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Assim como as pólis, que são castigadas pela guerra de fronteira e pela contínua campanha, se contentam com a boa ordem e um governo sólido, também as pessoas que foram obrigadas, por causa de inimizades, a praticar uma vida sóbria, a guardar-se contra a indolência e o desprezo e a deixar algum bom propósito a cada ato, são insensivelmente levadas pela força do hábito a não cometer erros e são ordenadas em seu comportamento, mesmo que a razão venha pouco em seu auxílio.
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Se você deseja afligir o homem que o odeia, não o insulte como lascivo, efeminado, licencioso, vulgar ou mesquinho, mas comporte-se realmente como um homem, mostre autocontrole, seja sincero e trate com bondade e justiça aqueles que têm que lidar com você. E se você for levado a injuriar, afaste-se o máximo possível das coisas pelas quais você o atribui. Entre no âmago de sua própria alma, olhe em volta para ver se há alguma podridão lá, para que algum vício dentro de você sussurre as palavras do poeta trágico: Você quer curar os outros, cheio de feridas você mesmo?
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Sempre que Platão se encontrava na companhia de pessoas cuja conduta era imprópria, ele costumava dizer a si mesmo: É possível que eu próprio seja como eles? Se o homem que insulta a vida alheia examinar cuidadosamente a sua própria vida e refletir, orientando-a e desviando-a para o caminho oposto, terá ganho algo útil com essa injúria.
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Pois há muitas coisas que um inimigo percebe mais rápido do que um amigo (pois o amor é cego em relação àquilo que ama, como diz Platão), e inerente ao ódio, junto com a curiosidade, é a incapacidade de segurar a língua.
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Desta maneira, então, nos é possível mostrar as qualidades de gentileza e tolerância em nossas inimizades, e também franqueza, grandeza de espírito e bondade melhor do que em nossas amizades. Não é tão honroso fazer o bem a um amigo, mas é vergonhoso não o fazer quando ele está em necessidade; até mesmo renunciar a se vingar de um inimigo, quando ocorre uma boa oportunidade, é uma coisa bonita de se fazer. Mas no caso de um homem mostrar compaixão por um inimigo em aflição, ajudá-lo quando estiver em necessidade e mostrar alguma preocupação é zelo em favor de seus filhos e assuntos domésticos quando eles precisarem, digo que quem não sente afeição por tal homem por causa de sua bondade, ou não elogia sua bondade, tem um coração negro forjado de aço ou de ferro.
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Mesmo que nossos inimigos por lisonja, artifícios, suborno ou traição pareçam colher sua recompensa na forma de influência desonrosa e sórdida na corte ou no governo, eles não serão motivo de aborrecimento, mas sim de alegria para nós, quando comparamos nossa própria liberdade e a simplicidade de nossa vida isenta de ataques indecentes. Pois todo o ouro que está sob e sobre a terra não vale tanto quanto a virtude, como diz Platão. [...] Mas como o amor é cego em relação àquilo que ama, como diz Platão, é são nossos inimigos que, por sua conduta imprópria, nos dão a oportunidade de ver as nossas condutas, não devemos deixar de lado nossa alegria por seus fracassos nem nossa tristeza por seus sucessos, pois devem ser empregados para algum propósito.
Fonte: Plutarco, Como tirar proveito dos seus inimigos, Editora Vozes, Petrópolis, Brasil, 2023.