Este texto é uma adaptação da introdução do Pe. Dumitru Staniloae (1903-1993) a uma edição romena das obras de São Dionísio, o Areopagita. Como veremos, o Pe. Dumitru acha perfeitamente plausível que São Dionísio seja exatamente quem disse que era, qual seja, o Bispo de Atenas convertido à fé cristã pelo Apóstolo Paulo. Há outros textos, entre eles os de John Parker, que também defendem a autenticidade de São Dionísio.
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I. O suposto panteísmo neoplatônico das obras de Dionísio
Dionísio é freqüentemente apresentado como sendo panteísta, o que tem insuflado no mundo cristão ocidental uma cosmovisão separatista e secularista em relação a Deus, a qual, por sua vez, acaba reforçando as filosofias mundanas como sendo as únicas explicações possíveis da realidade... É por isso que, no Ocidente, Dionísio é suspeito de ser promotor do panteísmo, enquanto no Oriente ele sempre desfrutou de enorme respeito por ser uma das fontes da espiritualidade cristã.
No que tange a suposta característica panteísta das obras de Dionísio, as quais suspeita-se terem sido escritas depois de Plotino e Proclo, julgamos necessário provar que se tratam de obras genuinamente cristãs. Concluiremos que a datação das obras dionisíacas como posteriores a Proclo é incerta, bem como é infundada a exclusão da possibilidade de que sejam de autoria de Dionísio do Areópago de Atenas, o convertido à fé cristã pelo Apóstolo Paulo. Esta conclusão será ainda reforçada com a exposição de fatos relevantes, os quais não são menos conclusivos do que os fatos fornecidos por aqueles que negam a autoria de Dionísio, o Areopagita.
II. O conteúdo cristão e os principais componentes da obra de Dionísio
Não há, em toda obra areopagítica, uma só defesa da Trindade, uma só defesa da doutrina da hipóstase de Cristo em duas naturezas, uma só preocupação com o nestorianismo ou o monofisitismo. Presume-se assim que foram escritas nem após o Primeiro Concílio Ecumênico, nem após o Segundo, Terceiro ou Quarto, ou seja, não foram escritas entre o fim do século V e o começo do século VI. Evidentemente, não estamos aqui a afirmar que não há ensinamentos sobre a Trindade ou sobre Jesus Cristo nas obras de Dionísio. Também não se encontram digressões sobre a Santíssima Trindade nas obras de Santo Atanásio, o Grande, São Basílio, o Grande, ou São Gregório, o Teólogo. Não há também nenhuma preocupação quanto à união das duas naturezas na hipóstase singular do Verbo nas obras de São Cirilo de Alexandria.
O tema das obras areopagíticas é a defesa da singularidade da doutrina de Deus na Trindade em relação às doutrinas mundanas, ou seja, é a defesa da fé cristã em geral contra o pensamento filosófico contemporâneo, mas fazendo uso do próprio vocabulário contemporâneo. Será que a rejeição das filosofias panteístas ainda era necessária no fim do século V? Quem seria mais qualificado para ganhar dos intelectuais, formados nos moldes panteístas, senão um filósofo mesmo? Será que ele se manteve inativo desde que se tornara cristão, abstendo-se de usar seus dons numa atividade para a qual estava qualificado? Ele bem poderia ter divulgado suas obras aproximadamente em 100 d.C., quando a oposição contra as doutrinas cristãs começava a tomar forma.
O fato de todas as coisas diferentes de Deus terem sido trazidas à existência como símbolos, mediante os quais enxergamos as obras de Deus, é um componente importantíssimo do tema da relação de Deus com o mundo, e é também um tema central nas obras de Dionísio. Todas as coisas possuem certa capacidade para receber em si mesmas -- e transmitirem através de si mesmas -- as obras de Deus. Quando as coisas e os gestos humanos se actualizam em símbolos, eles são santificados e tornam-se meios de santificação mútuos, conferindo-lhes assim um caráter litúrgico à sua existência.
Nas primeiras gerações cristãs, a vida litúrgica -- hinos, santificações, bênçãos -- era extremamente rica. A partir dos ricos conteúdos das Constituições Apostólicas ou da Liturgia de São Tiago, a Liturgia foi sendo abreviada, até tomar a forma da Liturgia de São João Crisóstomo. O fato das obras areopagíticas relatarem que havia uma vida litúrgica riquíssima nas comunidades cristãs é outra prova de sua antiguidade. O Oriente ortodoxo, guardião fiel da tradição apostólica, continua até hoje a praticar os múltiplos ofícios de santificação, além de manter viva a consciência de que Deus está presente em todas as Suas obras santificantes. Dionísio influenciou as descrições teológicas que ensinam a presença ativa de Deus em tudo por meio de Suas obras, ou seja, Suas energias incriadas, as quais são diferentes de Seu ser. Verificamos o mesmo nas obras de São Máximo, o Confessor, e São Gregório Palamás. O Ocidente, ao rejeitar tal distinção, conforme verificamos na oposição que Barlaão empreendeu contra São Gregório Palamás e na incapacidade em admitir a união dos homens e do mundo com a essência de Deus -- pois isso confundiria tudo com Deus --, persiste na idéia de um Deus distante do mundo e das pessoas e numa igreja liderada por um vigário (uma espécie de suplente do Cristo) e/ou corteja os extremos do misticismo panteísta (Eckhart, Jacob Boehme) e das filosofias que afirmam que este mundo é a única realidade.
No Oriente, à exemplo das obras areopagíticas, o Filho de Deus assumiu a natureza humana a fim de torná-la o meio de nossa divinização, de nossa santificação, a qual nos sustenta no caminho de uma vida mais bem examinada e mais santa. Eis por que todos os Padres, inclusive Dionísio, fazem uso dos termos "divinização", "deuses" e, evidentemente, "pela graça"... São Gregório Palamás encontrou nas obras de Dionísio a maioria de seus argumentos em defesa dos monges hesicastas, da oração incessante de Jesus e da visão da luz de Jesus em seus corações. Constatamos essa inspiração nas inúmeras citações de Dionísio. Em termos gerais, as obras de Dionísio representam, no mundo ortodoxo, os alicerces que firmam a presença ativa de Deus na vida da Igreja e do mundo.
III. Mais indícios que apontam a origem pós-apostólica ou mesmo apostólica das obras de Dionísio
No livro Hierarquia Eclesiástica, Dionísio afirma que o batismo e a Liturgia eram feitos pelo bispo, auxiliado por alguns sacerdotes e muitos diáconos. Em geral, as pessoas mais velhas eram batizadas, mas não crianças. Tais descrições são típicas da Igreja primitiva, quando as igrejas estavam começando a ser fundadas nas cidades, as dioceses também estavam sendo fundadas e os primeiros fiéis eram compostos de pessoas mais velhas.
O bispo também é retratado oficiando funerais. Outro sinal de que as obras de Dionísio pertencem à Igreja das primeiras gerações, quando os cristãos eram perseguidos, é a menção dos therapeutes (guiardiães ou porteiros), espécie de sacristãos, geralmente solteiros, que guardavam as portas dos locais de assembléia. Esse tipo de atividade era dispensável nos séculos V e VI, pois nesses tempos as perseguições já haviam cessado.
Outra objeção contra a antiguidade das obras de Dionísio é o que de que, no sexto capítulo da Hierarquia Eclesiástica, Dionísio descreve a consagração de monges, que teriam aparecido somente no século IV. Ora, sabemos que Santo Antônio, o Grande, tornou-se monge no século III (ele nasceu em 255). Será que ele estava seguindo uma antiga tradição? Não é improvável que alguns cristãos tenham escolhido a pureza de uma vida solitária... Talvez eles tenham sido os therapeutes das epístolas de Dionísio, um termo que São Máximo, o Confessor, traduz literalmente como monachos. A conexão entre os therapeutes de Filon de Alexandria com a primeira comunidade cristã em Alexandria já havia sido feita por Eusébio de Cesaréia. São Jerônimo afirmara que os monges de seu tempo estavam perpetuando a vida dos therapeutes. São João Cassiano fez exatamente a mesma afirmação, conferindo origem apostólica a esta instituição. Isso significa que a instituição monástica é tão antiga quanto o próprio Cristianismo.
Eis, pois, um breve e pobre resumo da riqueza e da profundidade das obras dionisíacas, as quais nossas traduções estão longe de lhes render o devido tributo. Isso é assim porque a linguagem, em si, é tão sutil e complexa que ninguém poderia traduzi-la satisfatoriamente. Em francês, contamos já com onze traduções... Por isso resolvemos empreender esta nova tradução (em romeno, há as traduções do Pe. Cicerone Iordachescu e Theofil Simensky), procurando expressá-la em termos romenos mais tradicionais e espirituais, evitando tanto quanto possível os neologismos de origem francesa, que são muito comuns no idioma romeno moderno. Por isso discordamos do Pe. Cicerone Iordachescu quando ele diz: "As obras de Dionísio nos remetem à dialética entre Platão e Hegel, mas sem portar o gênio destes grandes mestres do pensamento humano". Quanto a nós, julgamos que o pensamento de Dionísio é muito mais satisfatório do que o de Platão ou Hegel.
Por fim, em vista dos argumentos expostos, é de nosso desejo que o nome de Dionísio, o Areopagita, seja lembrado como o nome do autor destas obras. Mesmo que o autor tenha vivido em tempos mais recentes, aceitamos seu nome, respeitamos sua vontade e o declaramos digno do título de santo, assim como pensavam todos os Padres da Igreja.
A título de auxílio ao entendimento das obras de Dionísio, traduzmos também a Scholia de São Máximo, o Confessor. Hans Urs von Balthasar achava que a Scholia não era de Máximo, mas de João, Bispo de Scythopolis da Galiléia, da primeira metade do século VI. No entanto, Otto Bardenhewer achava que eram de São Máximo mesmo. Creio que esta opinião é a mais provável.