24 de agosto de 2023

Evolução mística


O teólogo e sacerdote espanhol Juan Arintero influenciou de maneira importante a teologia católica do início do século XX ao reunir em uma série de livros e ensaios os ensinamentos místicos dos santos da Igreja. Uma de suas queixas, que aliás se aplicam igualmente ao ambiente ortodoxo, é de que a vida religiosa e paroquial perde o sentido se não estiver conectada à vida místico-espiritual. A ideia de que a vida mística é exclusiva daqueles que estão vocacionados para ela equivale a dizer que há homens e mulheres que não estão vocacionados a serem humanos. O objetivo da vida humana é a união com Deus, e tal união não é algo que o ser humano tenha o direito de não querer.

Anotei aqui apenas os aspectos que considero convenientes e úteis à minha vida e aos meus estudos, mesmo porque há uma série de aspectos que, não sem surpresa, se assemelham ao que é ensinado na Igreja Ortodoxa, mas o leitor não fará mal em aprofundar-se na obra deste dedicado sacerdote e amante da vida mística. Ademais, por se tratar de descrições e classificações de experiências místicas, a linguagem empregada frequentemente se assemelha à linguagem poética, uma vez que os referentes àquilo que está sendo dito estão em um plano para além do plano que operamos deste lado da realidade.

Na sua obra mais famosa, Arintero explica que a expressão evolução mística significa o progresso da vida da graça no homem. É quando se forma em nós o próprio Cristo. Mas há duas sendas na vida espiritual: (1) a vida ascética da união conformativa, vivida um tanto inconscientemente, na qual a imensa maioria dos fiéis ao mortificarem as paixões e exercitarem metodicamente as virtudes e práticas piedosas procura adquirir moralmente algum tipo de contemplação e, com o tempo, suas almas começam a sentir os toques do Espírito (embora não os sinta como sobrenaturais), e (2) a vida mística da união transformativa, guiada pelo próprio Espírito, que habita substancialmente (e não apenas acidentalmente, como no caso das virtudes e ciências) a alma ao moldar o caráter por fora e por dentro, penetrando até o mais intimo do coração, estabelecendo uma relação não moral, mas ontológica, com o fiel.

A revelação divina nos faz ver como a vida intima de Deus não é a de um Deus uno e solitário, típico do Deus encontrado pelos filósofos, o Deus absoluto, o “Ser Supremo”, o Deus da unidade nas obras da criação, mas um Deus trino. O Deus dos filósofos é aquele que encontramos com base nas simples e naturais relações de causalidade na criação, mas o Deus vivo é aquele que encontramos nas sobrenaturais relações de amizade cordial, pois supõe uma verdadeira semelhança. Por isso dizia Santa Teresa de Ávila que os livros demasiadamente “concertados” (combinados, encadeados, “lógicos”) a repugnavam e até lhe faziam perder a devoção, pois o excesso de abstração faz com que percamos de vista o todo real e vivente que somos.

Arintero lança mão do termo “graça criada” para explicar a ação do Espírito na vida humana, mas cabe lembrar que tal expressão serve apenas para diferenciar a graça do próprio Espírito. Parece-me algo semelhante à distinção entre “essência” e “energia”, ambas incriadas, típica da teologia ortodoxa. Arintero parece admitir que qualificar tal graça de “criada” pode trazer problemas de interpretação, assim que explicaque o melhor seria chamá-la de “graça participada” enquanto o Espírito é a “graça em si”.

Ademais, quanto às virtudes, Arintero as classifica como “naturais” (ou seja, adquiridas) e “infusas” (ou seja, inspiradas, comunicadas gratuitamente, emprestadas). As virtudes cardeais são tanto naturais quanto infusas. As virtudes teologais e os dons do Espírito, apenas infusas. Da união das virtudes com o exercício dos dons do Espírito resultam os frutos do Espírito, entre as quais, as bem-aventuranças.

Arintero detalha as virtudes, os dons, os frutos, a “noite escura” pela qual perpassam os santos a caminho da contemplação divina. Há três graus de contemplação: (1) a breve oração de recolhimento (infusa, muito superior à oração adquirida com esforços e diligência humana), na qual não há meditação, nem raciocínio, mas apenas um simples e tranquilo olhar contemplativo, (2) a longa oração de quietude, na qual, além do entendimento, a vontade se torna cativa ao Espírito, (3) oração de união, na qual a alma é introduzida na “câmara régia” e todas as suas energias se encontram unidas a Ele. Arintero belamente assim a descreve:

Às vezes, o uso dos sentidos externos não é completamente perdido; Estes, principalmente no início, funcionam um pouco, embora com dificuldade, fazendo com que o que está sendo falado ou cantado de perto seja ouvido como à distância, e todos os objetos sejam percebidos como muito confusos. Os poderes internos também não estão perdidos, mas apenas como se estivessem adormecidos para tudo o que está fora; porque, estando a alma assim, completamente absorta em Deus, ainda não tem forças suficientes para se ocupar com as coisas externas ao mesmo tempo. E se a caridade ou a obediência a compelem, enquanto durar esse doce cativeiro, deve ser praticada uma violência tão extrema - que faz com que muitos derramem sangue pela boca - causando-lhes não pouco dano; e mesmo assim, a maioria deles, para prestar atenção ao que está fora, tem que se soltar na atenção interna que os absorveu. Tudo o que eles virem lhes causará tédio e desgosto, e tudo parecerá estranho e como nunca visto antes. Já são habitantes do céu e concidadãos dos santos e, vendo as belezas celestiais, consideram vil tudo neste mundo, e não podem deixar de lamentar ao verem como se prolonga o seu exílio, onde se julgam estrangeiros e peregrinos. E, verdadeiramente, tais almas encontram-se exiladas entre pessoas ferozes, que as obrigam a zelar por si mesmas para não caírem nas suas armadilhas e não se perderem ou correrem o risco de perder os seus ricos tesouros.

Fonte: Juan Arintero, Evolución Mística, Editorial San Esteban, Salamanca, Espanha, 1989.