Para o
filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos a filosofia concreta é a
filosofia capaz de unir ideias e fatos e, ao mesmo tempo, ser capaz de penetrar
nos temas transcendentais. Para isso, a filosofia concreta tem de demonstrar
suas teses e postulados com o mesmo rigor apodítico que a matemática a fim de
que não se reduza a mera estética ou a um mero conjunto de afirmações. Por
“concreto” entende-se não apenas o conhecimento sensível da coisa, mas trata-se
de algo muito mais amplo: abrange também o logos
(ou “lei de proporcionalidade intrínseca”) da coisa e as leis que orientam sua
formação, perduração e terminação.
O que vou
procurar fazer é comentar o que na obra contribui para meus estudos, para o que
considero central para meu progresso intelectual. A obra, como em maior ou
menor grau se comprova nas demais obras de Mário Ferreira, é intercortada com
comentários, com divagações laterais, com sínteses por vezes enigmáticas.
O ponto de
partida para uma filosofia concreta, aquilo que Mário Ferreira chama de ponto arquimédico, deve ser buscado
através de caminhos interiores, e não no mundo empírico, exterior. Sobre esse
ponto arquimédico se fundará todo o desenvolvimento posterior dos postulados
filosóficos e tal ponto não pode ser demonstrado, mas apenas mostrado, dado seu caráter fundante. É
necessário, portanto, alcançar uma certeza da qual ninguém, absolutamente
ninguém, possa duvidar com seriedade.
O ponto
arquimédico é: Alguma coisa há...
Não podemos
afirmar que nada há, porque a própria dúvida afirma que há alguma coisa, a
própria ilusão afirma que há alguma coisa, e não o nada absoluto. A proposição alguma
coisa há impõe-se de forma necessária, por uma necessidade ontológica (não
há como não ser assim) e uma decorrência ôntica (não há como deixar de ser
assim).
Mário
Ferreira ensina que Alguma coisa há é
não apenas uma verdade lógica, mas uma verdade ontológica. Na verdade lógica há a conformidade entre o
intelecto e a coisa, enquanto na verdade
ontológica há conformidade da coisa com o intelecto. O conceito de “ser” é
captado por nós na dialética ontológica de modo mais patente do que
propriamente racional; o “ser” é o fundamento dos conceitos, dos esquemas. Como
diz Suárez, ser é a aptidão para existir,
mas observe que essa mesma frase não pode ser uma definição, pois definir é dar
fins, dar limites, e o ser não tem limitações. Como entidade lógica, o ser é o sumum genus, ou seja, o gênero supremo
ao qual se reduzem logicamente todas as coisas. Como entidade ontológica, o ser
é a razão que dá o ser a tudo o que é.
Interessante
notar que “haver”, para o filósofo, é diferente de “existir”. Em outras
palavras, não se conclui por aceitar que, se alguma coisa há, consequentemente,
alguma coisa existe, pois entende-se por “existir” a realidade exercitada
in re, o ser real, ser em si. Se alguma coisa que há não existe, não é
exercitada em si, mas em outro. Assim, “existir” é um ex-sistere, um “sair para fora”, no sentido de que o ser exibe-se
em sua forma para além de si mesmo, criando uma relação que “sai” de si e se
encaminha para o mundo objetivo – o ex-sistere,
“sair de si”.
Outra
distinção fundamental é entre entendimento (Verstand)
e razão (Vernunft), ou seja, entre o intellectus, que capta imediatamente a
essência, e a ratio, que pensa
discursivamente os conceitos. A razão per
se não cria. Pelo contrário, a razão desempenha um papel sintetizador e,
portanto, abstrato, cujo efeito é precisamente o de afastar da concreção. Diz Mário Ferreira: “A razão, por si só, não
é suficiente sem a longa elaboração do entendimento e das fases mais fundamentais
da intelectualidade humana. Fundada na intuição intelectual generalizadora, é a
razão sintetizadora, e ademais lhe falta o mais profundo papel poiético, criador”. Nota-se que o
raciocínio é algo a posteriori, que
antes há de atuar a “intuição apofântica”, ou seja, uma intuição que afirme ou
negue algo oferecido pela situação ontológica, pela realidade. Na intuição
intelectiva, no intellectus, “não há propriamente dedução nem indução; há revelação, desnudamento, desvelamento; a
necessidade ontológica ressalta, exibe-se,
e ela mesma inaugura a descoberta
pelo espirito do homem”. Assim como na matemática, os postulados metafísicos se
manifestam através das intuições humanas, aos homens bem dotados de l’esprit de finesse. Os homens mais
dotados de l’esprit de géométrie, são
aqueles que racionalizam posteriormente o que o intelecto detectou. Os grandes
filósofos, assim como os grandes matemáticos, são homens dotados de intuições
apofânticas, são os verdadeiros criadores (poiéticos),
são aqueles capazes de captar as revelações ontológicas. O homem contemporâneo,
roído e corroído pelo ceticismo, perdeu o estado feliz da “inocência infantil”.
A revelação
ontológica a que me referi acima não é meramente uma construção da experiência.
A partir da experiência somos capazes de construir conceitos lógicos, isso está
claro. Abstraímos algo da experiência e, por um nexo de adequação, construímos conceitos lógicos. Mas os “conceitos
ontológicos”, digamos, vêm da necessidade da existência. São conceitos
independentes das mentes humanas; eles se nos impõem de maneira “in-cedível”
(neologismo baseado na origem semântica de “necessária”). Construímos conceitos
lógicos, captamos conceitos ontológicos. O juízo lógico é bivalente (ou A é B,
ou A não é B), o juízo ontológico é monovalente (A é necessariamente A).
Veja-se a
diferença entre o raciocínio lógico e o ontológico quando, por exemplo,
estabelecemos a relação entre o possível e o necessário. Logicamente, o
possível tem de conter o necessário, pois o necessário, quando se dá, revela
que era possível. Ontologicamente, no entanto, o possível exige o necessário,
sem o qual o possível não seria tal; portanto, é o necessário que dá o logos (razão) de ser do possível. O
possível, como um ontos (ente), tem
no necessário sua razão de ser. Observe que, na dialética ontológica, há apenas
relações de simultaneidade, de concomitância, e não relações gênero-especie,
como na dialética lógica. Primeiro há um entendimento, e apenas a posteriori criamos estruturas lógicas
proporcionadas à intencionalidade do entendimento. Novamente, observe que
recebemos um conhecimento primordialmente sintético, do qual o exame ontológico
faz ressaltar o concreto, ou seja, o
que se dá unitivamente em uma totalidade, isto é, concomitantemente. Claro que
há implicâncias e complicâncias, exibidas pelos esquemas lógicos, mas tais
esquemas estão antes fundados num nexo de
necessidade ontológica.
Enquanto a
verdade lógica está no juízo, a verdade ontológica está na essência da própria
coisa. A certeza ontológica é firme, há uma evidencia intrínseca que a
sustenta. Tal certeza provém de “motivos supremos”, os quais obedecem as
seguintes condições: (1) ser primário na ordem cognoscitiva (portanto, algo
indemonstrável); (2) ser universal; (3) ser necessário; (4) ser o último. Em
suma, a evidência do raciocínio ontológico é objetiva, mas a certeza do
raciocínio lógico é subjetiva.
Ensina
ainda Mário Ferreira que o que ele chama de “esquemas eidético-noéticos” (as“ideias” de Mortimer Adler) constituem aquilo pelo qual (quo) é
conhecido o objeto, não o que (quod) é
conhecido. A ideia expressa o objeto como nós entendemos. Mas a validez de tais ideias-esquemas é dada pela
validez dialético-ontológica. Veja que há um corolário impactante aí: podemos
errar quando usamos a via lógica, mas não podemos errar quando usamos a via
dialético-ontológica. Daí a filosofia de Mário Ferreira ser “concreta”, o que
equivaleria dizer que é ontológica, ou seja, que se funda na realidade última
da coisa.
Quanto às
possíveis provas, Mário Ferreira as descreve uma a uma. Eis uma tabela que
procura sintetizar as explicações do filósofo.
Sublinhadas
estão as provas que Mário Ferreira julga serem as centrais para a filosofia
concreta.
Ser absoluto e infinito
Segundo
Mário Ferreira, é absoluto o que é ab-solutum,
ou seja, o que é des-ligado, o que não provém de outro, o que não precisa de
outro para ser. Ora, o que poderia limitar esse ser absoluto? O nada absoluto?
Mas este não é; e mesmo que tivesse essa aptidão, seria ser. Portanto, o nada
não poderia finitizar o ser absoluto porque ele é plenitude de ser, pois
essência e existência nele se identificam, são a mesma coisa.
Ser e unidade
A água, por
exemplo, é composta de elementos múltiplos, mas em si mesma a água é uma
unidade. Todo ser tem unidade. A estrutura ontológica da unidade é inseparável
da estrutura ontológica do um. Isso significa que a água forma uma unidade
indivisa, distinta de suas partes componentes,
portanto apresenta uma unidade
substancialmente outra. A estrutura da água transcende a simples associação
dos seus componentes.
Os logoi das
coisas criadas
As coisas reais
da nossa experiência estão a nos afirmar que não têm em si mesmas sua razão de
ser. Não é possível (pois não há fundamento nenhum, para nós; e é, ainda,
fundamentalmente falso) afirmar que alguma coisa finita do mundo que nos cerca
independe de qualquer outra, e existe aqui e agora sem depender do que quer que
seja. Ainda mais: não podemos admitir, por falta total de fundamentos, que
qualquer ser finito se dê em absoluta solidão, totalmente desligado dos outros,
com absolutuidade (ab solutum), solto
de tudo o mais, afirmando a si mesmo. Sabemos que perpassam por todas as coisas, ou melhor, que há entre todas as
coisas que constituem o mundo da nossa experiéncia uma lei, um logos, que as analoga umas às outras,
que é o mesmo em muitas, e um logos
que é o mesmo em todas. Há, assim, um nexo que conexiona, que coordena todas as
coisas, um nexo geral, totalizante, que as une numa “ronda de verdadeiro amor”,
na frase poética de Goethe. Uma visão atomística de entidades completamente
soltas umas das outras também não poderia deixar de reconhecer que há entre
tantas mônadas isoladas algo em comum que as conexiona, que dá lugar ao surgimento
do que é o cosmos, a ordem. A
realidade é o nexo que reúne, coordena as coisas reais. Ora, tais nexos
coordenadores, coordenados por sua vez num nexo universalizaste, são algo.
Portanto, têm um sentido, um ser e, como tais, uma esséncia, uma forma. Há,
assim, um logos do logos, uma ratio que os distingue uns de outros. E
essas formas, a que os gregos chamavam também de ideai, ideias, têm um nexo, que se chama idealidade. Assim, na realidade
(que é o nexo das coisas reais), há uma idealidade
(que é o nexo das coisas ideais, os logoi).
Há, pois, uma idealidade na realidade. E como esses logoi têm uma sistência, não podemos,
porém, afirmar que tenham ex-sisténcia; ou seja. que se deem fora de suas
causas como seres subsistentes em si mesmos. Como todo ser é ser na proporção
em que tem uma sistência, e como tal tem uma realidade, há, portanto, um nexo
de realidade na idealidade, como há um nexo de idealidade na realidade.
Por essas razões,
vê-se que, à proporção que captamos os logoi,
perscrutados por nós na experiência que temos das coisas, experiencia não só no
sentido restrito de Kant, mas também no sentido amplo em que é comumente
considerada, podemos afirmar, sem temor de erro e com plena adesão de nossa
mente, que são eles reais desde que correspondam ao nexo da realidade, como
deste nexo podemos captar o nexo de idealidade. Se nossos conceitos não possuem
conteúdos suficientes para corresponderem exaustivamente ao que se dá na
realidade, eles porém correspondem, intencionalmente, ao que é fundamentalmente
nas coisas.
Kant, pela influência
do abstratismo racionalista de sua época, pelos exageros do Idealismo e da metafísica
racionalista, que conhecia, cujos defeitos são imensos e cuja fraqueza é
inegável, não podia compreender essa conexão, e negava objetividade ao que a
nossa mente eidetieamente constrói com segurança, duvidando da validez de
nossos juízos quanto a uma correspondência à realidade fora de nós. Foi ele,
por sua vez, uma vítima desse abstratismo, mesmo quando o combatia, porque não
se libertou da sua influência, e o eu criticismo não foi capaz de alcançar a
posição concreta que só hoje o pensamento humano está apto a obter.
A metafísica como abstração de terceiro grau
Há duas grandes
divisoes na metafísica: a ontologia,
que lida com o ser imaterial de maneira geral,
e a teologia, que lida com um ser
imaterial de maneira especial. Para
entender onde se situa a metafísica, cabe identificar três possíveis graus de
abstração da existência: 1º grau (abstrair aspectos
da matéria, como a cor de um pêssego), 2º grau (abstrair a quantidade da matéria, como a linha, o
ponto, o número etc.), 3º grau (abstrair seres
sem matéria, como o ser, o existir, a lei, a forma, Ser Supremo, Deus
etc.). Esse terceiro grau de abstração é o que chamamos de metafísica.
Conceitos universais vs. juízos universais (a
metafísica geral)
Um conceito universal é aquilo que aponta intencionalmente ao que há
fundamentalmente na coisa. Ora, aquilo que existe fisicamente na coisa é um,
mas o que existe formalmente (como uma lei ou logos de proporcionalidade intrínseca) está em muitos. No entanto os
conceitos universais se referem a algo que tem matéria e que, portanto, não
transcendema experiência. Por exemplo, dos homens e dos triângulos podemos
abstrair os conceitos de homem e triângulo, mas ambos situam-se, ou apontam, algo
ainda dentro da esfera material. Os conceitos em si são, obviamente, imateriais, mas não são transcendentais à experiência.
Um juízo universal surge de comparações
realizadas entre conceitos universais. Por exemplo, os conceitos de humanidade
e triangularidade não tem nenhuma materialidade, não apontam a nenhum singular.
Um triângulo não é trinagularidade,
mas tem triangularidade. Um homem não
é humanidade, mas tem humanidade. Os homens e os
triângulos não são (ser) seus juízos
(ou “perfeições”), mas participam (haver)
dessas perfeições.
O Ser Supremo e as perfeições (a metafísica
especial)
A partir de nossa
experiência, ou seja, a partir da intuição sensivel, alcançamos a totalidade
coordenada do cosmos mediante a mutabilidade e contingência dos seres finitos.
Eis o limite que nos é imposto pela nossa esquemática. No entanto, alcançar o
limite é ao mesmo tempo ultrapassá-lo, pelo menos palidamente. Ora, se sabemos
o limite então sabemos que há além um “algo outro” (aliquid aliud), que não pode evidentemente ser um puro nada.
Ademais, a partir
da mesma intuição sensivel observamos o que há de imperfeito nas coisas e,
mediante abstrações, alcançamos as perfeições. É claro que as perfeições só
podem ser atribuídas de maneira analógica às coisas da nossa experiência, pois
se fosse de maneira unívoca entao o Ser Supremo e as coisas seriam o mesmo, e se
fosse equivocamente o Ser Supremo permaneceria totalmente desconhecido, o que
contradiz o que dissemos no parágrafo anterior. Assim, o Ser Supremo “existe”,
mas não existe como eu e você existimos.
Uma resposta ao ceticismo de Kant quanto à validez
da metafísica
[Segundo
Kant], é lícito duvidar metodicamente da possibilidade de uma ciência na qual
não há nenhum consenso universal. Ora, a metafísica revela não haver nela
nenhum consenso universal em face da variedade de opiniões, muitas vezes
contrárias, que nela se revelam. Consequentemente, é lícito duvidar da
possibilidade da metafísica. Mário Ferreira responde a essa objeção kantiana
afirmando que a premissa maior seria válida se o consenso exigido não se desse
quanto ao objeto da ciência nem quanto aos seus primeiros princípios. Ora, não
é esse o caso quanto à metafísica. Pode não haver consenso universal quanto a
todos, não, porém, quanto a alguns princípios e conclusões fundamentais.
Ver a
explicação de Xavier Zubiri sobre a objeção de Kant.
Intellectus, ratio e os princípios das essências
A partir da
experiência abstraimos as essências, mas as relações necessárias (princípios)
entre essas essências não é resultado de um discurso da ratio (raciocínio), mas uma inteligência simples e imediata
empreendida pelo intellelctus
(entendimento). Eis o intellectus
principiorum (entendimento dos princípios) dos escolásticos, o noûs de Aristóteles. O princípio,
portanto, não se funda na experiência, mas ultrapassa a experiência. Para os
escolásticos, o juízo explicativo é o
juízo contido no conceito da coisa (obtido pela experiência), enquanto o juízo extensivo é o juízo acrescentado à
coisa (obtido pelo entendimento/inteleccção).
A mente humana obedece a leis, a modelos
Há leis da nossa
mente que atuam na operação abstrativa para formação de conceitos. A
diferenciação, a nidade, a simultaneidade, a sucessividade, a correlatividade,
eis alguns elementos que atuam e modelam a atividade cognoscitiva desde seus
primórdios até asuas mais altas funções. A percepção da quanitdade, da
qualidade, da relação, da modalidade, nada disso são objetos da intuição
sensível. Trata-se, segundo Mário Ferreira, de estruturas noético-eidéticas que
estavam confusas nas coisas sensíveis
e que somente a inteligência (o intelecto) pode captar e distinguir. Por
exemplo, a quantidade é a propriedade que separa o ser corpóreo dos outros. É
por meio dela que um corpo pode dividir-se em partes indivíduas, independentes
da natureza do todo. Implica a extensão,
a tensão que se ex-tende, que tende para
fora de si mesma, como a qualidade é a in-tensão,
a tensão que tende para si mesma. Se a extensão brota da cruatura corpórea, não
se identifica com ela, como o queria Descartes; é apeas uma propriedade da sua
essência. Em outras palavras, a ideia de que a coisa criada seja res extensa é absurda.
As três apoditicidades (evidências necessárias)
(1) Apoditicidade lógica. Trata-se do rigor
advindo da necessidade lógica. Por exemplo, se dissermos “Deus existe”,
trata-se de um juízo que se segue logicamente à ideia de Deus, que subsume a
existência incedível (necessária) de Deus. Mas é claro que essa existência não
tem apoditicidade ontologica.
(2) Apoditicidade ontológica. Trata-se
captar a partir da existência mesma certas verdades incontestes. “Deus existe”
é um juízo ontológico, Ele tem de necessariamente existir. “Alguma coisa há”, o
famoso ponto arquimédico da filosofia concreta de Mário Ferreira, também é um
juízo de apoditicidade ontológica. O nada absoluto não pode ter antecedido a
alguma coisa. O haver (a participação) do ser é ontologicamente necessário.
(3) Apoditicidade öntica. Trata-se de captar
a partir da existência que algo se recusa a não existir. Uma necessidade
ôntica, por exemplo, é aquela em que Deus não pode deixar de existir. “Alguma
coisa há” é um juízo eivado de apoditicidade öntica porque é absolutamente
improcedente afirmar que “nenhuma coisa há”.
Das três
apoditicidades, no que tange o ponto arquimédico, concluímos que há necessariamente alguma coisa e
necessariamente é impossível não haver alguma coisa.
Ordem ontológica e ordem física
Há uma curiosa
inversão quando contrastamos a ordem ontológica com a física. Na ordem
ontológica, o mais precede o menos, mas na ordem física o menos antecede o
mais. Por exemplo, se na ordem ontológica o Ser Supremo precede os conceitos e
juízos universais (veracidade, bondade, sabedoria, justiça, humanidade etc.),
na ordem física os elementos atômicos antecedem os elementos químicos, as matérias-primas,
os objetos singulares etc.
Tal inversão não
as exclui, mas, pelo contrário, apenas mostra a harmonia que há entre elas.
O mal
O mal é uma
privação de uma perfeição, ou seja, a ausência de um bem. Ignorância é ausência
de sabedoria, neste ou naquele ponto. Portanto, a ignorância é um mal. O Ser
Supremo, Absoluto e Infinito, não está privado de perfeições, nem é deficiente
delas. Consequentemente, não podemos atribuir o mal ao Ser Supremo.
As formas não estão no Ser Supremo
Não faz sentido
afirmar que as formas estão no Ser Supremo porque, se estivessem, existiriam
singular ou universalmente nele. E tampouco faz sentido afirmar que as formas
estão nas coisas porque, se estivessem, existiriam singular e topicamente
nelas.
O correto é
afirmar que as formas nas coisas (in re)
são “apenas” proporcionalidades intrínsecas dessas coisas que imitam potências
do ser. Em outras palavras, as formas in
re fundam-se analogicamente no ser eminentíssimo do Ser Supremo (veja a
eminencia do Ser Supremo na ordem ontológica explicada acima). No Ser Supremo
está o fundamento da imutabilidade (ou
seja, o logos, a forma universal) das
formas, está a razão ontológica das
formas, que estão in re.
Portanto, se diz
que a forma da maçã não está singularmente ou universalmente no Ser Supremo,
mas o fundamento (logos, forma
universal) da forma da maçã está eminentemente e virtualmente no Ser Supremo. Da mesma maneira, a forma da maçã não
está nas maçãs singulares, mas está virtualmente
nas maçãs singulares.
Os princípios da demonstração na filosofia
concreta
(1) Princípio da identidade: A é A
necessariamente.
(2) Princípio da contradição: é impossível
que algo simultaneamente seja e não seja sob o mesmo aspecto.
(3) Princípio do terceiro excluído (ou princípio de disjunção): ou algo é, ou
algo não-é.
Segundo Mário
Ferreira, adquirimos esss princípios por impulso
nativo da inteligência, por simples
cognição dos termos, por força da
intelectualidade.
O princípio da causalidade eficiente
O que é produzido
não tem em si a força para produzir a si mesmo, mas é produzido por outro que
está em ato e que lhe é realmente distinto.
O princípio de razão suficiente
Se o ente não
tivesse razão suficiente para o ser o que é, e nada requeresse para ser o que
é, tanto para ser como para não-ser, evidentemente não seria o que é, o que é
contraditório.
O princípio da inteligibilidade
Todo ser é
inteligível. Na filosofia concreta, se se predica a ininteligibilidade ao nada
absoluto, predica-se a inteligibilidade ao ser. Essea inteligibilidade total do
ser só a pode ter o Ser Supremo.
O princípio da finitude nas causas
Repugna o
processo in infinitum nas causas
eficientes pois, sendo toda a série produzida, ela seria ao mesmo tempo
produzida e não prduzida, e terminaríamos por afirmar que ela seria produzida
por si mesma, o que ofenderia a tese de que nenhum
ser é produto de sua própria emergência.
O princípio de finalidade
Todo agente atua
segundo o fim. Sem o fim não poderia haver uma operação, porque a operação
tende para algo. Os seres atuam proporcionadamente à sua natureza; isto é, por
motivos intrínsecos e também por motivos extrínsecos.
A formação de um novo todo a partir de partes
Mário Ferreira
procura explicar como se dá, em termos metafísicos, o processo de criação,
primeiramente da “criação” de novos elementos físicos, e em seguida da criação
do mundo propriamente.
Segundo explica,
as coisas não podem unir-se apenas pela sua diversidade, já que por meio destas
elas têm vetores diferentes, quando se trata de totalidades substanciais. O que
é possível ao hidrogênio e ao oxigênio é, em certas circunstâncias,
combinarem-se no arithmós da água
que, como tal, tem uma forma tensional especificamente diferente das partes
componentes. Há, portanto, uma completação de um esquema, que não é latente nem
em um nem em outro dos elementos. Esse esqueda é da ordem ontológica, que
ultrapassa de certo modo a das partes componentes. Remotamente, as coisas
diversas convêm em algo que é o ser.
O que une,
portanto, os diversos é o grau de conveniência, de adequação, que revelam entre
si, em face de uma forma pssível. Esse aspecto unitivo justifica-se pelo infinito poder unitivo do ser, no qual
não há separações senão espcíficas.
O processo criativo propriamente
Os seres finitos
têm de surgir de uma operação do Ser Infinito, senão proviriam do nada
absoluto, o que é absurdo. Portanto, a estrutura ontológica dessa operação
implica o dar existência ao que é possível. E dar existência, para o Ser
Supremo, significa uma operação ad extra,
ou seja, para fora, e não in intra.
Há uma operação in intra, que está
associada à vontade que delibera dar
ser a outro, à intelectualidade (Logos, Verbum) que escolhe entre possíveis e ao amor que une mutuamente a vontade e a intelectualidade. É óbvio que
Mário Ferreira se refere à expressão cristã da Trindade. São esses três papéis
(personas, ou seja, per sonare, soar através, máscaras, “pessoas”)
desempenhados pelo Ser Supremo em sua operação in intra de criação.
Mas é a operação ad extra do Ser Supremo que realiza a
criação. A intelectualidade (Logos)
opera a criação, e o operado (o criado) depende do operante (o Logos) e, portanto, será forçosamente
finito. É o momento em que se produz o que Mário Ferreira chama propriamente de
crise entre operado e operante, entre
criatura e criador. Esta criatura é proporcionada ao agente e ao material que
daquele recebeu a nova forma. Nenhum ente deixa de ter semelhança com o Ser
Supremo, pois, para que nenhuma semelhança tivesse com ele, deveria não ser
portador de nenhuma perfeição, o que o identificaria com o nada, o que é
absurdo. Nenhum ente pode dar-se absolutamente fora do Ser Supremo. Se pudesse,
haveria rupturas no ser e o abismo estaria traçado, o que é absurdo.
Consequentemente, toda ação do Ser Supremo não se dá nunca à distância, em
sentido absoluto, mas só relativamente.
O Meon
Sabemos que o
nada absoluto é ontologicamente absurdo. Mas resta examinar outro nada, o
não-ser, o me on (do grego mé = não e on = ente), o outro.
Trata-se, numa interpretação livre, do não-ser “dentro” do Ser Supremo, trata-se
da infinita potência passiva, ou seja, tudo aquilo que ainda não é mas pode
ser. Não é em si mesmo, mas é no poder do Ser Supremo. Em
outras palavras, essa infinita potência é outro
que o Ser Supremo, e é portanto não-ser, Meon.
Quando dizemos
que Deus criou o mundo ex nihilo,
esse “nihilo” não é o nada absoluto,
um absurdo ontológico, mas é o Meon, “o
que ainda não é”, o nada da infinita possibilidade passiva. Antes da criação a
criatura era ainda “nada” e é desse “nada” que ela provém. Ser e Nada (On e Meon)
são inseparáveis: o Não-Ser-Ainda
pertence ao Ser-Sempre. O Não-Ser de Platão era o Meon, o que
significa dizer que atribuir um caráter dualista à metafísica platônica é
ignorar a profundidade de sua doutrina.
As razões ontológicas
Mário Ferreira
explica que há duas esferas ou âmbitos de logos
(razões ontológicas): (1) os logoi
ontologikoi ou arkhétypois, as
razões ontológicas do Ser Supremo, que são da glória (Kleos) do Ser Supremo e (2) os logoi
spermatikoi, as razões seminais dos seres finitos, as formas dos seres
finitos, as eídola, que são
proporcionadas às razões ontológicas do Ser Supremo, que dependem das razões
ontológicas do Ser Supremo.
A analogia: semelhança/diferença + subordinação
No raciocínio
silogístico, nada se pode concluir de duas premissas menores. No entanto, na
dialetica platônica, desde que haja uma proporção
entre ambas as premissas, é possível extrair uma conclusão. Trata-se da analogia, ou seja, segundo o Logos (aná logos).
Logos, como vimos, é uma relação, lei
ou princípio. Para que surja um ente, impõe-se a obediência de uma lei de proporcionalidade intrínseca, ou seja, a
forma desse ente.
O fator dominante
da analogia é a semelhança, ou seja, uma
igualdade parcial quantitativa, qualitativa e ontológica. A analogia
estabelece uma lei que os entes “copiam” ou “imitam” sem serem a própria lei.
Por exemplo, todos os corpos que caem “copiam” ou “imitam” essa relação ou lei
de queda, sem serem a própria queda. Essas relações ou leis (logoi) são estruturas ontológicas porque
não têm subjetividade, ou seja, não têm um sujeito que as represente. O fator
menor, mas que compõe necessariamente a analogia, é a diferença. A analogia sintetiza ambas as operações.
É evidente,
também, que a subordinação (sub-ordinis: ordem dependente de outro)
compõe a analogia, pois ambas as
premissas particulares subordinam-se ao logos
analogante: há aí uma relação de subalternação.
“O leão é o rei
da selva” e “Dom Manuel é o rei de Portugal”, embora não se possa concluir
logicamente nada dessas afirmações, guardam entre si uma proporção, uma lei,
que rege a ambas. Por analogia (semelhança/diferença e subordinação), chegamos
ao logos de domínio que rege ambas as
afirmações: “o agente atua porporcionadamente à sua natureza e
proporcionadamente ao campo de sua atividade”.
O que é o bem
O que é apetecido por outro é um bem para este: tudo o que aperfeiçoa alguma coisa é um bem para este. Se algo me apetece é
porque me aperfeiçoa. Esse algo, em ato, é per
factum, pois antes era só potência.
Ausência: carência vs. privação
Carência é quando uma coisa não possui, ou nela não existe, um estado ou
propriedade. Privação é quando existe
esse estado ou propriedade na coisa, mas não se atualiza. A árvore carece de
visão. O cego está privado de visão. Ambos os conceitos estão inclusos no
conceito de ausência. A privação do
bem chama-se mal. Quando um ente está privado de algum estado ou propriedade
adquire outros. Porde acontecer de um ente, ante a inconsecução de seuas
perfeições, se corrompa, ou seja, que
se transforme em outro ser. De qualquer forma,o mal em si mesmo não é um ser,
pois não há o mal subjetivametne sendo,
não há o ontos subjetivo do mal.
Diz-se que é mal o que é devido, o
que tem de haver para a plenitude de
um ser em sua especificidade. O mal não é, pois, da natureza de uma coisa, mas
o que lhe acontece, o que é, portanto acidental (relacional).
Sofrer e conhecer
Um ser sofre:
1. por perder algo que lhe convém;
2. por lhe tirarem algo;
3. por receber um ato, sem nada lhe tirarem.
Compreender é
sofrer do terceiro modo acima porque os homens estão em potência para
compreender. Esse intelecto passivo os escolásticos chamavam de intellectus passibilis. No entanto, ao
receber o ato, o intelecto humano necessita abstrair, ou seja, extrair a forma
das coisas. Eis o intellectus activus.
Portanto, o processo intelectivo exige sempre uma atividade e uma passividade
contemporâneas e silmultâneas.
Os esquemas e a tensão
Tomemos um
singular qualquer, uma maçã, por exemplo. Esta maçã porta um esquema concreto, ou seja, o arithmós, a heceidade (i.e. a “istidade”)
da singularidade desta maçã. Mas esse esquema concreto desta maçã é composto do,
ou se refere ao, esquema eidético, ou
seja, o modo do ser da maçã que não é nem singular nem universal, mas apenas
formal (eidos) na odem do ser. A maçã
copia, ou imita sinteticamente, em seu relacionamento intrínseco a
proporcionalidade intrínseca da maçã infinita, que é um logos no Ser Supremo. Porém nós, homens, captamos a maçã
proporcionadamente à nossa intencionalidade psicológica: o esquema concreto
pela intuição sensível da coisa, o esquema eidético pela abstração intelectual,
e formamos um esquema eidético-noético,
porque já traz a marca do nosso intelecto (noûs,
espírito).
Em suma: há o
esquema concreto in re, no ente individua,
há o esquema eidético na odem o ser e há o esquema eidético-noético post rem, posterior, na mente humana.
A tensão, ou
seja, aquilo que no elemento confere aptidão para ser um todo “maior” que as
partes, advém do esquema eidético, pois do contrário teris vindo do nada, o que
é absurdo. Temos aqui um salto
importante, que uma visão puramente mecanicista não pode explicar, pois o ente
novo é assumido por uma forma que não é a os componentes, uma possibilidade do
corelacionamento, e não dos corelacionantes, algo novo que vai repetir, por imitação, um possível da ordem do ser, ou
seja, do esquema eidético.
Fonte: Mário Ferreira dos Santos, Filosofia
Concreta, Editora Filocalia, São Paulo, Brasil, 2020.