11 de agosto de 2008

Da necessidade e da possibilidade de novos princípios na Filosofia

Este é o último e mais famoso ensaio de Ivan Kireyevsky (1806-1856), publicado semanas antes de sua morte na antologia eslavófila Conversações Russas. Embora tenha se cercado de muitos colaboradores e amigos do círculo eslavófilo, Kireyevsky não deve ser considerado um eslavófilo, conforme a leitura deste ensaio deixará claro.

Em suma, Kireyevsky propõe que, para erguer a filosofia a um patamar digno de ser chamada de cristã ortodoxa, além da restauração das sementes filosóficas já contidas nas obras dos Santos Padres, é interessante a introdução de certos elementos contidos na filosofia alemã (sobretudo da fase posterior de Schelling). No entanto, para a produção dos princípios dessa filosofia cristã, um aspecto é essencial: que o pensamento se eleve de sua mesmice lógico-racional (dianoética) para a integridade e unidade mental engendradas pela atividade interior (noética).

Esta tradução portuguesa foi feita a partir de uma tradução inglesa extraída do volume 2 de An Introduction to Nineteenth Century Russian Slavophilism: A Study in Ideas (trad. Peter K. Christoff).

Leia também A antropologia e a epistemologia da filosofia de Ivan Kireyevsky.

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Há não muito tempo, a força da filosofia na Europa era muito grande. Até mesmo as questões políticas tinham menos importância e estavam subordinadas aos sistemas filosóficos, extraindo deles seu sentido e significado interior. Mas, ultimamente [o autor escreve em 1856], o interesse pela filosofia diminuiu drasticamente, a ponto de, em 1848, a relação entre filosofia e política ter mudado por completo. Hoje, as questões políticas é que chamam a atenção dos pensadores; obras filosóficas praticamente não são mais publicadas e poucos se ocupam de sistemas filosóficos. É fácil entender o porquê de tudo isso. Não há mais espaço para pensamentos abstratos e sistemáticos no atual contexto das grandes transformações sociais, que se seguem umas às outras como os atos de uma peça de teatro.

Ademais, o desenvolvimento filosófico da Europa Ocidental atingiu tamanha maturidade que o surgimento de um novo sistema não consegue mais chamar a atenção das pessoas; elas simplesmente não se comovem mais com o contraste entre as novas conclusões e os velhos conceitos. A tendência filosófica para o pensamento racional autônomo, que começou a tomar conta do Ocidente a partir da Revolução Protestante e cujos expoentes máximos foram Bacon e Descartes, tem crescido continuamente ao longo dos últimos três séculos e meio, às vezes manifestando-se em sistemas independentes, às vezes combinando-se mutuamente num corpo maior, progredindo, assim, por todos os estágios possíveis, até finalmente atingir a conclusão mais abrangente de todas, além da qual a mente européia não conseguirá aspirar a não ser que mude completamente sua orientação básica. Pois quando o homem rejeita toda autoridade exceto seu próprio pensamento abstrato, será possível avançar além da visão segundo a qual toda existência é transparente à dialética racional humana, e a razão humana enquanto tal é a própria autoconsciência do ser universal? Obviamente, neste caso, o objetivo final concebível pelo raciocínio abstrato, isolado das demais faculdades cognitivas, é precisamente aquele que vem buscando há séculos, agora plenamente atingido e além do qual não há mais nada a buscar.

Incapaz de seguir em frente, a filosofia cresce para os lados, desenvolvendo-se em detalhes e fornecendo uma base comum a todas as disciplinas. Assim, observamos que quase todos os pensadores ocidentais contemporâneos, por mais que sejam diferentes uns dos outros, operam a partir dos mesmos princípios básicos. Os seguidores de Hegel se expressam de maneira mais pedante, enquanto aqueles que não o leram se expressam de maneira mais coloquial; de qualquer forma, quase todos, mesmo aqueles que nunca ouviram falar de Hegel, expressam a mesma convicção básica sobre a qual se sustentam as conclusões do sistema hegeliano. Tal convicção está, digamos, no ar da cultura contemporânea. Embora poucas obras filosóficas sejam publicadas hoje em dia e embora haja pouco debate sobre questões filosóficas, não devemos concluir daí que a importância do pensamento filosófico em si tenha diminuído. Pelo contrário: mais do que nunca ele tem penetrado em todas as esferas da razão. Todo fenômeno social e toda descoberta científica transcende seus próprios limites e se une a problemas humanos de natureza universal, assumindo assim importância filosófico-racional. A própria natureza universal dos acontecimentos sociais contribui para isso. O interesse em criar sistemas acadêmicos está morto; porém, grandes são os esforços das pessoas cultas em estender o pensamento abstrato por todos os meandros da vida social, por todas as descobertas científicas e acadêmicas e por todas as suas possíveis conseqüências. Em suma: novos sistemas filosóficos não mais surgem, mas a supremacia do racionalismo continua.

Esse pensamento racional, cuja consciência e expressão final encontram-se na filosofia alemã moderna, combina todos os fenômenos da cultura européia contemporânea numa única característica. Todos os momentos da vida são permeados pelo mesmo espírito e todos os fenômenos intelectuais apresentam as mesmas convicções filosóficas. As discrepâncias entre essas convicções filosófico-racionais e as doutrinas de fé motivaram os cristãos ocidentais a contrapô-las com visões filosóficas baseadas na fé. Ocorre que os melhores esforços desses pensadores só serviram para reforçar ainda mais a supremacia do racionalismo. Pois os opositores da filosofia, na tentativa de refutar suas conclusões, foram incapazes de se apartar dos fundamentos sobres os quais a filosofia se desenvolveu e dos quais nenhum outro resultado seria possível extrair. Assim sendo, muitos homens piedosos do Ocidente, comovidos pela tendência intelectual a anti-religiosidade e desejosos em restaurar a fé, rejeitaram por completo a filosofia. Mas estes mesmos homens causaram mais danos às convicções religiosas do que os próprios filósofos. Ora, que religião é essa que não consegue se sustentar à luz da ciência? Que fé é essa que se mostra incompatível com a razão?

Não restou alternativa aos fiéis ocidentais senão preservar sua cegueira, ou seja, guardando a fé do contato com a razão. É uma conseqüência infeliz, mas inevitável, da dicotomia interna da fé. Pois onde quer que a fé se desvie de sua pureza inicial, aos poucos acabará criando uma contradição a si própria. A falta de integridade e unidade interna da fé compele as pessoas a buscar unidade no pensamento abstrato; e a razão, recebendo direitos equivalentes à Revelação Divina, primeiramente fornecerá as bases da religião para, em seguida, substituí-la.

Quando falo sobre a divisão entre fé e a base racional-abstrata da religião não me refiro apenas às confissões protestantes, onde a autoridade da tradição foi substituída pela autoridade do raciocínio individual. Observamos que a razão abstrata é o fundamento da doutrina religiosa da confissão latina tanto quanto do Protestantismo, apesar da confissão latina dizer-se contra o Protestantismo alegando que a tradição está acima da razão humana. Porém, nas questões de fé em relação à Igreja Universal, a Velha Roma dá mais importância ao silogismo abstrato do que à Santa Tradição, que é, afinal, o repositório da consciência comum a toda a Cristandade, mantendo-a coesa numa unidade viva e indissolúvel. Na verdade, a preferência pelo silogismo sobre a tradição foi o único motivo que levou à separação e ao desenvolvimento independente da Velha Roma. Ora, por que outro motivo a confissão latina teria se divorciado da Igreja Universal? Isso ocorreu somente porque a Velha Roma desejou introduzir novos dogmas à fé, dogmas desconhecidos pela Santa Tradição e criados pelas deduções arbitrárias da lógica dos povos ocidentais. Esta foi a raiz da divisão inicial, sobre a qual se desenvolveu a filosofia escolástica dentro da fé, depois a Reforma da fé, e, finalmente, a filosofia fora da fé. Os escolásticos foram os primeiros racionalistas; os hegelianos são sua prole.

Contudo, as tendências filosóficas ocidentais diferem de acordo com as confissões religiosas das quais se originaram; pois cada confissão assume uma postura racional própria em relação à fé, que por sua vez determina as características do pensamento da qual se origina.

A confissão latina separou-se da Igreja Universal porque a razão lógico-formal buscou uma união superficial entre conceitos, deduzindo conclusões a partir da essência desses conceitos. Foi precisamente esta razão superficial, precisamente esta superioridade dos silogismos em relação à consciência viva de toda a Cristandade, que acarretou a deserção da Velha Roma. Ao se privarem da Santa Tradição e da afinidade comum e unânime da Igreja, os latinos tiveram de buscar apoio em algum tipo de sistema teológico. No entanto, dado que a razão humana – sobretudo a do tipo racionalista – entende as questões divinas das mais diversas maneiras, isto é, entende-as de acordo com os conceitos de cada indivíduo, e dado que as contradições nos argumentos teológicos não podem mais ser resolvidas pela concordância intrínseca de toda a Igreja - isto é, pela Igreja visível e invisível, pela Igreja de todos os séculos e todos os povos -, então a unanimidade no pensamento cristão ocidental só pôde ser salvaguardada por meio da autoridade exterior da hierarquia. Assim, a autoridade exterior, apartada da autoridade interior, tornou-se o fundamento da fé. Logo, a relação entre fé e razão assumiu um traço característico: a razão tem de se submeter cegamente à doutrina religiosa defendida pela autoridade exterior da hierarquia. Digo cegamente porque nenhuma causa interior pode ser perscrutada quando a veracidade ou a falsidade de uma declaração é determinada pela opinião arbitrária de uma hierarquia. Eis que chegamos à escolástica e suas especulações, que tentou reconciliar as exigências da razão com as declarações da hierarquia, inserindo as exigências da razão em uma multidão de sistemas e interpretações heréticas.

Enquanto entregavam as decisões sobre verdades divinas à razão da hierarquia, que agia sem referência à tradição e à Igreja Universal, os latinos tiveram de admitir que sua hierarquia era a única fonte da verdade, e tiveram de sujeitar o pensamento humano e o desenvolvimento científico e social ao veredicto da hierarquia. Pois, de certa maneira, tudo está relacionado com a verdade divina, e uma vez que a razão da hierarquia transgrediu os limites da Revelação Divina, o que mais a deteria? O exemplo de Galileu não é exceção, mas expressa a lei da relação geral entre as confissões ocidentais e o pensamento humano. Portanto, a Revolução Protestante foi necessária para que a razão fosse resgatada da completa cegueira e da completa ausência de fé; ela teve de crescer sobre os mesmos princípios dos quais os latinos extraíram seu direito à exclusividade racional e à interferência universal. A única diferença é esta: o direito de julgar a Revelação Divina foi transferido do raciocínio de uma hierarquia para o raciocínio de todos os protestantes. Em vez de uma autoridade exterior única, a convicção de cada indivíduo tornou-se a nova base da fé.

Trata-se do outro extremo do mesmo erro. Os limites entre a razão natural humana e a Revelação Divina foram igualmente violados pelas confissões latina e protestante. Só a maneira de violá-los foi diferente e, portanto, suas respectivas posturas culturais foram diferentes. Na confissão latina, a base da fé é a tradição sujeita ao julgamento isolado da hierarquia, que controla o desenvolvimento geral da razão por meio de opiniões arbitrárias e esforça-se em compelir todo o pensamento em uma forma única e arbitrária. Na confissão protestante, tudo o que restou da tradição foi a letra das Escrituras, cujo significado depende do raciocínio de cada indivíduo.

As duas posturas engendraram orientações intelectuais totalmente opostas. Sob influência da confissão latina, a mente teve de se contorcer para reduzir o conhecimento a um sistema fechado. A verdade suprema já estava dada, o modo como deveria ser interpretada já estava determinado, a relação com a razão já estava delineada; restava moldar os conceitos ao sistema, removendo da razão tudo aquilo que poderia contradizer o sistema. Por outro lado, o Protestantismo, além da letra das Escrituras, teve de se guiar pela opinião individual e irreconciliável dos reformadores. A relação básica do homem com Deus, a relação do livre arbítrio com a graça e a predestinação etc.: todas estas questões foram entendidas de maneira diferente pelos reformadores. Assim sendo, a razão humana teve de buscar uma base comum para a verdade fora das tradições da fé. Por conseguinte, foi necessário que uma filosofia racional fosse criada: não para desenvolver a verdade existente, não para imbuir-se dela, não para elevar o nível dela, mas, antes de qualquer coisa, para encontrá-la. Ora, na ausência de uma fundação única e firme para a verdade, conseguirá o homem apelar ao pensamento abstrato divorciado da fé? O amor à verdade divina motivou o homem a buscar uma filosofia racional. Se a filosofia racional, desenvolvida à margem da Revelação Divina, acabou seduzindo o homem à descrença, então a maior culpa não recai sobre o Protestantismo, mas sobre os latinos, que, outrora possuindo a verdade e fazendo parte da Igreja, escolheram apartar-se dela.

A Velha Roma estava mais preocupada com a unidade superficial e com o domínio exterior sobre as mentes do que com a verdade interior, procurando preservar o monopólio da interpretação de sua hierarquia; afinal, era impossível agir de outra forma já que o objetivo era evitar a divisão em uma multidão de doutrinas contraditórias. As pessoas não deveriam pensar, nem entender a liturgia, nem ler as Sagradas Escrituras, mas deveriam apenas ouvir sem entender e obedecer sem questionar. Elas eram uma massa inconsciente sobre a qual repousava o edifício da confissão latina, e tinham de permanecer inconscientes para que o edifício se mantivesse intacto. Dessa maneira, qualquer pensamento independente que se originasse sincera e naturalmente no seio da confissão latina era necessariamente encarado como algo em oposição a ela, que, por conseguinte, rejeitava e perseguia praticamente todos os grandes pensadores. Qualquer pequeno desvio que não estivesse de acordo com os conceitos arbitrários da hierarquia era considerado heresia, pois os conceitos da hierarquia, investidos da devida autoridade oficial, penetravam todas as esferas da razão e da vida.

Por outro lado, a Revolução Protestante foi decisiva para o desenvolvimento cultural dos povos oprimidos intelectualmente pela Velha Roma, a mais intolerável das opressões. Seu maior mérito foi restaurar a dignidade do homem, concedendo-lhe o direito de ser racional. No entanto, não havia força suficiente nesse racionalismo para que conseguisse se elevar acima do nível natural e trivial. Desligados da Verdadeira Igreja por causa das relações herdadas da Velha Roma, os povos protestantes não encontraram nada divino à sua volta senão a letra das Escrituras e suas próprias convicções. Em meio à alegria de se libertar da escravidão intelectual, os protestantes negligenciaram a letra deificada das Escrituras: Deus não apenas trouxe à terra uma doutrina, mas também estabeleceu uma Igreja à qual prometeu existência ininterrupta até o fim dos tempos; Ele estabeleceu Sua doutrina dentro desta Igreja, e não fora. Os protestantes só conseguiam enxergar falsidades e erros entre seu próprio tempo e os primeiros séculos cristãos. Eles achavam que, apesar das promessas do Salvador, as portas do inferno prevaleceram sobre a Igreja, e que a Igreja do Cristo já estava morta, restando a eles a tarefa de ressuscitá-la sobre as fundações das Sagradas Escrituras. Porém, as Sagradas Escrituras não foram unanimemente interpretadas, adquirindo significados diferentes de acordo com o gosto de cada protestante. Assim, para que a filosofia protestante encontrasse uma base comum não apenas na razão humana em geral, mas naquela parte da razão acessível a qualquer indivíduo, ela teve de se limitar sobretudo à esfera da razão lógica [dianoética], da qual todas as pessoas estão igualmente habilitadas, a despeito de suas constituições e capacidades interiores. A coordenação de todas as faculdades cognitivas numa força única, a integridade interior essencial para a compreensão de toda a verdade – isto era algo inacessível a todas as pessoas. Somente a razão – a razão lógica [dianoética], relativa, negativa – poderia ser considerada uma autoridade geral; somente ela poderia exigir de cada indivíduo a aceitação absoluta de suas deduções.

É por isso que a filosofia racionalista desenvolveu-se quase que exclusivamente em países protestantes. Pois aquilo que chamamos de filosofia francesa nada mais é do que a filosofia inglesa transladada para a França, quando lá a fé declinou. Embora Descartes seja francês, e embora em meados do século XVII quase todos os pensadores franceses tivessem aderido a esse sistema, no início do século XVIII tal sistema espontaneamente deixou de ser aceito pois tinha pouco a ver com a natureza específica do pensamento francês. A mudança que Malebranche tentou empreender nesse sistema teve ainda menos efeito. Enquanto isso, Descartes praticamente se tornava o pai da filosofia alemã.

A França poderia ter produzido sua própria filosofia positiva se o galicismo de Bossuet não tivesse se limitado às formalidades diplomáticas, mas tivesse se desenvolvido mais amplamente, mais conscientemente, com maior liberdade interior, e tivesse libertado os homens cultos da França da opressão intelectual da Velha Roma antes que tivessem perdido sua fé. Os elementos desta possível filosofia francesa estavam contidos naquilo que a escola de Port-Royal e as opiniões de Fénelon tinham em comum. Embora discordassem quanto aos conceitos oficiais da Velha Roma, uma característica comum a eles era que ambos aspiravam desenvolver a vida interior e a buscar um laço entre razão e fé além da esfera dos conceitos exteriores. Port-Royal e Fénelon receberam esta orientação da mesma fonte, ou seja, naquela parte da filosofia cristã que encontraram nos antigos Padres da Igreja e que não estava contida nos ensinamentos da Velha Roma.

As idéias de Pascal poderiam ter sido um embrião frutífero dessa nova filosofia. Sua obra inacabada [os Pensées] não apenas revelaram novos horizontes para o entendimento da ordem moral do mundo e para a compreensão da relação vital entre Providência Divina e liberdade humana, mas também continha profundas sugestões na direção de diferentes modos de pensar, diferentes tanto do escolasticismo latino quanto da filosofia racionalista. Se as sementes de suas idéias tivessem se unido àquelas que inspiraram Fénelon – quando, em defesa de Guyon, ele citou os ensinamentos dos Padres da Igreja sobre a vida interior – a combinação certamente engendraria uma filosofia nova e original, que poderia pelo menos ter salvado a França da falta de fé e suas conseqüências. É claro que tal filosofia não teria sido a própria verdade, pois estaria fora da Igreja, mas pelo menos teria chegado mais próximo a ela do que qualquer especulação racional. Contudo, as conspirações jesuítas destruíram Port-Royal e seu grupo de pensadores-reclusos. A lógica fria e solene de Bossuet não foi capaz de detectar o que havia de vibrante nos desvios de Fénelon em relação ao pensamento oficial da Velha Roma, e com auto-satisfação [Bossuet] invocou a autoridade do papa para compeli-lo [Fénelon] a renunciar a suas convicções por respeito à infalibilidade papal. Dessa maneira, a filosofia da França foi natimorta, e a sociedade culta francesa, exigindo algum tipo de alívio intelectual, teve de se contentar com o humor áspero de Voltaire e com as leis de uma filosofia estrangeira ainda mais hostil às convicções religiosas francesas. Na Inglaterra, o sistema de Locke ainda poderia ter tentado se reconciliar com a fé, da qual surgiu; mas na França, a filosofia assumiu um caráter destrutivo e, de Condillac a Helvetius, eliminou os últimos vestígios da fé.

Assim, foi impossível às nações cujas vidas intelectuais estavam submissas ao papado que uma filosofia original surgisse. No entanto, enquanto isso, o crescimento do conhecimento exigia do pensamento a capacidade de compreendê-lo e assimilá-lo. Entre a prosperidade da ciência e a fé da Velha Roma havia um abismo do qual os latinos cultos se viram obrigados a vencer com um salto de desespero. Nem sempre a razão humana foi capaz de empreender esse salto, e nem sempre ela esteve de acordo com a consciência dos cristãos sinceros. Assim, a filosofia racionalista, que nascera em países protestantes, espalhou-se também em terras latinas, permeando toda a cultura européia e substituindo a antiga unanimidade da fé pela unanimidade da razão abstrata.

Porém, o pensamento humano não chegou à sua conclusão final de repente. Paulatinamente, ele deixou de lado todos os dados irrelevantes, julgando-os insuficientemente confiáveis para a afirmação básica da verdade original. As nações latinas, cujo perfil histórico procurava combinar a autoconsciência interior com a vida exterior, desenvolveram uma filosofia empírica, sensorial, partindo de observações isoladas até conclusões gerais, deduzindo todas as leis do ser e do pensamento a partir da ordem da natureza exterior. As nações germânicas, cujo perfil histórico separava a vida exterior da interior, desenvolveram o desejo de deduzir leis do ser exterior a partir das próprias leis da razão. No final das contas, ambas as filosofias uniram-se na idéia de que há uma identidade entre razão e ser, desenvolvendo, a partir dessa identidade, a forma de pensamento que abarcou todas as demais filosofias, como degraus isolados de uma escada inacabada que leva ao mesmo lugar.

No entanto, a filosofia contemporânea, assim como a cultura européia contemporânea, acabou por moldar-se ao resultado geral da vida intelectual na Europa Ocidental e, por fim, rompeu com suas raízes. Suas conclusões não têm nada em comum com seu passado, cujo mote não é afirmá-lo, mas destruí-lo. Totalmente independente de seu passado, a filosofia contemporânea deu luz a uma nova era na vida social e intelectual do Ocidente. Ainda é muito difícil prever qual será a verdadeira natureza de seus efeitos na cultura européia, pois sua influência está apenas começando; seus frutos ocultam-se no futuro.

Ademais, é recente o domínio que esse novo sistema tem exercido sobre as convicções filosóficas européias, não nos dando o direito de achar que suas pressuposições fundamentais e seu modo de raciocínio dialético são propriedade exclusiva de nosso tempo. Na história da humanidade, a filosofia contemporânea não é tão nova quanto se supõe. Pode ser nova para a história moderna, mas para a razão humana em geral é algo familiar, e, por conseguinte, as conseqüências futuras de sua supremacia na mente dos homens já estão mais ou menos dadas. Pois o mesmo espírito desse pensamento dominou o mundo culto há muitos séculos antes do nascimento do Cristo. As concepções fundamentais de Aristóteles – não aquelas atribuídas a ele por seus intérpretes medievais, mas aquelas que afloram de sua obra – são idênticas às concepções de Hegel; o pensamento dialético, que em geral supõe-se ser característica exclusiva e descoberta particular de Hegel era, mesmo no tempo de Aristóteles, atributo indubitável da Escola Eleática. Isso é tão óbvio que, quando lemos o Parmênides de Platão, parece que nas palavras do estudante de Heráclito ouvimos o próprio professor de Berlim argumentando que a dialética é a função e o objetivo mesmo da filosofia. Ele enxerga na dialética a força miraculosa que transforma todo pensamento em sua antítese, produzindo daí uma nova definição. Ele cria noções abstratas sobre o ser, o não-ser e o devir, fornecendo o fundamento do processo racional que abarcará todo o ser e o conhecimento. Eis porque a diferença entre os filósofos modernos e os antigos não está no ponto de vista básico da razão, nem no modo de raciocínio supostamente descoberto pelos modernos, mas na abrangência que o desenvolvimento sistemático dos modernos foi capaz de alcançar e na riqueza das aquisições intelectuais que a curiosidade humana foi capaz de acumular nos últimos dois mil anos. Ora, a razão permanece no mesmo nível – e não em um nível superior – e percebe a mesma verdade. Somente os contornos do horizonte estão mais claros, nada mais.

A mentalidade ocidental guarda uma grande proximidade com Aristóteles. A apreciação pelo seu pensamento vem desde o nascimento da cultura da Europa Ocidental. Porém, os escolásticos utilizaram o sistema de Aristóteles apenas enquanto fundação para uma nova verdade. Na Renascença, quando a autoridade ilimitada de Aristóteles estava em declínio, parecia que toda apreciação por ele se perderia para sempre. A Europa celebrou sua libertação de Aristóteles com certo entusiasmo, como um evento grandioso e redentor para a mente humana. Hegel trilhou um caminho diferente, permanecendo fora do sistema de Aristóteles, mas, apesar disso, chegou a um ponto de encontro com ele, tanto em suas conclusões finais quanto na relação da mente com a verdade. Hegel criou outro sistema, mas, de qualquer maneira, o próprio Aristóteles o teria criado caso tivesse nascido em nosso tempo, reduzindo os problemas filosóficos cotidianos a seu ponto de vista. Os discípulos de Hegel, substituindo a terminologia de Aristóteles por sua própria terminologia, reconheceram em seu sistema o reflexo fiel, embora incompleto, do sistema de seu mestre. A voz do mundo moderno seria um eco do mundo antigo.

A filosofia clássica grega não se originou diretamente das crenças religiosas gregas, mas sob sua influência e paralela a elas; ela surgiu a partir da discórdia interior dessas crenças. A discórdia interior da fé leva necessariamente ao raciocínio abstrato. O raciocínio abstrato e a diversidade tangível e ativa dos ensinamentos contraditórios da fé, opondo-se mutuamente, puderam ser reconciliados na mente grega somente na contemplação do belo, e, talvez, no significado oculto dos mistérios. Eis porque o sentido grego do belo situa-se entre a tangibilidade da mitologia grega e o raciocínio abstrato da filosofia grega. Para os gregos, o belo era o foco de toda a vida intelectual. O desvelar do significado do belo, digamos assim, é a própria essência da cultura grega, tanto interior quanto exterior. Mas os limites de seu desenvolvimento estavam contidos na própria natureza do belo: o crescimento de um de seus elementos implicava na destruição de outro. À medida que o raciocínio se desenvolvia, a fé mitológica enfraquecia, e o belo grego se desvaneceu com ela. Pois o belo, assim como a verdade, desaparece na abstração quando se divorcia do essencial. Florescendo sobre as ruínas das crenças [mitológicas], a filosofia as minou e, por fim, destruiu a fonte criativa do desenvolvimento da cultura grega. A filosofia, embora inicialmente fosse uma expressão da cultura grega, ao atingir seu desenvolvimento pleno, tornou-se a contradição da cultura grega. Embora ainda retenha sinais exteriores de mitologia, a filosofia na verdade possui existência independente. Ela nasceu e cresceu a partir de conceitos gregos, mas acabou se tornando, enquanto legado para a humanidade, uma fruta madura apartada de sua raiz natural.

Podemos dizer que a hegemonia das crenças pagãs sobre o pensamento humano chegou ao fim não porque inexistiam pagãos, mas porque a alta cultura se encontrava fora dos limites da fé pagã, transformando a mitologia em alegoria. Somente retardatários culturais (portanto impotentes) puderam continuar pagãos; mas, à medida que se desenvolveram, também caíram sob o domínio da filosofia.

Sob essa perspectiva negativa, no contexto da história humana, a filosofia grega foi útil à educação da mente, libertando-a dos falsos ensinamentos do paganismo e, por meio de seu guiamento intelectual, capaz de levá-la a uma postura neutra na qual pôde aceitar uma verdade superior a si própria. A filosofia preparou o solo para a germinação da semente cristã.

Mas muitos séculos se passaram entre o tempo de Aristóteles e a submissão geral da cultura mundial ao ensinamento cristão, durante os quais muitos e diferentes sistemas filosóficos nutriram, consolaram e perturbaram a razão humana. Poucos sistemas, porém, se caracterizaram por extremismos; em geral, a cultura surgiu a partir daquilo que era comum aos extremos: o meio-termo. Entre o orgulho virtuoso dos estóicos e a filosofia sensual dos epicureanos, entre as alturas sedutoras das soberbas construções mentais da escola neoplatônica e o implacável e insensível ceticismo, situava-se a filosofia de Aristóteles, para a qual as mentes dos homens constantemente retornavam dos desvios extremistas e que atirava armadilhas lógicas de seu sistema imparcial contra as mais enviesadas formas de pensamento. Eis porque podemos dizer que, se no antigo mundo pré-cristão havia diferentes filosofias e seitas mutuamente excludentes, a grande maioria da humanidade culta e o poder intelectual e moral da cultura pertenciam a Aristóteles. Mas qual era precisamente a influência da filosofia de Aristóteles na cultura e na dignidade moral do homem? A solução deste problema é importante, e não só para o passado.

Talvez a melhor e mais breve resposta a esta questão possa ser encontrada no humor intelectual e moral dos séculos nos quais essa filosofia dominou. O cidadão romano da época dos imperadores era um portador vivo dos princípios de sua época. Pois o significado maior de qualquer filosofia não reside nas verdades lógicas e metafísicas individuais, mas na relação que estabelece entre o homem e a verdade que ele busca – no imperativo interior para o qual a mente se volta. Toda filosofia, em seu estágio final de desenvolvimento, produz dois resultados, ou melhor, um resultado com dois aspectos: o produto total do pensamento e o imperativo preponderante que deriva desse produto. Tal verdade última, que dá sustento à mente, denota o tesouro que o homem buscará na ciência e na vida. O resultado final de um sistema filosófico, entre sua verdade primordial e seu objetivo desejado, não é que o pensamento possua uma fórmula específica, mas é apenas, digamos, o espírito do pensamento, seu poder interior, sua música sacra interior que acompanhará as agitações da alma por ele convencida. Esse espírito interior, essa força viva, não é característica exclusiva de filósofos cultos e maduros. Um sistema filosófico pertence ao domínio acadêmico, mas seu poder, seu imperativo maior, diz respeito à vida e à cultura de toda a humanidade.

Porém, é forçoso admitir que a filosofia de Aristóteles, quando agiu de maneira independente e não enquanto sustento de um sistema alheio, exerceu uma influência lamentável na cultura humana, influência esta que foi diametralmente oposta ao de seu primeiro discípulo, o grande conquistador do Oriente [Alexandre, o Grande]. A aspiração pelo melhor dentro dos limites do lugar-comum, pelo razoável no sentido mundano do termo, pelo possível enquanto determinado pela realidade exterior: eis as realizações do tipo de racionalidade sugerida pelo sistema de Aristóteles. Um único discípulo não achou esses ensinamentos do seu agrado; todos os demais os acharam perfeitamente compatíveis. Parece que quanto mais Alexandre aprendia esses ensinamentos, tanto mais desenvolvia suas próprias idéias em antítese a eles – como se estivesse desafiando os conselhos de seu mestre. Pode até ser que sem o estímulo da mediocridade prudente, todos os extremismos de seu gênio imprudente talvez não tivessem se desenvolvido. Mas o restante da humanidade submeteu-se de bom grado às influências da filosofia seca e abstrata de Aristóteles, pois, na ausência de convicções mais elevadas, a tendência ao lugar-comum mundano e prudente tornou-se a característica predominante do mundo moral.

O sistema de Aristóteles acabou com a integridade da autoconsciência intelectual do homem, transferindo a raiz de suas convicções interiores da esfera moral e estética para o pensamento abstrato da racionalidade. O meio pelo qual buscou conhecer a verdade se limitava à atividade lógica do intelecto e à contemplação do mundo exterior. A existência exterior e o aspecto verbal exprimível do pensamento constituíam a única fonte da qual o sistema de Aristóteles extraía o que quer que conseguisse extrair da concatenação lógica de conceitos, e, é forçoso admitir, conseguiu extrair tudo o que poderia ter sido extraído à época. Na visão de Aristóteles, a realidade é a personificação completa da razão suprema. Toda discórdia no mundo físico e moral é apenas imaginária, e não apenas se desvanecia na harmonia total como, na verdade, provia os tons fundamentais deste diapasão em eterna mutação. Em sua opinião, o mundo nunca foi nem jamais será melhor. Ele sempre foi suficientemente belo, pois nunca teve começo e nem terá fim. Ele permanecerá eternamente íntegro e imutável em sua totalidade à medida que muda e destrói suas partes. Todavia, Aristóteles concebeu este mundo íntegro e satisfatório em um sistema frio de unidade abstrata. Ele julgou que o maior bem estava no pensamento, pois somente o pensamento seria capaz de abranger essa unidade por meio da diversidade dos fenômenos individuais, aliado a uma vida exterior de contentamento e tranqüilidade, isto é, de conforto físico e intelectual.

Aristóteles afirmava que somente quando as necessidades mundanas do homem fossem satisfeitas ele começaria a amar a sabedoria, enquanto os estóicos estavam convencidos de que somente a sabedoria poderia livrar o homem das necessidades e fardos mundanos. Na opinião de Aristóteles, a virtude não exige as esferas mais elevadas da existência, mas consiste em encontrar o caminho benigno do meio entre extremos malignos. A virtude derivaria de duas fontes: das deduções abstratas da mente (que, sendo abstratas, não conferem qualquer força ao espírito nem possuem força compulsória essencial) e do hábito (que é produto parte do desejo abstrato em reconciliar a vontade com os ditames da razão e parte da natureza acidental das circunstâncias exteriores).

Obviamente, este padrão de pensamento até poderá produzir pessoas muito inteligentes, mas produzirá sempre homens de ação extremamente insignificantes. Em verdade, a filosofia de Aristóteles tem um efeito destrutivo na dignidade moral do homem. Ao sabotar as convicções que se situam acima do nível seco e abstrato da lógica, a filosofia de Aristóteles destruiu as motivações capazes de erguer o homem acima de seus interesses pessoais. O espírito da ética declinou e a mola-mestra da originalidade interior enfraqueceu. O homem tornou-se uma ferramenta obediente das circunstâncias vigentes, tornou-se o resultado deliberado e incontornável das forças exteriores, tornou-se matéria inteligente a serviço de motivos mundanos: vantagem pessoal e temor. Os poucos exemplos de virtude estóica são exceções raras e gritantes ao quadro geral, que reforçam a ausência geral de independência interior. Pois o estoicismo pôde surgir somente enquanto contraste intenso, protesto depressivo e consolo desesperado de uns poucos em face à patifaria de muitos. Todavia, mesmo os pensadores que não seguiram apenas Aristóteles e nem estudaram somente seu sistema acabaram introduzindo os resultados de seu ensinamento no entendimento que fizeram de outros filósofos. Assim, Cícero, no dilema entre a ruína de sua terra natal e sua própria segurança pessoal, buscou a justificativa de sua pusilanimidade em Platão. Porém, ele só viu em Platão aquilo que estava de acordo com Aristóteles. Assim, ele consolou-se com o pensamento de que Platão não aconselhava resistir inutilmente à força e às intervenções de um povo senil. A insignificância moral estava estampada na cara de todos, e se, nos tempos dos Césares, com o total declínio da dignidade interior humana, a cultura exterior tivesse se desenvolvido ainda mais, se tivesse existido ferrovias e telégrafos e peksany [um tipo de artilharia] e todas as demais invenções que hoje sujeitam o mundo aos cálculos frios e cruéis, seria difícil dizer o que teria acontecido com a pobre humanidade.

Tal foi a influência da filosofia antiga, sobretudo a filosofia aristotélica, na natureza humana. Não havia salvação para o homem na terra. Só Deus poderia salvá-lo.

Porém, o Cristianismo não rejeitou totalmente a filosofia antiga, embora tenha alterado o espírito do mundo antigo e ressuscitado a dignidade perdida da natureza humana. Pois a falsidade da filosofia não reside no desenvolvimento da mente, mas em suas conclusões finais, que se sustentam sobre a crença de que a filosofia é a mais elevada das verdades. Tais conclusões foram prontamente eliminadas assim que a faculdade noética reconheceu uma verdade superior. No Cristianismo, a filosofia assumiu a posição de verdade relativa, inferior.

Embora engajado numa luta de vida ou morte contra a mitologia pagã, o Cristianismo não destruiu a filosofia pagã, mas a transformou de acordo com seu próprio conhecimento superior. Os maiores luminares da Igreja – Justino, Clemente, Orígenes (à medida que era ortodoxo), Atanásio, Basílio, Gregório e a maioria dos grandes Santos Padre cujas obras estabeleceram a doutrina cristã em meio a uma cultura pagã – não apenas eram profundamente versados em filosofia antiga, mas a utilizaram para a construção racional da primeira gnosiologia cristã, que combinava o desenvolvimento da ciência e da razão em uma visão ampla da fé. A parte verdadeira da filosofia pagã, impregnada pelo espírito cristão, era uma intermediária entre a fé e a cultura exterior humana. O estudo aprofundado dos filósofos gregos era um legado comum a todos os professores da Igreja não apenas quando o Cristianismo combatia o paganismo, mas no período subseqüente do Império Romano do Oriente. Pois Platão e Aristóteles eram úteis à cultura cristã somente enquanto grandes pensadores; eles não eram mais uma ameaça dado que a verdade cristã ocupava o ápice da cultura. Pois não devemos nos esquecer que o Cristianismo jamais admitiu que o paganismo fosse superior, mas, permeando-o, aproveitou-se da atividade intelectual do mundo passado e presente.

A única coisa que ameaçava o povo cristão de se desviar da verdadeira doutrina era a ignorância. O crescimento do conhecimento racional, sem dúvida, não serve para a salvação, mas pelo menos guarda contra o falso conhecimento. É verdade que quando a mente e o coração estão permeados pela verdade divina, o grau de conhecimento se torna irrelevante. Também é verdade que a consciência do divino é igualmente compatível com todos os estágios de desenvolvimento racional. No entanto, para que a verdade divina permeie, vivifique e guie a vida intelectual do homem, é necessário que ela subordine a razão exterior a si própria e a domine, e que não permaneça fora de sua esfera de ação. A verdade divina deve estar acima das demais verdades na consciência geral, enquanto princípio soberano que permeia toda a cultura. Pois toda verdade divina deve ser apoiada pela sociedade culta. A ignorância, portanto, aparta os homens do intercâmbio intelectual por meio do qual a verdade é sustentada, promovida e ampliada. Uma mente ignorante, mesmo que esteja acompanhada das mais corretas convicções espirituais, dá margem ao zelo irracional, do qual surgem os desvios da mente e do coração.

Foi o caso do Ocidente antes de sua deserção. A ignorância do povo expôs sua vida intelectual às influências irresistíveis das reminiscências do paganismo, que, por sua vez, lhes contaminou com a natureza racionalista da lógica superficial e abstrata da Velha Roma; tal desvio, por sua vez, os compeliu a buscar unidade superficial ao invés de unidade espiritual. A ignorância os seduziu ao zelo excessivo contra o arianismo, de maneira que, insatisfeitos com a simples rejeição da heresia, criaram um novo dogma teológico da Divindade [o Filioque] em oposição direta aos arianos mas sob influência do pensamento lógico superficial – um dogma que consideraram verdadeiro somente porque estava em oposição direta a uma heresia, esquecendo-se de que a oposição direta a um erro em geral não é a verdade, mas apenas o outro extremo do mesmo erro. Assim, a ignorância dos povos ocidentais os levou a lutar pela unidade da Igreja se divorciando dela e a lutar pela ortodoxia rompendo com ela.

É claro que não foi somente a ignorância que fez o Ocidente se separar da Igreja. A ignorância é apenas uma infelicidade. A humanidade jamais teria se apartado da verdade salvífica sem culpa moral. Mas a possibilidade e a base desta culpa residem na ignorância; sem ela, mesmo o amor dos papas pelo poder não teria sido bem sucedido. Foi somente por causa da combinação do amor papal pelo poder com a ignorância do povo que foi possível aprovar o acréscimo ilegal ao Símbolo da Fé; este triunfo inicial do racionalismo sobre a fé, juntamente com o reconhecimento ilegal da supremacia dos papas, é o obstáculo permanente do retorno do Ocidente à Igreja. Porém, ao se apartar, a confissão latina desceu ladeira abaixo em direção a todos os desvios que continuamente aumentam sua alienação da verdade e que produzem as características destrutivas da cultura ocidental, com todas as conseqüências para si próprios – e para nós. Digo “para nós” porque o destino da humanidade encontra-se em estado de reciprocidade viva e solidária, nem sempre perceptível embora real. A deserção da Velha Roma privou o Ocidente da pureza da doutrina cristã e, ao mesmo tempo, paralisou o desenvolvimento cultural no Oriente. O que era para ser realizado pelos esforços conjuntos de Oriente e Ocidente estava agora acima do poder do Oriente, que foi, assim, condenado a somente preservar a verdade divina em sua pureza e santidade, sem poder incorporá-la à cultura exterior das nações.

Quem sabe? Talvez esta impotência exterior do Oriente estivesse destinada a continuar até que outro povo, uma nação iluminada pelo verdadeiro Cristianismo, crescesse e amadurecesse no lugar da decadente Velha Roma, justamente quando o Ocidente se separava do Oriente. Talvez essa nação estivesse destinada a alcançar a maturidade intelectual justamente quando a civilização ocidental destruísse o poder da heterodoxia e passasse de falsas convicções cristãs a convicções filosóficas indiferentes, devolvendo o mundo ao pensamento pré-cristão. Pois a heterodoxia cristã é menos capaz de receber a verdade do que uma doutrina na qual as convicções cristãs estejam totalmente ausentes. Neste caso, haveria pelo menos a possibilidade exterior de que o verdadeiro Cristianismo ganhasse supremacia sobre a cultura humana. Pois não dúvida de que todas as ações e empreitadas das nações estão sujeitas à corrente invisível, quase inaudível e frequentemente imperceptível da ordem moral das coisas, que arrebata todas as atividades gerais e particulares. Mas esta ordem das coisas consiste numa orquestração de vontades pessoais. Há momentos, há situações, em que o estado de coisas está, digamos, em equilíbrio, e um simples movimento da vontade pode determinar sua direção.

O Ocidente passou por tal situação quando estava para desertar. Pois, embora a ignorância popular contribuísse bastante para as ações dos papas, não havia dúvida de que a vontade firme e decisiva de um deles poderia, na época, ter superado o erro do povo e preservado a verdade no Ocidente. Houve tal momento fatal, o momento no qual o Senhor depositou a sorte de todo o mundo nas mãos de uma única pessoa. Se ele tivesse sido firme na verdade, o mundo teria sido poupado de séculos de erros e infelicidades. Povos teriam se desenvolvido em comunhão solidária de fé e razão, destruindo em conjunto as reminiscências pagãs na mente do homem e na vida da sociedade. O Oriente teria fornecido ao Ocidente a luz e a força da cultura intelectual, o Ocidente teria compartilhado com o Oriente o desenvolvimento da vida pública; e por toda a parte a cultura teria se estabelecido sobre a rocha firme da Revelação Divina. As melhores forças espirituais não teriam sido desperdiçadas em levantes inúteis, onde o novo mal da destruição demole o velho mal da falsa construção. A flor da virilidade das nações não teria perecido por causa das incursões mortais dos bárbaros ou da opressão incontrolada da violência pagã interior, que continuavam a triunfar sobre a cultura dos povos cristãos. A vida social, desenvolvendo-se harmoniosamente, não teria destruído as aquisições prévias a cada novo sucesso nem teria buscado a arca da salvação nos cálculos mundanos da indústria ou nos edifícios deslumbrados das utopias. A civilização universal não reside em sonhos ou opiniões, mas na própria verdade, que a afirma harmoniosa e constantemente. Tudo isso dependia de um único momento e, talvez, de um único homem. Mas esse homem não se manteve firme, e a cultura ocidental, privada da solidariedade com a Igreja Universal, dedicou-se a objetivos mundanos. A Igreja no Oriente, incapacitada pela violência do paganismo que ainda predominava e privada do auxílio de seus irmãos ocidentais, buscou refúgio no mosteiro.

Casualmente, parece que houve ainda outro momento, no século XVI, quando o mundo ocidental também poderia ter retornado. As obras dos Santos Padres, trazidas da Grécia após sua queda, abriram os olhos de muitos europeus, mostrando-lhes a diferença entre a doutrina cristã e a doutrina da Velha Roma. Enquanto isso, os abusos dos latinos alcançaram proporções tão grandes que as pessoas começaram a se convencer da necessidade de reformar aquilo que achavam que era a Igreja. Mas como empreender esta reforma? Eis algo que ninguém estava apto a decidir.

“Estou a estudar os decretos papais”, escreveu Lutero a Melanchton, “e estou encontrando tantas contradições e falsidades que está além das minhas forças acreditar que foram inspiradas pelo Espírito Santo e que deveríamos basear nossa fé nelas. Depois, vou ocupar-me dos Concílios Ecumênicos e verificar se o ensinamento da Igreja não deveria se basear neles, juntamente com as Sagradas Escrituras (deixando de lado os decretos papais)”.

Se Lutero tivesse se lembrado de que a outra metade do mundo cristão reconhecia sete Concílios Ecumênicos, e não dezesseis, e que era inocente dos abusos latinos que agitavam sua alma com justa indignação, então, talvez, ao invés de criar uma nova confissão de acordo com suas noções pessoais, ele teria se voltado à Igreja Universal. Ele ainda estava em condições de fazê-lo, uma vez que as convicções das nações germânicas ainda não as haviam levado a uma decisão final, exceto quanto ao ódio ao papa e ao desejo de escapar do jugo arbitrário da Velha Roma. Todas as nações que tinham se levantado o seguiriam, e o Ocidente estaria novamente em união com a Igreja, sobretudo porque os resquícios do movimento hussita foram uma das mais importantes causas do sucesso de Lutero, e o movimento hussita, como se sabe, estava repleto de reminiscências e recordações da Igreja Ortodoxa [por exemplo, os hussitas não usavam o Filioque no Credo]. Porém, Lutero recusou-se a se lembrar da Igreja Ortodoxa, e estudou não apenas os sete Concílios, mas todos os que os latinos chamavam de “Ecumênicos”. Como resultado desse estudo, Lutero escreveu a Melanchton: “Tenho estudado as resoluções dos Concílios. Eles também se contradizem, assim como os decretos papais. É óbvio que não temos escolha senão basearmos nossa fé somente nas Sagradas Escrituras”. Assim estava, portanto, delineada a Revolução Protestante; seu destino estava selado por um mal-entendido; se proposital ou inconsciente, só Deus sabe. No século XVII, quando os protestantes enviaram aos patriarcas orientais suas investigações e questionamentos sobre a fé, era tarde demais. A opinião protestante já estava suficientemente solidificada e inflamada com o calor de suas novas convicções e esperanças.

Não estamos nos desviando do assunto ao mencionar as relações entre as crenças de todo um povo e a natureza acidental da arbitrariedade moral de indivíduos particulares. Pelo contrário, obteríamos uma falsa impressão de desenvolvimento do pensamento humano se o separássemos da influência do acaso moral e histórico. Não há nada mais fácil do que representar cada fato da realidade como se fosse o resultado inevitável de leis de necessidade racional, mas nada distorceria mais o entendimento real da história do que tais leis de necessidade racional, que são, em verdade, apenas leis de possibilidade racional. Tudo tem sua medida e seu lugar. É claro que todo momento histórico é conseqüência direta do momento precedente e, por sua vez, dá luz ao momento seguinte. Mas uma das forças elementares destes momentos é o livre arbítrio humano. Não reconhecer este fato significa enganar-se propositalmente e substituir o conhecimento real da verdade viva pela simetria aparente do conceito.

Estes dois momentos na vida da Europa Ocidental – quando ela poderia ter se reunido com a Igreja mas não o fez por causa de ações acidentais da vontade humana – deixam claro que a cultura da Europa Ocidental, embora completamente diferente da cultura ortodoxa, não está, todavia, tão distante assim quanto parece. Em sua própria essência reside a necessidade de períodos distintos de desenvolvimento, nos quais a cultura esteve livre de influências pregressas e, portanto, capaz de escolher entre distintos cursos de ação.

Porém, se no início da Revolução Protestante havia duas soluções possíveis, após seu desenvolvimento não havia alternativa senão seguir o curso adotado. Construir o edifício da fé de acordo com opiniões pessoais é o mesmo que construir uma torre de acordo com as opiniões de cada operário. O que era comum aos fiéis protestantes eram apenas algumas crenças sustentadas pelos seus primeiros líderes: a leitura literal das Sagradas Escrituras e a razão natural, sobre as quais a doutrina da fé deveria ser edificada. Hoje em dia, dificilmente conseguiríamos encontrar pastores luteranos que concordem com a Confissão de Augsburgo, embora todos tenham prometido aceitá-la como sua base doutrinal. A razão natural, sobre a qual o Protestantismo fundou-se, se livrou da fé do povo. Conceitos filosóficos paulatinamente substituíram, e ainda estão substituindo, conceitos religiosos. Passando primeiramente por um período de descrença vacilante, e depois por um período de descrença fanática, o pensamento humano atingiu, por fim, a descrença indiferente e, junto com ela, a consciência de sua esterilidade interior e da necessidade de buscar uma convicção viva, algo que de fato una os homens não por meio de acordos frios sobre convicções abstratas, nem por meio de vínculos superficiais de vantagens mundanas, mas por meio de uma afinidade existencial íntegra, impregnada por um só amor, uma só razão e uma só aspiração.

Mas, afinal, onde o Ocidente conseguiria encontrar essas convicções vivas? Retornar ao que outrora acreditou é impossível. Conversões forçadas e fé artificial são como aqueles amantes de teatro que tentam se convencer de que os palcos são a própria realidade.

O homem destruiu a integridade do espírito e entregou a mais elevada consciência da verdade aos cuidados do pensamento lógico [dianoético], perdendo nas profundezas de sua autoconsciência todas as conexões com a realidade, transmutando-se, assim, em um ser abstrato, um espectador de teatro, capaz de ter afinidade, amor e aspiração por todas as coisas, contanto que esteja livre da ansiedade e do sofrimento físico. Pois a única coisa que a abstração lógica não lhe permitiu foi repudiar seu ser físico. Por conseguinte, não apenas a fé se perdeu no Ocidente, mas também a poesia, que, na ausência de convicções vivas, tornou-se um divertimento estéril; e quanto mais a poesia perseguiu o prazer imaginado, tanto mais tediosa se tornou.

Somente uma coisa séria restou ao homem: a indústria. Para o homem, a realidade da existência sobreviveu apenas em sua pessoa física. A indústria governa o mundo sem fé ou poesia. Em nossa era, a indústria une e divide povos. Ela define classes, reside na base das estruturas estatais, move nações, declara guerra, faz a paz, muda costumes, dá direção à ciência e determina o perfil da cultura. Os homens prostram-se diante dela e erguem templos em seu nome. A indústria é a divindade real na qual o povo crê com sinceridade e a quem se submete. A atividade altruísta tornou-se algo inconcebível. A indústria adquiriu a mesma importância no mundo contemporâneo que a cavalaria tinha nos tempos de Cervantes.

Ocorre que ainda não chegamos a testemunhar tudo. Pode-se dizer que estamos apenas no começo do domínio ilimitado da indústria e da recente fase da filosofia. Andando de mãos dadas, elas ainda determinarão o curso do desenvolvimento moderno da vida européia. É difícil conceber como será a cultura européia se alguma mudança interior não ocorrer entre os povos europeus. É óbvio que essa transformação consiste em uma mudança nas convicções básicas, em outras palavras, em uma mudança no espírito e na orientação da filosofia, pois essa transformação hoje constitui todo o foco da autoconsciência humana.

Conforme pudemos verificar, a natureza da filosofia dominante depende da natureza da fé dominante. A filosofia pode até não derivar-se diretamente da fé; ela pode até mesmo estar em contradição com a fé; mas, apesar disso, a filosofia nasce da orientação peculiar da mente fornecida pela natureza peculiar da fé. A mesma inteligência com a qual o homem entendeu o Divino também lhe servirá para entender a verdade em geral.

Sob influência da confissão latina, o intelecto encontrou expressão na racionalidade lógica que, porém, agia apenas esporadicamente; faltava-lhe a capacidade de criar sua própria unidade, pois a integridade de sua atividade foi destruída pela intervenção da autoridade exterior. Sob influência das confissões protestantes, a racionalidade alcançou pleno desenvolvimento, e, julgando-se superior em seu desenvolvimento, chamou-se a si mesma de “razão” (die Vernuft), em contraste à sua antiga atividade fragmentária, à qual deixou de herança o termo “entendimento” (der Verstand).

Quanto a nós, que vivemos fora das esferas de influência latina e protestante, nenhuma destes modos de pensamento é completamente satisfatório. Embora nos submetamos à cultura ocidental – pois ainda não temos a nossa própria cultura – nos submetemos a ela somente à medida que estamos inconscientes de sua unilateralidade.

Na Igreja, a relação entre razão e fé é completamente diferente em relação às confissões latina e protestante. A diferença é esta: na Igreja, a Revelação e o pensamento humano não se confundem. Os limites entre o divino e o humano não são transgredidos nem pela ciência e nem pela doutrina da Igreja. Os limites se mantêm firmes e invioláveis. Nenhum patriarca, nenhum sínodo de bispos, nenhuma investigação acadêmica, nenhuma autoridade, nenhum impulso da chamada “opinião pública”, em qualquer tempo, poderá adicionar ou alterar um dogma, ou atribuir-lhe autoridade de Revelação Divina – ou seja, atribuir às explicações da razão humana o status de doutrina da Igreja ou projetar a autoridade das verdades eternas e imutáveis da Revelação no âmbito do conhecimento sistemático, pois este está sempre sujeito ao desenvolvimento, à mudança, ao erro e à consciência de cada indivíduo. Qualquer passo que a doutrina da Igreja dê além dos limites da Santa Tradição deixa o âmbito da autoridade e entra no âmbito da opinião privada – por mais respeitável que seja, mas, ainda assim, sujeita ao veredicto da razão. Não importa de quem seja a nova opinião: se não for reconhecida pelas épocas passadas – mesmo que todas as pessoas pensem assim ou a maior parte dos cristãos de uma determinada época -, se tentar se passar por dogma da Igreja, por causa disso mesmo, excluir-se-á da Igreja. Pois a Igreja não limita sua autoconsciência a uma época específica, por mais que esta época se considere mais racional do que as demais. A soma total de todos os cristãos, de todos os séculos, presente e passado, consiste em uma assembléia una, indivisível, eterna e viva, conservada tanto pela unidade de consciência quanto pela comunhão em oração.

A inviolabilidade dos limites da Revelação Divina é uma garantia de pureza e firmeza de fé na Igreja. Por um lado, a Igreja guarda sua doutrina contra as reinterpretações incorretas da razão natural e, por outro, guarda contra a intervenção ilegítima da autoridade eclesiástica. Por conseguinte, o cristão ortodoxo jamais compreenderá como foi possível queimar Galileu [Kireyevsky aparentemente confundiu Giordano Bruno com Galileu] só porque ele sustentou opiniões divergentes das opiniões da hierarquia latina, e como foi possível rejeitar a credibilidade de uma epístola apostólica por não estar de acordo com noções de alguém ou alguma época [Kireyevsky refere-se ao fato de Lutero ter rejeitado a Epístola do Apóstolo Tiago].

Porém, quanto mais claro e firme forem os limites da Revelação Divina, tanto mais forte será a urgência da noesis em reconciliar o conceito da razão com a doutrina da fé. Pois a verdade é una, e esforçar-se pela consciência desta unidade é lei constante e estímulo básico da atividade racional.

Quanto mais livre e sincera for a razão do fiel em suas atividades naturais, tanto mais ampla e corretamente aspirará à verdade divina. Pois para o cristão ortodoxo culto a doutrina da Igreja não é um espelho vazio que reflete as características de cada personalidade; não é uma cama de Procrustes, que deforma as personalidades vivas de acordo com um padrão arbitrário; é, isso sim, o ideal mais elevado ao qual a razão poderia aspirar, o limite último do mais elevado dos pensamentos, a estrela-guia que brilha no Alto e, refletida no coração, ilumina para a razão o caminho da verdade.

No entanto, para fazer a fé e a razão entrarem em acordo, não basta que o cristão ortodoxo molde os conceitos racionais de acordo com os ditames da fé, selecionando os apropriados e excluindo os ofensivos, e, assim, libertando a razão de tudo aquilo que contradiz a fé. Se o pensamento ortodoxo consistisse nessa abordagem negativa da fé, o resultado seria o mesmo que o observado no Ocidente. Os conceitos irreconciliáveis com a fé que derivassem da mesma fonte e da mesma maneira que os conceitos compatíveis com ela teriam o mesmo direito ao reconhecimento. Por conseguinte, a mesma dicotomia surgiria na base da autoconsciência e, cedo ou tarde, inevitavelmente desviaria o pensamento da fé.

Todavia, a principal diferença do pensamento ortodoxo é precisamente esta: ele não busca classificar os conceitos de acordo com as exigências da fé, mas procura elevar a própria razão acima de seu nível comum [isto é, elevá-la do pensamento dianoético para o noético], esforçando-se assim em elevar a própria fonte da razão, a própria maneira de pensar racionalmente, para que se torne afim com a fé.

A primeira condição para a elevação da razão é que o homem se esforce para reunir suas faculdades isoladas em um todo indivisível, pois tais faculdades, em condições normais, encontram-se dispersas e em contradição; que entenda que sua faculdade lógica [dianoética] abstrata não é o único órgão capaz de compreender a verdade; que desconsidere a voz do sentimento embevecido, descoordenada das demais forças do espírito, como um guia infalível para a verdade; que não considere as sugestões isoladas do senso estético, independentes das demais faculdades, como um guia legítimo para a compreensão da organização suprema do universo; que não considere o amor dominante de seu coração, separado das demais exigências do espírito, como um guia infalível para a realização do bem supremo; mas que ele busque constantemente, nas profundezas de sua alma, a raiz interior do entendimento, onde todas as faculdades separadas se consolidem em uma visão íntegra e viva da mente.

Para que a mente, nessa união das faculdades espirituais, compreenda a verdade, ela não deve diluir o pensamento que se lhe apresentar em uma seqüência de julgamentos separados por cada faculdade individual, na tentativa de coordenar seus julgamentos em um significado comum. Mas quando a visão íntegra da mente se comunica com os movimentos da alma, seus esforços serão ouvidos em um único acorde, combinados num som único e harmonioso.

A consciência interior, que engendra nas profundezas da alma as forças-vitais das faculdades isoladas, encontra-se oculta no estado normal do espírito humano, mas passa a ser acessível à pessoa que a busca e é digna de alcançar a verdade mais elevada. Tal consciência eleva constantemente o próprio modo de pensar e, enquanto confere humildade à arrogância da razão, não restringe a liberdade de suas leis naturais. Na verdade, é justamente o contrário: a consciência interior fortalece a independência da razão e, ao mesmo tempo, a subordina voluntariamente à fé. Assim, o homem observa todo pensamento que emana da racionalidade e julga-o incompleto e, portanto, conhecimento errôneo, pois este conhecimento não poderá servir enquanto expressão da verdade mais elevada, embora possa ser útil em sua posição subordinada e, às vezes, possa ser um passo necessário a outro conhecimento que se situe num nível também inferior.

É por isso que o livre desenvolvimento das leis naturais da razão não é danoso à fé do cristão ortodoxo culto. Ele pode se contaminar pela descrença, mas somente se a cultura exterior vigente for inadequada. Ele não chegará à descrença por meio do desenvolvimento natural da razão, como as pessoas cultas das outras confissões chegam. Suas noções básicas sobre fé e razão o guardam contra essa infelicidade. Para o homem cristão ortodoxo, fé não é uma noção cega que está em estado de fé somente porque ela não se desenvolveu pela razão natural, e precisa ser elevada pela razão ao nível da racionalidade e quebrada em suas partes constituintes como evidência de que não há nada nela que necessite do auxílio da Revelação Divina na razão natural. A fé também não é uma autoridade exterior, diante da qual a razão natural está fadada à cegueira. A fé é, isso sim, uma autoridade simultaneamente exterior e interior; é a sabedoria máxima e vivificante da mente. O desenvolvimento da razão natural serve à fé somente como uma série de passos que, se dados além do estado normal da mente, informará à razão que fugiu de sua integridade natural original, instruindo-a, assim, a retornar a seu nível de atividade. Pois o fiel ortodoxo sabe que a integridade da verdade exige a integridade da razão, e a busca por esta integridade é sua constante preocupação.

De posse dessa convicção, toda a cadeia de princípios básicos da razão natural [dianoia], que pode servir como ponto de partida a todos os sistemas de pensamento, está abaixo da razão noética [noesis], assim como na natureza toda a cadeia de vida orgânica está abaixo do homem, pois ele é capaz de consciência interior de Deus e oração em todos os níveis de desenvolvimento. O fiel ortodoxo, situando-se neste nível mais alto de pensamento [noético], pode facilmente e sem danos compreender todos os sistemas de pensamento que derivem dos níveis inferiores da razão; ele é capaz de ver suas limitações e suas veracidades relativas. Porém, do ponto de vista do modo inferior de pensamento, o modo superior lhe é incompreensível e absurdo.

Essa independência do pensamento básico do fiel ortodoxo em relação aos sistemas inferiores que poderiam influenciar sua mente não é posse exclusiva de teólogos cultos, mas está, digamos, no próprio ar da Ortodoxia. Não importa o grau de subdesenvolvimento das faculdades racionais do fiel: todo ortodoxo está ciente, nas profundezas de sua alma, que a verdade divina não pode ser abarcada por considerações racionais, mas exige uma visão espiritual superior adquirida por meio da existência interior, e não da erudição exterior. É por isso que o ortodoxo busca a verdadeira contemplação de Deus – pois é assim que conseguirá encontrar uma vida íntegra e pura que, por sua vez, conferirá integridade à razão - e não um local onde somente o estudo acadêmico é exaltado. É por isso que é muito raro encontrar um ortodoxo que tenha perdido sua fé em função de argumentos lógicos. Na maioria dos casos, o fiel é seduzido, e não convencido, pela descrença. Ele perde a fé não por causa de tramas intelectuais, mas por causa das tentações da vida; ele criará considerações racionalistas somente para justificar a si próprio a apostasia de seu coração. Mais tarde, sua descrença se fortalecerá por meio de algum sistema racional que acabará substituindo sua antiga fé, de maneira que é muito difícil que retorne à fé sem antes remover os obstáculos da razão. No entanto, crendo com o coração, o raciocínio lógico lhe será inofensivo. Para o fiel não há pensamento que esteja divorciado da memória da integridade interior da mente, do ponto de concentração da autoconsciência, que é o verdadeiro locus da verdade suprema, e onde não apenas o raciocínio abstrato, mas a soma total das faculdades intelectuais e espirituais do homem imprime de maneira consolidada a credibilidade do pensamento que confronta a razão – assim como no Monte Athos cada mosteiro possui apenas uma parte do selo que, quando todas as partes estiverem reunidas no concílio geral das representações monásticas, constituirá o selo único e legítimo da Santa Montanha.

Portanto, há sempre duas atividades combinadas no pensamento do fiel ortodoxo. À medida que seu entendimento se desenvolver, ele estará atento ao próprio modo de seu pensamento, esforçando-se constantemente em elevar a razão ao nível em que passe a ter afinidade com a fé. A consciência interior, ou às vezes apenas uma vaga percepção deste limite último que está sendo buscado, estará presente em cada esforço de sua razão, em cada suspiro de seu pensamento; e se for possível o desenvolvimento de uma cultura original ortodoxa, é óbvio que esta relação especial entre fé e razão no pensamento deverá determinar sua orientação predominante. Somente este pensamento poderá libertar a vida intelectual ortodoxa das influências estranhas e da opressão sufocante da ignorância, ambas igualmente odiosas à cultura ortodoxa. Pois o desenvolvimento de um pensamento que dê sentido à vida intelectual, ou seja, o desenvolvimento de uma filosofia, será determinado pela união de dois objetivos opostos: um está ligado às questões mais elevadas da fé, e o outro está ligado ao desenvolvimento das ciências e da cultura exterior.

A filosofia não é uma dessas ciências, muito menos a fé. A filosofia é a soma total e a base comum de todas as ciências, bem como o condutor do pensamento entre as ciências e a fé. Onde há fé mas não há desenvolvimento do aprendizado racional, a filosofia não pode existir. Onde a ciência e o aprendizado se desenvolveram mas não há fé ou onde a fé desapareceu, as convicções filosóficas substituem as convicções da fé enquanto preconceitos, dando direção ao pensamento e à vida do povo. Nem todas as pessoas que compartilham de determinadas convicções filosóficas de fato estudaram os sistemas dos quais derivam, mas todas aceitam as conclusões finais desses sistemas com fé, digamos assim, de que todos estão corretos em suas convicções. Apoiando-se em tais preconceitos mentais por um lado, e estimulada pelos problemas do aprendizado contemporâneo por outro, a razão humana engendra novos sistemas filosóficos correspondentes às relações mútuas entre os preconceitos estabelecidos e a cultura contemporânea.

Mas onde quer que a fé de um povo tenha um significado e uma orientação e o aprendizado emprestado de outro povo tenha um significado diferente e uma orientação diferente, uma destas duas coisas ocorrerá: ou o aprendizado expulsará a fé, engendrando convicções filosóficas apropriadas, ou a fé, superando este aprendizado exterior na consciência pensante do povo, produzirá sua própria filosofia em contato com ele, o que engendrará um significado diferente para o aprendizado exterior, conferindo-lhe um princípio dominante diferente.

A última situação ocorreu quando o Cristianismo surgiu no seio da cultura pagã. Não apenas a ciência mas a filosofia pagã foram transformadas em instrumento da cultura cristã e incorporadas no corpo da filosofia cristã enquanto princípio subordinado.

À medida que a cultura exterior continuou a existir no Oriente, a filosofia cristã ortodoxa floresceu. Ela foi extinta quando a liberdade morreu na Grécia e a cultura grega foi destruída. Mas traços foram preservados nas obras dos Santos Padres como faíscas prontas a irromper ao primeiro contato com o pensamento noético e, novamente, inflamar o farol da razão em busca da verdade.

No entanto, restaurar a filosofia dos Santos Padres exatamente como era em seu tempo é impossível. Engendrada a partir da relação da fé com a cultura de seu tempo, a filosofia dos Santos Padres correspondia aos problemas e à cultura na qual se desenvolveu. O desenvolvimento de novos aspectos de conhecimento sistemático e social também exige, correspondentemente, um novo desenvolvimento filosófico. Mas as verdades expressas nas obras especulativas dos Santos Padres podem servir como embriões e estrelas-guia para o desenvolvimento de uma nova filosofia.

Equilibrar essas verdades preciosas e vivificantes com o estado atual da filosofia; imbuir-se de seu significado tanto quanto possível; levar em consideração todas as questões da cultura contemporânea em relação a elas, isto é, todas as verdades lógicas adquiridas pela ciência e todos os frutos das experiências milenares da razão adquiridas em suas diversas atividades; derivar conclusões gerais a partir das considerações correspondentes às exigências atuais da cultura – eis um problema cuja solução pode alterar toda a orientação da cultura de um povo onde as crenças da fé ortodoxa estejam em desacordo com a cultura emprestada.

A solução satisfatória deste problema exige a ação coordenada de pessoas com idéias afins. A filosofia que não deseje permanecer no nível puramente acadêmico, sem influência, mas deseje tornar-se convicção viva entre as pessoas, deve desenvolver-se a partir da interação vigorosa das convicções que se esforçam pelo mesmo objetivo, em unidade de propósito. Pois tudo o que é essencial na alma do homem é resultado de forças sociais. As convicções pessoais não devem interagir com os problemas culturais à sua volta em teoria, mas na realidade. Pois são somente a partir de relações reais com a realidade que os pensamentos que iluminam a mente e aquecem o coração são despertados.

Mesmo assim, para que entendamos qual a relação que a filosofia dos antigos Padres da Igreja deve ter com a cultura contemporânea, não basta aplicá-la às exigências de nosso tempo. Devemos ter em mente suas ligações com a cultura de seu próprio tempo, de maneira que possamos distinguir o que nela é essencial do que é circunstancial e relativo.

Naquele tempo, o grau de desenvolvimento das ciências e a característica de seu desenvolvimento não eram os mesmos de hoje, e as coisas que agitavam e perturbavam os corações dos homens não eram as mesmas que agitam e perturbam hoje.

O mundo antigo encontrava-se numa contradição irreconciliável com o Cristianismo não apenas quando este lutava contra o politeísmo, mas mesmo quando o Estado dizia-se cristão. O mundo e a Igreja eram dois extremos opostos que, em essência, eram mutuamente excludentes, embora externamente tolerassem um ao outro. O paganismo não foi destruído quando do advento do monoteísmo. Ele floresceu na estrutura do Estado; nas leis; no egoísta, insensível, coercivo e astuto governo romano, entre autoridades insolentemente venais e abertamente ludibriosas; nos tribunais, manifestamente corruptos e capazes de travestir uma evidente injustiça em legalidade formal; nos costumes e jogos romanos – em suma, no total das relações sociais do Império. Constantino, o Grande, reconheceu o governo como cristão, mas foi incapaz de reformá-lo no espírito cristão. Embora o martírio físico tenha terminado, o martírio moral continuou. O reconhecimento legal e público da verdade cristã foi um grande feito, mas a incorporação desta verdade na estrutura do Estado exigia tempo. Se os sucessores de Constantino tivessem se imbuído do mesmo respeito sincero pela Igreja, então o Império Romano do Oriente talvez tivesse se tornado cristão. Ao invés disso, a maioria de seus governantes eram hereges ou apóstatas, que oprimiam a Igreja com a desculpa de protegê-la, usando-a somente como instrumento de poder.

A própria composição do Império Romano era tal que praticamente impedia seus governantes de neutralizarem seu paganismo implícito. Roma representava a autoridade estatal apenas de maneira abstrata. Abaixo do governo não se encontravam pessoas cuja expressão poderia se considerar inclinada a melhorar o desenvolvimento da vida do Estado. O governo romano constitui a ligação externa e opressiva entre muitas e distintas nacionalidades, que eram mutuamente estranhas em língua e, acima de tudo, conflitantes em interesses. A força do governo residia no equilíbrio das animosidades nacionais. Os povos eram mantidos juntos pela força, mas não eram unidos. Toda expressão do espírito público e local, que é o alimento e o sustento da moralidade pública, eram repugnantes ao governo. Os povos tinham suas próprias nações, mas a pátria comum havia desaparecido e não poderia ser restaurada exceto pela unanimidade interior de pensamento.

A Igreja era o único laço interior e vivo entre os povos. Somente o amor pelo reino celestial os unia. Somente a unanimidade de pensamento na fé os conduzia a uma afinidade mútua e viva. Somente a unidade de convicções interiores firmemente estabelecidas em suas mentes poderia conduzi-los, com o tempo, a uma vida terrena melhor. É por isso que o desejo de unanimidade de pensamento e espírito na Igreja constituía a expressão plena do amor a Deus, amor à humanidade, amor à pátria e amor à verdade. Entre o cidadão de Roma e o filho da Igreja nada havia em comum. Apenas uma única ação social restava ao cristão: o protesto total e incondicional contra o mundo. O cristão romano oriental só conseguia salvar suas convicções interiores sacrificando sua vida pública. Foi assim que, aceitando o martírio, fugiu para o deserto e trancou-se no mosteiro. O deserto e o mosteiro eram, digamos, praticamente o único local para o desenvolvimento moral e intelectual do homem cristão. Pois o Cristianismo, ao invés de rejeitar o desenvolvimento intelectual, o incorporou em si mesmo.

Como resultado desse estado de coisas, os problemas da vida cultural da época não eram de caráter social; assim, a filosofia teve de se limitar ao desenvolvimento da vida contemplativa interior. Similarmente, a filosofia não pôde versar sobre história, uma vez que a história é uma questão de interesse público. Questões morais afetavam a filosofia somente no tocante à vida interior do indivíduo. A filosofia praticamente se esqueceu da vida exterior, das leis do desenvolvimento cívico, da família e do Estado. Embora os princípios gerais dessas relações estivessem contidos nos conceitos filosóficos gerais, eles não implicavam necessariamente em conclusões sistemáticas. Talvez os conceitos morais fossem os que mais profundamente se revelassem na vida intelectual isolada dos mosteiros. Mas faltava à profundidade e à pureza interior a abrangência do desenvolvimento exterior que outra época e outra cultura teriam lhe exigido.

Porém, nas questões da vida contemplativa interior daquela época e nos problemas culturais sócio-filosóficos de nossa cultura há um elemento comum: a razão humana. A natureza da razão, considerada no contexto de uma teologia engendrada na contemplação espiritual interior, manifesta-se de maneira totalmente diferente daquela que se apresentaria quando limitada pelo desenvolvimento da vida exterior cotidiana. É claro que suas leis gerais são as mesmas. Mas quando a razão for elevada a seu nível mais alto de desenvolvimento, ela passará a apresentar novos aspectos e novas faculdades de sua natureza que, por sua vez, lançarão novas luzes sobre suas leis gerais.

O conceito de razão elaborado pela filosofia recente, cuja expressão é encontrada no sistema schellinguiano-hegeliano, não seria contraditório com o conceito de razão que encontramos nas obras dos Santos Padres a não ser pelo fato daquela apresentar-se como instrumento máximo de cognição e, portanto, limitar a verdade ao aspecto de cognição acessível somente ao modo racional e abstrato [dianoético] de pensamento.

Toda falsa dedução do pensamento racional resulta de sua pretensão em ser a cognição mais elevada e completa da verdade. Se ela reconhecesse suas limitações e visse a si própria como um dos instrumentos para a cognição da verdade – e não o único – então ela apresentaria suas deduções como algo provisório e que dizem respeito somente a seu ponto de vista limitado; ela anteciparia deduções superiores e mais confiáveis de um modo de pensar superior e mais confiável. É assim que o cristão culto deve avaliar o pensamento racional: rejeitando seus resultados finais, extraindo assim maior benefício para seu desenvolvimento mental quando examina sua verdade relativa e aceita como realização legítima tudo o que for verdadeiro e instrutivo em suas especulações, embora sejam unilaterais.

Se, porém, a razão filosófica percebesse suas limitações, ela adotaria, pelo próprio desenvolvimento dentro dessas limitações, outra orientação capaz de levá-la a um conhecimento pleno. Mas admitir essa limitação implicaria na morte de sua autoridade absoluta. É por isso que a razão sempre temeu essa admissão e, por conseguinte, afundou-se mais e mais em si mesma. Ela por vezes alterou sua forma para esquivar-se disso. Assim que sua imperfeição era descoberta, a razão se evadia manifestando-se com outra aparência, abandonando sua antiga forma como uma concha vazia nas mãos dos adversários. Assim, para que não fosse acusada de imperfeição, a razão passou das provas lógico-formais para as observações empíricas de um lado, e para a consciência interior da verdade de outro, enquanto chamava de seco e racionalista o modo antigo de pensamento e o novo de racional. Todavia, ao ser detectada a imperfeição deste novo modo ao longo de seu próprio desenvolvimento, a razão filosófica também o acusou de seco e racionalista, passando então à razão pura. Quando Jacobi condenou a estreiteza da teoria da razão pura expressa nos sistemas de Kant e Fichte, ele percebeu ao final de sua longa polêmica que tudo o que havia dito sobre a razão também se aplicava ao entendimento. A teoria de Kant e Fichte provou ser racionalista. O desenvolvimento da razão começara somente com o sistema de Schelling e Hegel. Em 1802, referindo-se ao sistema de Schelling, Hegel escreveu: “Só agora, estritamente falando, a filosofia da razão começou, pois o ciclo de desenvolvimento do entendimento racionalista chegara ao fim com o sistema de Fichte”.

Assim sendo, a razão, conforme entendida pela mais recente filosofia, não quer ser confundida com o entendimento lógico contido nas concatenações formais de conceitos e impelida pelas provas e deduções silogísticas. De acordo com as leis de necessidade intelectual, a razão, em sua última manifestação, não deriva seu conhecimento de noções abstratas, mas da própria raiz da autoconsciência, onde existência e pensamento estão unidos em uma identidade absoluta. Seu processo não consiste no desenvolvimento lógico posto em marcha por especulações abstratas, mas no desenvolvimento dialético que se deriva da própria essência do sujeito. O objeto de pensamento, confrontando o olho da mente, transforma-se de forma em forma, de conceito em conceito, adquirindo sempre um sentido mais completo. À medida que a mente se concentra no sujeito de seu pensamento, descobre nele uma contradição interior que destrói seu conceito anterior. Esse conceito contraditório e negativo que confronta a mente também revela sua falência e descobre, em si, a necessidade de um fundamento positivo latente em si, que agora surge como a união das categorias positiva e negativa em um único complexo (o concreto). Mas este novo conceito, por sua vez, mal consegue se apresentar à mente enquanto resultado final do entendimento, quando, em sua pretensão de independência total, revela agora sua imperfeição e apresenta seu lado negativo. Este lado negativo, novamente, traz consigo seu lado positivo, que de novo está sujeito ao mesmo processo de transformação, até que todo o ciclo de desenvolvimento dialético do pensamento se complete, progredindo do princípio inicial de consciência até a abstração pura e geral de pensamento, que constitui ao mesmo tempo a essencialidade geral. Então, pelo mesmo processo dialético, a cadeia completa de desenvolvimento do ser e do pensamento confere à consciência conteúdo pleno, [que são entendidos] como se fossem idênticos ao fenômeno da racionalidade realizada e da essencialidade autoconsciente.

Todavia, ao dar sua última palavra, a razão filosófica deu a oportunidade para que a mente percebesse suas limitações. O próprio processo dialético que serviu à razão na construção de sua filosofia estava sujeito aos mesmos pressupostos desintegradores, e, por conseguinte, provou à consciência racional ser somente o aspecto negativo do conhecimento, portando somente a verdade possível, não a verdade de fato, ficando à espera de uma nova forma de pensamento – que seria a forma positivamente conhecida, não a hipoteticamente conhecida, e que se situaria acima do autodesenvolvimento lógico assim como o real está acima do potencial.

Essa consciência das limitações e do caráter insatisfatório da última expressão do pensamento filosófico constitui, hoje, o estágio mais avançado do desenvolvimento intelectual do Ocidente. Esta não é a opinião de diletantes em filosofia, nem o clamor do povo contra a filosofia por causa de algum motivo obscuro; nem mesmo é o julgamento de pessoas como Krause e Baader, que, com seu pensamento filosófico penetrante, fizeram muito pelo desenvolvimento da filosofia contemporânea, mas que não possuíam autoridade suficiente sobre a mente dos homens para que a direção do desenvolvimento filosófico fosse alterada por seus protestos – eles agiram com bravura em uma região invisível entre ciência e vida, mas nenhum deles foi capaz de fundar uma escola de filosofia [1].

A natureza unilateral e insatisfatória do pensamento racional, bem como da filosofia contemporânea, foi reconhecida e expressa com óbvia e irrefutável clareza pelo mesmo grande pensador [Schelling] que a criou e ergueu, de acordo com Hegel, o pensamento racional do mero cálculo formal à racionalidade essencial.

Pois a recente filosofia alemã é fruto tanto de Schelling quanto de Hegel. Foi iniciada por Schelling e desenvolvida por ele em seus diversos elementos distintos, compartilhando com Hegel sua introdução na consciência geral da Alemanha. Hegel, considerado discípulo e seguidor de Schelling, é responsável pelo desenvolvimento mais detalhado dessa filosofia, que engloba todos os ramos da ciência e representa a conclusão de um sistema fundado em bases supostamente científicas. Schelling era capaz de reconhecer as limitações dessa filosofia [2].

A autoridade de Schelling e, mais ainda, a justiça que ele fez ao reconhecer as limitações da racionalidade, abalaram a confiança absoluta que as deduções da filosofia contemporânea tinham na Alemanha, e foi um dos grandes fatores que contribuíram para a crescente indiferença à filosofia. É claro que ainda há hegelianos, e existirão por muito tempo, pois o perfil da cultura contemporânea está em sintonia com a orientação deles. Mas quando o pensamento, em seu desenvolvimento máximo, tiver reconhecido sua imperfeição, uma nova orientação se lhe abrirá. A maioria da população ainda pode, por um bom tempo, continuar a sustentar opiniões obsoletas, mas a convicção da massa não conseguirá jamais restaurar a antiga confiança. Erdmann considera-se o “último dos moicanos” entre os discípulos de Hegel. Dificilmente chegaremos a ver novas celebridades no campo da filosofia.

Todavia, o último sistema de Schelling não poderia mesmo ter influenciado a mente dos homens porque ele combina, em si, dois aspectos antitéticos, um quase que certamente verdadeiro e outro quase que certamente falso. O primeiro, o negativo, mostra a imperfeição da racionalidade; o segundo, o positivo, apresenta a estrutura de um novo sistema. Mas falta a estes dois aspectos coesão essencial; portanto, eles podem ser separados um do outro, e forçosamente serão separados. Então, a influência negativa do pensamento de Schelling tornar-se-á incomparavelmente mais forte. Uma vez convencido das limitações do pensamento autônomo e da necessidade da Revelação Divina, e simultaneamente da necessidade da fé viva enquanto racionalidade suprema e elemento essencial de cognição, Schelling não se voltou fervorosamente ao Cristianismo, mas aproximou-se dele naturalmente, por meio do desenvolvimento profundo e correto de sua autoconsciência racional. Pois a possibilidade da consciência do relacionamento básico do homem com Deus reside no próprio núcleo da razão humana, em sua própria natureza. O pensamento humano pode viajar em abstrações sobre suas relações básicas somente se já estiver divorciado desta profundidade vital ou se já tiver fracassado em alcançá-la. Em virtude de sua genialidade inata e do extraordinário desenvolvimento de seu profundo pensamento filosófico, Schelling é uma dessas pessoas que surgem não uma vez por século, mas uma vez por milênio.

Contudo, em sua busca pela Revelação Divina, onde Schelling encontraria essa expressão pura que corresponderia à sua necessidade racional de fé? Protestante de nascimento, Schelling era, apesar de tudo, tão sincero e consciencioso de suas convicções interiores que ele não pôde evitar apontar as imperfeições do Protestantismo, que formalmente rejeitava a tradição preservada na confissão latina. Ele frequentemente expressava esse ponto-de-vista, de maneira que, com o tempo, surgiram rumores na Alemanha de que ele teria passado para o lado dos latinos. Mas ele também enxergava com muita clareza entre os latinos a confusão entre tradição verdadeira e falsa, entre aquilo que é divino e aquilo que é meramente humano.

Pesado é o fardo do homem sedento da Verdade Divina mas que não consegue encontrar a religião pura que satisfaça essa necessidade premente. Ele só tem uma alternativa: buscá-la e obtê-la com suas próprias forças, na confusa tradição latina, aquilo que correspondesse à sua noção interior de verdade cristã. Que desafio lastimável: criar uma fé para si próprio!

Schelling não se guiou somente por considerações especulativas, cuja imperfeição ele reconheceu com clareza. Além de [estudar] as Sagradas Escrituras, ele buscou apoio para seu pensamento na consciência real de Deus em toda a humanidade, à medida que estivesse preservada na tradição da Revelação Divina. Na mitologia dos povos antigos, ele encontrou traços de uma Revelação que, embora distorcida, não estava perdida. A relação fundamental do homem primitivo com Deus surgia em cada nação de forma peculiar, circunscrita, à medida que a humanidade se dividiu em diferentes grupos, de acordo com a ramificação dos seus diversos povos. A peculiaridade desta consciência determinava a própria característica dos povos. Mas, dentro destas limitações mais ou menos distorcidas, restavam as características imutáveis e permanentes da natureza essencial da Revelação. O acordo entre estes princípios básicos interiores de cada mitologia, e os princípios básicos da tradição cristã, era para a Schelling a expressão da verdade pura da Revelação Divina.

Essa visão sobre as crenças humanas pode ser uma fonte extremamente rica da qual o pensamento cristão pode se aproveitar, caso os estágios preliminares daquelas crenças estivessem sobre firme fundamento. Mas a incerteza das convicções preliminares e a incerteza do sentido interior da mitologia, sujeitas às interpretações mais ou menos arbitrárias do investigador, foram as razões para que a filosofia cristã de Schelling não fosse nem cristã e nem filosofia. Ela diferenciava-se do Cristianismo em seus dogmas fundamentais, e da filosofia em seu próprio modo de cognição.

Além do mais, enquanto defendia que a verdade não poderia se basear em especulações abstratas, mas no pensamento imbuído de fé, Schelling não prestou atenção à característica especial da atividade interior da razão, que constitui o atributo essencial do pensamento noético. Pois o modo da atividade racional muda de acordo com o nível ao qual a razão é elevada. Embora a razão seja uma, e sua natureza seja uma, suas formas de ação são diferentes, assim como suas deduções são diferentes dependendo do nível em que se encontra e da força que a impele e a guia. Pois esta força propulsora não deriva do pensamento que confronta a razão, mas surge da própria condição interior da razão e se move em direção ao pensamento, no qual essa força encontra repouso e por meio da qual é comunicada aos demais seres racionais.

Essa natureza interior da razão escapa aos pensadores ocidentais. Acostumados ao pensamento lógico abstrato, onde todo conhecimento depende do desenvolvimento formal do objeto de pensamento e onde todo o significado é absorvido por este aspecto inexprimível do pensamento, eles não prestam atenção à faculdade da alma que transcende a natureza formal das concatenações lógicas e que executa o movimento do pensamento e constantemente o acompanha, suspendendo-se, digamos assim, acima da expressão do pensamento e comunicando-lhe um sentido incompatível com as definições externas e resultados independentes da forma exterior. Schelling buscou a expressão dos dogmas religiosos nas obras dos Santos Padres, mas não apreciou suas concepções especulativas da razão e as leis de cognição superior. Assim, o lado positivo de seu sistema, embora lhe falte o caráter interior do pensamento noético, encontrou pouca simpatia na Alemanha e menos ainda na Rússia. A Rússia pode ter se encantado pelos sistemas lógicos das filosofias estrangeiras, mas, em se tratando de filosofia noética, ela é mais exigente do que os demais países europeus, já que possui exemplos clássicos de pensamento noético nos antigos Santos Padres e nas grandes obras sacras de todos os tempos, não excluindo o tempo atual. Por outro lado, o aspecto negativo do sistema de Schelling, que leva em conta a imperfeição do pensamento racional, foi amplamente aceito na Alemanha, acostumada ao padrão abstrato e lógico, e na Rússia, onde, após o entusiasmo adolescente inicial, os russos puderam retornar mais facilmente à racionalidade essencial, particularmente onde essa racionalidade essencial fosse consoante com sua singularidade histórica.

Assim sendo, creio que a filosofia alemã, em conjunto com o desenvolvimento que recebeu do último sistema de Schelling, pode nos servir enquanto ponto de partida para uma filosofia independente, que corresponda aos princípios básicos da antiga cultura russa e que seja capaz de sujeitar a cultura ocidental à consciência da razão noética.

Notas

1. Holibeus [Chalybäus] não deve ser incluído na categoria dos filósofos que são contra as mais recentes orientações filosóficas. Pois, embora seus princípios sejam basicamente distintos da visão de Hegel sobre as leis gerais da razão, essas diferenças não o demovem da esfera do pensamento racional, abstrato. Görres, um dos mais célebres seguidores de Schelling, e que passou da filosofia para a fé, não pôde exercer qualquer influência no desenvolvimento geral da mente porque sua transição não foi acompanhada por um desenvolvimento correto da consciência, mas deveu-se a peculiaridades pessoais e influências extrínsecas.

2. Em sua filosofia da história, Hegel apontou várias diferenças entre seu sistema e do de Schelling, mas tais diferenças pertenciam ao período da filosofia de Schelling quando seu pensamento já tinha começado a tomar outro rumo – que, aliás, foi algo notado por Hegel. A única diferença entre o primeiro sistema de Schelling e o sistema de Hegel é o método no qual o pensamento básico é exposto. Essa contradição interior no pensamento, que Schelling apresenta na manifestação combinada das duas polaridades e de sua identidade, surge em Hegel no movimento consecutivo da consciência de uma definição de pensamento à sua antítese. Com respeito à intuição intelectual, da qual Schelling falava e que não havia sido incorporada no sistema de Hegel, podemos dizer que ela também não possuía qualquer sentido essencial no primeiro sistema de Schelling. Schelling o menciona, mas não o desenvolve. Tratou-se de um prenúncio da direção que seu pensamento iria tomar.