Sendo talvez a melhor introdução contemporânea à espiritualidade ortodoxa, Orthodox Spirituality: a Brief Introduction é um pequeno mas importante livro do Metropolita Hieroteu de Nafpaktos, o qual fornece os conceitos e estágios fundamentais da vida espiritual cristã. O capítulo mais importante do livro (Degrees of spiritual perfection) não está disponível online, por isso recomendo que o leitor adquira o livro.
O objetivo do autor é livrar o leitor das influências ocidentais a respeito da vida ascética.
* * *
O homem espiritual é aquele que tem o Espírito Santo em si. Isso quer dizer que os homens do mundo são cegos, incapazes de enxergar as coisas de Deus, enquanto os homens espirituais são santos, que possuem duas características fundamentais:
1) receberam a Revelação de Deus, formulando-a posteriormente; e,
2) produzem relíquias.
A partir desta simples descrição, percebe-se que a função primordial da Igreja é levar os homens à comunhão com Deus e, de certa maneira, pode-se dizer que sua função é “produzir relíquias”. Uma Igreja sem santos não é Igreja. Ademais, conclui-se também que os santos são o próprio critério da infalibilidade dos Concílios Ecumênicos, uma vez que são portadores do Espírito Santo, isto é, do próprio Deus. Os dogmas são o resultado das decisões tomadas nos Concílios Ecumênicos, e estabelecem os limites entre verdade e erro, entre saúde e doença. Somente os santos, que receberam a Revelação de Deus, são capazes de enunciar dogmas. Os dogmas não são, portanto, meras considerações acadêmicas ou produto de estudos bíblicos. Seria impossível enunciar os dogmas somente a partir de reflexões sobre a Bíblia ou sobre as obras dos santos. Sua função é fornecer balizas, para além das quais o cristão não poderá circular sob pena de não curar sua alma, ou seja, de não atingir a comunhão com Deus. Os dogmas fornecem o quadro mental dentro do qual o cristão terá de limitar-se. Para além dele, somente trevas, ilusão e pseudo-curas o aguardam.
A principal diferença entre a espiritualidade ortodoxa e as demais espiritualidades é a ausência nestas de um método propriamente terapêutico, curativo. Para a Igreja Ortodoxa, a teologia é a própria visão da glória de Deus, isto é, uma teologia empírica, prática, mística, e leva seus membros a atingirem a chamada theoria (visão da Luz Incriada, ou seja, visão da Luz divina). No catolicismo, a teologia é eminentemente intelectual, filosófica, racional. A própria questão do Filioque é, muito além de um mero detalhe vocabular do Credo, um indício da ausência entre os católicos romanos de uma teologia verdadeiramente empírica. Outro indício é a aceitação quase cega e integral da metafísica aristotélica. Quanto aos protestantes, de maneira geral, eles crêem que a salvação vem pela aceitação racional da Revelação. Trata-se de um conceito falso, uma vez que lhes falta o essencial: a própria theoria, ou seja, a visão de Deus. Por fim, as diversas religiões orientais, embora conservem em seu bojo a prática de eliminar pensamentos e imaginações, não possuem a noção de pessoalidade e, portanto, de princípio hipostático, teantrópico. Aliado à influência da dialética filosófica que lhes é característica, as religiões orientais levam seus seguidores ao “nada”, isto é, à não-existência, abrindo as portas para influências demoníacas.
Segundo a teologia cristã ortodoxa, a alma humana, assim como o próprio Deus, é composta de essência (coração) e energia (noûs). O noûs é o “olho da alma”, e deve retornar a seu lugar natural, que é, precisamente, o coração. O coração é o centro da constituição psicossomática humana, e é lá que Deus se revela e se manifesta. O coração só pode ser encontrado asceticamente: é o que chamamos de deificação (theosis). No entanto, o pecado age dispersando o noûs em coisas mundanas, escravizando-o à razão. Por outro lado, nos santos, a razão humana funciona normalmente, no cérebro, enquanto o noûs, no coração, lembra-se incessantemente de Deus. Uma vez que retorna ao coração, o noûs pode então ascender à Trindade.
Quanto à memória, o autor cita o ensinamento do Pe. João Romanides. Segundo ele, o homem possui três memórias: (1) a memória do homem em relação a si próprio (DNA), (2) a memória do homem em relação ao mundo (células cerebrais) e (3) a memória do homem em relação a Deus (coração). Esta última memória funciona muito mal nos homens, sendo que sua cura vem por meio da oração noética (isto é, do noûs).
Portanto, cabe concluir o seguinte: qualquer espiritualidade que esteja divorciada do objetivo curar e purificar o coração, permitindo que o noûs lá reze incessantemente, é uma espiritualidade moralista, abstrata, falsa.
Segundo a tradição ortodoxa, que é revelada pelo Espírito Santo no coração dos santos, há três estágios de aperfeiçoamento espiritual. Eles encontram-se resumidos na tabela abaixo (clique para ampliar):
O objetivo do autor é livrar o leitor das influências ocidentais a respeito da vida ascética.
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O homem espiritual é aquele que tem o Espírito Santo em si. Isso quer dizer que os homens do mundo são cegos, incapazes de enxergar as coisas de Deus, enquanto os homens espirituais são santos, que possuem duas características fundamentais:
1) receberam a Revelação de Deus, formulando-a posteriormente; e,
2) produzem relíquias.
A partir desta simples descrição, percebe-se que a função primordial da Igreja é levar os homens à comunhão com Deus e, de certa maneira, pode-se dizer que sua função é “produzir relíquias”. Uma Igreja sem santos não é Igreja. Ademais, conclui-se também que os santos são o próprio critério da infalibilidade dos Concílios Ecumênicos, uma vez que são portadores do Espírito Santo, isto é, do próprio Deus. Os dogmas são o resultado das decisões tomadas nos Concílios Ecumênicos, e estabelecem os limites entre verdade e erro, entre saúde e doença. Somente os santos, que receberam a Revelação de Deus, são capazes de enunciar dogmas. Os dogmas não são, portanto, meras considerações acadêmicas ou produto de estudos bíblicos. Seria impossível enunciar os dogmas somente a partir de reflexões sobre a Bíblia ou sobre as obras dos santos. Sua função é fornecer balizas, para além das quais o cristão não poderá circular sob pena de não curar sua alma, ou seja, de não atingir a comunhão com Deus. Os dogmas fornecem o quadro mental dentro do qual o cristão terá de limitar-se. Para além dele, somente trevas, ilusão e pseudo-curas o aguardam.
A principal diferença entre a espiritualidade ortodoxa e as demais espiritualidades é a ausência nestas de um método propriamente terapêutico, curativo. Para a Igreja Ortodoxa, a teologia é a própria visão da glória de Deus, isto é, uma teologia empírica, prática, mística, e leva seus membros a atingirem a chamada theoria (visão da Luz Incriada, ou seja, visão da Luz divina). No catolicismo, a teologia é eminentemente intelectual, filosófica, racional. A própria questão do Filioque é, muito além de um mero detalhe vocabular do Credo, um indício da ausência entre os católicos romanos de uma teologia verdadeiramente empírica. Outro indício é a aceitação quase cega e integral da metafísica aristotélica. Quanto aos protestantes, de maneira geral, eles crêem que a salvação vem pela aceitação racional da Revelação. Trata-se de um conceito falso, uma vez que lhes falta o essencial: a própria theoria, ou seja, a visão de Deus. Por fim, as diversas religiões orientais, embora conservem em seu bojo a prática de eliminar pensamentos e imaginações, não possuem a noção de pessoalidade e, portanto, de princípio hipostático, teantrópico. Aliado à influência da dialética filosófica que lhes é característica, as religiões orientais levam seus seguidores ao “nada”, isto é, à não-existência, abrindo as portas para influências demoníacas.
Segundo a teologia cristã ortodoxa, a alma humana, assim como o próprio Deus, é composta de essência (coração) e energia (noûs). O noûs é o “olho da alma”, e deve retornar a seu lugar natural, que é, precisamente, o coração. O coração é o centro da constituição psicossomática humana, e é lá que Deus se revela e se manifesta. O coração só pode ser encontrado asceticamente: é o que chamamos de deificação (theosis). No entanto, o pecado age dispersando o noûs em coisas mundanas, escravizando-o à razão. Por outro lado, nos santos, a razão humana funciona normalmente, no cérebro, enquanto o noûs, no coração, lembra-se incessantemente de Deus. Uma vez que retorna ao coração, o noûs pode então ascender à Trindade.
Quanto à memória, o autor cita o ensinamento do Pe. João Romanides. Segundo ele, o homem possui três memórias: (1) a memória do homem em relação a si próprio (DNA), (2) a memória do homem em relação ao mundo (células cerebrais) e (3) a memória do homem em relação a Deus (coração). Esta última memória funciona muito mal nos homens, sendo que sua cura vem por meio da oração noética (isto é, do noûs).
Portanto, cabe concluir o seguinte: qualquer espiritualidade que esteja divorciada do objetivo curar e purificar o coração, permitindo que o noûs lá reze incessantemente, é uma espiritualidade moralista, abstrata, falsa.
Segundo a tradição ortodoxa, que é revelada pelo Espírito Santo no coração dos santos, há três estágios de aperfeiçoamento espiritual. Eles encontram-se resumidos na tabela abaixo (clique para ampliar):
Os três estágios também estão representados em Lucas 15:11-32, na famosa parábola do filho pródigo, na qual o estágio (1) da purificação é representado pelos servos, o (2) da iluminação pelos jornaleiros (servos contratados) e o (3) da glorificação pelos filhos: E disse: Um certo homem tinha dois filhos; e o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte dos bens que me pertence. E ele repartiu por eles a fazenda. E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para uma terra longínqua, e ali desperdiçou os seus bens, vivendo dissolutamente. E, havendo ele gastado tudo, houve naquela terra uma grande fome, e começou a padecer necessidades. E foi, e chegou-se a um dos cidadãos daquela terra, o qual o mandou para os seus campos, a apascentar porcos. E desejava encher o seu estômago com as bolotas que os porcos comiam, e ninguém lhe dava nada. E, tornando em si, disse: Quantos jornaleiros de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e perante ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um dos teus jornaleiros. E, levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e perante ti, e já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa; e vesti-lho, e ponde-lhe um anel na mão, e alparcas nos pés; e trazei o bezerro cevado, e matai-o; e comamos, e alegremo-nos; porque este meu filho estava morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado. E começaram a alegrar-se. E o seu filho mais velho estava no campo; e quando veio, e chegou perto de casa, ouviu a música e as danças. E, chamando um dos servos, perguntou-lhe que era aquilo. E ele lhe disse: Veio teu irmão; e teu pai matou o bezerro cevado, porque o recebeu são e salvo. Mas ele se indignou, e não queria entrar. E saindo o pai, instava com ele. Mas, respondendo ele, disse ao pai: Eis que te sirvo há tantos anos, sem nunca transgredir o teu mandamento, e nunca me deste um cabrito para alegrar-me com os meus amigos; vindo, porém, este teu filho, que desperdiçou os teus bens com as meretrizes, mataste-lhe o bezerro cevado. E ele lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todas as minhas coisas são tuas; mas era justo alegrarmo-nos e folgarmos, porque este teu irmão estava morto, e reviveu; e tinha-se perdido, e achou-se.
Os Santos Padres também ensinam que há três categorias de pessoas salvas: (1) as que obedecem para evitar o Inferno, (2) as que obedecem para ganhar o Paraíso e (3) as que obedecem por amor a Deus, isto é, por pura filiação. Nas bem-aventuranças do Sermão da Montanha, Cristo ensina claramente que o homem deve se purificar das paixões e adquirir humildade de espírito para ser digno de ver a Deus: Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus; bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados; bem-aventurados os mansos, porque eles herdarão a terra; bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos; bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia; bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a Deus (Mateus 5:3-8).
Nas obras dos Santos Padres, os três estágios de vida espiritual são caracterizados pelo uso dos termos praxis e theoria. A praxis são os feitos e esforços que desempenhamos a fim de alcançarmos a theoria, isto é, a glorificação, a visão de Deus. Chamamos a praxis de “hesicasmo”, a verdadeira ética cristã, e ela é representada pela a purificação do coração, enquanto a theoria é a iluminação do noûs e a glorificação. A praxis possui três estágios:
1) cura das faculdades da alma: inteligente, apetitiva, incensiva;
2) livramento da dor e do prazer: não há ansiedade nem aflições em relação aos problemas da vida; e,
3) purificação do coração: não há mais logismoi, isto é, não há mais pensamentos cheios de paixão (“fixações”); quando a pessoa é desatenta, os pensamentos tornam-se desejos e adentram ao coração, exercendo nele um poder destrutivo; a oração do coração, quando é incessante, impede que esses logismoi desçam da razão para o coração.
A praxis também possui um efeito colateral muito benéfico: torna a pessoa equilibrada, perfeitamente sociável, pois o egoísmo desvanece-se em favor do verdadeiro amor, qual seja, o amor a Deus.
No entanto, não podemos esquecer que a vida ascética deve estar combinada com os sacramentos. Trata-se de um ensinamento essencial da Igreja Ortodoxa. São Gregório Palamás lutou precisamente contra duas heresias bem características desse ensinamento: (1) o massalianismo (que valorizava o hesicasmo em detrimento dos sacramentos) e (2) o baarlamismo (que valorizava os sacramentos em detrimento do hesicasmo). Para receber os sacramentos, os catecúmenos passavam por quatro estágios de penitência e arrependimento, a saber:
1) fora do templo;
2) dentro do templo, mas só durante a Liturgia dos Catecúmenos;
3) dentro do templo, ao longo de toda a Liturgia, de joelhos; e,
4) dentro do templo, ao longo de toda a Liturgia, de pé, mas sem comungar.
Tais estágios fazem-se necessários porque o pecado é o obscurecimento do noûs, sendo que o arrependimento atuará para sua posterior cura e iluminação. Os sacramentos, então, entram como elementos sinérgicos, isto é, co-operadores, e dependem do estado espiritual da pessoa. Se não houver arrependimento sincero (e não mero remorso), os sacramentos atuam inversamente, isto é, causam tormentos à pessoa.
O autor lembra que a verdadeira teologia cristã é “néptica”, ou seja, está ligada à vigilância (nepsis) e à oração. A vigilância (nepsis) é a presença da razão nas portas do coração, guardando-o contra tentações, pecados e logismoi. É o que os Santos Padres chamam de “sentinela do coração”. Os logismoi podem levar um homem à insanidade, escravizando seu noûs. Esse processo ocorre em etapas, a saber:
1) acoplagem: “conversa” com os logismoi;
2) consentimento: decisão de agir segundo os logismoi;
3) desejo: o pecado é cometido; e,
4) paixão: repetição do pecado.
Dessa maneira, vigiando e orando, o homem se torna um ser verdadeiramente sociável, no sentido mais amplo e profundo do termo. Ademais, a morte é um dos maiores problemas existenciais modernos. Conforme se aproxima da morte, caso a pessoa não creia realmente na existência de Deus, lhe será dificílimo superar a insegurança e os momentos de angústia. A maior obra social da Igreja é, portanto, ajudar o homem a superar a morte, por meio dos sacramentos e do hesicasmo. Além disso, a Igreja também ensina o amor a todas as criaturas, cujo efeito trará seguramente benefícios ecológicos.
Por fim, o autor lembra que a espiritualidade é acessível a todos, isto é, a monges e leigos. As pessoas casadas devem cumprir todos os mandamentos, como os monges, afinal, há santos que foram casados. No entanto, cabe lembrar que os casados dos tempos apostólicos viviam como monges, já que o monasticismo foi criado justamente por causa da paulatina secularização da Igreja, acarretando, assim, o desaparecimento da vida ascética nas cidades. A família é o mosteiro das pessoas casadas, e é no ambiente familiar que se dará sua ascese. São Gregório Palamás lembra que os casados também podem almejar a purificação do coração. A tonsura monástica é um segundo batismo, ou seja, é a iluminação do noûs após o noviço ter passado, ao longo de seu noviciado, pela purificação do coração.