O físico Wolfgang Smith tem sido muito feliz ao questionar e refutar os principais postulados da ciência profana. Segundo o autor, a ciência moderna traz de maneira embutida uma crença filosófica errônea, popularizada por René Descartes e chamada de "bifurcacionismo" ou, nas suas palavras, de "reducionismo físico". Segundo Smith, a ciência moderna reduz os objetos corpóreos (por exemplo, uma maçã) a meros objetos físicos (uma maçã "molecular"), desprezando as qualidades e formas simbólicas neles existentes. Essas qualidades são tidas pelos cientistas modernos como res cogitans, ou seja, como meras interpretações subjetivas, e não como algo pertencente à realidade objetiva. Daí vem a chamada "bifurcação": o objeto corpóreo é "retirado" da realidade e realocado na mente do sujeito.
Mesmo com o advento da mecânica quântica -- que deveria ter sido encarada como uma pá de cal ao bifurcacionismo -- os cientistas modernos fingem que o mundo cartesiano ainda é válido porque, segundo Smith, é a crença filosófica em si que pretendem defender, e não propriamente os postulados da ciência empírica.
Por fim, Smith avalia os danos inconscientes que esta crença cientificista causa na vida espiritual e religiosa das pessoas, e alerta para a necessidade dos sacerdotes serem instruídos a identificarem o bifurcacionismo que vem enlatado nas explicações das descobertas científicas.
Smith nasceu em 1930 e, com pouco mais de vinte anos de idade, trabalhando para a Bell Aircraft Corporation, distinguiu-se através da pesquisa sobre a aerodinâmica dos campos de difusão, a qual deu a fundamentação teórica à solução do famoso problema da re-entrada de artefatos na atmosfera. Ele é católico romano e tem Ph.D. em Matemática pela Universidade Columbia e exerceu cargos acadêmicos no MIT, na UCLA e na Universidade do Estado de Oregon.
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A praga do cientificismo
Nada é mais incontestável e infalível para a mentalidade contemporânea do que as descobertas da física, da astronomia, da química e, ultimamente, da biologia molecular. Elas são aquelas ciências “difíceis” da era moderna, cuja abrangência e precisão deixam a imaginação estupefata; elas nos aproximam das realidades mais fundamentais que outrora jamais teríamos condições de conceber. E mais: este grupo de ciências foi de certa maneira “validado visivelmente” pelos milagres tecnológicos que nos rodeiam. Ora, quem se atreveria a duvidar – muito menos a negar – suas descobertas? Na verdade, ninguém; partículas e campos quânticos, galáxias e quasares, moléculas e códigos genéticos – são todos fatos inegáveis com os quais doravante somos obrigados a conviver.
Contudo, devemos ter em mente que um fato e sua interpretação não são a mesma coisa. E dado que, subjetivamente, os fatos são invariavelmente associados a uma interpretação, sucede que a ciência, por via de regra, nos apresenta dois fatores díspares: as descobertas positivas, de um lado, e, de outro, uma filosofia a elas implícita cujos termos servem de moldura à sua formulação e divulgação. Na verdade, a ciência nunca será esse tipo de investigação puramente empírica tal como geralmente a consideram, o que significa dizer que pressupostos ontológicos e epistemológicos sempre desempenharão um papel essencial. E mais: a comunidade científica raramente examina esses dogmas filosóficos ou os sujeitam a um escrutínio rigoroso. Esses pressupostos são as idéias fundamentais que absorvemos – quase que por osmose – no decorrer de nossa educação científica; elas pertencem ao que poderíamos chamar de inconsciente científico. E quando um desses enraizados dogmas filosóficos se torna tema de discussão, a resposta típica dos cientistas é apontar, à guisa de validação, para o sucesso das investigações científicas e dizer: “Vejam, funciona!” Ora, nenhuma crença filosófica jamais foi validada por uma descoberta empírica; o fato é que a verificação tanto quanto a falsificação por meios empíricos é algo que se aplica às proposições científicas, e não às filosóficas. Porém, é muito raro que os cientistas sequer tentem distinguir estes dois domínios; somente em tempos de crise extrema, quando os fundamentos da ciência parecem estar realmente abaladas, é possível encontrar gente fazendo esse tipo de questionamento mas, mesmo assim, em quantidade diminuta: é preciso um Einstein ou um Heisenberg para, digamos, descer até o nível fundamental dos axiomas filosóficos. Além disso, o que a maioria dos cientistas comuns absorve desses grandes físicos fica restrito aos aspectos técnicos da investigação: as equações da relatividade ou o formalismo da mecânica matricial são aceitos, enquanto o lado filosófico da moeda é ignorado. Podemos dizer que os homens e mulheres que se dedicam ao cotidiano das pesquisas científicas tendem a não se interessar pelas sutilezas filosóficas; estão, portanto, inclinados a reter os axiomas filosóficos com os quais se acostumaram ao longo dos anos, e que só deveriam ser reconhecidos como tal, para serem depois devidamente expelidos, por meio de uma investigação séria e rigorosa. Assim sendo, o resultado é que na mente dos cientistas coexistem, de maneira inextricável, boa ciência e filosofia inferior; conforme observou John Haught, da Universidade de Georgetown: “Alguns dos mais renomados cientistas são literalmente incapazes de separar a ciência de sua metafísica materialista”.
Dito isto, passo a declarar formalmente a minha tese principal: sustento que, em virtude da confusão supracitada, os cientistas têm promulgado as mais duvidosas opiniões filosóficas como se fossem sólidas verdades científicas e, em nome da ciência, têm forçado um público crédulo e impressionável a aceitar uma cosmovisão superficial que, na realidade, não tem um pingo de respaldo científico. Sustento ainda que os cientistas conseguiram ganhar a confiança e a admiração da sociedade por meio das maravilhas tecnológicas que ajudaram a engendrar e que, enquanto classe, têm usurpado dessa autoridade ao predispor o público contra as verdades religiosas. Não estou aqui sugerindo que eles estão enganando o próximo de maneira consciente, mas sim que, por via de regra, enganaram-se a si próprios em questões que pertencem à filosofia, à metafísica e à religião. Enquanto isso, esses “guias cegos” exercem uma influência incalculável sobre a educação e a opinião pública, com conseqüências desastrosas ao bem-estar humano, tanto agora como no futuro.
Aplicarei o termo “crença cientificista” às opiniões filosóficas travestidas de verdades científicas. Deixem-me dar dois exemplos. O primeiro é o princípio do mecanicismo universal ou, melhor dizendo, o axioma do determinismo físico. A idéia é simples: o princípio afirma que o universo exterior consiste de matéria cujo movimento é determinado pela interação de suas partes. Dada a configuração ou estado inicial dessa matéria, e averiguadas as leis que determinam os efeitos dessas interações sobre o movimento resultante, somos supostamente capazes de calcular a evolução futura do universo nos mínimos detalhes. Dessa maneira, o cosmo é concebido como se fosse um relógio gigante, cujas partes interagem entre si, determinando o movimento do todo. Sabemos que essa idéia começou a tomar forma no século XVI e que desempenhou um papel decisivo na evolução da ciência moderna. De fato, nos tempos no Iluminismo, a idéia chegou quase a ser considerada uma verdade científica universalmente estabelecida. Por exemplo, Hermann von Helmholtz, um dos líderes científicos do século XIX, afirmou com serena confiança: “O objetivo final de toda a ciência natural é reduzir-se à mecânica (sich in Mechanik aufzulösen)”. Porém, o quadro mudou com o advento da teoria quântica: concluiu-se que a nova física não era compatível com as premissas mecanicistas. Todavia, apesar do indeterminismo quântico, não foram poucos os cientistas que continuaram a promulgar o princípio mecanicista. O próprio Albert Einstein, longe de admitir que as descobertas da física quântica desbancassem os postulados clássicos, argumentava justamente o contrário: com efeito, é o princípio do determinismo que invalidaria a mecânica quântica enquanto teoria fundamental. Este caso ilustra muito bem a característica filosófica e a priori do princípio em questão, e o fato de que as proposições deste tipo não podem ser verificadas nem falseadas pelas descobertas empíricas. Porém, o fato permanece ignorado, e o resultado é que até hoje o postulado do mecanicismo universal retém seu status de verdade científica incontestável.
O segundo exemplo pertence a um estrato mais fundamental do pensamento filosófico e, conseqüentemente, é muito mais abrangente em suas implicações. Trata-se do “reducionismo físico” (chamo-o assim por razões que logo ficarão claras). A tese depende de uma suposição epistemológica – um postulado idealista, eu diria – que afirma que o ato da percepção sensorial se encerra numa representação subjetiva, e não num objeto externo como normalmente acreditamos. De acordo com esse critério, a maçã vermelha que percebemos existe em nossa mente ou consciência; é uma imagem subjetiva, uma fantasia que a humanidade há séculos tomou por engano como sendo um objeto exterior. Assim pensava René Descartes, a quem devemos as fundações filosóficas da ciência moderna. Descartes procurou corrigir noções sobre as entidades perceptíveis que ele julgava errôneas, distinguindo entre objeto exterior, que ele chamou de res extensa, e sua representação subjetiva, a res cogitans. O que outrora era concebido como um objeto singular (como na vida cotidiana é invariavelmente considerado) foi dividido em dois; conforme disse Whitehead: “Portanto, haveria duas naturezas: uma é a conjectura, a outra o sonho” (1). É notável que esta diferenciação cartesiana entre a “conjectura” e o “sonho” não apenas vai de encontro às intuições mais comuns da humanidade, mas é bizarra se comparada às grandes tradições filosóficas, incluindo especialmente a tradição tomista. Ora, é justamente esta questionável doutrina cartesiana – a qual Whitehead chama de “bifurcação” – que serviu desde o início como plataforma fundamental da física ou, melhor dizendo, da cosmovisão cientificista, cujos termos são habitualmente empregados para interpretar os resultados da física. E verificamos novamente que os dois fatores díspares – os fatores operacionais da física e suas interpretações usuais – tornaram-se, com efeito, um só. Ou seja, o princípio da bifurcação é realmente uma crença cientificista.
Gostaria de deixar claro que além da bifurcação ir de encontro às mais básicas intuições humanas e às mais veneráveis tradições filosóficas, não há um pingo de evidência empírica que sustente tal postura heterodoxa. E nem poderia haver, pois a física pode ser perfeitamente interpretada em bases não-bifurcacionistas, conforme pude mostrar em uma recente monografia [2]. Ocorre que no momento em que tentamos interpretar a física em termos não-bifurcacionistas, os chamados paradoxos quânticos – que motivaram os físicos a inventarem as mais bizarras ontologias – simplesmente desaparecem. Parece que a física quântica está implicitamente de acordo com a cosmovisão pré-cartesiana.
Resta explicar por que chamo a bifurcação de “reducionismo físico”. A razão se torna clara no momento que retornamos ao Weltanschauung perene. A maçã vermelha que percebemos volta a pertencer ao mundo exterior; digo que se trata de um objeto corpóreo que, por conseguinte, pode ser percebido. Por outro lado, a maçã “molecular”, com a qual os físicos se ocupam, é despojada de qualidades sensíveis, tornando-se, assim, imperceptível. Ela constitui o que chamo de objeto físico, em oposição ao objeto corpóreo. De um ponto de vista bifurcacionista, o objeto físico é tudo o que existe no mundo exterior. Portanto, o objeto corpóreo é concebido como sendo “nada mais” do que o objeto físico. A maçã vermelha – que, do ponto de vista ortodoxo, existe! – é, com efeito, “reduzida” ao físico: ela é identificada como sendo a maçã “molecular”, conforme concebida pelos físicos. O princípio da bifurcação, portanto, resulta no que chamo de reducionismo físico; e o inverso é igualmente evidente.
Em ambas as formas, a tese cartesiana tem sido considerada por cientistas e pelo público educado como um pressuposto. Ela se impregnou na mente científica a ponto de as anomalias quânticas não terem despertado a menor suspeita. Conforme admitiu em privado um filósofo da ciência: “As pessoas que trabalham no campo da física acham quase impossível eliminar o bifurcacionismo implícito em suas obras”. Ora, essa conformação acrítica e habitual à tese cartesiana pelas “pessoas que trabalham no campo da física” só desonra seu status filosófico; e, como todas as crenças cientificistas, poderíamos dizer que o princípio se tornou científico por associação.
É possível deduzir que a bifurcação – ou o reducionismo físico, tanto faz – constitui a mais básica crença cientificista contemporânea, o princípio que todas as demais crenças cientificistas pressupõem. Considere a idéia do mecanicismo universal, por exemplo: ela não depende da bifurcação? Num trecho memorável e amplamente citado, Descartes, com efeito, admite:
Podemos facilmente conceber como o movimento de um corpo pode ser causado por outro, e como pode ser diversificado em função do tamanho, da figura e da situação de suas partes, mas somos totalmente incapazes de conceber como estas mesmas coisas conseguem produzir algo de natureza inteiramente diferente de si próprias, como por exemplo as formas substanciais e as qualidades reais, que muitos filósofos supõem estarem nos corpos [3].
É claro que os filósofos aludidos são os escolásticos, a quem Descartes radicalmente se opunha. O que o sábio francês está nos dizendo – com admirável clareza! – é que a idéia do mecanicismo universal só pôde ser concebida quando o universo foi reduzido ao estado de “matéria quantificada”. E não é exatamente por esta razão que Galileu e Descartes julgaram adequado banir “as formas substanciais e as qualidades reais” do mundo exterior? A bifurcação não foi postulada precisamente para tornar viável uma física “totalista” baseada em princípios mecanicistas?
Os dois exemplos bastam para que o fenômeno da crença cientificista seja apresentado. Não é preciso muito esforço para captarmos a idéia de que se a física, a mais exata das ciências naturais, se associou a noções cientificistas – na verdade, e de um ponto de vista tradicional, ilusórias! –, o que esperar das disciplinas menos rigorosas como a biologia evolucionária, a antropologia física e a psicologia, para não mencionarmos as chamadas ciências sociais? [4] O fato olimpicamente ignorado é que a ciência contemporânea provê tanto verdades como erros: não apenas luzes, mas também trevas. No que concerne o grande público, é bem provável que o segundo efeito predomine; as verdades das ciências “difíceis” são, afinal, acessíveis somente aos especialistas, às pessoas cientificamente proficientes. Isto vale, sobretudo, no caso da física básica; quando a teoria quântica se populariza, o que resta são noções cientificistas. Podemos resumir a coisa assim: À medida que a ciência evolui, seus insights se tornam cada vez mais abstratos, matemáticos e, por conseguinte, desprovidos de imagens sensíveis; tais insights tornam-se um tipo de conhecimento esotérico, ao qual apenas os “iniciados” têm acesso. Além disso, o que é validado pelas descobertas empíricas e, de certa maneira, pelos milagres da tecnologia, é o núcleo do insight esotérico, e não as crenças cientificistas exteriores a ele.
Consideremos agora as implicações destes fatos – deste fenômeno cultural – na vida religiosa e espiritual. Conforme comentei anteriormente, considero extremamente danoso o impacto da crença cientificista sobre a religião. O problema se agravou ainda mais porque teólogos e pastores em geral estão mal guarnecidos para lidar com questões deste tipo, quando não estão completamente convencidos pelas teses cientificistas.
Alguns poderiam perguntar qual é, afinal, a importância disso tudo. E se estivermos enganados sobre a natureza da causalidade, ou sobre onde se encerra a percepção sensorial, ou mesmo sobre a tão-debatida questão da evolução – contanto que estejamos ao lado da verdade em questões religiosas? Eu diria que a questão não é tão simples assim. Não nos esqueçamos que religião – contanto que não tenha se degenerado em convenção social ou mero sentimentalismo – exige o homem por inteiro; santidade e totalidade são inseparáveis. O “primeiro e maior” de todos os mandamentos não impõe que “[Tu] amarás o Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua mente”? O que pensamos do mundo – nosso Weltanschauung – não pode ser legitimamente excluído do domínio da religião. Conforme escreveu São Tomás de Aquino na Summa Contra Gentiles (Livro II, capítulo 3): “É absolutamente falso sustentar, em relação às verdades da fé, que o que acreditamos a respeito da criação não tem maiores conseqüências, contanto que se tenha uma concepção exata sobre Deus; pois um erro sobre a natureza da criação sempre engendra uma falsa idéia sobre Deus”. Eu diria que a propensão contemporânea em acomodar os ensinamentos do Cristianismo com as chamadas “verdades científicas” representa uma impressionante confirmação deste princípio tomista: um caso clássico de erros cientificistas gerando idéias teológicas falhas. [5]
Em suma: o que pensamos sobre o universo tem sim importância em nossa vida religiosa e espiritual. E, além disso, somos responsáveis pelas opiniões que sustentamos neste domínio aparentemente secular. “Com toda a tua mente”: estas quatro palavrinhas deveriam bastar para apreciarmos o fato.
Vou ainda mais longe: a religião míngua no momento em que abre mão do seu, digamos, domínio natural, que hoje é ocupado pela ciência. Creio que a atual crise da fé e a progressiva descristianização da sociedade ocidental têm muito a ver com o fato de que há séculos o mundo material tem sido deixado nas mãos dos cientistas. Isso já foi dito muitas vezes no passado (mas não o suficiente!).
Theodore Roszak, por exemplo, expressou-se sobre esta questão com especial brilhantismo: “A ciência é a nossa religião porque a maioria de nós é incapaz de convictamente enxergar em torno dela” [6]. Além disso, os únicos que têm alguma capacidade de “convictamente enxergar em torno dela” são aqueles que têm um contato mínimo com a autêntica religião. Oskar Milosz (1877-1939) é outro que tem algo notável a dizer sobre a questão: “Se o conceito de universo físico não estiver de acordo com a realidade, a vida espiritual desta pessoa será gravemente avariada, com conseqüências devastadoras em todos os aspectos de sua vida” [7]. Muito bem dito! Com respeito às implicações da cosmovisão cientificista na vida da Igreja, citarei as palavras recentemente publicadas do filósofo francês Jean Borella: “A verdade é que a Igreja Católica tem se confrontado com o mais terrível problema que uma religião poderia enfrentar: o desaparecimento cientificista (disparition scientifique) do universo de formas simbólicas, justamente aquele que lhe permite que se expresse e se manifeste, isto é, que permite que exista”. E ele continua: “Tal destruição foi levada a cabo pela física de Galileu, não, como se costuma dizer, porque destituiu o homem de sua posição central – que, para São Tomás de Aquino, é cosmologicamente a mais inferior e menos nobre – mas porque reduziu corpos, substâncias materiais, ao âmbito puramente geométrico, tornando impossível (ou desprovido de sentido), em uma só tacada, que o mundo pudesse servir como meio para a manifestação de Deus. A capacidade teofânica do mundo foi negada”. [8] Sejamos claros: Borella pôs o dedo na ferida do reducionismo físico: le problème le plus redoubtable qu’une religion puisse rencontrer. O que ele chama de “redução ao puramente geométrico” corresponde precisamente ao que chamo de redução do corpóreo ao físico: é esta disputa cientificista que obliteraria “a capacidade teofânica do mundo”.
É claro que as “formas simbólicas” às quais Borella se refere não são, como se poderia supor, imagens ou idéias subjetivas que outrora os homens projetaram sobre o universo externo até que a ciência veio para nos apresentar à verdade. O caso é exatamente o oposto: as “formas” em questão são objetivamente reais e, na verdade, essenciais ao universo. Podemos concebê-las como as “formas” no sentido aristotélico e escolástico, ou os arquétipos eternos platônicos refletidos no plano da existência corpórea. Em todo caso, constituem a essência mesma dos seres corpóreos. Remova estas “formas simbólicas” e o universo deixará de existir; pois são precisamente estas “formas” que ancoram o cosmo a Deus.
Nem é preciso dizer que a ciência não destruiu realmente estas formas, nem causou seu desaparecimento; porém, a negação cientificista dos seres corpóreos implica em uma negação das formas ou essências substanciais que constituem a ordem do ser, e das qualidades sensíveis pelas quais estas formas ou essências se manifestam ao homem. Assim, a mente cientificisticamente treinada torna-se cada vez mais insensível ao que Borella chama de “universo de formas simbólicas”, a ponto de tal universo lhe parecer praticamente invisível. É neste sentido que a “capacidade teofânica do mundo” tem diminuído a níveis nunca antes vistos.
De qualquer modo, as conseqüências desta diminuição não são outra coisa senão trágicas. Ao negar as essências, o homem cientificista destrói a própria base da vida espiritual. Conforme Borella notou, o homem cientificista obliterou o domínio “que permite à Igreja se expressar e se manifestar” e, portanto, “que permite que ela exista”. A refutação da crença cientificista não é, portanto, algo opcional à Igreja, algo do qual ela pode se privar de fazer; é, pelo contrário, uma questão de urgente necessidade, uma questão de sobrevivência.
Por fim, reflitamos novamente sobre o que São Paulo tem a dizer sobre a “capacidade teofânica do mundo” em sua carta aos romanos. Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis. Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes nas suas especulações se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. (Romanos 1:20-22). Nem é preciso mencionar a enorme relevância destas palavras em tudo o que discutimos até aqui. As “coisas que estão criadas” são, sem dúvida, as de natureza corpórea, os objetos que o homem pode perceber; mas e quanto às “suas coisas invisíveis”: não seriam precisamente as essências eternas, as idéias ou arquétipos? Contanto que o coração do homem não tenha se “obscurecido”, a percepção sensorial das “coisas que estão criadas” lhe despertará uma percepção intelectual – uma “lembrança”, segundo Platão – das coisas eternas, sobre as quais o coração refletirá ou incorporará. São Paulo alude a um tempo ou estado quando o homem “conhecia Deus”, uma referência, antes de mais nada, à condição de Adão antes da queda, quando a natureza humana ainda não havia sido corrompida pelo pecado original. Porém, é preciso perceber que a queda de Adão tem se repetido, em escala menor, através dos séculos, numa série interminável de “traições”, grandes e pequenas. Mesmo hoje, neste avançado estágio da história, somos, cada um de nós, investidos de certo “conhecimento sobre Deus”, ao qual somos livres para responder de diversas maneiras. E é por isso que nós também somos “inescusáveis”, responsáveis que somos pelas opiniões que sustentamos a respeito do cosmo. Todos percebem o universo de acordo com seu estado espiritual: os “puros de coração” o percebem como uma teofania; dos demais, cujos “corações insensatos se obscureceram”, a capacidade teofânica do universo é reduzida proporcionalmente a este obscurecimento.
Quero destacar o fato de que a correspondência entre o estado espiritual e o Weltanschauung aplica-se em ambas as direções, ou seja, nosso estado espiritual afeta não somente a maneira como vemos o mundo exterior, mas, reciprocamente, nossas visões sobre o universo invariavelmente refletem-se sobre este estado espiritual. Este é meu argumento central: A cosmologia importa, e ela tem um impacto decisivo sobre nossa condição espiritual. Mesmo aquilo que pensamos sobre o mundo puramente físico mostra-se crucial; pois “se o conceito de universo físico de uma pessoa não estiver de acordo com a realidade, sua vida espiritual será gravemente avariada...”.
Estas considerações nos trazem, enfim, à questão pastoral: o que pode ser feito, pastoralmente falando, para neutralizar a influência cientificista? O problema maior está em informar os próprios pastores: alertá-los, em primeiro lugar, do fato de que há uma distinção crucial a ser feita entre ciência e cientificismo, e do fato de que a crença cientificista é antagonista de nosso bem-estar espiritual. Não será tarefa fácil, uma vez que ofende a tendência dominante, tanto na sociedade civil quanto na Igreja. Só pela graça de Deus, creio eu, conseguiremos reunir discernimento e ousadia o bastante para livrar-nos do Weltanschauung cientificista e recuperarmos uma cosmovisão cristã. E tal tarefa, esta exigência, diria eu, é em essência espiritual. Ela não pode ser cumprida simplesmente lendo livros, ou pelo processo de raciocínio, mas acima de tudo pela fé e pela oração. O ditado credo ut intelligam aplica-se a nós, e com ainda mais intensidade do que nos inocentes dias de Agostinho ou Anselmo. É imperativo que sejamos tocados e movidos pelo Espírito Santo, o Espírito da verdade, que vos guiará em toda a verdade (João 16:13). Em nossa batalha para transcendermos o cientificismo, estaremos lidando não apenas com um sistema de crenças criado pelo homem, mas com algo formidavelmente mais abrangente; pois aqui também, no fim das contas, não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais (Efésios 6:12). E não poderia ser diferente, pois é a “capacidade teofânica do mundo” que está em jogo: aquilo mesmo “que permite a Igreja se expressar e se manifestar, isto é, que permite que ela exista”. Se o cosmo for realmente aquilo que o cientificismo afirma que é, então nossa fé católica será uma zombaria e nossa sagrada liturgia uma charada vazia. Este fato não pode ser ignorado impunemente.
Notas:
[1] The Concept of Nature (Cambridge University Press, 1964), pág. 30. Embora seja um eminente filósofo e que, juntamente com Bertrand Russel, tenha sido pai da lógica matemática, as censuras de Whitehead contra os axiomas cartesianos despertaram pouco interesse por parte da comunidade científica.
[2] The Quantum Enigma (Peru, Illinois: Sherwood Sugden, 1995). Um providencial resumo do livro foi feito por William A. Wallace em “Thomism and the Quantum Enigma”, The Thomist 61 (1997), pág. 455-467. Cf. também Wolfgang Smith, From Schrödinger’s Cat to Thomistic Ontology, The Thomist 63 (1999), pág. 49-63.
[3] Citado em E. A. Burtt, The Metaphysical Principles of Modern Physical Science (New York: Humanities Press, 1951), pág. 112.
[4] Cf. Cosmos and Transcendence (Peru, Illinois: Sherwood Sugden, 1984), na qual procurei desmascarar os princípios fundamentais da crença cientificista e delinear seu impacto na sociedade contemporânea.
[5] O supremo exemplo da teologia cientificista foi dado pelas especulações de Teilhard de Chardin. Cf. minha monografia Teilhardism and the New Religion (Rockford, Illinois: TAN Books, 1988), na qual lidei amplamente com esta questão.
[6] Where the Wasteland Ends (Garden City: Doubleday, 1973), pág. 124.
[7] Citado em Seyyed Hossein Nasr, Religion and the Order of Nature (Oxford University Press, 1996), pág. 153. Sobre Oskar Milosz, cf. Philip Sherrard, Human Image: World Image (Ipswich: Golgonooza Press, 1992), pág. 131-146.
[8] Le sens du surnaturel (Geneva: Editions Ad Solem, 1996), pág. 74. Cf. também a tradução inglesa The Sense of the Supernatural (Edinburgh: T & T Clark, 1998).
Mesmo com o advento da mecânica quântica -- que deveria ter sido encarada como uma pá de cal ao bifurcacionismo -- os cientistas modernos fingem que o mundo cartesiano ainda é válido porque, segundo Smith, é a crença filosófica em si que pretendem defender, e não propriamente os postulados da ciência empírica.
Por fim, Smith avalia os danos inconscientes que esta crença cientificista causa na vida espiritual e religiosa das pessoas, e alerta para a necessidade dos sacerdotes serem instruídos a identificarem o bifurcacionismo que vem enlatado nas explicações das descobertas científicas.
Smith nasceu em 1930 e, com pouco mais de vinte anos de idade, trabalhando para a Bell Aircraft Corporation, distinguiu-se através da pesquisa sobre a aerodinâmica dos campos de difusão, a qual deu a fundamentação teórica à solução do famoso problema da re-entrada de artefatos na atmosfera. Ele é católico romano e tem Ph.D. em Matemática pela Universidade Columbia e exerceu cargos acadêmicos no MIT, na UCLA e na Universidade do Estado de Oregon.
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A praga do cientificismo
Nada é mais incontestável e infalível para a mentalidade contemporânea do que as descobertas da física, da astronomia, da química e, ultimamente, da biologia molecular. Elas são aquelas ciências “difíceis” da era moderna, cuja abrangência e precisão deixam a imaginação estupefata; elas nos aproximam das realidades mais fundamentais que outrora jamais teríamos condições de conceber. E mais: este grupo de ciências foi de certa maneira “validado visivelmente” pelos milagres tecnológicos que nos rodeiam. Ora, quem se atreveria a duvidar – muito menos a negar – suas descobertas? Na verdade, ninguém; partículas e campos quânticos, galáxias e quasares, moléculas e códigos genéticos – são todos fatos inegáveis com os quais doravante somos obrigados a conviver.
Contudo, devemos ter em mente que um fato e sua interpretação não são a mesma coisa. E dado que, subjetivamente, os fatos são invariavelmente associados a uma interpretação, sucede que a ciência, por via de regra, nos apresenta dois fatores díspares: as descobertas positivas, de um lado, e, de outro, uma filosofia a elas implícita cujos termos servem de moldura à sua formulação e divulgação. Na verdade, a ciência nunca será esse tipo de investigação puramente empírica tal como geralmente a consideram, o que significa dizer que pressupostos ontológicos e epistemológicos sempre desempenharão um papel essencial. E mais: a comunidade científica raramente examina esses dogmas filosóficos ou os sujeitam a um escrutínio rigoroso. Esses pressupostos são as idéias fundamentais que absorvemos – quase que por osmose – no decorrer de nossa educação científica; elas pertencem ao que poderíamos chamar de inconsciente científico. E quando um desses enraizados dogmas filosóficos se torna tema de discussão, a resposta típica dos cientistas é apontar, à guisa de validação, para o sucesso das investigações científicas e dizer: “Vejam, funciona!” Ora, nenhuma crença filosófica jamais foi validada por uma descoberta empírica; o fato é que a verificação tanto quanto a falsificação por meios empíricos é algo que se aplica às proposições científicas, e não às filosóficas. Porém, é muito raro que os cientistas sequer tentem distinguir estes dois domínios; somente em tempos de crise extrema, quando os fundamentos da ciência parecem estar realmente abaladas, é possível encontrar gente fazendo esse tipo de questionamento mas, mesmo assim, em quantidade diminuta: é preciso um Einstein ou um Heisenberg para, digamos, descer até o nível fundamental dos axiomas filosóficos. Além disso, o que a maioria dos cientistas comuns absorve desses grandes físicos fica restrito aos aspectos técnicos da investigação: as equações da relatividade ou o formalismo da mecânica matricial são aceitos, enquanto o lado filosófico da moeda é ignorado. Podemos dizer que os homens e mulheres que se dedicam ao cotidiano das pesquisas científicas tendem a não se interessar pelas sutilezas filosóficas; estão, portanto, inclinados a reter os axiomas filosóficos com os quais se acostumaram ao longo dos anos, e que só deveriam ser reconhecidos como tal, para serem depois devidamente expelidos, por meio de uma investigação séria e rigorosa. Assim sendo, o resultado é que na mente dos cientistas coexistem, de maneira inextricável, boa ciência e filosofia inferior; conforme observou John Haught, da Universidade de Georgetown: “Alguns dos mais renomados cientistas são literalmente incapazes de separar a ciência de sua metafísica materialista”.
Dito isto, passo a declarar formalmente a minha tese principal: sustento que, em virtude da confusão supracitada, os cientistas têm promulgado as mais duvidosas opiniões filosóficas como se fossem sólidas verdades científicas e, em nome da ciência, têm forçado um público crédulo e impressionável a aceitar uma cosmovisão superficial que, na realidade, não tem um pingo de respaldo científico. Sustento ainda que os cientistas conseguiram ganhar a confiança e a admiração da sociedade por meio das maravilhas tecnológicas que ajudaram a engendrar e que, enquanto classe, têm usurpado dessa autoridade ao predispor o público contra as verdades religiosas. Não estou aqui sugerindo que eles estão enganando o próximo de maneira consciente, mas sim que, por via de regra, enganaram-se a si próprios em questões que pertencem à filosofia, à metafísica e à religião. Enquanto isso, esses “guias cegos” exercem uma influência incalculável sobre a educação e a opinião pública, com conseqüências desastrosas ao bem-estar humano, tanto agora como no futuro.
Aplicarei o termo “crença cientificista” às opiniões filosóficas travestidas de verdades científicas. Deixem-me dar dois exemplos. O primeiro é o princípio do mecanicismo universal ou, melhor dizendo, o axioma do determinismo físico. A idéia é simples: o princípio afirma que o universo exterior consiste de matéria cujo movimento é determinado pela interação de suas partes. Dada a configuração ou estado inicial dessa matéria, e averiguadas as leis que determinam os efeitos dessas interações sobre o movimento resultante, somos supostamente capazes de calcular a evolução futura do universo nos mínimos detalhes. Dessa maneira, o cosmo é concebido como se fosse um relógio gigante, cujas partes interagem entre si, determinando o movimento do todo. Sabemos que essa idéia começou a tomar forma no século XVI e que desempenhou um papel decisivo na evolução da ciência moderna. De fato, nos tempos no Iluminismo, a idéia chegou quase a ser considerada uma verdade científica universalmente estabelecida. Por exemplo, Hermann von Helmholtz, um dos líderes científicos do século XIX, afirmou com serena confiança: “O objetivo final de toda a ciência natural é reduzir-se à mecânica (sich in Mechanik aufzulösen)”. Porém, o quadro mudou com o advento da teoria quântica: concluiu-se que a nova física não era compatível com as premissas mecanicistas. Todavia, apesar do indeterminismo quântico, não foram poucos os cientistas que continuaram a promulgar o princípio mecanicista. O próprio Albert Einstein, longe de admitir que as descobertas da física quântica desbancassem os postulados clássicos, argumentava justamente o contrário: com efeito, é o princípio do determinismo que invalidaria a mecânica quântica enquanto teoria fundamental. Este caso ilustra muito bem a característica filosófica e a priori do princípio em questão, e o fato de que as proposições deste tipo não podem ser verificadas nem falseadas pelas descobertas empíricas. Porém, o fato permanece ignorado, e o resultado é que até hoje o postulado do mecanicismo universal retém seu status de verdade científica incontestável.
O segundo exemplo pertence a um estrato mais fundamental do pensamento filosófico e, conseqüentemente, é muito mais abrangente em suas implicações. Trata-se do “reducionismo físico” (chamo-o assim por razões que logo ficarão claras). A tese depende de uma suposição epistemológica – um postulado idealista, eu diria – que afirma que o ato da percepção sensorial se encerra numa representação subjetiva, e não num objeto externo como normalmente acreditamos. De acordo com esse critério, a maçã vermelha que percebemos existe em nossa mente ou consciência; é uma imagem subjetiva, uma fantasia que a humanidade há séculos tomou por engano como sendo um objeto exterior. Assim pensava René Descartes, a quem devemos as fundações filosóficas da ciência moderna. Descartes procurou corrigir noções sobre as entidades perceptíveis que ele julgava errôneas, distinguindo entre objeto exterior, que ele chamou de res extensa, e sua representação subjetiva, a res cogitans. O que outrora era concebido como um objeto singular (como na vida cotidiana é invariavelmente considerado) foi dividido em dois; conforme disse Whitehead: “Portanto, haveria duas naturezas: uma é a conjectura, a outra o sonho” (1). É notável que esta diferenciação cartesiana entre a “conjectura” e o “sonho” não apenas vai de encontro às intuições mais comuns da humanidade, mas é bizarra se comparada às grandes tradições filosóficas, incluindo especialmente a tradição tomista. Ora, é justamente esta questionável doutrina cartesiana – a qual Whitehead chama de “bifurcação” – que serviu desde o início como plataforma fundamental da física ou, melhor dizendo, da cosmovisão cientificista, cujos termos são habitualmente empregados para interpretar os resultados da física. E verificamos novamente que os dois fatores díspares – os fatores operacionais da física e suas interpretações usuais – tornaram-se, com efeito, um só. Ou seja, o princípio da bifurcação é realmente uma crença cientificista.
Gostaria de deixar claro que além da bifurcação ir de encontro às mais básicas intuições humanas e às mais veneráveis tradições filosóficas, não há um pingo de evidência empírica que sustente tal postura heterodoxa. E nem poderia haver, pois a física pode ser perfeitamente interpretada em bases não-bifurcacionistas, conforme pude mostrar em uma recente monografia [2]. Ocorre que no momento em que tentamos interpretar a física em termos não-bifurcacionistas, os chamados paradoxos quânticos – que motivaram os físicos a inventarem as mais bizarras ontologias – simplesmente desaparecem. Parece que a física quântica está implicitamente de acordo com a cosmovisão pré-cartesiana.
Resta explicar por que chamo a bifurcação de “reducionismo físico”. A razão se torna clara no momento que retornamos ao Weltanschauung perene. A maçã vermelha que percebemos volta a pertencer ao mundo exterior; digo que se trata de um objeto corpóreo que, por conseguinte, pode ser percebido. Por outro lado, a maçã “molecular”, com a qual os físicos se ocupam, é despojada de qualidades sensíveis, tornando-se, assim, imperceptível. Ela constitui o que chamo de objeto físico, em oposição ao objeto corpóreo. De um ponto de vista bifurcacionista, o objeto físico é tudo o que existe no mundo exterior. Portanto, o objeto corpóreo é concebido como sendo “nada mais” do que o objeto físico. A maçã vermelha – que, do ponto de vista ortodoxo, existe! – é, com efeito, “reduzida” ao físico: ela é identificada como sendo a maçã “molecular”, conforme concebida pelos físicos. O princípio da bifurcação, portanto, resulta no que chamo de reducionismo físico; e o inverso é igualmente evidente.
Em ambas as formas, a tese cartesiana tem sido considerada por cientistas e pelo público educado como um pressuposto. Ela se impregnou na mente científica a ponto de as anomalias quânticas não terem despertado a menor suspeita. Conforme admitiu em privado um filósofo da ciência: “As pessoas que trabalham no campo da física acham quase impossível eliminar o bifurcacionismo implícito em suas obras”. Ora, essa conformação acrítica e habitual à tese cartesiana pelas “pessoas que trabalham no campo da física” só desonra seu status filosófico; e, como todas as crenças cientificistas, poderíamos dizer que o princípio se tornou científico por associação.
É possível deduzir que a bifurcação – ou o reducionismo físico, tanto faz – constitui a mais básica crença cientificista contemporânea, o princípio que todas as demais crenças cientificistas pressupõem. Considere a idéia do mecanicismo universal, por exemplo: ela não depende da bifurcação? Num trecho memorável e amplamente citado, Descartes, com efeito, admite:
Podemos facilmente conceber como o movimento de um corpo pode ser causado por outro, e como pode ser diversificado em função do tamanho, da figura e da situação de suas partes, mas somos totalmente incapazes de conceber como estas mesmas coisas conseguem produzir algo de natureza inteiramente diferente de si próprias, como por exemplo as formas substanciais e as qualidades reais, que muitos filósofos supõem estarem nos corpos [3].
É claro que os filósofos aludidos são os escolásticos, a quem Descartes radicalmente se opunha. O que o sábio francês está nos dizendo – com admirável clareza! – é que a idéia do mecanicismo universal só pôde ser concebida quando o universo foi reduzido ao estado de “matéria quantificada”. E não é exatamente por esta razão que Galileu e Descartes julgaram adequado banir “as formas substanciais e as qualidades reais” do mundo exterior? A bifurcação não foi postulada precisamente para tornar viável uma física “totalista” baseada em princípios mecanicistas?
Os dois exemplos bastam para que o fenômeno da crença cientificista seja apresentado. Não é preciso muito esforço para captarmos a idéia de que se a física, a mais exata das ciências naturais, se associou a noções cientificistas – na verdade, e de um ponto de vista tradicional, ilusórias! –, o que esperar das disciplinas menos rigorosas como a biologia evolucionária, a antropologia física e a psicologia, para não mencionarmos as chamadas ciências sociais? [4] O fato olimpicamente ignorado é que a ciência contemporânea provê tanto verdades como erros: não apenas luzes, mas também trevas. No que concerne o grande público, é bem provável que o segundo efeito predomine; as verdades das ciências “difíceis” são, afinal, acessíveis somente aos especialistas, às pessoas cientificamente proficientes. Isto vale, sobretudo, no caso da física básica; quando a teoria quântica se populariza, o que resta são noções cientificistas. Podemos resumir a coisa assim: À medida que a ciência evolui, seus insights se tornam cada vez mais abstratos, matemáticos e, por conseguinte, desprovidos de imagens sensíveis; tais insights tornam-se um tipo de conhecimento esotérico, ao qual apenas os “iniciados” têm acesso. Além disso, o que é validado pelas descobertas empíricas e, de certa maneira, pelos milagres da tecnologia, é o núcleo do insight esotérico, e não as crenças cientificistas exteriores a ele.
Consideremos agora as implicações destes fatos – deste fenômeno cultural – na vida religiosa e espiritual. Conforme comentei anteriormente, considero extremamente danoso o impacto da crença cientificista sobre a religião. O problema se agravou ainda mais porque teólogos e pastores em geral estão mal guarnecidos para lidar com questões deste tipo, quando não estão completamente convencidos pelas teses cientificistas.
Alguns poderiam perguntar qual é, afinal, a importância disso tudo. E se estivermos enganados sobre a natureza da causalidade, ou sobre onde se encerra a percepção sensorial, ou mesmo sobre a tão-debatida questão da evolução – contanto que estejamos ao lado da verdade em questões religiosas? Eu diria que a questão não é tão simples assim. Não nos esqueçamos que religião – contanto que não tenha se degenerado em convenção social ou mero sentimentalismo – exige o homem por inteiro; santidade e totalidade são inseparáveis. O “primeiro e maior” de todos os mandamentos não impõe que “[Tu] amarás o Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua mente”? O que pensamos do mundo – nosso Weltanschauung – não pode ser legitimamente excluído do domínio da religião. Conforme escreveu São Tomás de Aquino na Summa Contra Gentiles (Livro II, capítulo 3): “É absolutamente falso sustentar, em relação às verdades da fé, que o que acreditamos a respeito da criação não tem maiores conseqüências, contanto que se tenha uma concepção exata sobre Deus; pois um erro sobre a natureza da criação sempre engendra uma falsa idéia sobre Deus”. Eu diria que a propensão contemporânea em acomodar os ensinamentos do Cristianismo com as chamadas “verdades científicas” representa uma impressionante confirmação deste princípio tomista: um caso clássico de erros cientificistas gerando idéias teológicas falhas. [5]
Em suma: o que pensamos sobre o universo tem sim importância em nossa vida religiosa e espiritual. E, além disso, somos responsáveis pelas opiniões que sustentamos neste domínio aparentemente secular. “Com toda a tua mente”: estas quatro palavrinhas deveriam bastar para apreciarmos o fato.
Vou ainda mais longe: a religião míngua no momento em que abre mão do seu, digamos, domínio natural, que hoje é ocupado pela ciência. Creio que a atual crise da fé e a progressiva descristianização da sociedade ocidental têm muito a ver com o fato de que há séculos o mundo material tem sido deixado nas mãos dos cientistas. Isso já foi dito muitas vezes no passado (mas não o suficiente!).
Theodore Roszak, por exemplo, expressou-se sobre esta questão com especial brilhantismo: “A ciência é a nossa religião porque a maioria de nós é incapaz de convictamente enxergar em torno dela” [6]. Além disso, os únicos que têm alguma capacidade de “convictamente enxergar em torno dela” são aqueles que têm um contato mínimo com a autêntica religião. Oskar Milosz (1877-1939) é outro que tem algo notável a dizer sobre a questão: “Se o conceito de universo físico não estiver de acordo com a realidade, a vida espiritual desta pessoa será gravemente avariada, com conseqüências devastadoras em todos os aspectos de sua vida” [7]. Muito bem dito! Com respeito às implicações da cosmovisão cientificista na vida da Igreja, citarei as palavras recentemente publicadas do filósofo francês Jean Borella: “A verdade é que a Igreja Católica tem se confrontado com o mais terrível problema que uma religião poderia enfrentar: o desaparecimento cientificista (disparition scientifique) do universo de formas simbólicas, justamente aquele que lhe permite que se expresse e se manifeste, isto é, que permite que exista”. E ele continua: “Tal destruição foi levada a cabo pela física de Galileu, não, como se costuma dizer, porque destituiu o homem de sua posição central – que, para São Tomás de Aquino, é cosmologicamente a mais inferior e menos nobre – mas porque reduziu corpos, substâncias materiais, ao âmbito puramente geométrico, tornando impossível (ou desprovido de sentido), em uma só tacada, que o mundo pudesse servir como meio para a manifestação de Deus. A capacidade teofânica do mundo foi negada”. [8] Sejamos claros: Borella pôs o dedo na ferida do reducionismo físico: le problème le plus redoubtable qu’une religion puisse rencontrer. O que ele chama de “redução ao puramente geométrico” corresponde precisamente ao que chamo de redução do corpóreo ao físico: é esta disputa cientificista que obliteraria “a capacidade teofânica do mundo”.
É claro que as “formas simbólicas” às quais Borella se refere não são, como se poderia supor, imagens ou idéias subjetivas que outrora os homens projetaram sobre o universo externo até que a ciência veio para nos apresentar à verdade. O caso é exatamente o oposto: as “formas” em questão são objetivamente reais e, na verdade, essenciais ao universo. Podemos concebê-las como as “formas” no sentido aristotélico e escolástico, ou os arquétipos eternos platônicos refletidos no plano da existência corpórea. Em todo caso, constituem a essência mesma dos seres corpóreos. Remova estas “formas simbólicas” e o universo deixará de existir; pois são precisamente estas “formas” que ancoram o cosmo a Deus.
Nem é preciso dizer que a ciência não destruiu realmente estas formas, nem causou seu desaparecimento; porém, a negação cientificista dos seres corpóreos implica em uma negação das formas ou essências substanciais que constituem a ordem do ser, e das qualidades sensíveis pelas quais estas formas ou essências se manifestam ao homem. Assim, a mente cientificisticamente treinada torna-se cada vez mais insensível ao que Borella chama de “universo de formas simbólicas”, a ponto de tal universo lhe parecer praticamente invisível. É neste sentido que a “capacidade teofânica do mundo” tem diminuído a níveis nunca antes vistos.
De qualquer modo, as conseqüências desta diminuição não são outra coisa senão trágicas. Ao negar as essências, o homem cientificista destrói a própria base da vida espiritual. Conforme Borella notou, o homem cientificista obliterou o domínio “que permite à Igreja se expressar e se manifestar” e, portanto, “que permite que ela exista”. A refutação da crença cientificista não é, portanto, algo opcional à Igreja, algo do qual ela pode se privar de fazer; é, pelo contrário, uma questão de urgente necessidade, uma questão de sobrevivência.
Por fim, reflitamos novamente sobre o que São Paulo tem a dizer sobre a “capacidade teofânica do mundo” em sua carta aos romanos. Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis. Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes nas suas especulações se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. (Romanos 1:20-22). Nem é preciso mencionar a enorme relevância destas palavras em tudo o que discutimos até aqui. As “coisas que estão criadas” são, sem dúvida, as de natureza corpórea, os objetos que o homem pode perceber; mas e quanto às “suas coisas invisíveis”: não seriam precisamente as essências eternas, as idéias ou arquétipos? Contanto que o coração do homem não tenha se “obscurecido”, a percepção sensorial das “coisas que estão criadas” lhe despertará uma percepção intelectual – uma “lembrança”, segundo Platão – das coisas eternas, sobre as quais o coração refletirá ou incorporará. São Paulo alude a um tempo ou estado quando o homem “conhecia Deus”, uma referência, antes de mais nada, à condição de Adão antes da queda, quando a natureza humana ainda não havia sido corrompida pelo pecado original. Porém, é preciso perceber que a queda de Adão tem se repetido, em escala menor, através dos séculos, numa série interminável de “traições”, grandes e pequenas. Mesmo hoje, neste avançado estágio da história, somos, cada um de nós, investidos de certo “conhecimento sobre Deus”, ao qual somos livres para responder de diversas maneiras. E é por isso que nós também somos “inescusáveis”, responsáveis que somos pelas opiniões que sustentamos a respeito do cosmo. Todos percebem o universo de acordo com seu estado espiritual: os “puros de coração” o percebem como uma teofania; dos demais, cujos “corações insensatos se obscureceram”, a capacidade teofânica do universo é reduzida proporcionalmente a este obscurecimento.
Quero destacar o fato de que a correspondência entre o estado espiritual e o Weltanschauung aplica-se em ambas as direções, ou seja, nosso estado espiritual afeta não somente a maneira como vemos o mundo exterior, mas, reciprocamente, nossas visões sobre o universo invariavelmente refletem-se sobre este estado espiritual. Este é meu argumento central: A cosmologia importa, e ela tem um impacto decisivo sobre nossa condição espiritual. Mesmo aquilo que pensamos sobre o mundo puramente físico mostra-se crucial; pois “se o conceito de universo físico de uma pessoa não estiver de acordo com a realidade, sua vida espiritual será gravemente avariada...”.
Estas considerações nos trazem, enfim, à questão pastoral: o que pode ser feito, pastoralmente falando, para neutralizar a influência cientificista? O problema maior está em informar os próprios pastores: alertá-los, em primeiro lugar, do fato de que há uma distinção crucial a ser feita entre ciência e cientificismo, e do fato de que a crença cientificista é antagonista de nosso bem-estar espiritual. Não será tarefa fácil, uma vez que ofende a tendência dominante, tanto na sociedade civil quanto na Igreja. Só pela graça de Deus, creio eu, conseguiremos reunir discernimento e ousadia o bastante para livrar-nos do Weltanschauung cientificista e recuperarmos uma cosmovisão cristã. E tal tarefa, esta exigência, diria eu, é em essência espiritual. Ela não pode ser cumprida simplesmente lendo livros, ou pelo processo de raciocínio, mas acima de tudo pela fé e pela oração. O ditado credo ut intelligam aplica-se a nós, e com ainda mais intensidade do que nos inocentes dias de Agostinho ou Anselmo. É imperativo que sejamos tocados e movidos pelo Espírito Santo, o Espírito da verdade, que vos guiará em toda a verdade (João 16:13). Em nossa batalha para transcendermos o cientificismo, estaremos lidando não apenas com um sistema de crenças criado pelo homem, mas com algo formidavelmente mais abrangente; pois aqui também, no fim das contas, não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais (Efésios 6:12). E não poderia ser diferente, pois é a “capacidade teofânica do mundo” que está em jogo: aquilo mesmo “que permite a Igreja se expressar e se manifestar, isto é, que permite que ela exista”. Se o cosmo for realmente aquilo que o cientificismo afirma que é, então nossa fé católica será uma zombaria e nossa sagrada liturgia uma charada vazia. Este fato não pode ser ignorado impunemente.
Notas:
[1] The Concept of Nature (Cambridge University Press, 1964), pág. 30. Embora seja um eminente filósofo e que, juntamente com Bertrand Russel, tenha sido pai da lógica matemática, as censuras de Whitehead contra os axiomas cartesianos despertaram pouco interesse por parte da comunidade científica.
[2] The Quantum Enigma (Peru, Illinois: Sherwood Sugden, 1995). Um providencial resumo do livro foi feito por William A. Wallace em “Thomism and the Quantum Enigma”, The Thomist 61 (1997), pág. 455-467. Cf. também Wolfgang Smith, From Schrödinger’s Cat to Thomistic Ontology, The Thomist 63 (1999), pág. 49-63.
[3] Citado em E. A. Burtt, The Metaphysical Principles of Modern Physical Science (New York: Humanities Press, 1951), pág. 112.
[4] Cf. Cosmos and Transcendence (Peru, Illinois: Sherwood Sugden, 1984), na qual procurei desmascarar os princípios fundamentais da crença cientificista e delinear seu impacto na sociedade contemporânea.
[5] O supremo exemplo da teologia cientificista foi dado pelas especulações de Teilhard de Chardin. Cf. minha monografia Teilhardism and the New Religion (Rockford, Illinois: TAN Books, 1988), na qual lidei amplamente com esta questão.
[6] Where the Wasteland Ends (Garden City: Doubleday, 1973), pág. 124.
[7] Citado em Seyyed Hossein Nasr, Religion and the Order of Nature (Oxford University Press, 1996), pág. 153. Sobre Oskar Milosz, cf. Philip Sherrard, Human Image: World Image (Ipswich: Golgonooza Press, 1992), pág. 131-146.
[8] Le sens du surnaturel (Geneva: Editions Ad Solem, 1996), pág. 74. Cf. também a tradução inglesa The Sense of the Supernatural (Edinburgh: T & T Clark, 1998).