O conhecimento é a absorção que o
conhecedor faz da ideia que está contida no conhecido. Este ponto de união
entre ambos é precisamente o ser. O conhecedor só é capaz de dar-se conta de si
mesmo plenamente na medida em que se preenche totalmente pelas ideias. O
princípio da consciência não está em sua estrutura, mas no imediato
dar-se-conta do outro, do não eu.
É que para o meu pensamento se dobrar sobre si mesmo, requere-se, indirectamente, a ação do universo. Pois a consciência que tenho de mim mesmo é resultado duma excitação, e por conseguinte duma disparidade. Portanto só me reconheço “eu” quando me torno outro. Em suma faço-me “eu” fazendo-me tudo. Quando o sono me corta parcialmente a comunicação com o mundo, corta-me também proporcionalmente a comunicação comigo mesmo, e cortar-me-ia completamente se não fosse a parte do mesmo mundo que durante o sono comigo conservo. Restabelecido o contacto com o que existe, torno a sentir-me aquele que existe. [...] É o não eu, como dizem os filósofos no seu calão próprio, que se manifesta imediatamente à consciência, e não as condições internas desta representação. Portanto o que se conhece é o objecto e não a imagem ou suporte da imagem do objecto. No facto do conhecimento sou passivo; o ataque vem-me de fora. [...] E não havemos de admirar-nos de que seres à primeira vista tão estranhos entre si manifestem esta capacidade de se expandirem indefinidamente, até se tornarem, em certo modo, todas as coisas? Conhecer é de facto, com toda a propriedade, mudar-se em. Só conhecerei, se de alguma maneira me converter naquilo que quero conhecer. O acto de conhecer contudo permanece em mim, pois é alguma coisa de mim mesmo, uma vez que é perfeição minha; como diz S. Tomás, o conhecimento enquanto ser é uma perfeição daquilo que existe. [...] Como é que a consciência que tenho deste objecto poderia brotar da consciência que tenho de mim mesmo, como forçosamente tem de suceder? O facto do objecto se me propor do exterior, poderia acaso explicar alguma coisa? E que se me propusesse interiormente, se não passa disso, se o não assimilo, desconheço-o absolutamente. Requer-se um ponto de união, de ajuste, ou como diz Bergson, um ponto de sutura, uma película.
Tenho um determinado campo de existência fora do qual não posso sair; e o objecto tem o seu donde também não sai; por conseguinte se não houver compenetração no ser, será impossível qualquer acto de consciência.
Por isso, tanto insiste S. Tomás na afirmação de que o conhecer na sua origem é um ser. Os objectos conhecidos modelam-nos verdadeiramente à sua imagem, em alguma coisa que é nossa, comunicando-nos a sua forma de ser (species).
[...]
[E]ntre o conhecedor e conhecido se dá uma compenetração no ser; que o pensamento encerra, em certo modo, o ser, e por conseguinte pode ajudar-nos a defini-lo.
Não será por esta razão que S. Tomás escreveu a este respeito afirmações tão admiráveis como as seguintes? – que entre os diversos modos de possuir uma coisa, o conhecimento é o mais perfeito e íntimo de todos; que a contemplação é o grau mais sublime da vida; que a contemplação de si suspende qualquer outra actividade da vida, admitindo-a apenas com meio para se continuar a expandir.
[...]
E agora pergunta-se: qual o meio em que se baseia essa compenetração? [...] Sentimo-nos assim na necessidade de supor qualquer coisa em comum, superior a estas duas existências [conhecedor e conhecido], que se reúna numa só vida especial e homogênea. E que coisa será esta? [...] Responde-nos S. Tomás que é a forma de existência do objecto conhecido que se comunica; não como forma natural encarnada numa matéria, mas intencionalmente, isto é, como ideia ou intenção de natureza.
[...]
Desta análise segue-se que o real sendo cognoscível, visto que de facto o conhecemos, deve ser fundamentalmente constituído por aquilo mesmo que o torna capaz de ser conhecido; por outras palavras, o real tem de ser ideia. Ora a ideia fora de Deus e de nós é coisa; e a coisa em Deus e em nós é ideia [“ideia” tomada no sentido mais amplo (species, intentio)].
[...]
Como fugir à conclusão: - a realidade é ideia; o real é inteligibilidade adaptada à inteligência. [...] Sim, a alma humana é, de facto, na sua capacidade receptiva, toda ideia e toda ser. Aquele seu vazio insaciável é uma sede ardente que reclama a ideia e o ser, por amor à própria vida.
[...]
A inteligência é o facto capital dentre todos os que ela examina e classifica; é uma estrela no céu da natureza como prenúncio dum novo mundo. Melhor: é o olhar da natureza, o olhar que se ergue para o céu, olhar já penetrado de céu, olhar celeste que é um céu, pela sua substância e poder, pelo seu tesoiro de luz celestial; e que só é da terra pelos meios orgânicos de que lança mão.
[...]
O que é individual atingimo-lo só por uma potência meio cega e meio inconsciente, que é a sensibilidade; nunca chegamos porém a dominá-la; até mesmo a nossa própria individualidade, só superficialmente a atingimos e por meios não intelectuais.
Este último facto é sem dúvida o que mais nos surpreende: porque uma vez que a nossa individualidade está no íntimo do nosso ser, parece que não devia ser preciso esforço algum para atingi-la. E todavia por mais que a busquemos, nunca conseguimos apreendê-la na sua essência, nunca conseguimos agarrá-la.
[...]
Os nossos conceitos, expressões parcelares da realidade, não nos vêm por intuição, mas pela abstracção que nos obriga a retalhar o que é uno, a fixar o que é sucessivo, a imobilizar o tempo, e a esquartejar a substância; em suma, fazemos da natureza viva um montão de destroços.
Daqui provém aquele andar claudicante do espírito, de claridade em claridade, de aspecto em aspecto, até que as diversas tentativas de combinações com o nome de juízos e raciocínios avancem para uma luminosidade mais ampla, mas sempre limitada.
* * *
A intervenção de Deus no mundo não é por modificação, mas por actualização. Deus é Deus, e não um Demiurgo.
Descrevemo-la [a providência] assim, segundo a bela definição que S. Tomás tomou de Boécio: “a mesma razão divina que, colocada lá no mais alto cume dos seres, dispõe tudo”. De facto, a ideia de providência implica a de disposição, mas disposição dentro do próprio pensamento, disposição prévia aos factos; isto é, a ideia de providência é antes de tudo um plano. Mas reparemos que se trata dum plano a realizar, dum plano que não é meramente concebido pela inteligência, mas intimado como as ordens dum chefe. Portanto o que acontece, acontece segundo o que foi estabelecido e dentro da acção das suas causas temporais, embora este plano exista só na mente divina. A realização na ordem dos factos e a produção pela acção das causas, pròpriamente, já não são efeito da providência, ao menos na terminologia tomista, mas efeito do governo divino.
Logo, Deus é providente porque “dispõe tudo”, isto é, a ordem das coisas procede dEle do mesmo modo que a substância das coisas. E esta ordem supõe, por um lado, a orientação de cada ser para os fins particulares que lhe convêm ou aos quais deve servir como meio, e por outro, a orientação de todo o universo para o fim absolutamente último que é, como sabemos, a manifestação do Bem supremo.
[...]
A única coisa que se pode perguntar é como há lugar para o male para os erros nesta ordem divina. [...] [É] pela inevitável imperfeição do ser criado, ou até pela sua perfeição, como sucede quando a manifestação ou expansão da perfeição e um ser se faz à custa do mal de outro. Dentro desta ordem, podemos afirmar que é da infinita bondade de Deus que deriva a existência do mal; pois esta bondade, antes de mais nada, tem em vista o bem do universo, e já provámos como o bem do universo não só não exclui o mal, mas até o exige, tanto na ordem real como na do possível; e por conseguinte, este há-de sobrevir em muitos casos.
[...]
O Ser absoluto ao descer ao relativo, degrada-se; torna-se múltiplo e graduado; e daí nascem todas as oposições e interferências, e destas, por sua vez, o mal.
[...]
Os que, em nome da liberdade ou do acaso, pretendem subtrair a Deus alguma coisa, vão a caminho de O negar. [...] Nada portanto se exime do seu governo e, “para dele se eximir era preciso eximir-se do ser”. (Contra Gent. III, 1).
[...]
Da mesma maneira que participamos do ser primeiro, participamos da acção suprema; e como participamos do Ser divino sem lhe ajuntar nada, assim temos parte na acção divina sem a modificar nos seus resultados nem entrar com ela em qualquer composição.
Falta agora explicar os limites deste mistério. Porque o é de facto e ninguém pretende desvendá-lo. Tanto num caso como noutro [ser primeiro e ação suprema], o mistério é exactamente o mesmo; é que para Deus, o criar, é originar o ser com todas as suas manifestações.
[...]
As coisas não subsistentes, como a acção, dizem-se “concriadas”, isto é, criadas juntamente; o sujeito agente é criado como tal, isto é, como agente e também como sujeito; e a sua acção é também criada; é uma participação da Acção primeira, como o sujeito é participação da Substância primeira: duas coisas idênticas. Nelas se esconde o mistério das participações, o mistério da aliança e da conciliação entre o Ser absoluto e os seres participados, entre o Infinito e o finito.
[...]
A conciliação dos dois [acaso e providência] está no facto da subordinação, mas subordinação transcendente; por outras palavras, o acaso é um elemento do relativo, a providência um aspecto do absoluto; e este é quem lhe serve de base e o estabelece na sua natureza própria, sustentando-lhe. [...] O que a providência tem em vista no mundo não são ùnicamente os efeitos, mas também, e sobretudo, uma ordem em que as relações das causas aos efeitos entram com elemento principal.
Portanto, a direção impressa por Deus dentro do absoluto da acção criadora, longe de suprimir a contingência, deve até assegurar-lhe o êxito. É que a soberania de Deus é suficientemente alta para não forçar a liberdade das suas obras; Deus é um soberano que pode dar aos súbditos toda a liberdade, pois é tal o seu governo que tem as próprias liberdades como elementos. Não violenta as suas obras, mas investe-as de poder; e assim, entre elas pode uma sair vitoriosa à custa de outra, pois duas causas criadas postas em concurso, ou se unem ou se repelem. A acção de Deus porém nem compõe com a nossa nem se lhe opõe; ela que é origem de tudo, tudo respeita; por conseguinte, quando exerce o seu influxo, nem por isso o efeito tem de ser colocado na ordem do necessário; é simplesmente colocado no ser, necessário ou contingente, segundo a determinação que lhe impõe a vontade divina.
A ilusão nasce de se ver Deus uma causa com qualquer outras, apenas mais poderosa, um Demiurgo cuja acção reúne em si as acções criadas, actuando no mesmo plano que elas e somando-se-lhes, secundando-as ou contrariando-as, dentro da mesma ordem delas. Nestas condições, se Deus não intervém, podem de facto as causas criadas conservar a sua espontaneidade natural; se porém se dá a intervenção de Deus, a eficácia omnipotente do seu poder arrebatará a si tudo, e já não haverá contingência, nem acaso, nem sequer liberdade.
[...]
A ver se nos explicamos ainda doutro modo. Deus não modifica nada; actualiza; actualiza o livre na sua liberdade; actualiza o necessário na sua necessidade; actualiza o homem como sujeito, o homem livre, o homem que age livremente, e por conseguinte, o acto de liberdade; mas entre estes elementos não se intromete nenhuma intervenção modificadora; a influência divina, que está subjacente, sustenta tudo, dá actualização a tudo sem lhe mudar a natureza. Portanto, como o ser de Deus subjacente ao nosso, o não absorve nem o impede de ser autônomo, assim a acção de Deus, subjacente à nossa, não lhe tira a liberdade nem a torna necessária.
* * *
O poder da alma limita-se ao corpo apenas
parcialmente; Tomás conjectura que a alma possa influenciar o meio para além
dos limites impostos pelo corpo
A alma humana tem perfeição suficiente para subsistir por si mesma, como o anjo; mas não, para se caracterizar individualmente e agir sem a cooperação do corpo. Este serve-lhe para captar as vibrações cósmicas e para lhes responder pelas suas reacções. Só por meio do corpo nos é dado conhecer, não digo já a matéria, mas também o espírito; pois toda a ideia, até mesmo a de Deus, radica primitivamente nas coisas, as quais só através dos sentidos entram em nós (omnis cognitio a sensu).
[...]
Até onde vão os poderes da alma? Até onde vai a nossa parcial identificação com o meio. Ora o nosso corpo é precisamente este meio, enquanto em parte se identifica connosco. Nada prova contudo que a zona de identificação parcial, assim estabelecida, se não possa alargar mais. E, na medida em que se alargasse, teríamos a faculdade de modificar o nosso meio por actos imanentes, conscientes ou não, segundo o modo como nos modificássemos a nós mesmos. E nesse caso dar-se-ia a magia, a exteriorização da sensibilidade, os êxtases, a telepatia etc., etc., fenómenos que S. Tomás chegou a conhecer ou a conjecturar, e que nem sempre atribui à intervenção diabólica.
* * *
Pensar o pensamento equivale ao raciocínio,
que é apenas uma subida de função, não uma intuição intelectual, que, por
sinal, não existe no tomismo
A intelecção, descrevemo-la por comparação, com a sensação e com as condições em que esta se dá; e a sensação, descrevemo-la em proporção com a acção e paixão, como, por exemplo, quando dizemos que os objectos movem os sentidos. Com esta diferença apenas, que a acção e paixão da sensação são para nós objecto de intuição: sentimo-nos sentir; ao passo que a acção e paixão intelectuais, só por analogia proporcional se podem considerar como tais. Normalmente não se dá intuição intelectual. Pensar o pensamento, não é voltarmo-nos sobre o nosso objecto próprio, mas subir no sentido das suas condições; condições necessárias e portanto definíveis, como funções, não porém em si mesmas. Dá-se uma coisa parecida ao que afirmámos do conhecimento de Deus; é uma espécie de álgebra; mas na álgebra também há verdade.
* * *
A imaginação e a cogitativa. A experiência,
por collatio, pode proteger o indivíduo pouco intelectualizado das más
influências exógenas.
A imaginação é uma potência diferente, mas conexa com a anterior [sentido comum]. Os sentidos próprios e o comum recebem impressões, que a imaginação conserva, associa e combina. Desta primeira elaboração, resulta uma espécie de juízo, ainda inteiramente instintivo e determinado apenas pelas leis da espécie e não pela iniciativa do sujeito. No animal, este instinto é puro de qualquer mistura e deixado a si mesmo; no homem porém, está compenetrado com a razão, donde lhe vem o nome de razão particular ou cogitativa. Diz-se razão particular, para notar que o universal, ainda não elaborado, não entra em jogo; que o sujeito passa apenas dum caso particular a um caso semelhante, ou de vários casos particulares a um caso novo, mas da mesma espécie, sem que intervenha um princípio. Daqui nasce a experiência, que “consiste na aproximação consciente (collatio) dos casos singulares da mesma espécie, conservados na memória”; aproximação de que resulta uma regra empírica de acção, que ainda não é ciência nem arte, mas que no homem é já prenúncio delas. Convém notar que essa experiência não é puramente individual, mas que toma uma forma social. Pela hereditariedade, educação, influência mútua, a criança e o adulto chegam a formas de experiência muito superiores às que um indivíduo poderia atingir; a contribuição dos séculos decorridos permite-lhes agir sàbiamente sem sabedoria, engenhosamente sem engenho pessoal, artisticamente sem arte.
* * *
A “memória intelectual” é a conformação e
os vincos que o intelecto ganha ao contemplar e absorver as ideias. A
importância de ter um intelecto rico em ideias para que a “memória intelectual”
lhe sirva para que continue amealhando novas e maiores experiências após a
morte.
É questão que tem sua importância, o saber se as ideias extraídas da experiência sensível interna, dos fantasmas, se conservam no entendimento ou se apenas reaparecem nele, quando se reproduzem as condições cerebrais que as originaram. Na opinião de S. Tomás, a resposta era de consequências graves; porque se a ideia se não conserva em si mesma, se o que permanece é a mera capacidade de reviver quando se der nova iluminação dos phantasmata, que será dos nossos pensamentos e da recordação deles, quando a alma, separada do corpo, já não tiver à sua disposição recurso algum cerebral, nem experiência dum mundo que se extinguiu.
É certo, como adiante diremos, que a alma adquirirá então urna nova experiência, superior à primeira; mas o superior não supre inteiramente o inferior; estamos de tal maneira ligados aos nossos pensamentos que, se desaparecessem, deveriam ser substituídos por um equivalente estranho, de valor infinitamente mais elevado que o deles. E enfim, a doutrina da alma exige ser completada numa matéria que se apresente necessàriamente ao espírito. No comentário às Sentenças (IV, dist. L, q. 1, a. 3) S. Tomás toma neste ponto uma atitude bastante dúbia. Mais tarde a sua opinião torna-se mais firme embora certas expressões e, segundo se diz, certos incidentes da vida manifestem ainda uns restos de dúvida. A razão para afirmar que as ideias se conservam na inteligência é que, se uma potência espiritual é capaz de receber uma nova conformação, uma caracterização, deve também ser capaz de a conservar; e além disso não é nada provável (non videtur probabile) que a mudança espiritual, com o nome de ideia, venha a acabar num produto ontológico menos estável do que as imagens materiais. Estas conservam-se no meio do fluxo incessante de que é sede o órgão animado: a fortiori deve conservar-se a forma adquirida pela evolução do conhecimento, em iguais circunstâncias, para requerer para o seu exercício as condições orgânicas universalmente reconhecidas como necessárias.
Não esqueçamos que conhecer é ser, isto é, ser outro por uma adição de acto; o acto do conhecido que se insere na actualidade anterior do sujeito. Ora, entre a pura potência para ser outro, e a posse actual deste enriquecimento, que é um acto segundo, há lugar para o acto primeiro, que é a ideia adquirida, mas ainda não vivida; estado dum ser formado inconscientemente à imagem de outro (informatus) e prestes a tomar consciência disso, desde que se realizem as condições exigidas para o conhecimento actual. Parece portanto (videtur) que qualquer ideia adquirida se conserva no tesoiro da alma, indefinidamente, pois aqui, no domínio do imaterial, o fluxo das mudanças materiais não poderá atingi-la. E assim todo o enriquecimento de ideias vale também para a outra vida onde todavia será relativa a sua utilidade. Não é porém isto, como já dissemos, o que se chama própriamente memória. Esta diz sempre relação ao passado como passado. E assim, pensar urna coisa sem incluir nesse acto esta condição de distância temporal, ainda que se pensasse pela segunda ou terceira vez, não seria lembrar-se. Ora o tempo é a numeração do movimento que é uma condição das coisas materiais. Corno a ideia diz relação apenas ao universal, portanto ao imaterial e ao imóvel, não inclui em si nenhuma condição de tempo, e por conseguinte pode representar o que é passado, mas não o passado na sua forma própria; na sensibilidade é que o passado como passado, deixa marcados os seus vestígios; o nosso corpo é que é a potência em que se regista o passado. Reencontramos o que já passou, mas que ainda nos atinge, por um movimento de regressão a que S. Tomás dá o nome de reminiscência (acto de se relembrar). Ora nesse acto intervém o contínuo, logo também a matéria.
Por consequência, na alma separada do corpo, as ideias abstractas que nela permanecem, se de facto permanecem, não lhe são certamente inúteis; constituem uma disposição especial que condiciona o uso das ideias vindas de mais alto, determina a sua generalidade a certos objectos, fazendo assim que a alma torne a pensar o que outrora pensou, com consciência de que o pensa. E isto, de algum modo, é de facto lembrar-se. Mas em todo o rigor e segundo a terminologia filosófica ordinária, continua verdadeira a afirmação de Aristóteles: dissolvido o corpo, já a alma se não pode recordar de nada. Em suma, falando, com toda a propriedade, não há memória intelectual.
* * *
A alma após a morte
Resta o problema da sobrevivência da alma que, uma vez admitida com S. Tomás, contra todas as formas de Platonismo, a doutrina do composto humano, se põe ainda em termos bastante delicados.
Não podemos morrer completamente; as ideias cativas divinas, são como reféns contra a brutalidade da morte. A alma, por ser imaterial, não poderá sofrer a divisão a que está sujeito o corpo, nem a dissociação em seus elementos, nem a destruição. Como poderíamos por conseguinte perecer com a imortalidade dentro de nós?
É verdade; mas precisamente esta fórmula dá origem a uma dúvida. Se em nós há imortalidade, é sinal de que em nós nem tudo pode morrer; mas não de que não morreremos. O homem é composto de corpo e alma; portanto, destruído o corpo, deixa de existir o homem; e já nem sequer o nome de homem se lhe pode dar, como adverte engenhosamente S. Tomás. Afirmar a sobrevivência do homem, seria regressar ao idealismo de Platão, e admitir que a alma intelectual, constitui só por si o homem, em vez de o conceber como uma emergência num ser entregue parcialmente ao fluxo da matéria.
A esta dificuldade responde a fé com a doutrina da ressurreição da carne, doutrina inteiramente natural, dado que o estado natural da alma é existir na carne; a filosofia porém não possui este recurso; verifica que o homem morre e não pode dizer que reviverá; deve contentar-se com afirmar que nele não morre tudo, ajuntando que visto a alma ser em nós a parte principal e o principal se tomar vulgarmente pelo todo, se pode sob este aspecto afirmar, com aproximação, que nós somos imortais. E isto já não será seguir a Platão, que falava com rigor, e concebia a união do espírito com a matéria, apenas sob forma acidental.
Dificuldade, porém, mais grave, é a seguinte. Para que serve à alma, depois da morte, conservar o ser, se perde as suas funções? Pois nenhuma função parece possível fora do corpo, ou melhor, fora dum estado excelente do corpo. A enfermidade atinge a inteligência, podendo mesmo chegar a suprimir-lhe inteiramente o exercício, ao impedir as condições orgânicas de que dependem os sentidos, a imaginação, a memória, suporte da inteligência.
A resposta é um pouco embaraçosa; tem de sê-lo, e os adversários medievais de S. Tomás tinham, neste ponto, óptima oportunidade para lhe censurar o seu aristotelismo.
Se o sujeito pensante não é pensante em acto, senão sob a condição de imagens interiores; se as imagens supõem o organismo e o organismo o meio cósmico, como é que, dissolvido o organismo e não comunicando a alma mais com o meio por este intermediário, como poderá esta operar, mesmo para tomar consciência de si própria? “Existir, é sentir o seu corpo”, escreve Maine de Biran. Se a alma não sente mais o próprio corpo, também não poderá saber de modo algum que existe. O sono sem sonhos, será portanto a realidade da morte? Mas nesse caso, sem falar no que há de constrangedor numa tal suposição, como imaginar, dentro do plano da natureza, esta sobrevivência inconsciente e inerte? Não ser para si nem para outrem, será de facto existir ainda?
Daí a supor que, mesmo nesta vida, o intelecto separado da matéria não é inteiramente pessoal; que é uma influência comum; que esta luz, provisória para cada um de nós, ilumina durante algum tempo, e depois abandona e deixa cair na noite estas migalhas de humanidade, estes efémeros que nós somos, não havia mais que um passo. Averróis franqueou-o, pretendendo apoiar-se em Aristóteles. Quem sabe ?... Contudo, os comentários de S. Tomás sobre o Tratado da Alma subsistem do mesmo modo que o admirável estudo da Unidade do Intelecto, contra os Averroistas. Não se compreende menos a dificuldade, sob o ponto de vista positivo, em afirmar uma sobrevivência que se vê ser totalmente indescritível, a partir dos dados da psicologia terrestre.
Contudo, o caso não é tão desesperado como parece. Encontramos certa ajuda nesta verificação: que o papel actual do intelecto passivo, isto é, a sua receptividade ideal sob a invasão do mundo sensível, portador de ideal, não esgota a sua potência. É um receptáculo de ideias; importa pouco à sua natureza, que estas ideias lhe venham do sensivel. É esta a sua condição actual, mas não condição necessária. Uma vez que a sua natureza separada (quer dizer, independente da matéria) o torna inacessível à morte, e a sua natureza receptiva sem limitação modal, faz possível a sua informação ou determinação cognoscitiva debaixo doutras condições - a imortalidade consciente e activa nos seus elementos.
Demais, a alma, ideia real, é, como sabemos, ela mesma um inteligível. Se ela não tem nesta vida a intuição de si mesma, é, sem dúvida, porque a sua união ao corpo a orienta para os objectos do corpo, a circunscreve aos meios do corpo. Separada, colocada de novo no puro contacto de si mesma, porque não desempenharia ela o seu papel de inteligível inteligente e, por esse meio, conhecendo-se, não estenderia ela o seu conhecimento a tudo quanto diz respeito à própria natureza, tocando o ser e as causas do ser? Isto pode ir longe, sem qualquer auxílio exterior. De resto, universalmente receptiva, pode receber do alto o que não recebe de baixo; do espírito o que não recebe da matéria. Psicologicamente pode-o; se moralmente o deve, tudo irá bem; o homem com suas aspirações, o moralista preocupado com os seus postulados, o cristão dominado pela sua fé, podem satisfazer-se.
A resposta de S. Tomás é, portanto, esta. As funções que dependem do corpo perecem: tais os sentidos, a imaginação, a experiência sensível, a memória propriamente dita, as paixões; mas as funções racionais não perecem nunca. Unicamente mudam ponto de apoio. “O agir é da natureza do ser. Actualmente, a alma, ainda que transcendente ao corpo e independente dele no seu ser, tem o próprio ser ligado ao corpo, como a um suporte, e ao sujeito que a recebe. Consequentemente, a sua própria operação, que é a operação intelectual, embora não dependa do corpo, no sentido em que ela se exerceria por um órgão corporal, não deixa de encontrar no corpo o seu objecto, que é a imagem mental (phantasma), de tal sorte que, enquanto estiver no corpo, a alma não pode pensar sem imagem, e não se pode lembrar senão por um novo apelo à imagem, por meio da cogitativa e da memória sensível. Daqui se segue que, devido a este modo de funcionamento, o poder de pensar e de se lembrar não pode sobreviver à destruição do corpo. Mas o ser da alma separada, a ela sómente pertence, independentemente do corpo; por conseguinte, se a operação é da natureza do ser, a operação própria da alma, isto é, o pensamento, não se exercerá sobre objectos que tenham a sua existência em órgãos corporais, como as imagens mentais; mas a alma pensará por ela mesma, como sucede às substâncias totalmente separadas dos corpos, e destas substâncias superiores poderá receber mais do que agora a influência, afim de pensar mais perfeitamente”.
Como se deduz destes textos, S. Tomás refere-se, para interpretar a sobrevivência, a uma faculdade de intuição que a alma possui desde agora, mas que está ligada por uma espécie de fascinação corporal, de obsessão pela matéria conjunta. Esta faculdade está em nós, dirá Lachelier, “como a faculdade respiratória durante a vida intra-uterina”. Chegado o nascimento imortal, este poder manifestar-se-á como a criança recem-nascida respira num grito.
Há, porém, em tudo isto, uma dificuldade. Se a alma pode desta maneira agir por si mesma e fora do corpo, podemos perguntar por que motivo foi ela unida a um corpo e se isto é realmente “para seu bem”, como o declara S. Tomás contra Origenistas e Maniqueus que viam nisso uma decadência e um castigo. S. Tomás responderia: a alma pode agir sem o corpo, mas o corpo não é para o seu exercício uma coisa inútil. Situada no degrau mais inferior das inteligências, ela não poderia, reduzida a si mesma, participar da verdade mais do que em pequena escala. O corpo é para ela fonte de informação, graças às janelas dos sentidos, abertas sobre o mundo. Dissolvido o corpo, a alma volta a si mesma, e por este título só adquire pouco; mas o mundo superior, de que ela não tinha nesta vida mais que reflexos, entrega-se-lhe em abundância; ela beneficia duma descida de inteligível, em vez da ascensão exclusiva das formas a partir da matéria: Luz directa que sucede à filtração laboriosa da abstracção. “A alma humana está nos confins de dois mundos, no horizonte do tempo e da eternidade: quando ela se retira do inferior, aproxima-se do supremo, e, completamente separada do corpo, será plenamente semelhante às substâncias separadas, recebendo delas a verdade com maior abundância”.
Em poucas palavras, a alma, ao desabrochar no corpo, é degradada na sua substância espiritual; depois da separação pela morte é reconstituída e engrandecida na sua mesma espiritualidade, graças a uma colaboração superior. A posse do nosso corpo dá-nos os direitos e vantagens dum espectador do mundo e dum cidadão activo da natureza; perdido o corpo, não perdemos mais que o nosso lugar nesta escola de príncipes; em contrapartida, abre-se-nos o reino definitivo, e o palácio paternal tem mais claridades que o nosso albergue provisório. O corpo alimenta o espírito, mas como o carcereiro alimenta o prisioneiro na cela; fornece-lhe o sensível e encarcera-o no sensível; consola e perpetua ao mesmo tempo a sua detenção. O caminho do progresso decisivo, para nós, não é em direcção ao cosmos, mas para o nosso interior, ligado ao seu Princípio, posto ao nível deste mundo do espírito, em comparação do qual o mundo da matéria não é mais que o reino das sombras.
Lembremo-nos que a matéria é um precipitado do espírito, um desfalecimento, um fumo de espirito; uma vez unidos ao mundo espiritual, os objectos de que actualmente vivemos não nos parecerão mais do que simples sombras. Sombras repletas de reflexos, que são as formas originadas do Espírito criador; mas em todo o caso, sombras. E o nosso mesmo corpo não será mais do que uma sombra, destinada a receber mais tarde, ao reviver, a luz do espírito.
Vê-se, como segundo o pensamento de S. Tomás, se reparte para nós o conhecimento, através dos domínios que devemos sucessivamente habitar. Na terra, tudo tiramos da experiência, isto é, da penetração do mundo em nós, da invasão das formas incarnadas que a abstracção intelectual desencarna. Mas desde agora, operando por esta forma, comungamos com o mundo do espírito. A fonte da luz das coisas está no alto; a forma é “divina”; através da natureza comunicamos, sem o saber, com a Fonte ideal; a “visão em Deus”, neste sentido, é uma verdade: nós não podemos haurir a verdade senão em Deus, no Qual reside; duma maneira ou doutra, é preciso que Deus se misture ao pensamento, e que a nossa ciência, a nossa arte, ou qualquer outra coisa que implique inteligibilidade, seja uma colaboração divina. As nossas ideias vêm do alto, ao mesmo tempo que vêm de baixo, como a imagem do sol, no mar, vem realmente do sol, ao mesmo tempo que vem do mar. O nosso pensamento é um reflexo ideal, como os seres são um reflexo real, dum absoluto ao mesmo tempo ideal e real.
Mas então, noutras condições, franqueadas as barreiras deste mundo, o Absoluto e seus sucedâneos superiores podem reflectir-se em nós, sem o intermediário do real que nos rodeia. O mundo inteligível, de que a alma, rotas as cadeias, fará parte, alimentará o pensamento, restituindo-lhe superabundantemente o que ela parecia ter perdido. Em vez de contemplar as ideias por um reflexo, recebê-las-emos da sua fonte e contemplá-las-emos em nós, connosco mesmos na nossa essência inteligível. Deus, os Anjos, e nós, transparentes a nós mesmos; mas Deus em tudo e em todos: tais serão os nossos recursos.
Fonte: Antonin-Dalmace Sertillanges, As grandes teses da filosofia tomista, Livraria Cruz, Braga, Portugal, 1951.