A exemplo de Mário Ferreira em suaFilosofia Concreta,
o filósofo brasileiro Daniel Scherer também adota a experiência fundamental do ente
como o ponto de partida para expor os elementos essenciais da filosofia de
Tomás de Aquino e dos tomistas que a ele se seguiram, com especial ênfase ao
filósofo argentino Álvaro Calderón.
Ente é, segundo Scherer, tudo aquilo que
é ser (ou tudo aquilo que tem ser). Trate-se do primo cognitum,
do princípio ontológico absoluto, e duvidar desse princípio implica
forçosamente em afirmá-lo ao mesmo tempo.
No entanto, se o ente é aquilo que é ser,
então poderíamos concluir, de maneira um tanto óbvia, que o ente é ser. Sim, mas
a coisa não é tão simples assim. O ente é ser, é verdade, mas o ente não
é o ser. O ente recebe seu ato de ser do Ser, ou seja, de
Deus. Para usar os termos latinos de Tomás de Aquino, o ente recebe seu actus
essendi do Ipsum Esse Subsistens (o Próprio Ser Subsistente, uma expressão
tomista também usada por Edward Feser em sua quarta prova da existência de Deus).
Em suma, nas palavras de Scherer, “a essência do ente é atuada por um ato de
ser que lhe é participado pelo Ser”. Ao homem só lhe resta chegar ao Ser
mediante o ente, e nisso reside uma das principais, senão a principal, síntese
da filosofia tomista.
Quanto ao complexo tema da distinção entre
ser e existência, melhor reproduzir excertos de Scherer e de Carlos Nougué, a
quem, aliás, dedica sua obra:
O ser é aquilo por que algo é. A forma é aquilo por que o ente opera e que (conjugada à matéria nos entes sensíveis, e sem ela nas substâncias separadas) lhe dá seu modo específico de ser. O ser é dado ou participado à coisa por meio da forma, que é como um instrumento do ser.
[...]
A existência é o ser enquanto predicado a algo; destarte, pode ser dito que [a existência é] o ser alcançado pelo juízo, mediante “a composição de uma proposição, à qual a alma chega unindo um predicado a um sujeito” – não, por óbvio, no sentido de que a existência está apenas no juízo, dentro da mente humana, mas no sentido de que a alcançamos pelo juízo. [...] Quando dizemos, por exemplo, “este cão é”, tal “ser” que lhe predicamos é sua existência. Essa existência nós a tocamos com os dedos – é concreta – e podemos distingui-la apenas gnosiologicamente (e não in re) da essência do ente, porque quando abstraímos a essência “cão” a separamos (abstrativamente, e apenas assim) da existência sensível do animal.
[...]
O primeiro modo pelo qual se pode dizer ser significa o ser como ato de ser (actus essendi); o segundo modo significa o ser como ser em ato (in actu esse) ou fato de ser – isto é, significa aquilo a que, para todos os entes, menos (tecnicamente) Deus, também chamaríamos existência. A distinção entre essência e ser (esse) – diferentemente da distinção entre essência e existência – não é de razão, mas perfeitamente real. O ser é aquilo que, participado por Deus mesmo, à criatura, atua sua essência e lhe dá, como decorrência, existência. A essência do artefato tem ato de ser na mente de quem a pensa; este cão tem ato de ser nele mesmo – e de modo específico, dado por sua essência, mediante sua forma.
[...]
Como os entes criados variam quanto à forma (e, pois, quanto à essência, que a inclui, nos entes compostos), segue-se que os vários entes criados se distinguem quanto ao modo de ser (modus essendi). [...] Já a existência é uma decorrência indistinta para todos os entes criados de seu ato de ser. Todos os entes criados, independentemente de seu modus essendi, existem igualmente.
E de Carlos Nougué:
Pois bem, em geral, diferenciam-se o ser com ato de ser e o ser que se encontra no juízo. NOS ENTES CRIADOS, ademais, o ser com ato de ser é o que se distingue realmente da essência, distinção que não é cognoscível senão para os sapientíssimos; e o ser como ser em ato [por contraposição do ser com ato de ser] ou como fato de ser (o qual está para o ser que se encontra no juízo como a causa para o efeito) é o que não se distingue da essência senão secundum rationem (ainda que com fundamento in re), distinção que porém é evidente para todos. Em português, não é inconveniente que o segundo – ou seja, o que se encontra ao responder a questão na sit (se é) – se traduza também por existir, e seu abstrato por existência: trata-se aqui, insista-se, do fato de ser (ou seja, o fato de ser real e não irreal nem somente possível), não do ato de ser, de que decorre tal fato. Sucede porém que com respeito a Deus é sempre inconveniente usar existir ou existência: porque falando propriamente, só os entes criados ex-sistem (“provém de”), justo enquanto são ex-causas, ao passo que Deus é incausado. Em resumo, Deus é, mas não ‘existe’. – Ademais, nem sequer quanto aos entes criados se pode traduzir sempre o VERBO esse por ‘existir’. Por exemplo, o verbo ser em “ser cão é ser mais que ser erva” não é comutável por ‘existir’: com efeito, não é possível um “existir (como) cão é existir mais que existir (como) erva.
a) A essência será a resposta à pergunta
inaugural da Filosofia: quid est? Essa resposta se desdobra em
aspectos essenciais:
1) substância (é o ente enquanto
tal, aquilo que existe em si mesmo) e acidentes (é o ente de um
ente, aquilo que existe na substância e é percebido pelos
sentidos). As substâncias podem ser de dois tipos: primárias (este
homem) ou secundárias (gênero animal e espécie humana). Os
acidentes podem ser de nove tipos: quantidade, qualidade, relação, lugar,
tempo, posição/situação, hábito/estado, ação e paixão. São em total -
substância mais os nove tipos de acidentes - as dez categorias aristotélicas.
2) distinção numérica
3) distinção específica
4) distinção genérica
b) A seguinte pergunta a ser lançado ao
ente é quomodo est? A resposta serão os atributos ou aspectos do
ente. Não estamos falando das qualidades, mas das propriedades do ente. A
questão quomodo est divide-se consequentemente nas seguintes questões:
1) Quid est. Mas desta vez estamos interessados
na natureza da propriedade, não na natureza do ente.
2) Quia. É a questão acerca da existência
da propriedade desse ente. Chama-se assim porque, caso efetivamente pertença ao
ente, diz-se quia ita est (porque é assim).
3) Propter quid. Por que razão. É a
questão acerca da causa da propriedade. Este é o ponto de partida da
ciência: a causa está no sujeito e a propriedade pertence a essa causa,
portanto a propriedade pertence ao sujeito. A causa é um termo médio
desse silogismo, ou seja, é um meio copulativo entre o sujeito e a
propriedade. Como há uma relação de necessidade entre o sujeito e suas
propriedades, segue-se que só pode existir a ciência do necessário.
Mas nem só de ciência vive o homem. Ele
também precisa da arte, ou seja, ele também necessita manipular certas coisas
para determinados usos. Aqui cabe apontarmos a diferença entre ciência e arte. A
definição clássica de ciência é que ela é o conhecimento das coisas por suas causas.
Em outras palavras, a ciência investiga tudo o que possa ter uma relação de
necessidade na coisa, seja em suas partes e propriedades, seja em suas causas e
efeitos. As ciências se dividem em dois tipos: (1) ciências especulativas (Filosofia
da Natureza, Matemática e Metafísica – são as ciências propriamente ditas
porque contemplam a ordem das coisas ao passo que não se preocupam em ordenar
nada, ou seja, o intelecto se torna “plástico” ante o sujeito da ciência assim
como a matéria é “plástica” ante a forma) e (2) ciências práticas (ciências
morais e artes mecânicas).
Por outro lado, arte é “fazer” algo com
retidão. Se nas ciências há uma relação matéria-forma entre o intelecto e o
sujeito da ciência, nas artes a relação é mais de agente-fim entre a arte e o
sujeito da arte. Elas podem ser de três tipos: (1) artes servis (ordenam os
atos do corpo – são as artes propriamente ditas), (2) artes liberais (ordenam
os atos da razão) e (3) prudência (ordenam os atos dos apetites).
Observa-se que há uma zona de solapamento
entre ciência e arte. A Matemática, por exemplo, é uma ciência especulativa e
uma arte liberal. A Engenharia Eletrônica, por outro lado, é uma ciência
prática e uma arte servil. Como isso é possível? Ocorre que toda arte, embora
sirva a um fim, também aplica uma forma a uma matéria. Por isso, há artes que
apresentam um aspecto científico, e há ciências que apresentam um aspecto
artístico, embora todas elas pendam mais para ciência ou mais para arte.
No entanto, há uma exceção: a Lógica.
Ela é perfeitamente arte (porque sua matéria é universal, e não particular,
como a Prudência, por exemplo) e perfeitamente ciência (porque, novamente, sua
matéria é universal, e não particular, como a Metafísica, por exemplo). Tais
distinções entre ciência e arte são importantes para que Scherer, com Santo
Tomás e Calderón em punhos, possa traçar uma ordem das diversas disciplinas. E,
claro, a primeira disciplina a ser aprendida tem de ser a Lógica, que será
posteriormente encarnada, uma vez dominada, nas demais disciplinas (Filosofia
Natural, Matemática, Metafísica etc.). A Lógica é a “alma das ciências”.
Chama-me especial atenção a maneira como Calderón descreve a Filosofia: ela
seria uma arte que “dispõe as ‘paixões da alma’”, ou seja, ela adequa as
concepções do intelecto às coisas. Em outras palavras, as concepções do
intelecto são “imagens” ou “representações” das coisas e, a partir daí,
torna-se viável dispor (ordenar) as paixões da alma.
Dizíamos que a matéria da Lógica é
universal. De fato, tal matéria não é outra coisa senão as próprias operações
do intelecto. São elas: (1) intelecção (→ conceito), (2) juízo (→ proposição) e (3) raciocínio (→ argumento/silogismo). As operações (1) e (2) são simples e
intelectuais, enquanto a (3) é complexa e propriamente racional. Participam das
operações da Lógica, além de sua matéria, os entes de razão, que são as
intenções que a razão descobre nas coisas (gênero, espécie etc.) e que são
propriedades não das coisas, mas dos conceitos.
Por falar em propriedades dos conceitos, há
certas propriedades que designam modos ou aspectos do ente. São os famosos transcendentais.
Enquanto gênero, espécie etc. são modos especiais do ente, os transcendentais
são modos gerais que se aplicam a todos os entes. Chamam-se assim porque
transcendem as já citadas dez categorias aristotélicas. São 5 em total, e se
dividem em dois tipos (1a) transcendental negativo que se aplica ao ente em si
(uno, pois não é múltiplo), (1b) transcendental positivo que se
aplica ao ente em si (coisa, pois tem uma essência), (2a) transcendental
negativo que se aplica ao ente em relação a outros entes (algo, pois não
é outro), (2b) transcendental positivo que se aplica ao ente em relação a
outros entes (verdadeiro, segundo o intelecto, e bem,
segundo a vontade). Os transcendentais sublinhados são os clássicos, os mais
estudados pelos filósofos.
Quanto à clássica doutrina da analogia entis,
tão intensamente combatida pelo Pe. John Romanides,
trata-se de um princípio basilar do tomismo. Cita Tomás de Aquino o Apóstolo
Paulo nesse sentido: Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do
mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e
claramente se veem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem
inescusáveis (Romanos 1:20). Em suma, o que é por essência (i.e., Deus) é
causa de tudo o que é por participação (i.e., as coisas criadas). Tomás chega a
dizer que “a pedra imita Deus”.
Citamos acima a “Filosofia Natural”, às
vezes também chamada de “Física Geral”. No entanto, não se trata da Física
conforme a entendemos hoje. A Física moderna é uma espécie de “matematização da
Cosmologia”, ou seja, uma subespecialização da Física Geral. O sujeito da
Física Geral (ou Filosofia Natural) é o ente móvel, ou seja, o ente com
mescla de potencialidade e atualidade. Não é o ente enquanto tal (o que os
tomistas preferem chamar de ente simpliciter), cujo sujeito é próprio da
Metafísica. Há 4 tipos de mudanças, de acordo com Tomás e Aristóteles, às quais
correspondem as 4 partes da Filosofia Natural: (1) geração e corrupção,
ou seja, criação e destruição de substâncias (→
Química), (2) alteração, ou seja, mudança na qualidade (→ Psicologia),
(3) aumento e diminuição, ou seja, mudança na quantidade (→ Biologia) e
(4) translação, ou seja, movimento de lugar (→ Cosmologia). A
Psicologia, alerta Scherer, é uma ciência “anfíbia” e tanto faz parte da Física
Geral (quando tem a ver com a “parte corporal” da alma) quanto da Metafísica
(quando tem a ver com a “parte espiritual” da alma). Aqui Scherer observa que
um dos traços característicos da modernidade, e que tem causado grande confusão
e desperdício de tempo, é promover o divórcio radical entre as ciências
modernas e a Filosofia da Natureza. Dado o que vimos acima, ou seja, que a
questão propter quid do ente, ou seja, a busca de sua causa (ou de suas
causas, se invocamos as famosas 4 causas aristotélicas), que inaugura a
ciência, tem uma relação de necessidade e, portanto, de inerrância, em relação
à essência das coisas. Negar o caráter científico à Filosofia Natural
significa, ao mesmo tempo, negar cientificidade às ciências modernas.
Nas palavras de Scherer: “As ciências particulares são espécies do gênero
Física Geral [ou Filosofia Natural], e as espécies se seguem não per se,
mas per accidens da qualidade genérica; portanto, alterações naquela não
afetam esta”.
Scherer discorre sobre os elementos essenciais
da psicologia tomista, mas não cabe aqui revisá-la uma vez que já temos estudos
anteriores sobre isso (cf. Brennan, Ameal e Echavarría).
Cabe-me apenas citar alguns excertos que me parecem
cruciais:
O conhecimento raciocinativo é incomensuravelmente menos perfeito que o conhecimento intelectivo. Santo Tomás chega a dizer que ‘a razão é algo defeituoso no intelecto’ (Summa contra Gentiles, I.1, cap. LVII, 8).
A abstração, operada pelo intelecto agente, da species intelligibilis a partir das imagens contidas na imaginação ou fantasia, fecunda o intelecto possível, que expressa interiormente, no verbum mentis ou verbum cordis, a essência da coisa conhecida – e isso nos dá o conceito. A inteligência capta a dimensão mais profunda do real, alcança aspectos absolutos e necessários da realidade, o que lhe permite transcender o imediato – o umwelt (mundo circundante) em que estão arrojados os animais – e obter uma visão desinteressada e não utilitarista das coisas. A inteligência é crucial para a felicidade.
No âmbito do intelecto possível, há três modalidades
de abstração: (1) abstração do todo (típico da Filosofia Natural ou
Física Geral), quando, por exemplo, abstrai a essência específica “homem” da
matéria segunda, ou seja, da matéria assinalada pela quantidade, do indivíduo
sensorial Sócrates; (2) abstração da forma (típico da Matemática),
quando, por exemplo, abstrai “humanidade” de “homem”, ou seja, abstrai a forma
da matéria sensível comum; e (3) abstração a modo de composição e divisão
(típico da Metafísica), quando alcançamos a própria universalidade do ente. As
abstrações (1) e (2) são negativas, no sentido de que “retiram” a concretude do
ente, e por isso a Filosofia Natural e a Matemática são menos concretas do que
o ente material. A abstração (3), no entanto, é positiva, no sentido de que
“destacam” precisamente aquilo que de mais concreto tem o ente, e por isso a
Metafísica é mais concreta do que o ente material.
Os indivíduos têm certos hábitos – que por serem disposições estáveis do indivíduo são estruturalmente de seu caráter – que desconhecem, total ou parcialmente. Quer dizer: não nos conhecemos bem à partida; podemos crescer em “autoconhecimento”. Por amor-próprio, podemos não reconhecer aspectos pouco elogiosos de nosso caráter. Santo Tomás fala mesmo de uma cegueira da mente (caetitas mentis), que se aproximaria da “repressão” ou “recalque” da psicanálise, mas com muita vantagem. Trata-se de um hábito mau causado por uma disposição contrária à verdade, uma anulação da atividade contemplativa – fruto, no fundo, da soberba (como mais tarde também Adler perceberia) e, mais particularmente, da luxúria. [...] Refletindo sobre as potências sensitivas, o intelecto ordena as paixões, que estão ligadas aos chamados “apetites”, nos quais se inclui toda a dimensão afetiva do ser humano.
O amor é a primeira e mais fundamental das paixões; mais que isso: é a causa de todas as outras. Santo Tomás o define como “o princípio do movimento que tende ao fim amado”. O amor causa o desejo, que, quando alcança o objeto e repousa, causa o gozo. Escreve Tomás: “O amor é o princípio de toda a afeição. Não há prazer e desejo senão quanto a um bem amado, como tampouco há temor e tristeza senão quanto a um mal que contraria o bem amado, e todas as afeições se originam destas.
As potências apreensivas precedem as potências apetitivas precisamente porque, como diz Santo Tomás, “a potência apreensiva apresenta à apetitiva seu objeto”. A apreensão, sensitiva ou intelectiva, de um objeto é o que fornece às potências apetitivas, sensitivas ou intelectivas, o telos em direção ao qual se movem. Isso é assim tanto para os homens como para os animais. [...] Já nos homens, a existência da vontade, que é o apetite racional, altera o quadro, porque os apetites sensitivos passam a participar da racionalidade, e são regulados por ela. Os apetites inferiores não movem se o apetite superior não consente. Nesse processo a cogitativa ou razão particular tem papel de destaque, já que é por ela que a mente regula os apetites sensitivos. Por isso, Cornelio Fabro não hesita em dizer: “A faculdade-chave da gnosiologia tomista é a cogitativa”. O apetite superior move pelos inferiores, mas estes não movem se aquele não o permite. [...] O poder que a razão e a vontade têm sobre os apetites é “político”, e não “despótico” (como o poder que a alma intelectiva tem sobre os membros do corpo, por exemplo), porque as potências apetitivas têm um poder próprio.
Sobre a questão do ordenamento de suas
paixões, Scherer apresenta quatro tipos de homem: (1) O homem virtuoso,
ou seja, aquele que tem virtus (força) sobre si mesmo, que tem
autodomínio. As virtudes só podem ser desenvolvidas com o auxílio da graça.
Sim, claro, é possível resistir aos movimentos da sensualidade de maneira
isolada, mas por períodos curtos e descontínuos. (2) O homem continente
é aquele que pontualmente contém uma ou outra paixão, mas a muito custo e de
maneira incerta. As paixões como um todo ainda se encontram desordenadas nele.
(3) O homem incontinente, ou seja, aquele que sabe o certo e o errado e,
mesmo desejando o certo, não consegue conter-se. No entanto, a incontinência
ainda não é vício. (4) O homem vicioso, ou seja, aquele no qual os
vícios não têm conhecimento de si mesmos. Aqui cabe enumerar dois tipos de
vícios: (a) vícios humanos (p.ex., desejar sexualmente uma mulher
casada, que é algo natural) e (b) vícios patológicos ou “bestialidades”
(p.ex., desejar sexualmente uma cabra, canibalismo, comer tijolo, roer as unhas
etc.); podem ser causadas por uma constituição corporal defeituosa ou por maus
costumes. É claro que todos os vícios, sejam 4a ou 4b, são redutíveis à noção
de pecado. E qual a causa dos pecados? Diz Tomás: “O amor desordenado
de si é a causa de todos os pecados”. No entanto, esse amor desordenado de
si é, na verdade, um ódio de si mesmo porque o homem julga ser principalmente o
que é segundo a natureza corporal e sensitiva. Por isso, ama-se segundo o julga
ser, mas odeia-se naquilo que principalmente é, ou seja, sua mente (mens),
e acaba desejando coisas contrárias à razão. O homem se esquece que não é ele
quem criou sua vida e o fim último dela. A ideia tão em voga hoje em dia da
educação para a responsabilidade não é senão a ideia de que a liberdade é a
essência do homem. É o velho canto da sereia.
Nominalismo: os ingredientes do Modernismo e do Pós-Modernismo
Embora seja um termo muito inexato, uma das
doutrinas do averroísmo é a ideia da unidade do intelecto. Criam os
averroístas que o intelecto é uma substância separada do corpo segundo o ser,
ou seja, que o intelecto em si é uma unidade. E, pior, que o intelecto possível
é único para toda a humanidade (monopsiquismo). Há como que um “supraeu”
coletivo no qual o homem individual não propriamente pensa, mas é “pensado” por
ele. O dilema dos averroístas é que, se o intelecto fosse a forma do corpo,
então uma vez morto o corpo, o intelecto forçosamente deveria morrer também. No
entanto, o que os averroístas não captaram é que a forma é que dá o ser ao
composto humano, e não o contrário. Graças à ideia central da metafísica de
Tomás de que o ser é o actus essendi participado às criaturas mediante
sua forma é possível compreender o intelecto como imortal.
No entanto, para harmonizar as doutrinas do
averroísmo com a fé cristã, os averroístas adotaram a tese da dupla verdade,
ou seja, pela razão o intelecto é uma unidade, mas pela fé o intelecto não é
uma unidade.
Obviamente nada disso poderia ser tolerado
pelos defensores da fé, mas ocorre que, ao reagirem em sua defesa, alguns
autores jogaram a água do banho fora com criança e tudo, ou seja, acabaram
abalando a doutrina tomista em seus fundamentos.
Dietrich de Freiberg: Ele negava a distinção entre ser e essência. Ele a considerava
meramente gnosiológica, mas não ontológica. As consequências, à primeira vista
inocentes, são gravíssimas: se a distinção é meramente gnosiológica, ou seja,
se o ser apenas expressa gnosiologicamente um ato (e não é
ontologicamente um ato), isso significa que o ser deixa de predicar
analogicamente (ele perde a analogia entis) e passa a predicar
univocamente (ele é reduzido à existência, que é algo que todo ente possui
indistintamente). E mais: Dietrich esforça-se em pensar o ser como uma
substância ao invés de pensá-lo como ato, ou seja, ele pensa no ser como uma “coisa”.
Já vimos em Frederick Wilhelmsen as consequências de tal pensamento, embora claramente Wilhelmsen confunda ser
com existência, o que tampouco corresponde à doutrina tomista padrão. Por
exemplo, segundo Scherer:
O erro desse raciocínio é o seguinte: de uma essência pode deduzir-se a existência, mas não o modo de ser do ente. Dada uma essência, por óbvio não temos o nada; logo, temos um ente. Mas que tipo de ente? Qual é o modo de ser desse ente? Essa essência o é de um ente de razão, de um ente quimérico ou de um ente real, por exemplo? Está claro que não o sabemos. O ente real e o ente de razão existem igualmente (univocamente), mas não do mesmo modo.
Como Dietrich diferencia Deus e os entes
criados, dado que não há diferença entre ser e essência? Em outras palavras,
como é possível que Deus esteja em um “patamar” distinto do patamar dos entes
criados se não há distinção entre o Ser divino (Ipsum Esse Subsistens) e
o ser das criaturas (esse comum)? A saída que propõe é estabelecer uma hierarquia
dos entes, ou seja, os entes se distinguem por suas relações recíprocas.
Mas evidentemente isso não explica a diferença entre Ser divino e ser das
criaturas. Embora Dietrich insista que Deus é o Criador, mas Ele teria criado o
mundo mediante uma interior transfusio (transbordamento interior), e não
ex nihilo. Em outras palavras, a criação não seria ad extra, mas faz
parte de um universitas, um como que “pano de fundo metafísico”, no qual
Deus e as criaturas estão inseridos. A inspiração em Plotino e Proclo parece clara.
Duns Scot.
Ele negava a analogia, ou seja, para Scot somente há predicação unívoca e
equívoca, e tudo que é supostamente análogo é, na verdade, “totalmente
distinto”, isto é, equívoco. Na prática, Scot negava a analogia entis e
o ser, para ele, é sempre unívoco. É sua famosa tese da univocatio entis.
Note que negar a distinção entre ser e essência leva, inevitavelmente, à univocatio
entis. Ora, se não há os dois patamares que mencionamos há pouco (Ipsum
Esse Subsistens e esse comum), então não há analogia entre ambos e,
portanto, “ser” teria de ser necessariamente uma predicação unívoca.
Mas, muito pior que isso: se não há nada
além do ser, ou seja, não há um Ser ao qual os seres dos entes criados são
análogos, então Ser e ser são unívocos: é o panteísmo. Isso ocorre
porque, se o ser é unívoco, necessariamente se reduzirá a um gênero que
necessita ser diferenciado por diferenças extrínsecas a ele. Lembre-se: o ser
perdeu sua analogia e, portanto, não pode derivar sua diferença do Ser. Scot insiste
que ente não é gênero, mas é transcategorial (Tomás também ensinava isso). Assim
como o ente, há outros transcategoriais, as chamadas determinações
transcendentais, que se aplicam ao ente. Entre elas estão não apenas os
transcendentais convertíveis (por exemplo, o ente e o bem são convertíveis
porque, para algo ser bom, é necessário antes de tudo ser), mas,
segundo Scot, também os transcendentais disjuntivos (infinito/finito,
necessário/possível etc.). São esses transcendentais disjuntivos que Scot
aplica ao Criador e às criaturas a fim de distingui-las. E é ao estudo dos
transcendentais que Scot atribui o objetivo da Metafísica. O problema, aponta
Scherer, é que os transcendentais disjuntivos não fundam distinções no modo
de ser dos entes (leia novamente o excerto acima em que Scherer menciona os
modos de ser). Os transcendentais disjuntivos significam apenas a intensidade
intrínseca do ente, ou seja, Deus se diferencia das criaturas apenas porque
tem uma intensidade intrínseca específica. Há uma diferença enorme de grau
entre Deus e as criaturas, mas apenas isso, de grau, e não de tipo.
Outro recurso que Scot lança mão é a distinctio
formalis (distinção formal). Vimos algo sobre isso brevemente na exposiçãode Edward Feser.
A ideia de Scot é que, no plano gnosiológico, há uma terceira faixa da
realidade, que não é lógica nem real, mas formal. Essa realidade formal é
composta de supostos “conteúdos intencionais” necessários para o conhecimento.
Mas para Tomás, “a forma na mente representa a forma na coisa porque ela
é uma semelhança da própria forma da coisa, que enquanto causa formal atua
nossa potência cognitiva”. Em outras palavras, a forma na mente não é uma
forma. “Entre o intelecto e a realidade interpõe-se o campo minado dos
‘conteúdos intencionais’, o qual deve ser palmilhado com o auxílio de uma
crítica do conhecimento humano, e não sem o risco de que essas minas
representacionais explodam o caráter objetivo do mesmo conhecimento. Sem o
artifício da distinctio formalis, o idealismo moderno não poderia
surgir”. O hilemorfismo perde força e abre espaço para a “hecceidade”, que, em
lugar da matéria, é o que supostamente explicaria a individuação dos entes.
A consequência do escotismo é uma espécie
de “sublimação” da fé natural e o desvanecimento da teologia racional em favor
de uma teologia fideísta, ou seja, potencializa-se o voluntarismo em detrimento
do intelecto. No entanto, para Tomás, Deus não quer simplesmente porque quer,
mas quer porque o que quer é bom. É a própria bondade de Deus que causa Seu
querer. Isso é importante entender para deixar claro que Deus difunde na
criação, na medida do possível, Sua bondade por semelhança. Se Deus, como
querem os escotistas, age simplesmente porque quer, então somos levados a
suspeitar que neste mundo podem não ser realizados os conteúdos conhecidos por
Deus, o que abre a possibilidade para mundos possíveis. Este mundo pode
ser um de muitos mundos. Aliás, Deus pode não apenas querer o bem, mas querer o
mal. Eis uma das chaves que abrirá a caixa do liberalismo. Scot, por exemplo,
defendia que a alma de Cristo era pecável.
Guilherme de Ockham: Ele resolveu a “querela dos universais” propondo o nominalismo,
ou, mais precisamente, que os universalia sunt post res. Os universais seriam
meros nomina ou flatus vocis (sopros vocais). Ockham renuncia às
coisas e fica apenas com os seus símbolos: não existe ser, unidade, ordem,
verdade, necessidade, bondade ou justiça. Tudo isso seriam realidades criadas
pelo homem. O homem passa a se ver como um ser “absoluto”, ou seja, solto e
apartado da ordem real. É um ser exilado em si mesmo, como diz Scherer.
[N]esse ambiente, cresce o fenômeno do devocionalismo, de caráter sentimental e antilitúrgico. O culto tradicional consiste em aconher a intervenção salvífica de Deus que se completou em Cristo e é atualizada sacramentalmente. O devocionalismo consiste em colocar a intensidade dos próprios sentimentos como sinal de salvação, à margem da mediação sacramental. O sentimentalismo das devoções, pela sua liberdade e ruptura com o culto externo, foi uma saída atraente para muitos. Porém o devocionalismo, por sua carência teológica, era um abrigo para toda sorte de superstições.
E segundo Christopher Dawson:
[...] ’A Reforma Luterana’, escreveu Nietzsche, ‘em toda a sua extensão e em todo o seu escopo, foi a indignação do simples contra algo complicado. Foi a ‘revolta espiritual dos camponeses’. Consequentemente, o trabalho religioso de Lutero de reforma e de simplificação equivaleu à desintelectualização da tradição católica.
Racionalismo e antirracionalismo: modo
de preparo da Modernidade e da pós-Modernidade
Racionalismo → Modernismo
O objetivo da filosofia de Bacon, segundo o
próprio, é “estender o poder e o domínio do gênero humano sobre todo o universo”.
A meafísica antiga, para ele, é inútil porque é especulativa ao invés de pragmática.
A experiência tem de ser substituída pelo experimento, ou seja, a
experiência direta do real tem de ser substituída pelo experimento científico. Abaixo
a Metafísica, viva as técnicas e as ciências. A realidade não é de confiança e,
portanto, tem de ser reordenada pelo novo método que se inaugura.
Mas será Galileu Galilei o principal
expoente da matematização do real. Ocorre que a medição é apenas um recorte
do real e, portanto, é apenas uma ficção humana. O que Galilei chamava de “qualidades
primárias” eram, na verdade, as partes mensuráveis do real e, portanto,
arbitrariamente elevadas à condição de “objetivas”. A ordem se inverte: o recorte
passa a ser real enquanto a realidade passa a ser mera ilusão. Eis o mito sobre
o qual se assenta as ciências modernas.
Descartes, por sua vez, elevará o
pensamento humano de garantidor da verdade para garantidor da existência
individual. Seu pensamento é mais evidente que sua existência (cogito ergo
sum). Ademais, Descartes avançou formidavelmente a matematização do real.
No entanto, será Kant que dará o golpe de
misericórdia na Metafísica. Ele eleva a ciência resultante desse método à
condição de imagem da realidade, mas não só: essa imagem será, em verdade, a
própria realidade. Se há uma realidade para além do que se conhece cientificamente,
não a conhecemos. É apenas uma hipótese. Segundo Scherer, para Kant, “O ente não
se nos apresenta tal qual é, mas apenas tal qual se nos afigura depois de ser
formatado pelas formas puras da intuição sensível, quais sejam, o tempo
e o espaço. É nossa constituição subjetiva o que determina a forma do fenômeno;
a coisa, tal qual é em si mesma, é-nos inacessível”. Ademais, “Kant estabelece
que todo conhecimento depende da unificação de nossas representações feita a
partir de uma esquemática racional a priori”. Tal esquemática é composta
fundamentalmente por conceitos puros, isto é, as famosas categorias
originárias ou primitivas do entendimento: unidade, pluralidade,
totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causa, comunidade,
possibilidade, existência e necessidade. A coisa-em-si, coitada, está
totalmente fora do alcance do conhecimento. O que conhecemos é o que nossa constituição
subjetiva, perfazendo a unidade transcendental, fornece. A unidade do real
perdeu-se nas coisas-em-si. Scherer conclui sobre Kant: “A Filosofia de Kant é
um atentado ao senso comum; um ataque à tessitura da experiência humana mais
básica do universo”. Somente o mundo dos fenômenos é real. A ordem do real tal
como entendida pelos aristotélicos-tomistas é produto da mente humana.
A esta altura está claro que não é o
intelecto que deve moldar-se docilmente à realidade (adaequatio intellectus
rei), mas, agora, é o intelecto (“razão”) que tem a tarefa de ativamente
ordenar a realidade que lhe é apresentada. No âmbito do racionalismo, o
elemento garantidor da verdade não pode mais ser a realidade, já que a
coisa-em-si é incognoscível, mas passa a ser a concordância inter pares
de uma mesma fantasmagoria racional a priori.
Schopenhauer assume os postulados de Kant e
chama o fenômeno de “representação” e a coisa-em-si de “vontade”. Explica
Scherer:
Se o mundo do fenômeno, raciocina [Schopenhauer], é a seara da razão e da causalidade, a coisa-em-si, é claro, só pode ser o que escapa a essa dupla determinação. O noumenon, portanto, é o caldo alógico e irracional em que boiam nossas representações científicas. Enquanto não é conhecido, o mundo é uma força puramente volitiva, cega, bruta e sem finalidade, um esforço sem repouso que se revela nos corpos. A vontade é o elemento primordial de tudo, verdadeira essência do mundo, e a base do ser do homem. [...] Frágil como uma pluma, infinitamente perecível, o indivíduo importa à natureza apenas como instrumento de manutenção da espécie, por cujo serviço, ademais, só recebe, à guisa de paga, a morte certa e inevitável. A maior perfeição do homem representa apenas um aperfeiçoamento de sua capacidade de sofrer. A consequência de tais ideias só poderia ser um pessimismo tão radical que considera todo otimismo não apenas absurdo, mas ‘impiedoso’.
Antirracionalismo → Pós-Modernismo
Se Francis Bacon pode ser considerado o
precursor do racionalismo, Michel de Montaigne pode equivalentemente ser
considerado o precursor do antirracionalismo. Diz ele que a razão é incapaz de captar
a essência das coisas. Ou seja, nem os sentidos, nem a razão são capazes de
garantir o que quer que seja. A Filosofia é mera poesia sofística. A saída para
lidarmos com a realidade é o gesto estético, isto é, o desfrute sensualista.
A virtude se alcança pela desordenação da alma. Privar-se dos prazeres é “exagerada
virtude”: a receita de vida de Montaigne são o ócio e os prazeres.
No entanto, foram os três grandes
empiristas que se encarregaram de sistematizar algo que pudesse se contrapor ao
racionalismo: Locke, Berkeley e Hume. Este último alcançará o ápice do ceticismo
ao propor que as percepções da mente humana se dividem em duas: os pensamentos
(ou “ideias”) e as impressões. A diferença entre ambas é mera questão de
vivacidade: as impressões são mais vívidas que as ideias. É óbvio que Hume
concluirá que nenhum conhecimento é seguro. Nem mesmo o “eu” possui realidade
substancial.
Rousseau aprofunda o antirracionalismo de
Montaigne enquanto, na Filosofia, Fichte elege o “eu transcendental” como a
suprema realidade e abole a coisa-em-si.
Liberalismo: o prato está pronto
O subjetivismo (se moderno ou pós-moderno não
importa) tem uma consequência prática: o liberalismo. Mas não exatamente o que
chamamos atualmente de liberalismo, aquele que grassa nos movimentos políticos –
ele também está incluído aí, claro – mas um liberalismo fundamental.
Esse liberalismo fundamental é a doutrina acerca dos fins do homem e da
sociedade.
O liberalismo fundamental, apoiado
firmemente sobre o subjetivismo do qual versamos acima, estabelece que a
liberdade é a faculdade humana de eleger o bem e o mal. O liberalismo não
mais é entendido como a potência para a escolha do bem, como ensinava
Tomás de Aquino. Segundo a doutrina tradicional, a liberdade deve libertar o
homem dos grilhões das paixões. Mas só há “grilhões” se há um mundo real no
qual o Ser se atualize. Uma vez que o mundo real não existe, então o sujeito
humano não vê sentido em escolher o bem. Ele precisa agora blindar sua nova
liberdade de eleger para si o que é bem e o que é mal. Tal blindagem virá do capitalismo,
do socialismo, do fascismo, do autoritarismo, não importa. O que verdadeiramente
importa é blindar seu novo mundo subjetivo de quem quer que ameace introduzir um
bem objetivo e universal ao qual terá de curvar-se necessariamente.
É possível libertar um homem das grades de uma prisão, mas não de sua forma entitativa. Isso seria como querer libertar um triângulo de sua triangularidade, o que obviamente seria destruí-lo. Só há liberdade na obediência à forma. [...] É verdadeiramente livre quem ama seus limites entitativos, porque entende que são eles os que lhe dão contornos; são eles os que o livram do caos da desumanidade.
Fonte:
Daniel Scherer, A raiz antitomista da modernidade filosófica, Edições
Santo Tomás, Formosa, Brasil, 2021.