O principal objetivo da obra de Philip Sherrard
foi opor-se ao dualismo metafísico, cosmológico e antropológico. Este
tipo de dualismo acabou se automatizando em uma espécie de "estado de espírito geral", e está, segundo Sherrard, na base do fracasso espiritual do mundo moderno. Não sendo uma mera “opção
filosófica”, o pensamento dualista funciona como uma patologia da
(auto)percepção do mundo. Ele molda a forma como olhamos aos
nossos semelhantes, e ao mundo material que nos rodeia, e os tornam recursos a
serem explorados a fim de satisfazerem nossas necessidades egoístas. Na raiz da
crise do mundo moderno encontra-se um erro no olhar epistêmico do mundo: a ilusão de
adquirir conhecimento sem referência ao fundamento metafísico das próprias
coisas que contemplamos, que é a única instância que pode realmente investir
essas coisas com realidade e, em última instância, com sentido.
Assim, um objeto físico não pode por si só legitimar sua existência e seu sentido: não pode haver nenhuma física separada da metafísica, e, sem seu
fundamento metafísico (das Ding an Sich), toda a física é uma ilusão
epistêmica e ontológica. O homem não pode por si só conferir realidade às
coisas exteriores; eis o dilema do evolucionismo.
O conhecimento da natureza é também uma
ilusão, que passou a ser dogmatizada pela ciência moderna com o seu imperativo
de renunciar a qualquer teoria metafísica; esta renúncia não pode basear-se
senão numa mentira, pois a própria existência humana aponta para a esfera metafísica
e não pode ser concebida fora dela. A “ciência” moderna também está errada
porque postula dois aspectos diferentes do objeto sob sua investigação: um
físico, que daria fundamento a um conhecimento acessível a todos os homens dotados de sã consciência, e outro metafísico, cujo conhecimento é supostamente subjetivo e, portanto
falso para aqueles que não compartilham da mesma visão. O paradigma do
conhecimento universalmente aceitável é, portanto, a matemática, que por sua
vez não pode dar fundamento metafísico ao mundo físico, mas que acaba por
quantificar o cosmos. Até mesmo Deus, privado de sua relevância metafísica,
torna-se o “Grande Matemático”. Assim, tudo, mesmo Deus, é reduzido a mera
quantidade, como argumentou anteriormente René Guénon. Se o papel de Deus no
mundo for reduzido ao mero ofício de um relojoeiro, o próprio cosmos torna-se
um mecanismo gigantesco, que não necessita mais da intervenção do seu próprio
Criador, podendo funcionar independentemente dele, e de acordo com “suas
próprias” leis mecânicas. Esta ideia está, segundo Sherrard, na base da crise
ecológica moderna.
De acordo com Sherrard, existem dois modos
opostos de consciência humana: a “consciência utilitarista do ego”, um termo
que possivelmente sugere a teoria patrística de que todo mal humano tem sua
raiz no “amor-próprio” (philautia) e uma “consciência espiritual”, também
chamada de “consciência angélica”. Seus correspondentes órgãos de conhecimento
seriam, portanto, a razão discursiva e o intelecto. Este duplo conhecimento
representa, no entanto, um condicionamento cultural infundido por dinâmicas
específicas na história da cultura ocidental. A responsabilidade por esta
divisão epistêmica e (portanto) por este fracasso é, segundo Sherrard, da
teoria medieval da dupla verdade, que põe em movimento a autonomização da
racionalidade contra a fé e contra a metafísica.
Segundo Sherrard não existe natureza (physis)
à parte de Deus, ou seja, não é possível conceber um lugar em que a natureza
seja autônoma e separada de Deus. Assim, não pode existir sagrado e profano (e,
portanto, nenhum sagrado oculto no profano, como pensava Mircea Eliade), mas
apenas diferentes níveis ontológicos de ser, natureza e homem, que portam em diferentes
graus a sacralidade imutável do divino. Para Sherrard não há lugar filosófico
para a teoria da criação a partir do nada (ex nihilo), exceto no caso em
que “nada” seja apenas outro nome (apofático) para o próprio Deus.
Sherrard não teme em usar a noção de
panenteísmo para expressar a ideia de que toda a criação está acontecendo em
Deus, está em Deus. Segundo ele, esta é a intuição fundamental da pregação de
São Paulo no Areópago, quando citou as palavras do antigo poeta Arato (Atos 17:28),
bem como em sua epístola aos romanos (Romanos 3:36). Esta visão de São Paulo
foi assumida pelos primeiros autores cristãos, que tentaram uma síntese de sua
fé (São Justino, o Mártir, Santo Irineu de Lyon, Orígenes), e mais tarde por
São Máximo, o Confessor, em seu ensinamento sobre os logoi divinos da
criação.
O mistério da criação é evidente, segundo
Sherrard, na relação entre a doutrina da Trindade, da criação e da Encarnação, formando
uma visão teológica "teoantropocósmica". O Logos divino, que é
o Filho de Deus e, ao mesmo tempo, o Filho do Homem, é o mesmo no ato da
criação e na sua encarnação. Ele é desde a eternidade e na eternidade o mesmo
Cristo cósmico (Deus-homem e Deus-criatura), e a natureza é o próprio Corpo de
Cristo, antes mesmo do próprio ato de criação, porque a geração eterna do Logos
e a criação são o mesmo ato divino, único e eterno, sem que isso implique que o
mundo existiria desde a eternidade, mas levando-se em conta o eterno
Plano/Pensamento divino do Deus Tri-Uno. Além disso, o ato da criação não deve
ser atribuído à vontade de Deus, como se Deus pudesse ter decidido não criar o
mundo, mas deve ser entendido como uma expressão da natureza amorosa de Deus:
assim como Deus não pode deixar de amar (!), da mesma forma Ele não pode não
ter criado o mundo. Como expressão da sua própria natureza divina, a criação é
um nível eterno da autoconsciência do próprio Deus, da sua própria revelação
para si mesmo, manifestada em diferentes níveis de autorrevelação. Há neste
ponto alguns acentos que aproximam as especulações metafísicas de Sherrard das
de René Guénon, especialmente na equivalência entre ser e conhecer, bem como na
conceptualização dos diferentes níveis do ser.
De volta ao processo intradivino de
desvelamento do ser, Sherrard propõe distinguir entre várias “fases”,
correspondendo a diferentes níveis de diferenciações internas do divino. A
primeira corresponde à atualização das potências divinas de Deus Pai em seu Logos,
no sentido de este se tornar imagem (ícone) do Pai. Essas potências são
identificadas com os nomes de Deus, que por sua vez são individualizados em
diferentes formas, como logoi divinos ou “imagens-arquétipos” do mundo
criado. Esses logoi também representam a realidade divina de cada coisa
criada. Estas considerações levarão Sherrard a argumentar em termos sofiológicos
a favor da sacralidade da natureza.
A doutrina dos logoi é fundamentada
patristicamente nos escritos de São Máximo, o Confessor, mas Sherrard modifica
e expande sua visão para muito além do domínio estritamente cosmológico,
privilegiado por Máximo, para o domínio dos processos intradivinos. Sherrard
minimiza ainda mais o acento cristocêntrico de São Máximo, embora declare a
definição cristológica do Concílio de Calcedônia (451 d.C.) como o único modelo
real que conceitualiza as várias encarnações dos logoi divinos no cosmos
e no homem.
Além disso, as glosas trinitárias de
Sherrard relativas aos processos intradivinos de individuação e diferenciação
também não são muito consistentes com a noção cristã da Trindade. Por exemplo,
mesmo que o Logos desempenhe um papel central na sua exposição, há pouca menção
ao papel do Espírito Santo, apesar da relevância teológica da pneumatologia
para uma doutrina da criação. Surpreendentemente, outro ponto vital da doutrina
ortodoxa, que não é levado em consideração, além de algumas breves declarações,
é a doutrina das energias incriadas de Deus.
Philip Sherrard não almejava, de fato, a uma
formulação rigorosa da doutrina patrística dos logoi divinos, mas
tentava adaptar alguns impulsos patrísticos às suas opiniões pessoais, a saber,
a função semelhante à dos logoi das “imagens-arquétipos” e seu papel no
processo estético.
A realidade arquetípica dos logoi
divinos, como uma espécie de “ponteiro metafísico” imediato de cada coisa
visível, é entendida por Sherrard nos termos daquilo que o francês Henri Corbin
referiu como mundus imaginalis. Esta expressão é uma tradução do árabe
ˁālam al-mithāl (ءالم المثال) nos escritos do místico sunita Ibn ʿArabī
(1165-1240) ou do xiita Suhrawardī (1154-1191), termo este usado para designar
a realidade ontológica do coisas reveladas, um mesocosmos de imagens e,
fenomenologicamente falando, o próprio “lugar” dos acontecimentos proféticos e
angélicos da história da salvação. Para aceder a este nível ontológico, os homens
são dotados de um órgão sensorial especial – a imaginação –, mas que não deve
ser entendida em termos puramente psicológicos, ou seja, como sendo mera “fantasia”
e, portanto, mera “ilusão”. As implicações epistêmicas desta noção já são
evidentes no trabalho do próprio Corbin, que via o papel deste termo como um
manifesto anticartesiano concreto e parte de uma hermenêutica antimoderna.
As maneiras pelas quais Philip Sherrard
concebe a identificação das imagens-arquétipos com este mundus imaginalis
nunca são explicitamente detalhadas, exceto por algumas escassas referências,
mas fica claro em seus escritos que Sherrard pretendia com isso articular
alguns contornos fundamentais de uma teoria estética. Assim, já na sua tese de
doutorado sobre a poesia grega moderna, Sherrard refere-se ao mundo dos arquétipos
como a fonte de inspiração poética por excelência. Nesses seus primeiros
escritos, as referências concretas ainda eram apenas a Platão, mas já então a
própria possibilidade da arte era descrita em termos do acesso do artista ao
mundo dos arquétipos. Para Sherrard, os arquétipos nada tinham a ver com o
domínio psicológico e individual da mente humana, e vem daí sua acirrada
polêmica com C. G. Jung. Mesmo seu próprio impacto estético original, que está
na base da sua conversão à Ortodoxia, é interpretado retrospectivamente por
Sherrard como tendo sido uma intuição da realidade ontológica dos arquétipos,
como parte da outra mente (greco-bizantina) da Europa. Para este conteúdo
filosófico platônico dos arquétipos, o Cristianismo Oriental contribuiria com
seu próprio sentido da intuição do próprio Logos oculto na
matéria/criação.
Sherrard raramente menciona de que tipo de
arte está falando: para ele só pode haver arte sacra, arte que se abre à
infusão do reino transcendente. Não só a arte é sacra por definição, mas também
outras instâncias como a natureza, a vida, o homem, na medida em que também se
abrem e testemunham o transcendente, através do seu logos divino
interior. Consequentemente, se entre o divino e a criação existe uma relação
simbiótica, então todo o cosmos é apenas um gigantesco sacramento e, de acordo
com o princípio da homogeneidade sacramental da natureza, não existe o profano.
No entanto, uma sensação de desconforto
acompanha esta visão luminosa da dignidade da natureza: a consciência de que
vivemos num mundo caído e de que a natureza sacramental do mundo criado está apenas
potencialmente ativa, mesmo que seja em menor grau. Ainda mais do que uma mera potência,
o mundo como sacramento designa a realidade numenal das coisas percebidas (as “coisas
em si”), bem como o seu telos divino, temporariamente ofuscado pelo
pecado. O papel da arte sacra é dar expressão ao mundo divino e inteligível,
que está logo atrás das coisas perceptíveis e que representa a própria razão (logos)
de sua existência, bem como seu sentido. Isto é possível porque o mundo
perceptível é imagem e ícone do inteligível, cópia dos arquétipos divinos.
Esta qualidade icônica da criação é em si
uma legitimação da iconografia enquanto arte sacra cristã, dado que o ícone
pintado é capaz de representar o mundo tal como ele é em si, na sua dimensão
numenal, ou seja, na forma como o próprio Deus o vê. O aspecto numênico da
realidade além das coisas quantificáveis do mundo (caído) torna-se visível
através da arte sacra do ícone, num processo de desfenomenização do mundo, no
qual ele é percebido não como aparece, mas como realmente é. Sherrard
arrisca-se mesmo a dizer que, como representações dos arquétipos divinos da
criação, os ícones tornam visíveis vários níveis do próprio ser divino, tal
como se manifesta nesses arquétipos, e até tornam possíveis várias
"encarnações dos arquétipos".
A forma do ícone não pode assim ser
historicizada, como mera expressão de uma moda artística (passageira) num
determinado tempo e lugar, mas é imposta pelo próprio arquétipo divino à medida
que se revela ao artista, que se torna assim ao mesmo tempo um vidente das
coisas divinas (um místico) e um profeta. Assim, a originalidade do ícone nada
tem a ver com a descoberta de novos modos de expressão artística, mas é apenas
determinada pela sua relação com a sua origem (divina).
A arte sacra pressupõe a contemplação das
realidades invisíveis e inteligíveis, das razões divinas (logoi) da
criação, o que equivale a uma experiência direta do próprio Deus. Sendo uma
expressão da contemplação espiritual, o ícone é também uma ferramenta na
contemplação de Deus. A própria contemplação só é perfeita quando o conhecedor
ou o pintor se identifica com o conhecido, que é Deus, ou seu aspecto divino (arquétipo)
responsável por inspirar o ícone pintado, e para isso o pintor deve renunciar e
negar a si mesmo, porque sua individualidade pessoal pode ofuscar a revelação
do arquétipo divino. É por isso que o iconógrafo não deve autografar seu
ícone, como testemunho do fato de não ter deixado sua própria individualidade
tornar-se o espaço no qual o arquétipo divino pode manifestar-se plenamente. A
vocação do artista é tornar-se um hierofante, ou mesmo tornar-se ele próprio um
sacramento vivo, um testemunho da revelação contínua de Deus no mundo
percebido. Na verdade, tal vocação do artista dirige-se a todos os seres
humanos: todos somos convocados a tornar-nos ícones vivos do grande mestre da
pintura, que é Deus, como Ele mesmo planejou e ordenou que fôssemos.
Fonte: Ionuţ
Daniel Băncilă, trechos do capítulo Philip Sherrard's Orthodox Esotericism
da obra Meeting God in the Other, LIT Verlag, Münster, Alemanha, 2020.