23 de junho de 2023

Um dia de Ivan Denisovich


Mesmo que o barracão estivesse pegando fogo, a gente não deve nunca se apressar. Fora o sono, o homem dos campos de concentração só vive por sua conta dez minutos de manhã, no café, cinco no almoço e cinco no jantar.

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Mas até para pensar um zek nunca está livre. Sempre volta para o mesmo ponto, não para de remexer as mesmas ideias. Será que eles não vão encontrar o pãozinho inspecionando o colchão? Será que de tarde o doutor vai fazer o favor de te livrar do trabalho? O comandante vai dormir no xadrez ou não? E como Tsezar vai se virar para conseguir roupas quentes? Com certeza ele molhou a mão de alguém do armazém das roupas pessoais, porque senão...

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Nos campos e nas prisões, Ivan Deníssovitch tinha perdido o costume de pensar no futuro; para hoje assim como para um ano, e também para sustentar a família. Os chefes cuidam disso no teu lugar; são umas preocupações a menos.

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Nos campos, quantas vezes Chukhov tinha lembrado de como se comia antigamente, na roça: batatas às fornadas, a kacha direto na panela e, ainda antes disso, [antes dos kolkhozes] carne, carne por fatias inteiras, e que fatias! Sem falar do leite que se bebia até estourar. Mas nos campos Chukhov compreendeu que era besteira fazer aquilo. Melhor é comer prestando atenção, pensando só no que se está comendo, como ele fazia, separando todos os pedaços com os dentes, fezendo-os passarem por baixo da língua e chupando com as paredes da boca, para não perder nada desse bom pão preto úmido, que tinha um cheiro tão bom.

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O que é bom no campo é a liberdade completa. Se por acaso, em Ust-Izma, você dissesse na orelha de alguém que estava faltando fósforo na cidade, você pegava dez anos de pena a mais. Mas aqui, você pode gritar nas wagonka o que quiser,os dedos-duros não vão te entregar: o Padrinho não está nem aí.

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-- E obrigado, meu Deus, por mais um dia que passou!

Porque tinha ouvido Chukhov agradecer alto a Deus, Aliocha se voltou:

-- Ivan Deníssovitch -- disse --, você está vendo que a sua alma está pedindo para rezar a Deus. Por que não a deixa fazer isso?

Chukhov deu uma olhada de lado para ele: Aliocha tinha os olhos ardendo, como duas velinhas. E Chukhov suspirou:

-- Uma oração, Aliocha, é como as reclamações. Não chegam nunca até o patrão. Ou então ele te escreve: Recusado.

-- É porque você não reza o bastante, Ivan Denissytch, ou porque você reza mal, sem fervor, que as suas orações não são atendidas. A oração tem que ser fervente. Quando vocÊ tem fé, você diz para uma montanha andar, e ela anda.

Chukhov sorria devagarinho. Enrolou um segundo cigarro, acendeu com o do estoniano...

-- Aliocha -- disse então --, a gente não deve falar por falar. Nunca vi uma montanha andando.

-- Ivan Denissytch -- diz ele ainda --, não é para receber uma encomenda que a gente tem que rezar, ou para receber uma sopa extra. O que o Homem põe mais alto é uma miséria aos olhos do Senhor. A gente tem que rezar pela salvação da nossa alma: para que Nosso Senhor arranque de nosso coração a escória do mal... 

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-- Por que você me fala dos popes? A Igreja Ortodoxa se afastou do Evangelho, e é por isso que os membros dela não são presos: porque têm uma fé morna.

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Dias como esse, em sua pena, ele tinha, de ponta a ponta, três mil seiscentos e cinquenta e três.

Os três a mais eram por culpa dos anos bissextos.

Fonte: Alexandr Solzhenitsyn, Um dia na vida de Ivan Deníssovitch, Editora Siciliano, São Paulo, Brasil, 1995.