22 de maio de 2010

A identidade espiritual


A religião existe para criar no indivíduo humano uma identidade pessoal que seja completamente independente das circunstâncias da sua vida corporal, ou seja, para dar ao indivíduo humano uma identidade que seja capaz de resistir à destruição desse corpo. Essa identidade só se pode construir a partir de uma atividade, no próprio indivíduo humano, que seja ela mesma, por definição, completamente independente da corporalidade. A única coisa no indivíduo humano que é capaz de uma atividade assim é a própria inteligência. A atividade da inteligência é ela mesma incorpórea. Se essa atividade alcançar um objeto que em nada dependa da corporalidade, então o sujeito que alcança isso começa a adquirir uma identidade pessoal que é completamente independente da sua vida corporal. Então, quando ele morre, essa identidade é capaz de continuar.

Essa identidade começa quando o sujeito, em nome da aquisição dessa atividade, dá esse salto. O sujeito dá esse salto quando ele diz: "Olha, eu não tenho a menor idéia do que é o Absoluto, e todo meu psiquismo e minha corporalidade diz que eu não preciso fazer isso [que no Cristianismo, Islã, Confucionismo etc.] que dizem que devo fazer para conhecer o Absoluto". Quando o sujeito se dá conta de que todo seu psiquismo e organismo dizem que não precisa, ele mesmo assim faz isso precisamente porque não confia em seu psiquismo e em seu organismo. Quando o sujeito faz isso, ele deu o primeiro passo para a aquisição de uma identidade espiritual, de uma identidade que é independente de seu organismo psicofísico.

A perfeição existe dentro de cada ordem. Existem corpos humanos que são perfeitos: há pessoas que são perfeitamente saudáveis e maravilhosamente belas. Existem pessoas cujas almas são verdadeiramente angelicais. Quando se lê a biografia de Santo Antonio de Pádua ou de São Bento, por exemplo, parece que eles não eram homens, mas anjos. Aos 5 anos de idade eles já pensavam em sua identidade espiritual. Existem pessoas cuja alma e cujo corpo são perfeitos, mas "o corpo morrerá, e a alma mudará".

Por mais perfeita que seja uma alma, se a personalidade que há naquela alma depende do corpo e da sua história e da sua biografia apenas, ela será perdida. Existem pessoas excelentes, mas elas também morrerão, e elas poderão esquecer tudo que é excelente nelas depois da morte. Não é difícil se esquecer do que nós somos.

Nós nos lembramos do que somos porque todo dia de manhã podemos nos olhar no espelho e ver um rosto muito semelhante ao que vimos no dia anterior. Todo dia nós acordamos e estamos no mesmo quarto, no mesmo lugar em que fomos dormir etc. Todo esse quadro de referências constantes oferecido pela corporalidade garante a manutenção de nossa identidade psíquica, garante-nos lembrar que "eu sou Fulano, filho de Beltrano e Ciclana etc.". Tudo isso sustenta nossa identidade.

Com a morte, tudo isso desaparece. Depois da morte, encontramo-nos em uma situação semelhante ao sonho, em que não existem referências fixas. Nos sonhos, por exemplo, colocamos um copo na mesa, mas ele atravessa a mesa e cai. Depois colocamos de novo e ele fica. Não existem regularidades nos sonhos. Depois da morte, toda a experiência da alma é assim. Por quanto tempo conseguiremos nos lembrar de quem somos em uma situação assim? Em um dia, acordamos e somos filhos do Fulano, no dia seguinte somos filhos de Beltrano etc. Isto é a morte. A morte é entrar em um estado de sonho. O sujeito que não adquiriu, antes da morte, um princípio de identidade que não dependa de nada deste quadro de referência corporal acabará enlouquecendo depois da morte. E isso é o inferno.

Há uma famosa passagem de Chuang-Tsé, um sábio taoísta, que diz: "Uma vez eu dormi e sonhei que era uma borboleta. Quando acordei, me perguntei: 'Eu era um homem sonhando que era uma borboleta ou uma borboleta sonhando que era um homem?'". Como saber? Os taoístas ensinam que, se numa noite você é uma borboleta azul, na outra uma borboleta vermelha, na outra uma borboleta que fala etc., ou seja, as referências nos sonhos podem mudar em todos os seus aspectos, mas quando acordamos, as referências permanecem mais ou menos iguais, então elas têm um tipo de estabilidade que as referências do mundo onírico não têm. A corporalidade tem um tipo de estabilidade que o mundo onírico/psíquico não tem, e isso nos garante a manutenção de uma identidade. O ser humano altera entre dois estados: vigília (referências constantes, regularidades) e mundo onírico. Essas regularidades permitem que nos recordemos de quem somos. A mudança de minha aparência física é gradual.

É só isto que nos mantêm sendo a mesma pessoa. É só isso que permite que digamos que há um "eu". A morte nos tira essa referência, ela nos joga em um estado de sonho perpétuo. A morte é sair do mundo real e entrar no mundo da Pantera Cor-de-Rosa. Depois de uma dúzia de experiências de maleabilidade total das referências, nós já enlouquecemos, já perdemos nossa identidade. Se três vezes, na mesma semana, nos tirarem do lugar onde estamos e nos colocarem em um lugar completamente diferente, já estaremos a meio caminho da loucura. É verdade que olharemos para nossas mãos e as reconheceremos como as mesmas que vimos antes, ou seja, haverá ainda algumas experiências regulares. Mas e se tirarmos todas essas referências? No sonho, podemos nos perceber como humanos, depois como borboleta, depois como leão.

Existem qualidades humanas fora das religiões? Sim, claro. Há ateus perfeitamente honestos, justos etc., mas as qualidades humanas são características ou hábitos do psiquismo humano, e elas dependem desse quadro de referências. Todas as qualidades humanas -- justiça, honestidade, generosidade etc. -- dependem desse quadro de referências que é a corporalidade. Quando damos esmola para o mendigo, o dinheiro não volta para nosso bolso no dia seguinte, mas permanece no bolso do mendigo (ou de quem ele tenha porventura passado o dinheiro). No estado de sonho, isso aí acabou: não há como manter qualidades humanas em um estado de sonho, pois elas têm como alicerce o quadro de referências dado pela corporalidade. Em suma, as qualidades humanas não são suficientes para salvar um indivíduo. As qualidades humanas são excelentes, mas elas existem como uma função da adequação entre o homem e este mundo, para que mantenhamos nossa identidade humana diante deste mundo. Nossa generosidade, justiça etc. existem para que lembremos o tempo todo que não somos uma pedra, um cachorro, uma nuvem. Elas nos recordam daquilo que nos é próprio, mas sempre dentro do quadro de referência da corporalidade. Como manter nossa justiça em um mundo de sonho? As qualidades humanas se diluem no psiquismo. Nossas qualidades humanas dependem da fixidez e estabilidade do mundo corpóreo, e em um estado de sonho não conseguiremos mantê-las.

As virtudes teologais são uma iniciativa do Absoluto. São qualidades divinas que Ele insere no psiquismo humano, que existem em função da regeneração de uma identidade espiritual independente do psiquismo. Quando o sujeito morre e ele está diante de sua psique, essa identidade se destacará como permanente. As virtudes teologais são aspectos de modalidades da identidade espiritual na psique. A caridade não se confunde com o amor humano pelos seus semelhantes, ou por outros seres, ou por Deus, pois não é um sentimento, não é um ato psíquico, mas é um aspecto da identidade espiritual do cristão que reverbera ou ressoa em seu psiquismo como generosidade, como compaixão, como bondade. O que chamamos de caridade é somente a ressonância psíquica da caridade. A caridade é um aspecto da identidade espiritual do cristão.

Sem o sujeito adquirir um princípio de identidade pessoal que não dependa em nada do quadro de referências fornecido pela corporalidade será impossível que ele se mantenha consciente de quem ele é depois da morte. É impossível. Ele perderá essa identidade no decorrer das experiências psíquicas. Se começarmos a sonhar e não acordarmos mais, esqueceremos rapidamente quem somos. Aliás, a expressão "quem eu sou" não tem sentido no mundo onírico. Tudo o que chamamos de identidade depende de certas referências constantes. O que chamamos de "eu" depende das leis do mundo corpóreo, do mundo físico. Uma vez removidas essas leis, o efeito cessa. Sem a causa (leis do mundo físico), não há efeito (o "eu").

Na morte, só nos resta a identidade que nós criamos para nós mesmos. Se ela é de natureza espiritual, ela permanece; se for de natureza corpórea, ela desaparecerá. Não é que a atividade psíquica, que era organizada segundo essa identidade, desaparece: essas capacidades não são determinadas pela existência física. Essas capacidades continuarão. Mas a identidade subjetiva delas desaparecerá. A esquizofrenia é um símbolo do inferno.

As pessoas no Purgatório são as pessoas que conseguiram realizar os princípios de identidade espiritual, mas não chegaram a construí-la efetivamente. É como o sujeito que comprou todo o material para fazer a casa, mas ele ainda não a fez. O estado do Purgatório é aquele em que tudo aquilo que era contrário ao processo de construir sua identidade espiritual vai sendo destruído, ou seja, tudo o que, na sua identidade concreta, impossibilitava a pessoa de construir sua identidade espiritual neste mundo vai desaparecendo. É neste sentido que o Purgatório é doloroso. Mas, ao mesmo tempo, vai aparecendo os materiais espirituais, uma ambiência espiritual, na qual ele constrói uma outra identidade. É por isso que, no topo da montanha do Purgatório, Dante colocou o Jardim do Éden. Há muitas pessoas assim nas comunidades religiosas.

Na verdade, para o sujeito começar a adquirir essa identidade, é necessário que ele faça aquilo que, na prática, o torna consciente que a identidade que ele possui não é suficiente para depois da morte. É não agir segundo sua identidade por saber que ela não o garante. São as ocasiões em que existe uma disparidade entre a proposta de nossa religião e nossa realidade concreta -- ou seja, como sentimos a realidade das coisas, de nossos sentimentos, vontade, inteligência -- que são as oportunidades que temos para começarmos a construir uma identidade espiritual. Se eu não sinto que é assim, então é por isso mesmo que vou fazer. "Eu não sinto, mas o Cristo sente, e Ele é a minha identidade espiritual, que eu não conheço." A expressão "o Filho do homem" representa justamente isso: a identidade espiritual que nasce no seio do psiquismo humano, que só pode nascer nesse organismo psicofísico. Para construir essa identidade é simples: devemos dar os saltos necessários.

A terra é um símbolo de nossa identidade psicofísica, mas serve de alicerce para que outra coisa vá para o céu: o Filho do homem. Das sementes plantadas na terra, algumas vão cair em espinhos, outras em solos áridos etc., mas temos de plantar as sementes toda vez que podemos, pois uma hora alguma poderá germinar.

A essência da religião é não seguir a sua vontade, é lutar contra a vontade própria. A vontade própria é a expressão da nossa natureza terrestre em contraste com uma influência celeste. Nós somos terra, nossa identidade é terra. Essa identidade é literalmente um epifenômeno das leis da corporalidade. Se ela não fosse assim, seria impossível a existência de indivíduos humanos perversos. O livre arbítrio pode agir em nome de algo que não foi alcançado pela inteligência: ele pode ver o que somos e nos mover a ser o que o Cristo era. As religiões existem e são o que são justamente para oferecer o máximo de oportunidades para que o indivíduo faça isso. É por isso que as religiões são cheias de mandamentos, dogmas etc., que pode aparecer em conflito com nossa identidade psicofísica. A religião é um conjunto de oportunidades para nos contrariar, para que possamos construir uma identidade que não dependa deste organismo, pois ele perecerá.

Se o indivíduo está numa religião porque ele gosta dela, porque se sente bem nela, então essa religião não é boa para ele. É como ir a um bordel porque o sujeito se sente bem lá. No estado onírico, ambos desejos se dissolverão. Religião sempre implica em um desafio para transcender-se. Não existe por definição um equilíbrio permanente neste mundo entre o indivíduo humano e Deus. A luta entre a identidade espiritual de um santo e sua identidade psicofísica é como que uma brincadeira, mas mesmo nele esse equilíbrio não existe.

[...]

A característica mais importante é o esforço sistemático para transcender-se. Sem isso, não existe religião. Você pode ir a um templo, fazer uma oração, vestir uma determinada roupa: tudo isso parece religião, mas não é religião. Religião implica que, nesse contexto, exista um esforço pessoal constante para o sujeito transcender a si mesmo, para perceber cada uma das oportunidades em que ele e Deus são inimigos e, assim, criar uma nova identidade.

Religião significa que, em certa medida, tornar-se amigo de Deus é tornar-se inimigo de si mesmo, do mesmo jeito que se aproximar do céu é afastar-se da terra. Numa certa medida podemos crescer e nos aproximar do céu crescendo. Em outra medida, temos de nos lançar para fora da terra e se aproximar do céu. Numa certa medida, podemos aperfeiçoar nossa identidade psicofísica e nos tornarmos possuidores de nobres qualidades, e isso nos aproxima de Deus. Mas entre o aproximar-se e o estar justo dEle, existe um imenso salto. Se existe um elemento constante universal nas religiões é a idéia de que existem três tipos de graça -- um ciclo ternário que deve ser cumprido sempre que possível --, que se apresentam ao homem sucessivamente: (1) graça que afasta o homem do mundo, ou seja, de sua própria identidade psicofísica ("eu penso assim, Deus pensa assado, então vou pensar assado e não assim"); (2) graça pela qual Deus entra no homem -- quando o sujeito faz isso [que está em (1)], Deus planta nele uma semente, que cresce e aparece no sujeito como virtudes, sabedoria, perfeições humanas; as pessoas em torno dão testemunho de que ele se tornou uma pessoa melhor; (3) graça pela qual isto que surgiu do sujeito em decorrência da morte de um aspecto e o nascimento de outro aspecto é lançado para Deus. Em suma: primeiro rompemos com nós mesmos, em nome de uma amizade com Deus -- nós eliminamos de nossa identidade psicofísica certos aspectos; em troca de nossos defeitos, Ele oferece algumas qualidades, mas que ainda estão em nossa estrutura psicofísica; por fim, em terceiro lugar, dentro dessas qualidades, aparecem algumas características que transcendem nossa própria identidade e que transcendem nossa identidade mesmo como qualidades humanas, e é isto que é lançado em Deus.

O ciclo da vida na terra é um símbolo desse ciclo de identidade espiritual: romper com o "ventre" do seu psiquismo; crescer, que só é possível fora do ventre; lançar para outra depois que está completo.

A morte necessariamente nos lançará nesse estado de indefinição. Todas as referências que temos necessariamente serão perdidas. Este é o significado real da morte. Se morte fosse só perder as coisas deste mundo, isso não seria nada; a morte é perder a estrutura deste mundo e, portanto, perder a estrutura que permite que nos construamos como nós mesmos. A morte é necessariamente um risco de perder-se a si mesmo. Ao criar uma teofania -- ao aparecer para o homem como uma religião -- Deus fez uma série de concessões. Ele mostrou-se não como Ele é, mas como somos capazes de vê-Lo. Isso já é uma concessão por parte de Deus. A religião é por um lado esse conjunto de concessões divinas, e por outro lado a subseqüente concessão humana. Se Deus se mostrou para nós de um jeito que não é como Ele realmente é, nós também temos de nos construir para Ele de um jeito que nós realmente não somos. Deus não apareceu para o homem tal Ele se sente ou como Ele se entende, então nós também só podemos aparecer a Deus tal como nós não nos sentimos ou nos entendemos. É isso que Cristo quer dizer com "ninguém vai ao Pai senão por mim": Deus só olha o Logos, Deus só olha o Verbo Divino. Se nós não nos tornarmos semelhante ao Verbo Divino, então nós não temos nenhuma ligação com Deus: Ele nos verá como terra, como pó, que ao pó retornará.

A religião só é possível quando existe integridade formal. Se o homem não pode captar diretamente o Absoluto e o Infinito, ele no entanto pode captar diretamente a perfeição, ou seja, aquilo que é completo e íntegro. A perfeição ou integridade formal é justamente o elo entre o homem e Deus. Por isso que não é possível para um sujeito construir uma integridade formal afirmar que suas crenças são budistas, seus sentimentos cristãos, seu comportamento muçulmano, assim como não pode juntar a cabeça de uma mulher bonita com os braços de outra mulher bonita com as pernas de outra: no final teremos um monstro. Tal é o instrumento fundamental da construção de uma identidade espiritual. O sujeito que é "meio" de cada religião não é nada. Os aspectos que Deus escondeu dEle mesmo em cada uma das religiões são diferentes. O sujeito que pensa assim não entenderá nada a respeito de Deus, ficando somente com as brechas de cada religião. No final, o sujeito que faz isso pegará de cada religião apenas o elemento humano. Ele até pode se tornar um bom sujeito -- em geral são pessoas cheias de qualidades, mas todas elas irão para o inferno. É melhor ser mau muçulmano, mau judeu, mau cristão, do que ser "meio" alguma coisa. O sincretismo é a anti-religião porque dá a impressão de tornar o sujeito mais espiritual, quando na verdade está afastando o sujeito da integridade formal que permite a construção de uma identidade espiritual. É claro que há coisas no Budismo com as quais nos sentimos bem, assim como no Cristianismo, no Islamismo etc., mas se pegarmos tudo isso que nos sentimos bem, no final o que teremos somos nós mesmos, que é aquilo que tínhamos desde o começo. Esse é o fundo do poço da ilusão espiritual; é revestir sua identidade psicofísica de uma tintura de identidade espiritual. Isso é muito comum hoje; essas pessoas são hoje em dia exaltadas como modelos humanos. Esquecemos que "radical" é aquilo que está ligado a uma raiz, ou seja, é aquilo que é firme. Simpatizar com todas as religiões é muito bonito, mas guiar-se por essas simpatias é simplesmente guiar-se pelo que você é. Jamais perceberemos os elementos de nossa psique que são contrários a Deus, pois isso só é percebido num compromisso total com uma religião. Geralmente essas pessoas não são más, elas são pessoas cheias de qualidades; mas essas qualidades morrerão com o corpo. Em certo sentido, é melhor pecar sendo muçulmano ou cristão do que fazer uma coisa boa sem ser nada. É melhor ser um pouco menos bom dentro de um quadro espiritual íntegro do que ser um pouco melhor fora desse quadro.

A percepção entre a descontinuidade entre nós e Deus é o primeiro instrumento de integração espiritual.

Fonte: transcrição parcial da aula 20.