19 de outubro de 2023

Dietética


Quem se dedica a estudar psicologia certamente já se deu conta da diferença não apenas de grau, mas de tipo, entre as obras de um Rudolph Allers e um Donald Robertson, de um Viktor Frankl e um Massimo Pigliucci, de uma Magda Arnold e uma Ayn Rand ou, para ficarmos em um exemplo local, de um Mário Ferreira e um Flávio Gikovate. A diferença reside na fundamentação de seus pensamentos: aqueles delineiam de maneira clara os preceitos que presidem seu pensamento, enquanto estes se limitam a orientar o leitor em situações cotidianas. Popularmente, diríamos que aqueles são “teóricos” e estes “práticos”.

Isso não significa que Flavio Gikovate ou Ayn Rand não apresentem um quadro de referência a partir do qual fundamentam seus preceitos. É famosa a ideia de “medo da felicidade” de Gikovate ou a “virtude do egoísmo” de Rand, por exemplo, mas nenhum deles preocupa-se em apoiar tais quadros em uma visão minimamente precisa do ser humano. Como se divide o ser humano, quais suas emoções básicas, a qual fim se destina, o que deveria almejar? O que é felicidade, ego e medo? E qual a diferença entre esses conceitos e contentamento, eu e temor?

Sou levado a concluir que a autoajuda e a maior parte do que se passa em consultórios de psicoterapia não são atividades que se encontram no âmbito da psicologia. A maioria desses profissionais não apenas não tem claros os preceitos fundamentais de sua prática, como não mostram saber por que escolheram esta terapia e não aquela. No supermercado da psicoterapia vale o gosto do freguês. Behaviorismo, logoterapia, terapia cognitiva, psicanálise, uma pitada de estoicismo, um pouco de Freud aqui, Jung ali, Rogers, Frankl e, por que não?, Mario Sergio Cortella. Vale tudo e qualquer coisa sob a batuta do gosto pessoal.

No entanto, em parte é compreensível, e mesmo desejável, essa situação. Parece que a relação entre psicologia -- sejamos mais precisos, antropologia -- e aconselhamento nunca foi unívoca. E a confusão reside no fato de que a terapia não tem a ver com psicologia mas com dietética. A arte de bem aconselhar tem raízes na antropologia, claro, mas de maneira longínqua e, ademais, jamais exclusiva. Elementos culturais, históricos, econômicos, profissionais, familiares e muitos outros influenciam no surgimento de neuroses e curá-las implica em compreender quais, e em que medida, esses elementos as sustentam, e saber identifica-los no indivíduo. A terapia é uma arte, não uma ciência, e confiná-la à psicologia é um erro crasso. A arte, ou técnica, é um conjunto heterogêneo de conhecimentos que só são unificados em vista de um fim. É como montar a cavalo: é necessário algum conhecimento, mesmo que rudimentar, das leis do equilíbrio e algum conhecimento de comportamento animal, mas ambos os conhecimentos não guardam entre si nenhuma conexão lógica.

A filósofa chilena Diana Aurenque tangencia esse tema ao lembrar que a dietética é uma arte antiga, cujo objetivo é ordenar a forma de viver, é organizar a existência e a vida em todos os seus aspectos. Os filósofos de antigamente não apenas ofereciam explicações sobre as grandes questões metafísicas, mas também proporcionavam indicações sobre o modo adequado de viver. Em suma, davam fundamentações éticas para alcançar uma “boa vida”. E o faziam porque os filósofos eram antes de tudo homens sábios, de saber amplo, não necessariamente, muito menos exclusivamente, psicólogos.

O filósofo, mais precisamente o dietético, incentivava seus discípulos a se conhecerem de tal forma a terem condições de assumir o controle de suas vidas, de diferenciar entre aquilo que lhes é benéfico e o que lhes é nocivo. Sua prática se centrava em conduzir o interlocutor à liberdade, a assumir com responsabilidade o que ele é, a liberar-lhe de falsas dependências e amarrar-lhe com liberdade àquilo que o fortalece e assume como imperioso. Essa responsabilidade livre é precisamente aquilo que chamamos “saúde”.

Portanto, as pessoas aptas a nos guiar a esta liberdade são os sábios, que podem ou não portar um diploma de psicologia.

Leia: Diana Aurenque, Animales enfermos, Fondo de Cultura Económica, Santiago, Chile, 2022.