19 de outubro de 2023

Dietética


Quem se dedica a estudar psicologia certamente já se deu conta da diferença não apenas de grau, mas de tipo, entre as obras de um Rudolph Allers e um Donald Robertson, de um Viktor Frankl e um Massimo Pigliucci, de uma Magda Arnold e uma Ayn Rand ou, para ficarmos em um exemplo local, de um Mário Ferreira e um Flávio Gikovate. A diferença reside na fundamentação de seus pensamentos: aqueles delineiam de maneira clara os preceitos que presidem seu pensamento, enquanto estes se limitam a orientar o leitor em situações cotidianas. Popularmente, diríamos que aqueles são “teóricos” e estes “práticos”.

Isso não significa que Flavio Gikovate ou Ayn Rand não apresentem um quadro de referência a partir do qual fundamentam seus preceitos. É famosa a ideia de “medo da felicidade” de Gikovate ou a “virtude do egoísmo” de Rand, por exemplo, mas nenhum deles preocupa-se em apoiar tais quadros em uma visão minimamente precisa do ser humano. Como se divide o ser humano, quais suas emoções básicas, a qual fim se destina, o que deveria almejar? O que é felicidade, ego e medo? E qual a diferença entre esses conceitos e contentamento, eu e temor?

Sou levado a concluir que a autoajuda e a maior parte do que se passa em consultórios de psicoterapia não são atividades que se encontram no âmbito da psicologia. A maioria desses profissionais não apenas não tem claros os preceitos fundamentais de sua prática, como não mostram saber por que escolheram esta terapia e não aquela. No supermercado da psicoterapia vale o gosto do freguês. Behaviorismo, logoterapia, terapia cognitiva, psicanálise, uma pitada de estoicismo, um pouco de Freud aqui, Jung ali, Rogers, Frankl e, por que não?, Mario Sergio Cortella. Vale tudo e qualquer coisa sob a batuta do gosto pessoal.

No entanto, em parte é compreensível, e mesmo desejável, essa situação. Parece que a relação entre psicologia -- sejamos mais precisos, antropologia -- e aconselhamento nunca foi unívoca. E a confusão reside no fato de que a terapia não tem a ver com psicologia mas com dietética. A arte de bem aconselhar tem raízes na antropologia, claro, mas de maneira longínqua e, ademais, jamais exclusiva. Elementos culturais, históricos, econômicos, profissionais, familiares e muitos outros influenciam no surgimento de neuroses e curá-las implica em compreender quais, e em que medida, esses elementos as sustentam, e saber identifica-los no indivíduo. A terapia é uma arte, não uma ciência, e confiná-la à psicologia é um erro crasso. A arte, ou técnica, é um conjunto heterogêneo de conhecimentos que só são unificados em vista de um fim. É como montar a cavalo: é necessário algum conhecimento, mesmo que rudimentar, das leis do equilíbrio e algum conhecimento de comportamento animal, mas ambos os conhecimentos não guardam entre si nenhuma conexão lógica.

A filósofa chilena Diana Aurenque tangencia esse tema ao lembrar que a dietética é uma arte antiga, cujo objetivo é ordenar a forma de viver, é organizar a existência e a vida em todos os seus aspectos. Os filósofos de antigamente não apenas ofereciam explicações sobre as grandes questões metafísicas, mas também proporcionavam indicações sobre o modo adequado de viver. Em suma, davam fundamentações éticas para alcançar uma “boa vida”. E o faziam porque os filósofos eram antes de tudo homens sábios, de saber amplo, não necessariamente, muito menos exclusivamente, psicólogos.

O filósofo, mais precisamente o dietético, incentivava seus discípulos a se conhecerem de tal forma a terem condições de assumir o controle de suas vidas, de diferenciar entre aquilo que lhes é benéfico e o que lhes é nocivo. Sua prática se centrava em conduzir o interlocutor à liberdade, a assumir com responsabilidade o que ele é, a liberar-lhe de falsas dependências e amarrar-lhe com liberdade àquilo que o fortalece e assume como imperioso. Essa responsabilidade livre é precisamente aquilo que chamamos “saúde”.

Portanto, as pessoas aptas a nos guiar a esta liberdade são os sábios, que podem ou não portar um diploma de psicologia.

Leia: Diana Aurenque, Animales enfermos, Fondo de Cultura Económica, Santiago, Chile, 2022.

5 de outubro de 2023

O intelecto angélico


A mente angélica é puramente intelectual. Não passa de intelecto e, enquanto tal, é puro poder de compreender.

Diferente do intelecto humano, cujos poderes incluem também o juízo e o raciocínio, o intelecto angélico não pensa. Não encadeia nem desencadeia conceitos para formar juízos, tal como o faz a mente humana; tampouco reúne juízos segundo um processo de raciocínio que leva a uma conclusão. Em suma, sua ação não é nem reflexiva, nem discursiva. É puramente intuitiva.

Quando descrevemos os processos humanos de juízo, reflexão ou raciocínio como discursivos, o uso da palavra “discursivo” traz consigo a ideia de que se desenvolve no tempo. Somente o simples ato intelectual de compreender, de conhecer um objeto de pensamento, é instantâneo. O mesmo se pode dizer do simples ato sensorial de compreender um objeto perceptível.

Ambos os atos, intelectual e sensorial, podem chamar-se mais intuitivos que discursivos, pois são instantâneos, não demandam um espaço de tempo.

[...]

As ideias inatas, que são conaturais aos anjos, constituem as naturezas que eles possuem por serem criaturas de Deus.

Ao criar uma multidão de anjos, Deus diversificou suas distintas naturezas ao implantar diferentes grupos de ideias em cada um. Por isso podemos concluir que não há dois anjos iguais.

Cada um é superior ou inferior em hierarquia a outro, em virtude das ideias inculcadas pelas quais compreende e sabe. Os anjos superiores compreendem mais por meio de menos ideias, embora mais universais e abarcadoras. Os anjos inferiores compreendem menos por meio de um número maior de ideias, que são menos universais e abarcadoras.

Essa diferenciação das naturezas angélicas parece incluir as diferenças essenciais e não as acidentais. Um anjo é o que é em virtude das ideias que tem. Se for assim, isso favorece a visão de que um anjo difere de outro, assim como uma espécie de substância difere de outra, mais do que um individuo difere de outro dentro de uma mesma espécie.

Dado que as ideias pelas quais os anjos, de forma intuitiva, sabem e compreendem, provêm de Deus, o intelecto angélico é tão infalível quanto o intelecto divino. No entanto, a diferença entre o ser infinito de Deus e o ser finito dos anjos traz consigo o reconhecimento de que o intelecto angélico pode ser infalível sem, contudo, ser onisciente.

Fonte: Mortimer J. Adler, Los ángeles y nosotros, Javier Vergara Editor, Buenos Aires, Argentina, 1996.

2 de outubro de 2023

Breve introdução à obra de Tomás de Aquino


Vamos tentar aqui resumir o tomismo em seus pontos mais importantes. Tomei por base o estudo feito pelo historiador português João Ameal.

De maneira geral, Tomás se apoia em dois axiomas basilares:

- A realidade objetiva do universo.

- A inteligência humana é capaz de conhecer o universo.

Conceitos funamentais

Há, no entanto, alguns conceitos fundamentais que são necessários para que entendamos mais claramente a doutrina tomista. Vejamos:

a)      Ser. O ser é uma constante irredutível da realidade a qual a inteligência descobre por abstração. O ser é tudo quanto existe. Se por um lado surgem novos modos e novos aspectos de existência, por outro apenas o ser permanece. Quanto ao não-ser, já o estudamos em outras oportunidades (cf. Mário Ferreira, Frederick Wilhelmsen etc.) e ele escapa às nossas faculdades. Não está claro se Ameal, ou o próprio Tomás, se refere ao não-ser (nada) absoluto ou relativo (me on vs. ouk on). De qualquer forma, para que o conceito de ser se solidifique na mente do estudante é necessário distinguir bem entre o que existe sempre e o que deixa de existir, entre o que fica e o que passa, entre o idêntico e o diverso.

b)      Primeiros princípios. São os princípios supremos, os “alicerces ontológicos”, aos quais a inteligência humana não tem alternativa senão subordinar-se. São eles: não-contradição (uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto), identidade (o ser é sempre idêntico a si mesmo), causalidade (todo ser contingente tem uma causa), razão suficiente (todo ser tem sua razão de ser), finalidade (todo agente opera para um fim).

c)       Potência e ato. Nem tudo é ser ou não-ser. Há uma terceira hipótese: o poder-ser, ou seja, coisas que não são ainda ou que já não são. A potência é a capacidade de vir-a-ser (ou devir). Para que o vir-a-ser venha a ser, é necessário que o ato intervenha. Difícil defini-lo, mas pode-se dizer que o ato equivale a perfeição. O ato completa o incompleto, determina o indeterminado. A potência limita o ato, pois do contrário o ato seria ilimitado, imutável, perfeição pura.

d)      Essência e existência. Essência (ou natureza, ou quididade, ou forma) é o que caracteriza o ser, é o que faz o ser pertencer a determinada espécie ou gênero, é o que distingue o ser dos seres pertencentes a outros gêneros e espécies. As essências podem ser agrupadas em “ideias universais”, que por sua vez dividem-se em ideias universais-diretas (dizem respeito aos elementos constitutivos das essências, mas sem relação com quaisquer indivíduos) e ideias universais-reflexas, ou predicáveis (dizem respeito à relação das essências com os seres: são elas espécie, gênero, diferença, propriedade e acidente). Por outro lado, existência é o que dá realidade à essência, é o que eleva a essência à categoria de ser, é o que faz a essência emergir do nada. A essência em potência torna-se essência em ato mediante a existência. No entanto, mesmo em ato a essência representa certos tipos de seres sob uma forma abstrata: é uma vez mais a existência que lhes dá conteúdo concreto. Segundo Tomás, quando a existência não se encontra limitada por nenhuma essência, estaremos diante do Ser absolutamente único e simples, cuja essência confunde-se com o próprio ato de existir.

e)      Substância e acidente. A substância é o elemento permanente do ser, ou seja, aquele elemento do ser no qual a essência existe nesse ser e não em outro, enquanto acidente é o elemento ocasional (ou “adventício”) do ser, ou seja, aquele elemento do ser no qual a essência existe nesse e em outros seres. Todos os seres criados têm substância e acidentes. Quanto ao modo de existir, há dez categorias. Ameal introduz um útil exemplo que os resume todos: Paulo é homem – substância; Paulo é alto – qualidade, Paulo é um corpo orgânico (dotado de diversos órgãos) – quantidade; Paulo é tio de Luís – relação; Paulo empurra Luís – ação; Paulo é empurrado por Luís – paixão; Paulo vive há trinta anos – quandocação; Paulo está sentado – estado; Paulo foi à rua – localização; Paulo está fardado – hábito.

f)        Causa. Das categorias de ação e paixão deduzimos que causa é a origem de qualquer ação, ou seja, é aquilo que intervém na produção de uma coisa. Há quatro causas, que novamente Ameal as resume todas lançando mão do famoso exemplo da estátua de um rei: o mármore é a causa material, a figura do rei é a causa formal, o escultor é a causa eficiente, a glorificação do rei, o adorno da praça ou a ambição do artista é a causa final.

g)       Unidade, verdade, bondade. São os três grandes atributos do ser (Ameal cogita incluir um quarto atributo, a beleza, mas vacila reduzindo-a a uma forma especial de bondade). O ser é uno (indiviso), verdadeiro (se conforma à inteligência) e bom (solicita e satisfaz a vontade).

Deus

São famosas as provas de Tomás de Aquino acerca da existência de Deus. Mas menos famosa é a ideia de que tais provas não são provas como uma demonstração geométrica é uma “prova”. O grau de certeza dessas provas não provém de um raciocínio lógico, mas de uma meditação ontológica. Por isso tais provas, embora levem este pomposo nome, não são tão convincentes quanto uma prova matemático-geométrica: o raciocínio lógico parte de uma proposição e, desde aí e para “fora”, atinge outras certezas. É algo que qualquer um que esteja minimamente desperto e consciente deverá assentir à sua conclusão. Mas uma meditação ontológica, ou poderíamos dizer, à moda de Mário Ferreira, um “raciocínio ontológico”, é algo que parte de uma evidência e, desde aí e para “dentro”, investiga essa evidência e a explica, a esmiúça. Se o indivíduo, mesmo que esteja desperto e consciente, não for capaz de ver a evidência, menos ainda será capaz de assentir às suas conclusões. Veja que a meditação ontológica se faz menos com raciocínios e mais com intelecções. Aqueles que têm facilidade para a abstração matemática, caso se apaixonem por essa via, terão dificuldades em assentir ao terceiro grau de abstração, ao qual pertence a ontologia geral.

A inteligência humana está ordenada ao absoluto. Isso significa dizer que ela está dirigida à pesquisa das causas; em última instância, a investigar a origem do ser. No entanto, no seio do tomismo, investigar a origem do ser significa investigar a origem do próprio Deus. Trata-se de um salto temerário: uma vez apreendido o ser e meditado a seu respeito, quem disse que a inteligência humana, por mais que esteja ordenada ao absoluto, capta o Ser enquanto tal? Quem disse que o ser supremo é o Ser Supremo? O melhor é contentar-se com a noção de que a inteligência humana, por si só, intui o Ser, mas o máximo que pode fazer é inspirar, dar ímpeto, à vontade para que busque o Ser por outras vias, a saber, pelo contato direto com Ele, e não por meio das coisas criadas. Por sinal, Ameal o admite ao afirmar que “só nos será lícito demonstrar a existência de Deus pelos seus efeitos; mas não há proporção alguma entre Deus e os seus efeitos: estes são finitos, ao passo que Deus é infinito” (por sua vez inspirado na Sum. Theol., I, Q, 2, art. 2, Videtur quod). Por outro lado, também diz, de maneira ambígua:

“[...] não se contestará que haja desproporção absoluta entre os efeitos finitos e a Divina Causa infinita. Essa desproporção faz com que seja extremamente imperfeito [por que “extremamente imperfeito” e não “absolutamente impossível”?] o nosso conhecimento de Deus, mas não afecta a possibilidade de O conhecermos. Das Suas obras poderemos deduzir a Sua existência, não atingi-lO na Sua natureza essencial. O que se discutia, porém, era apenas o primeiro ponto – e, quanto a esse, chegâmos ao fim que desejávamos: estabelecer que a existência de Deus é susceptível de demonstração”. (cf. Sum. Theol., I, Q, 2, art 2, Resp + Idem, ad tertium)

Como se verá, Tomás não se limita a provar a existência de Deus, mas Lhe confere atributos não a partir de alguma revelação divina, mas a partir da mesma especulação metafísica. A abordagem de Sertillanges me parece mais sã: “não se trata de definir ou compreender Deus – por si mesmo indefinível e incompreensível – mas de definir e compreender um mundo que, sem Ele, não teria razão de ser, nem poderia subsistir, nem mesmo se tornaria acessível ao nosso conhecimento” (S. Thomas d’Aquin).

Eis em suma as cinco vias de Tomás de Aquino:

(1) Primeiro Motor (ou “ato-potência”). Todo objeto que se move, seja de lugar, seja em qualidade, aumento ou diminuição, seja de ação interna sobre si mesmo, tem de ser movido por outro, já que não é, ao mesmo tempo, o que move e o que é movido. E assim sucessivamente, até necessariamente encontrarmos o Primeiro Motor, imóvel, ato puro, ou seja, desprovido de potência.

(2) Primeira Causa (ou “causa-efeito”). Partindo da ideia de causa eficiente, não podemos admitir a existência de efeitos sem causa. Portanto, existe uma Primeira Causa, que é eficiente, mas em si incausada: Deus. Aqui nota-se o evidente parentesco com a via (1) acima.

(3) Ser Necessário (ou “necessário-contingente”). Todas as coisas podem ou não existir. Isso significa que todas as coisas são contingentes. E isso também significa que é forçoso que o necessário exista. Por conseguinte, deverá haver apenas um único ser necessário: Deus.

(4) Ser Perfeito (ou “perfeição-participação). Consideramos as coisas mais ou menos belas, mais ou menos boas, mais ou menos perfeitas. Isso significa que há um ponto de referência, um máximo dentro das diversas qualidades, que o atributo participado tem a sua origem e razão fora dos seres em que se manifesta. Aqui a influencia de Platão é patente: reduz-se o múltiplo ao uno. Há um Belo absoluto, uma Bondade absoluta, uma Perfeição absoluta. É claro que esse raciocínio só ode ser válido no caso dos atributos transcendentes. E também está claro que, se a inteligência extrai essas qualidade do sensível, então essas qualidade são também reais.

(5) Primeira Inteligência (ou “causa final”). Vemos as coisas atuarem segundo um fim, mas não por acaso, e sim em virtude de determinada intenção (ex intentione). Ora, nada pode tender a um fim se não for dirigido por um ser inteligente. O conjunto dessas ações intencionais, e que visam o bem de quem as opera, pressupõe uma unidade de ordem. É necessário que o bem universal seja também um fim universal.

Novamente, como dissemos acima, nenhuma dessas vias versa essencialmente sobre Deus, mas apenas sob determinados aspectos. Conclui-se que, em Deus, existir é a Sua essência. Em outras palavras, essência e existência são a mesma coisa em Deus. Ego sum qui sum.

E, novamente, cabe reforçar que as provas vêm não de raciocínios lógicos, mas de raciocínios ontológicos. Elas não servem portanto somente para alicerçar a fé, mas acima de tudo para balizar os pensamentos e ações humanos, orientando-os à Causa das causas.

Embora se possa provar a existência de Deus, não é possível defini-lo, por motivos óbvios: não há gênero próximo nem diferença específica a qual se possa apelar. Mas pelo menos é possível conferir-lhe atributos, tanto negativos quanto positivos.

(a) Atributos negativos: aseidade (Deus é o único ser que existe por si (a se); infinito (a existência de Deus não tem fim e nenhuma perfeição lhe falta); simples (todos os seres são compostos, menos Deus, pois Ele não é fisicamente composto de matéria e forma, nem metafisicamente composto de ato e potência ou essência e existência ou substância e acidente, nem logicamente composto de gênero e diferenças); imutável (Deus não é determinado a qualquer transformação por outro ser); eterno (todos os seres existem no tempo); imenso (todos os seres são localizáveis em determinado ponto do espaço); unicidade (Deus não faz parte da pluralidade das essências criadas).

(b) Atributos positivos: Deus é a eminência das perfeiçoes das criaturas, embora, evidentemente, de modo inexato, devido à enfermidade de nossa razão, a saber: Inteligência, Bondade, Verdade, Vontade (o instrumento pelo qual o homem tende à própria perfeição; “em todo ser dotado de inteligência existe vontade”, diz Tomás), Bem, Beleza, Liberdade, Amor. Não somente aqui, mas sobretudo aqui, Tomás lança mão da doutrina da analogia. Não cabe repetir o que já foi ensinado por Mortimer Adler sobre analogia, mas cabe sim registrar que o tipo de analogia empregado por Tomás é a analogia de proporcionalidade, ou seja, a analogia por semelhança e diferença. Essa analogia representa uma propriedade atribuída a várias coisas que a possuem intrinsecamente, mas de modo diverso e quando a atribuição é feita pelo fato da relação de uma das coisas com tal propriedade ser semelhante à relação da outra com a mesma propriedade. Então, no caso de Deus e as coisas criadas, elas possuem intrinsecamente o ser, mas de modo diverso (em Deus, identificado à essência, nas criaturas ligado transitoriamente à essência); por outro lado, a relação que as criaturas finitas tem com o ser finito é semelhante à de Deus Infinito com o Ser Infinito. Vale a pena reproduzir o que diz Tomás a esse respeito, pois trata-se de um assunto nuclear para a doutrina tomista:

Com grande precisão, desenvolve São Tomás a doutrina da analogia aplicada ao nosso conhecimento de Deus, no tratado De Veritate. Reproduzimos um trecho elucidativo: -- “Pode haver proporção e, portanto, conveniência e analogia entre duas coisas pela razão de existir entre elas uma relação de grau, de distância, de medida, isto é, uma relação real a reciproca --como, por exemplo, o número 2 está em proporção com a unidade, da qual é o dobro. Mas pode-se afirmar também uma conveniência entre duas coisas que não tenham proporção direta, pela razão de uma delas ser a uma terceira o que a segunda é a uma quarta. Assim, o número 6 parece-se com o número 4 em que 6 é o dobro de 3 como 4 é o dobro de 2. O primeiro gênero de conveniência é de proporção direta, o segundo de proporcionalidade. Sucede que, segundo o primeiro destes modos, certas noções se aplicam a duas coisas que possuem direta relação entre si: diz-se que existe o ser na substância e no acidente por causa da relação em que se encontram... Noutros casos, uma noção atribui-se analogicamente: assim a palavra ver tanto se entende do órgão da vista como da inteligência, por a inteligência ser para a alma o que os olhos são para o corpo. Como o primeiro modo de analogia requer uma direta e determinada relação entre as coisas que se dizem análogas, é impossível haver analogia desta ordem entre os atributos comuns a Deus e à criatura; pois nenhuma criatura se acha em tal relação com Deus que essa relação possa servir para determinar a perfeição divina. Mas quanto ao segundo modo de analogia, em que não é requerida uma relação direta e determinada entre as coisas que participam duma noção comum, nada impede que, dentro desse modo, certos nomes sejam ao mesmo tempo ditos de Deus e da criatura”.

Vê-se, portanto, que Deus tem de conter a totalidade das perfeições das coisas criadas, mas as contém de modo analógico. Vê-se, portanto, que há uma semelhança analógica entre o criado e o Incriado. No entanto, Ameal não deixa de salientar que “[a teodiceia de São Tomás] é insuficiente para traduzir, mesmo de longe, a verdadeira natureza de Deus. [...] Tudo que a inteligência humana tente para ir além da afirmação da existência de Deus, para saber como Deus é¸ está condenado a seguro malogro. [...] Já que não nos é dado conhecer e pensar Deus como Deus é (por não ser enquadrável nas categorias da nossa inteligência) conhecemo-lO e pensamo-lO como nós somos: só assim a nossa inteligência logra alcançá-lO. Desde que nunca percamos de vista a desproporção entre o que atribuímos a Deus e o que Deus é”. E, por fim, cita São Dionísio Areopagita em sua Teologia Mística: “— A ciência mais alta que poderemos ter de Deus, nesta vida, é saber que Deus está acima de tudo que pensarmos a seu respeito”.

Mundo

Deus criou o mundo do nada, mas esse nada não pode ser algo pré-existente, algo que tenha realidade, mas algo do Ser pré-existente. O mundo, portanto, nasce por emanação do Ser. A criação, por sua vez, contém uma relação de dependência com o Princípio do qual emana, ou seja, a criação adere ao próprio ser – enquanto o ser exista. Depois de existente, o ser dura por si. Mas, de inicio, é indispensável que haja o ser. E o ser, por sua vez, depende essencialmente de sua origem.

Como não há relação unívoca, mas apenas analógica, entre Deus e o mundo, não podemos deduzir da imortalidade de Deus que, por conseguinte, o mundo também seja eterno. Racionalmente falando, o mundo não é evidentemente eterno nem é evidentemente temporário.

Quanto á multiplicidade dos seres ante a unicidade de Deus, Tomás explica que a variedade das criaturas é necessária porque o efeito parece-se com sua causa e, portanto, as criaturas finitas parecem-se imperfeitamente com as perfeições simples de Deus. A graduação da perfeição nos seres é a maneira sábia de Deus para que se manifestem nela Suas perfeições.

Ora, assim como em qualquer perfeição, é impossível que as criaturas finitas reflitam a bondade infinita de Deus. Novamente apelando a São Dionísio, Tomás conclui que o mal não existe. O que existe é a ausência de bem, ou seja, certa deficiência, a privação de qualidade que deveria possuir. O mal não é nem uma essência, nem tem realidade. Mal e privação são, portanto, sinônimos. Sim, é paradoxal, mas é assim: a causa do mal é o bem porque esse bem é limitado, imperfeito, contingente, que, ao degradar-se, alcança a condição de “não-bem”.

Pouco direi sobre o hylemorfismo empregado por Tomás. Bata dizer que os princípios físicos do mundo não são nem a matéria (átomos) nem a imatéria (forças), mas a matéria prima e a forma substancial. A matéria prima é determinada pela forma substancial no ser substancial, enquanto a matéria segunda é determinada pela forma acidental no ser acidental. Portanto, a matéria é especificada pela forma enquanto a forma é individuada pela matéria. A mudança substancial (não a acidental), portanto, centra-se na forma substancial. A matéria prima é comum às duas substâncias, mas o que mudou foi a forma substancial. Na mudança não há nenhuma criação propriamente, mas literalmente uma transformação.

Os corpos apresentam diversas propriedades. Cabe menção as seguintes: (1) derivadas da matéria: quantidade (ou “extensão”), lugar e tempo; (2) derivadas da forma: qualidades, como figura, cor, som, cheiro, sabor, resistência, temperatura e forças (mecânicas, físicas e químicas).

O infinito, segundo Tomás, é algo que não existe em ato na ordem do espaço, mas somente na ordem do tempo e pertence a Deus, pois somente Ele está acima das categorias do real.

Quanto à contingência dos seres criados, cabe notar que Deus, apesar de ser a Causa Primeira, não faz parte por isso da série de causas do mundo: Ele deve ser entendido mais como uma Super-Causa que, ao conferir às causas criadas o seu ser, confere-lhes a qualidade de produzir efeitos necessários ou contingentes. Ambas as modalidades – contingente e necessário – fazem parte da essência do ser relativo, mas não do Ser Absoluto. Portanto, Deus determina o contingente a ser indeterminado. A inteligência humana só é capaz de conhecer o necessário. A nós o contingente é algo incognoscível.

Por fim, quanto à vida, Tomás a define os seres vivos como aqueles que se movem. O princípio vital nunca deve ser encontrado na matéria, mas sempre na forma substancial. Ele é uma espécie de força da qual provêm as operações imanentes dos seres vivos. A esse princípio vital chamamos alma.

Homem

O corpo, enquanto potência, tem na alma seu ato. Similarmente, o corpo, enquanto matéria, tem na alma sua forma. E daqui podemos deduzir sua espiritualidade: a alma é incorruptível, imaterial e, portanto, imortal. No entanto, a alma não é espirito puro nem substância pura porque tende a um corpo e, ademais, não consegue sozinha realizar as operações vegetativas e sensitivas que lhe são próprias. Conclui Tomás, portanto, que “o homem não é apenas alma, é um ser composto de alma e de corpo”. Em ainda outras palavras, a alma é o principio ativo que faz a matéria ser em ato, conferindo-lhe a ambos, alma e corpo, unidade. Há uma união imediata da alma ao corpo como a forma é unida imediatamente à matéria.

Embora o ser humano seja composto, ou seja, não haja realmente duas “partes” existencialmente distintas, na sua intelectualidade a alma pode ser independente do corpo por ser esta intelectualidade imaterial e incorruptível. E pelo fato de ser imortal, a alma tende necessariamente para a felicidade imortal. Não para uma felicidade que se possa encontrar em bens particulares, uma vez que a alma não descansará nesses bens, mas no Bem Infinito, na contemplação inefável da essência divina. Em outras palavras, na beatitude eterna.

Quanto aos princípios das operações (ou “potências”, ou “faculdades”) a alma humana estrutura-se da seguinte forma:

(a) Faculdades vegetativas. Ínfimo grau e importância. Pouco nos interessamos por elas.

(b) Faculdades sensitivas. Há quatro espécies: a perceptiva (sentidos externos e internos, a saber: sentido comum (pelo qual o homem cataloga as sensações externas, segundo as suas afinidades e diferenças), imaginação (pela qual conserva as imagens sensíveis e as reproduz mesmo na ausência dos objetos que as motivaram), estimativa ou juízo instintivo (pelo qual atribui, aos objetos externos percebidos pelos sentidos, certas propriedades benéficas ou maléficas), memória sensitiva (pela qual conserva as suas percepções sensitivas passadas)), a apetitiva (que leva o homem a tender para os bens sensíveis convenientes à sua natureza), a locomotora (pela qual se desloca dum lugar para outro) e a vocal (pela qual se exprime e comunica com os outros homens).

(c) Faculdades intelectivas. É a capacidade de penetrar na essência das coisas e “ler” no interior dos seres (intus-legere, intelecto). É o intelecto que se comunica com o ser das coisas, ou seja, com sua inteligibilidade fundamental. É no seu ser que as criaturas contingentes participam do Necessário, que as criaturas mutáveis participam do Imutável, que as criaturas imperfeitas participam do Perfeito. É por isso, pelo seu ser, que as criaturas são susceptíveis de conhecimento “intelectual” (que possam ser interiormente “lidas”). E aqui se introduz um interessante e fundamental conceito: o modo intencional do conhecimento humano. Trata-se da capacidade do sujeito que conhece converter-se no objeto conhecido. O homem despoja as formas da matéria que lhes mascara o “fulgor inteligível” e é capaz de contemplar a unidade absoluta das ideias que se reproduzem na gama dos seus modelos, tornando-se capaz, portanto, de ser outro, de se tornar outro. Isto, claro, sob certo aspecto apenas, visto “o objeto conhecido estar naquele que conhece segundo a maneira de ser deste último”, ou seja, a aptidão para ter em si todas as coisas pelas suas formas. Eis as duas faculdades intelectivas: o intelecto agente (ou “força abstrativa”, o “luz derivada de Deus”, segundo Tomás), que isola as essências contidas na realidade concreta formando a imagem inteligível (a “imagem da essência”), ou fantasma, ou ainda a species impressa, isto é, a fusão da inteligência com o ser intencional do objeto; e o intelecto possível, que recebe a species impressa e se determina em ato, gerando a species expressa (ou “verbo mental”), que encerra em si a ideia abstrata, a ideia em si (ideia de humanidade, por exemplo). A partir dessa intelecção espontânea e instantânea, o intelecto é capaz de alçar novos voos e, pela reflexão introspectiva e por silogismos, adquirir novos conhecimentos, generalizações e juízos.

Por fim, cabe mencionar a importantíssima relação entre inteligência e vontade. A vontade não é um simples apetite sensitivo, mas um apetite intelectivo. É inato no homem o agir com conhecimento de causa, o agir para um fim. Os atos voluntários são os atos que, além da inclinação própria do homem, são acompanhados de algum conhecimento. O homem naturalmente tende a seu fim último, que é o Ser Supremo, o Bem Último. Entretanto, as criaturas também contêm em si algo desse Ser, o que motiva o homem a buscar o conhecimento também destas criaturas contingentes. O home, enquanto ser racional, não tem o direito de desligar seu intelecto e não entregar-se ao Fim Último, que está nas criaturas e, evidentemente, para além delas. A vontade é o apetite que impulsiona o homem a buscar o encontro com este Fim. Observe, portanto, que inteligência e vontade alimentam-se e impulsionam-se mutuamente. Evidentemente o apetite sensitivo também influencia a vontade.

A inteligência é superior à vontade porque a inteligência é simples e seu objeto é a ideia do bem. A vontade tem por objeto o bem. No entanto, e eis o reverso da medalha, se o bem a desejar for superior à própria alma que deseja, então a vontade é eminente à inteligência. Entenda-se: se o bem a desejar é Deus, torna-se muito mais importante amá-Lo do que conhecê-Lo. Se o bem a desejar são as coisas criadas, torna-se muito mais importante conhecê-las do que amá-las.

As qualidades da alma que a leva a fazer o bem se chamam virtudes. Tomás destaca algumas que considera fundamentais: as intelectuais (para aperfeiçoar a inteligência: sabedoria, ciência, entendimento) e as morais (para aperfeiçoar a vontade: prudência, justiça, fortaleza, temperança).

Fonte: João Ameal, São Tomaz de Aquino, Livraria Tavares Martins, Porto, Portugal, 1947.