundo da manifestação sai, digamos, derrotada já desde o início, pois não há, nem poderia haver, qualquer explicação plausível ou mesmo possível para o que não existe: a manifestação quâ manifestação é um tipo de ilusão ou sonho. Qualquer doutrina que estabeleça que a soma total da realidade esteja fora e acima não apenas da existência fenomênica mas do próprio Ser está fadada a reduzir o Ser e a fortiori a existência fenomênica a uma espécie de sombra insignificante. Ademais, tal doutrina leva a uma forma extrema de panteísmo: não um panteísmo que divinize a existência, mas um panteísmo que afirme a nulidade ou irrealidade da existência. A criação – ou mesmo a simples ideia de criação – não teria nenhum valor positivo ou significativo; enquanto que a criatura quâ criatura não teria nenhum destino eterno concreto.

Essa é a conclusão a que forçosamente chegamos se adotarmos a concepção inicial de Guénon acerca da natureza das possibilidades não-manifestadas e universais. Com efeito, tais possibilidades constituem uma espécie de Divindade sem Deus, no sentido de que não têm autor. Eis outra maneira de expressar esse raciocínio: se pudéssemos falar de Deus no contexto dessa doutrina, então não seria o Deus que determina tais possibilidades não-manifestadas e universais (pois, por definição, elas são essencialmente indeterminadas e indetermináveis). É precisamente o contrário: são elas que “determinam” o conteúdo ideal da natureza pré-ontológica de Deus. Em verdade, elas constituem essa natureza, no sentido de que não há distinções entre os dois: Deus enquanto Absoluto é a Possibilidade universal, o Onipossível. Isso significa dizer que não pode haver uma ideia de Deus, enquanto Absoluto, enquanto princípio livre determinante de suas próprias possibilidades, e portanto não pode haver uma doutrina da criação no sentido cristão do termo, pois tal doutrina pressupõe que Deus, enquanto Absoluto, não é idêntico somente à sua natureza pré-ontológica. Substituir a ideia de um Deus que determina suas próprias possibilidades por uma Divindade, ou Urgrund, de possibilidades universais que não apenas não têm autor mas que constituem em si o Absoluto significa tipificar o Absoluto como sendo um círculo essencialmente autocontido, autossuficiente e totalmente perfeito, um círculo impessoal, indeterminado e pré-ontológico, um círculo incapaz de relações vivas e reais ad extra. É por isso que podemos dizer que o que caracteriza doutrinas metafísicas tais como a de Guénon é a desvalorização radical da criação – ou da manifestação – a tal ponto que a reduz a pouco mais do que uma dimensão puramente negativa. De um ponto de vista especificamente cristão, podemos dizer sucintamente que o que caracteriza tais doutrinas é sua natureza anti-encarnacional e anti-sacramental.

No entanto, isso não significa que esse tipo de doutrina metafísica não seja fundamentalmente verdadeiro: essa é uma questão completamente diferente e não vou lidar com ela aqui. O que tentei ilustrar é apenas e tão-somente como a formulação da doutrina metafísica de Guénon deixa-se afetar por uma proposição particular acerca da relação entre a ordem da lógica e a ordem metafísica, como isso levou Guénon a tipificar até mesmo o princípio supremo da ordem metafísica em termos que se conformam à ordem da lógica e como, por sua vez, tal postura afetou sua apresentação dos demais aspectos da doutrina metafísica. Para Guénon, conforme dissemos diversas vezes, essa relação é uma relação necessária e inerente à natureza das coisas, e eis porque ele considera tal proposição como sendo axiomática. Mas na ausência de bases objetivas sobre as quais seu status de princípio hermenêutico de validade absoluta e universal possa se estabelecer, tal proposição parece ser nada mais do que uma suposição cuja verdade elude tanto provas quanto refutações. Mais importante, porém, é que sua aplicação prática parece destruir seu próprio propósito e resultar precisamente no erro que Guénon acusa os filósofos, qual seja, impor limitações à própria Possibilidade universal.

Vimos como a obediência da proposição em questão parece ser infringida em casos como a determinação do Ser e a “prova da existência metafísica da liberdade”. Mas para mostrar como tal proposição também resulta em impor limitações à Possibilidade universal precisaremos remontar à tipificação inicial de Guénon acerca do princípio metafísico supremo, ou seja, do Absoluto que constitui o datum primordial de sua exegese. Com base na verdade da ordem lógica segundo a qual toda determinação é necessariamente uma limitação, Guénon chega à sua ideia de Absoluto – de Infinito, ou Possibilidade universal – que pode ser expressa somente em termos negativos – termos tais como “indeterminado”, “impessoal”, “inqualificado” entre outros. No entanto, por uma espécie de duplicidade inerente à própria lógica, até mesmo a aplicação de termos negativos ao Absoluto como uma tentativa de preservá-Lo da determinação e, portanto, da limitação, acaba por produzir precisamente o efeito contrário ao desejado. Pois afirmar que o Absoluto é indeterminado, impessoal etc. é afirmar algo sobre Ele e, portanto, limitá-Lo – sim, limitá-Lo, já que exclui dEle tudo o que seja de natureza determinada, pessoal ou qualificada. Com efeito, até mesmo afirmar que o Absoluto possa ser tipificado em termos exclusivamente negativos significa, no fim das contas, afirmar algo sobre Ele e, portanto, limitá-Lo – sim, limitá-Lo, já que exclui dEle a possibilidade de ser tipificado em termos positivos. Parece-nos, portanto, um tanto paradoxal e irônico, que a aderência de Guénon à premissa de que o princípio metafísico supremo deva ser tipificado em termos consistentes com a lei da lógica – premissa essa que pressupõe a proposição de que há uma correlação rígida entre a ordem da lógica e a ordem metafísica – resulta em impor à Possibilidade universal precisamente o tipo de limitação a qual originalmente se tentava não impor.

Não haveria, então, uma maneira de evitar esse tipo de desagravo, ou desagravos similares? Talvez não, a não ser que adotemos uma postura apofática, ou negativa, ao Absoluta que seja mais radical do que aquela adotada por Guénon.  Pois a via negativa de Guénon não confere ao Absoluto a indeterminação que originalmente deseja, mas lhe impõe uma limitação que afeta essencialmente toda a doutrina metafísica. Afinal, a ideia de Absoluto que Guénon propõe nas páginas 17 e 18 de seu livro leva a essa conclusão, já que ele propõe uma demonstração puramente lógica, ou seja, um tipo de apofaticismo apodíctico. Um apofaticismo mais radical – um que não seja autodestrutivo – deveria começar com uma espécie de santa agnosia que se recuse a aplicar qualquer conceito que seja, não importa se formulado em termos positivos ou negativos, à natureza suprema ou Essência do Absoluto.

Assim sendo, segundo essa forma mais radical de apofaticismo, a Essência do Absoluto não pode ser tipificada como determinada ou livre de determinações, como Ser ou Não-Ser, como pessoal ou impessoal: o Absoluto está para além de qualquer afirmação assim como Ele está para além de toda negação. Isso não significa, porém, que nada deve ser afirmado ou negado acerca do Absoluto e que, portanto, não haveria a menor possibilidade de formular uma doutrina. Esse seria o caso se igualássemos o Absoluto – a soma total da Realidade – exclusivamente com sua Essência.  Com efeito, é exatamente isso que faz Guénon: ele iguala o Absoluto com a Essência. Para ele, Absoluto e Essência são termos intercambiáveis, e ambos constituem o princípio supremo, o datum primordial de sua exegese – ideia essa lograda mediante a aplicação do que poderíamos chamar de negatividade simples, cuja conclusão, segundo Guénon, é de que o princípio supremo só pode ser descrito em termos negativos. Mas o apofaticismo que se recusa a aplicar quaisquer conceitos que sejam à Essência, não importa se positivos ou negativos, não iguala o Absoluto com a Essência nem considera a Essência como sendo uma espécie de aspecto supremo do Absoluto. Esse apofaticismo, portanto, representa não uma negatividade simples, mas dupla: se o Absoluto é livre de determinações, Ele também não é livre de determinações; se Ele é Não-Ser, Ele também não é Não-Ser; se Ele é impessoal, Ele também não é impessoal; se Ele é não-manifestado, ele também não é não-manifestado; se Ele não está no tempo, ele também não deixa de não estar no tempo; e assim por diante. Toda negativa é verdadeira sob condição de que seja ao mesmo tempo negada, ou seja, contanto que a verdade resida na simultaneidade desta dupla negação. Em outras palavras, isso significa dizer que o Absoluto é livre de determinações e determinado, que é pessoal e impessoal, que é Ser e Não-Ser etc., sem que qualquer superioridade ontológica ou de qualquer outro tipo seja atribuída a nenhum dos dois termos de cada uma das tipificações. E este é o caso mesmo que nenhum dos termos dessas tipificações seja aplicado à própria Essência do Absoluto, pois o Absoluto não deve ser igualado com a Essência. Em termos mais sucintos, podemos dizer que o Absoluto transcende sua própria Essência.

Em outras palavras, a recusa em igualar o Absoluto somente com a Essência exige que reconheçamos que o Absoluto, em Sua realidade autocontida, Sua incognoscibilidade e cognoscibilidade, Seu Não-Ser e Ser, Sua indeterminação e determinação, seja tal que a ideia mais adequada para a inteligência humana concebê-Lo seja expressa em termos exclusivamente antinômicos e paradoxais. Consequentemente, trata-se de uma ideia que não se molda às demandas exigidas pela proposição a qual o próprio Guénon aderiu com tão incontestável entusiasmo.

Por fim, somos levados de volta à questão que esteve implícita ao longo de todo este capítulo. Por definição, a apresentação de uma doutrina metafísica deve ter um ponto de partida. Esse ponto de partida será identificado como sendo o princípio metafísico que se aceita como Absoluto, e será este o Absoluto que constituirá nosso datum primordial, ou ponto de partida, da exegese.

Porém, este Absoluto que constitui o datum primordial da exegese não será o Absoluto enquanto tal, ou seja, o que podemos chamar de Sua quididade intipificada. Ele será um Absoluto tipificado de uma maneira específica.  Isso significa dizer que Ele terá de ser tipificado como isto ou aquilo, ou como não-isso ou não-aquilo: determinado ou indeterminado, pessoal ou impessoal, Ser ou Não-Ser, Um ou Três, ou ambos os termos de cada uma dessas tipificações simultaneamente. Em outras palavras, não será o Absoluto enquanto tal, mas a ideia que se tem do Absoluto que constitui o datum primordial da exegese.

Essa ideia do Absoluto que constitui o datum primordial de uma exegese pode ser estabelecida, por exemplo, por revelação divina. Na falta dela, porém, a única alternativa é aceitar como datum primordial uma ideia de Absoluto estabelecida de acordo com algum outro critério. Neste caso, não seria a revelação divina, mas este outro critério que estabeleceria o datum primordial da exegese; com efeito, isso faria deste outro critério o princípio determinante supremo da própria exegese. Portanto, é de crucial importância saber que critério é esse, e por que nós daríamos nosso assentimento a ele, pois, em última análise, é este critério, e não a ideia de Absoluto, menos ainda o Absoluto enquanto tal, que determina a forma que a apresentação da doutrina metafísica irá tomar.

* * *

O próprio Guénon pleiteava que seu entendimento acerca da doutrina metafísica deriva do Vedanta, mais especificamente da perspectiva extrema não-dual que lhe confere Shankaracharya; e algumas das dificuldades que, do ponto de vista cristão, são suscitadas por essa doutrina metafísica são refletidas também nessa perspectiva metafísica do Vedanta. Pois segundo essa perspectiva, a doutrina metafísica tem como ponto de partida uma ideia de Aboluto, ou Infinito, que é totalmente inqualificada e totalmente livre de qualquer determinação ou particularização. Afirmar o que quer que seja acerca do Absoluto é, de certa forma, limitar e determinar, e portanto torná-Lo menos do que Absoluto; qualquer distinção ou qualificação que seja feita é transcendida pela não-determinação absoluta do “único verdadeiro não-dual” (o ekam ena advaitam) dos Upanishads. Indo ao extremo de sua discriminação entre permanente e impermanente, imutável e mutável, Ser e devir, e com a via negativa, ou apofaticismo, que em última instância recusa toda e qualquer ideia de determinação ou diferenciação no Absoluto por considerá-la como intrinsecamente limitante e imperfeita, o pensamento vedântico tende a se tornar “fixado” na ideia de puro isolamento (kaivalya) do Absoluto não-comunicável, não-participável (nirgunabrahma).

É aqui que a questão da manifestação, ou da aparência das coisas, é colocada nesta perspectiva extrema não-dual. O que é, afinal, que vem a ser, ou parece que vem a ser, na manifestação? Na forma extrema do advaita, a resposta é que, em última instância, nada vem a ser; o mundo não existe, ou é apenas a aparência de maya (nem ser nem não-ser, nem mistura de ser e não-ser nem ausência de mistura). De certa forma, não há questão sobre manifestação, pois maya é a própria categoria da questão, e a questão só pode ser colocada na medida em que o indivíduo que a coloca esteja envolto em maya.  Ora, assim que o indivíduo tenha superado a consciência marcante de seu eu individual (que em si é uma ilusão) e esteja livre da evanescente e deficiente categoria de maya, ambos, questão e questionador, desaparecem e são imersos no Absoluto, no verdadeiro Eu, o nada-além-do-Eu.  O Absoluto nunca, jamais, poderá ser outro senão o que é; Ele não pensa acerca do mundo ou do eu; Ele não pensa acerca de Si mesmo, mas em Si exclui toda “alteridade”, todo “fora de Si”. Ele é não-dual.

A ideia da isolação e pureza do Absoluto guarda ,porém, outro aspecto: Sua onipresença. É somente de um ponto de vista individual e inferior que o Absoluto pode ser oposto a maya, ou ao contingente. Na realidade, essas distinções não existem e são devidamente transcendidas pelo Absoluto. A realidade de tudo é o Absoluto; pois se houvesse uma realidade inferior ou distinta do Absoluto então o Absoluto não seria o Tudo: haveria algo externo a Ele que o limitaria. Por conseguinte, a realidade de tudo é o Absoluto: Ele está perfeitamente e exaustivamente imanente em todas as coisas, pois não apenas não pode existir nada distinto de Si mesmo, mas também Ele não pode conter nada que não seja Ele mesmo, pois Ele se dá a Si mesmo inteiramente e infinitamente em Sua infinita generosidade. Toda a realidade que a manifestação possui reside em seu principio não-manifestado e na medida em que não seja diferente de seu princípio: toda aparência do efeito enquanto tal, ou de sua diferença em relação a sua causa principial, é ilusória. A realidade da manifestação é a mesma realidade de seu princípio e não há outra realidade. Neste sentido a doutrina é panteísta: o Tudo e o Absoluto são um,muito embora na famosa imagem do Upanishad diga-se que há dois pássaros na mesma árvore, quando na realidade haveria apenas um pássaro, pois a distinção entre o um e o muito é ilusória.

Dito isso, ainda temos de enfrentar a questão original, isto é, a questão do jivatman que ainda não percebeu que “o fluxo e o absoluto são a mesma coisa” ou que há uma identidade, essencial e existencial, entre ele e o Eu infinito, o Brahma: de onde vem a ilusão do ser particular e a aparência do mundo? Quais são suas relações mútuas com o Eu, com o Absoluto? Qual seu sentido supremo? É aqui que a metafísica vedântica, partindo da esfera do Não Ser e da Não-Dualidade, decompõe-se em duas noções distintas, as quais, juntas, constituem as partes do que parece ser um dilema irredutível: uma parte é a noção de transformação ilusória (do Absoluto em Suas determinações: vivarta-vada) e a outra parte é a noção da transformação real (parinamavada).

A ideia da transformação ilusória do Absoluto – tudo o que existe é em realidade o Absoluto, e só a ignorância individual faz com que a realidade pareça outra coisa que não o Absoluto – preserva a pureza, simplicidade, imutabilidade e permanência totais do Absoluto, mas deixa inexplicado o fato, fictício ou real, da existência do erro. O Absoluto não pode errar; pois de que causa, então, cósmica ou supracósmica, procede tal ignorância segundo a qual eu erro ao pensar em mim como outro em relação ao Absoluto? Se a ideia de minha identidade distinta ao Absoluto é uma ilusão da qual devo escapar mediante a realização espiritual, como essa ideia pôde existir antes de mais nada? E se essa ideia é tão-somente uma aparência, sem realidade suprema, de maneira que em certo sentido nunca tenha realmente existido, então por que essa aparência surgiu? Responder que errei porque foi algo predestinado por causas passadas e mediatas, a despeito se sou ou não responsável por elas, não faz sentido, pois deixa sem resposta a questão de por que me inclinei, ou fui inclinado, a pensar que sou um ser particular antes de mais nada, e por que a corrente causal da ignorância da qual sou agora uma vítima foi ativada. Quem ou o que determinou em primeiro lugar que devo pensar acerca de mim mesmo? E por que foi determinado dessa forma?

Se para respondermos essa e outras questões similares tivermos de substituir a noção de transformação ilusória do Absoluto pela de Sua transformação real, então é possível darmos algumas explicações sobre como e por que o mundo, o eu, e sua identidade ou alteridade surgiram. Mas neste caso a pureza, a não-particularização e a imutabilidade do Absoluto são sacrificadas, e toda uma nova plêiade de dilemas se apresentam. É difícil evitar a conclusão de que, segundo o Vedanta, a relação entre o Absolto e a manifestação é algo incompreensível sem aventar a ideia de uma redução “acósmica” do mundo e dos seres particulares a uma aparência misteriosa de maya e da ignorância que dela faz parte, ou sem aventar a ideia da ruptura da simplicidade, imutabilidade e transcendência absolutas da Essência divina.

O que chama a atenção nessa doutrina, de um ponto de vista cristão, é sua aparente recusa em atribuir valores ou significados positivos à criação. Sob esse ponto de vista, portanto, essa doutrina pode ser descrita como sendo uma estrutura de pensamento pré- ou anti-encarnacional, no sentido de que não pode abarcar, e de fato não abarca, a realidade que é revelada na Encarnação do Absoluto na pessoa do Theanthropos, Cristo. Parece haver, a despeito de noções tais como a transformação real do Absoluto em contingente, um hiatus total entre o Absoluto e o mundo sensível manifestado até o ponto que podemos dizer que a coisa realmente inexplicável é a existência do mundo, ou a aparência de sua existência. Conforme notamos em relação à metafísica guénoniana, conquanto era simples, dadas as premissas da doutrina, explicar a não-existência do mundo, é virtualmente  impossível, dadas as mesmas premissas, explicar sua existência, ou a aparência de sua existência. Consequentemente, a existência (ou a aparência de existência) do mudo só pode ser explicada se afirmarmos que lhe falta toda e qualquer realidade genuína, o que equivale a dizer que o existente é realmente não-existente, ou que é um tipo de categoria de pensamento “maligno” e negativo.

Pois se o Absoluto em Seu estado não-manifestado é completamente e totalmente real em Si mesmo, em Sua exclusividade auto-enclausurada, de tal forma que Ele absorve ou exaure o pleroma da Realidade em Si mesmo, segue-se que qualquer afastamento desse estado de autossuficiência não-manifestado é também um afastamento da Realidade, um desvanecimento na não-existência. Se a condição de manifestação enquanto manifestação possui alguma realidade, a conclusão é que o Absoluto não possui a totalidade do Real em Si mesmo em Seu estado não-manifestado. Somos forçados, logicamente, a dizer que a existência, ou aparência de existência, é basicamente, enquanto tal, uma ilusão. Eis porque as tentativas de explicar a existência do mundo da manifestação guardam um certo aspecto de deus ex machina, pois na verdade não pode haver nenhuma explicação plausível ou mesmo possível para explicar o que é, antes de mais nada, uma ilusão. Qualquer doutrina que considere o Absoluto como a Realidade total, fora e acima não apenas da “existência” fenomênica mas do próprio Ser, está fadada a reduzir ambos, Ser e a fortiori a existência, a uma espécie de sombra insignificante.

Ademais, conforme também notamos, tal doutrina conduz a uma forma extrema de panteísmo: não que ela divinize a existência, mas afirma sua nulidade e irrealidade supremas. A criatura quâ criatura não pode ter destino concreto e eterno. Na verdade, a criatura quâ criatura representa um estado de cativeiro, mental ou físico, na irrealidade, cuja total libertação só é possível sob a condição de que cesse de existir enquanto criatura, sob qualquer forma e sob qualquer pretexto. Em outras palavras, não há espaço para a criatura no Absoluto. Conforme afirmamos acima, o Absoluto é um círculo essencialmente autocontido, autossuficiente e totalmente perfeito, impessoal e livre de distinções, sem a menor possibilidade de conter relações reais e vivas ad extra, sem nada alia a se, e por causa disso podemos afirmar que o que tipifica essa doutrina, como a de Guénon, é sua recusa em reconhecer significados positivos ou eternos na criação enquanto tal, ou seja, uma postura anti-encarnacional; e é precisamente isso que se reflete na visão desencarnacional da realização espiritual.

Evidentemente, a doutrina cristã de um Absoluto que seja triuno e pessoal, e sua ideia de que o que é criado e relativo tenha um destino eterno dentro do Absoluto, sem por causa disso deixar de ser criado e relativo, conflita com a forma não-dual extrema dessa doutrina. Do ponto de vista desse tipo de doutrina, a doutrina cristã reduz-se a uma espécie de idolatria, ou pelo menos reduz o Absoluto a um plano inferior ao que a doutrina originalmente Lhe confere. Com efeito, do ponto de vista dessa não-dualidade radical, e também, conforme vimos, do ponto de vista da metafísica guénoniana, qualificar o Absoluto do que quer que seja – afirmar que Ele é triuno e pessoal, por exemplo – é de certa forma defini-Lo. Qualquer definição, ou seja, qualquer tentativa de tornar o Absoluto finito, é por sua vez selecionar e enfatizar algum aspecto particular do Absoluto às custas de outro aspecto, e isso seria torná-Lo menos abarcante, menos inclusivo, do que antes dessa definição; é reduzi-Lo a uma espécie de Absoluto relativo. Toda determinação, portanto, é necessariamente uma limitação que envolve certa negação da natureza infinita do Absoluto, e eis porque a qualificação cristã do Absoluto enquanto triuno e pessoal não pode se referir ao Absoluto enquanto tal, mas a alguma determinação do Absoluto, rigorosamente e absolutamente transcendida pelo Absoluto e que com Ele não detém absolutamente nenhuma relação. O Absoluto absoluto é, e deve ser, totalmente indefinível, totalmente inqualificado, totalmente não-determinado, ou seja, Ele não pode admitir quaisquer particularizações ou participações.

O argumento novamente parece ser lógico; e se os cristãos quiserem manter sua visão acerca de um Absoluto triuno e pessoal que não represente um ponto de vista mais limitado do que o ponto de vista radical da não-dualidade, então eles têm de admitir também que não compartilham os mesmos conceitos acerca da relação entre lógica e metafísica que subsistem no argumento. Pois o que essa forma extrema de não-dualidade, como a doutrina neoplatônica ou a metafísica guénoniana, parece pressupor é que se ela pode demonstrar em termos puramente lógicos que certo princípio metafísico é superior – mais inclusivo, menos limitado e menos determinado – do que outro, então este primeiro princípio deve situar-se metafisicamente acima do segundo. Assim sendo, passa a ser possível demonstrar a superioridade da ideia não-dual do Absoluto em relação à ideia cristã, pois em termos lógicos qualquer qualificação do Absoluto implica necessariamente um grau de limitação e, portanto, de imperfeição, de maneira que somente o Absoluto totalmente inqualificado pode ser totalmente infinito e perfeito.

Eis porque os cristãos, caso queiram pleitear que sua ideia de Absoluto represente a Verdade mais plenamente do que a ideia de Absoluto da metafísica não-dual, também têm de pleitear que essa maneira de argumentar com demonstrações lógicas para se atingir conclusões metafísicas  oculta a questão da relação entre lógica e metafísica, questão sobre a qual detêm visões muito diferentes das visões que estão implícitas em tais doutrinas não-duais; e que sua ideia de um Absoluto triuno e pessoal, a despeito de qualificada e, portanto, aparentemente mais limitada de um ponto de vista lógico, não obstante reflete mais adequadamente a natureza do Absoluto do que a ideia não-dual. Na mesma linha, os cristãos também têm de afirmar que suas ideias sobre o significado positivo e eterno da criação, embora impliquem em um entendimento totalmente paradóxico e contraditório das relações entre o Absoluto e o relativo, não obstante refletem a verdade das coisas mais adequadamente do que as doutrinas não-duais da manifestação. Conforme dissemos, o que marca para os cristãos o conceito-limite, o ne plus ultra do pensamento humano, não pode ser a demonstração lógica, mas a contradição lógica.

* * *

A titulo de sumário, podemos dizer, de maneira um tanto elíptica, o seguinte: das duas visões que contrastamos, a primeira vislumbra o que podemos chamar de forma extrema de não-dualidade, enquanto a segunda visão é a da tradição cristã, sobretudo em sua forma ortodoxa.

Do ponto de vista da não-dualidade extrema, o Absoluto é supra-individual, supra-pessoal, supra-formal e divino. Daí que a verdade metafísica, a qual é identificada com o Absoluto, ser também supra-individual, supra-pessoal, supra-formal e divina.

Embora o Absoluto seja a Realidade em Si, ou seja, nada tem realidade a não ser o Absoluto, toda diferenciação e individuação, tudo o que possui forma e seja pessoal e que, portanto, possa ser distinto do Absoluto, representa uma ruptura, uma alienação do Real. Em última instância, representa algo irreal e ilusório.

Toda diferenciação e individuação necessariamente implica em limitação; e já que tudo o que é limitado não pode ser identificado com o Absoluto, o qual por definição é ilimitado, conclui-se que tudo o que é limitado tem de ser outro coisa que não o Absoluto.

Mas o Absoluto possui a totalidade do Real. Portanto, o que quer que seja distinto, ou que se distinga, do Absoluto e que seja, ou que se considere ser, outra coisa que não o Absoluto, deve ser cativo do irreal e do ilusório.

Isso significa que não há, nem pode haver, princípio de diferenciação ou individuação no Absoluto; pois, se houvesse, teria de operar e, portanto, produzir, o que é diferenciado e individuado.

Embora aquilo que é diferenciado e individuado seja, por causa disso, outro que não o Absoluto, e enquanto tal tem de ser irreal e ilusório, afirmar que o Absoluto possui um princípio de diferenciação e individuação o qual está obrigado a operar é o mesmo que afirmar que o Absoluto está obrigado a produzir o que é irreal e ilusório, o que seria um absurdo.

Daí que a unidade do homem com o Absoluto, a identidade do conhecido com o conhecedor, um pré-requisito de qualquer conhecimento metafísico, não possa ser uma bi-unidade, um estado de dois-em-um, unus-ambo, abarcando a pessoa individual e o Absoluto. Não pode ser uma unidade que não demande que todas as distinções entre um e outro sejam transcendidas.

Pelo contrário, a unidade do homem com o Absoluto, a identidade do conhecido com o conhecedor, pode ser alcançada somente mediante a pessoa individual transcendendo sua pessoalidade individuada e mediante a identificação de si com o supra-formal, supra-individual, supra-pessoal do Absoluto.

Essa visão, portanto, traz em si a completa negação do valor e da realidade do pessoal. Ela exige como condição de conhecimento metafísico um total impessoalismo – o anulamento e alienação da pessoa.

Ela também traz em si a negação do princípio apofático, segundo o qual, a despeito do grau de conhecimento metafísico que a pessoa possua, há sempre graus acima desse grau, já que a gnose divina é infinita.

Todavia, como é possível ao pensamento humano expressar-se em relação à verdade supra-formal a não ser em termos apofáticos?

Diz-se que o princípio da não-dualidade pode ser bem expresso pela fórmula tat tvam asi: “isto (o Absoluto) tu (o Eu ou ego) és também”.

Mas como o Eu dessa fórmula ainda pode ser o Eu se é igualado com o Absoluto supra-individual e supra-pessoal?

Ou em que sentido o “eu” que diz “eu sou” pode ser identificado com o Absoluto?

É o homem real ou é o ego ilusório que declara “Eu sou isto”?

Será suficiente que o ego diga “Eu sou isto” para deixar de ser ilusório?

E se há uma identidade essencial entre e Eu individuado e o Absoluto supra-pessoal, como é possível que o Eu caia na ilusão de pensar que não é o Absoluto supra-pessoal mas que possua uma existência individuada?

E se não há princípio de diferenciação ou individuação no Absoluto, como é possível que um Eu que seja igualado ao Absoluto diferencie-se do Absoluto e pense a si mesmo como uma existência pessoal individual?

Um princípio de diferenciação, mesmo que sua ação se limite a produzir a ilusão de ser diferenciado, não pode subsistir em um vácuo. Ou é inerente ao Absoluto, ou é um princípio que existe fora do Absoluto, ou seja, um princípio distinto do Absoluto. Mas neste caso o Absoluto não é o Absoluto, pois há um princípio ativo que opera independentemente dEle, e portanto um dualismo irredutível reside na base das coisas. [20]

Neste ponto podemos nos perguntar: por que esta recusa em reconhecer um princípio de diferenciação e individuação no Absoluto?

Por que esta recusa em reconhecer que o Absoluto existe em uma multiplicidade de existências individuais que Lhe são distintas? Por que se considera como uma forma básica de ignorância afirmar que a realidade é múltipla?

Que metafísica é essa que nega ao Absoluto um princípio de diferenciação e individuação?

E se há um princípio de diferenciação e individuação no Absoluto, como pode ele se expressar, ou seja, como pode o Absoluto agir de acordo com Sua própria natureza, a não ser postulando a realidade dos existentes individuais que não Lhe são iguais?

Em si, a individuação não é uma ilusão: ela advém da existência do próprio Absoluto – um devir em formas individuais que são espirituais e pessoas, imperecíveis e inalienáveis.

Em verdade, deste ponto de vista – o qual é o ponto de vista cristão –, podemos dizer que o segredo do Absoluto reside nas múltiplas formas em que Ele se manifesta, assim como o segredo dessas formas reside no Absoluto.

Não é minha individuação, ou minha existência pessoal, que é uma ilusão. É meu insucesso em afirmar, em termos ativos, minha existência individual, pessoal e espiritual em Deus que produz a ilusão; pois dessa forma eu atribuo a mim mesmo um tipo de existência independente, antinômica, na qual sou meu próprio Deus, e é esta concepção de mim mesmo que é ilusória e, para os cristãos, que expressa o estado decaído do homem.

Assim, na visão cristã, o homem é por definição uma forma na qual o Absoluto manifesta uma virtualidade de Sua própria natureza; e sua faculdade cognitiva suprema – o intelecto – embora deiforme e capaz, quando purificado, de conhecimento metafísico direto e experiencial de Deus, não deve ser identificado com o Absoluto (embora não seja, por isso, não-Absoluto), ou ser considerado como indiferenciado do Absoluto, ou supra-pessoal e supra-formal.

Isso significa que não importa por quais transformações um ser humano possa passar – e elas são ilimitadas – e não importa o grau de profundidade de sua união com Absoluto, ele jamais perderá sua identidade pessoal, espiritual e distinta, pois essa identidade é integral a seu destino eterno.

O ser humano é obrigado, portanto, a aceitar que jamais conseguirá exaurir a plenitude da gnose divina e que sua postura vis-à-vis a esta gnose deve ser sempre uma postura apofática.

Ademais, o ser humano está obrigado a aceitar que, a despeito da profundidade de sua união com o Absoluto, não apenas esta unidade será sempre bi-unitária, uma dupla unicidade, unus-ambo, mas também jamais conseguirá exaurir a capacidade para uma união ainda mais profunda.

Por sua vez, isso significa que o ser humano jamais possuirá in actu mais conhecimento metafísico do que o estado de sua união com o Absoluto lhe permitirá possuir.

Por fim, o ser humano vê-se obrigado a aceitar que o estado de divinização, ou theosis, que ele alcance, qualquer que seja ele, jamais transcenderá a forma espiritual e pessoal por meio da qual o Absoluto manifesta, e que por conseguinte dá existência concreta, a virtualidade inalienável e imperecível de Seu próprio Ser.

Isso equivale a afirmar que o conhecimento e a experiência da verdade metafísica do ser humano jamais excederá o conhecimento e a experiência acerca de seu próprio ser, de seu próprio eu.

Consequentemente, qualquer que seja o estado do ser e, portanto, o grau de conhecimento metafísico que alcance, esse conhecimento será sempre correspondente e matizado por seu estado de ser, pelo estado de sua própria identidade pessoal.

Qualquer tentativa de transcender essa identidade com o objetivo de adquirir absoluto conhecimento metafísico deve, sob a perspectiva cristã, representar nada menos do que uma tentativa de transcender os modos hierárquicos da harmonia universal. “Se o sol não se mantiver na órbita que lhe foi prescrita, os Eríneos, ministros da justiça, saberão recolocá-lo em seu caminho correto”. [21]

O contraste dessas duas visões reflete-se e sustenta-se evidentemente em seus respectivos entendimentos acerca do Absoluto. O princípio da não-dualidade sustenta-se por um entendimento do Absoluto que O iguala a uma Essência não apenas unitária, mas também totalmente indiferenciada: não se aceitam nela quaisquer distinções .

A visão cristã sustenta-se por um entendimento do Absoluto ao mesmo tempo unitário e triádico, ou seja, há distinções nas Pessoas do Absoluto e essas distinções, embora reais e indissolúveis, não por isso dividem Sua unitariedade.

Por conseguinte, o Absoluto cristão, o qual admite diferenciações, não é, do ponto de vista do Absoluto que se sustenta no princípio da não-dualidade, o Absoluto absoluto: as Pessoas da Trindade, neste último caso, só podem ser limitações do Absoluto, e não podem portanto ser identificadas com o Absoluto, que em Si deve transcender toda limitação e, consequentemente, todo personalismo.

Isso está em franca oposição ao entendimento cristão, segundo o qual é incorreto imaginar um Absoluto que seja não-pessoal, ou uma Pessoa que seja não-Absoluto. [22]

Poderíamos afirmar este contraste em termos mais simples e dizer que destas duas visões, a primeira confere alta prioridade à consistência lógica e daí tender a ser catafática, enquanto a segunda é mais antinômica em sua abordagem, e dai tender a ser apofática.

Assim, na primeira visão a consistência lógica é levada a ponto de afirmar que, dado um Absoluto essencialmente não-diferenciado, o que quer que seja diferenciado é menos real do que o Absoluto e, portanto, relativo, ou ao menos apenas relativamente Absoluto; e o que é relativo não pode ser Absoluto de maneira alguma.

Na segunda visão, por outro lado, a antinomia é levada a ponto de afirmar não apenas que o diferenciado não precisa ser menos do que Absoluto, e portanto relativo, mas também que é perfeitamente possível que o relativo seja Absoluto, e o Absoluto seja relativo, sem com isso comprometer a relatividade do relativo ou o absolutismo do Absoluto no mais mínimo que seja.

Pode-se dizer dessas duas visões que a primeira implica uma metafísica cuja primazia de origem no Absoluto é dada à Essência não-diferenciada, enquanto a segunda implica uma metafísica na qual tal primazia é dado ao ato de ser, a qual confere diferenciação: é o ato de ser que em si determina a Essência, enquanto na metafísica da primeira visão o ato de ser é visto como não-essencial, até mesmo irreal e ilusório, um acidente super-adicionado ou super-imposto ao Absoluto.

Devemos dizer ainda que a noção, implícita no conceito de não-dualidade, de que seja possível a nós seres humanos realizar nesta vida presente nossa identidade essencial com o Absoluto supra-pessoal e, por conseguinte, atingir um estado nesta vida presente cujo conhecimento seja não apenas universal e infalível, mas também que sejamos impermeáveis à vicissitude e ao erro, não é válida para o modo cristão de ver as coisas; pois nesta visão todos, a despeito de seu grau de perfeição, estão ainda expostos nesta vida presente a ambas contingências. Pensar de outra forma seria, sob o ponto de vista cristão, ignorar o mistério da liberdade humana, a qual é inalienável, não importa o estado de graça na qual se encontre.

[1] Cf. Marco Pallis, “A Fateful Meeting of Minds”, em Studies in Comparative Religion, Verão-Outono 1978, pág. 178-188.

[2] Cf. Whitall N. Perry, resenha da tradução inglesa de Le Roi du Monde, em Studies in Comparative Religion, Verão-Outono 1983, pág. 244-247. Cf. Marco Pallis, “Ossendowski´s sources”, em Studies in Comparative Religion, Inverno-Primavera 1983, pág. 30-41.

[3] Cf. Marco Pallis, “Le Voile du Temple”, em Études Traditionnelles, Julho-Agosto, Setembro-Outubro 1964, pág. 155-176; Novembro-Dezembro 1964, pág. 263-267; Março-Abril 1965, pág. 55-66.

[4] René Guénon, Le Symbolisme de la Criox (Paris, 1950), pág. 20, nota 2. A tradução deste trecho é de Philip Sherrard.

[5] As citações desta obra, cujas traduções são minhas, foram extraídas da edição de 1947 (Paris), e todas as páginas mencionadas nas notas de rodapé são dessa edição. Há uma edição inglesa, traduzida por Jocelin Godwin, publicada com o título de The Multiple States of Being pela Larson Publications (Nova York, 1984).

[6] René Guénon, Les États, pág. 17.

[7] Ibid. pág. 40.

[8] Ibid. pág. 17 e nota 1, pág. 17.

[9] Ibid. pág. 19 e nota 2.

[10] Ibid. pág. 123.

[11] Ibid. pág. 127.

[12] Ibid. pág. 83, 107, 122.

[13] Ou, como disse Guénon, “a metafísica não pode contradizer a razão, pois ela situa-se acima da razão”. Cf. Introduction to the Study of Hindu Doctrines (Londres, 1945), pág. 116.

[14] Uma descrição mais completa da doutrina da Trindade encontra-se no meu Church, Papacy and Schism (Londres, 1978), pág. 96-110.

[15] René Guénon, Les États, pág. 31-32.

[16] Ibid. pág. 132.

[17] Ibid. pág. 19.

[18] Ibid. pág. 127.

[19] ibid. pág. 127.

[20] O dualismo, que traz em si realidades completamente não-recíprocas e não-mutuamente interpenetrantes, não deve ser confundido com dualidade.

[21] Herakleitos, Diels-kranz 94.

[22] Este entendimento é em certa medida modificado pela tradição teológica que deriva de Santo Agostinho e passa através de Santo Anselmo e São Boaventura até os escolásticos; pois nesta tradição há uma tendência a se afirmar a primazia da essência não-pessoal da Trindade sobre a realidade concreta das Pessoas, obnubilando a integridade e coerência plenas da doutrina trinitária cristã.

Fonte: Philip Sherrard, Christianity: Lineaments of a Sacred Tradition, capítulo 4, pág. 76-114, Holy Cross Orthodox Press, Brookline, MA, EUA, 1998.