15 de março de 2023

A consciência mórbida


O termo patologia é amplamente utilizado na biologia e na medicina para identificar e descrever as alterações morfológicas e fisiológicas dos indivíduos. Uma vez detectada uma alteração descompensada, dizemos que o indivíduo está "fisicamente doente". Ora, o critério nem sempre é claro, é verdade, já que uma avaliação de conjunto deve ser levada a cabo pelo profissional, mas de qualquer forma há um consenso em torno do qual se pode operar. Idelmente, o mesmo deveria acontecer na psicopatologia, mas a coisa não é assim tão simples. Enquanto o funcionamento de um órgão ou tecido humano pode ser objetivamente estudado, a mente humana não se apresenta ao observador de maneira tão objetiva e abarcável a ponto de dizermos, com precisão científica, que determinado indivíduo encontra-se "mentalmente doente". O sofrimento relatado pelo indivíduo não pode ser isolado em um laboratório.

Assim que Gabriel Deshaies propõe que o método para avaliar o sujeito seja a transpecção (ou simplesmente introspecção), a qual se abre mediante duas vias de acesso: (1) a compreensão, ou "interpenetração psicológica", que se trata de experimentar intuitivamente , não meramente perceber, o que vive o doente, mediante uma comunicação afetivo-intelectual; e (2) a explicação, ou seja, toda e qualquer causalidade extrapsicológica que possa ser agregado à compreensão, sejam fatores factuais, leis, questões fisiológicas etc.

Fica claro, portanto, que não há um método clínico propriamente, mas uma espécie de "estado de espírito", uma postura, uma perspectiva. E fica claro também que a noção de "patológico" será necessariamente um juízo de valor. Ora, um conceito puramente estatístico da patologia será falho porque confunde o "incomum" com o "anormal": as reações psicológicas variam imensamente de acordo com o grupo social, com a historicidade, com as atividades individuais etc. A "média" estatística corre o risco de mostrar-se mera "mediocridade", digamos.

Um conceito clássico e muito antigo que aponta na direção da transpecção é a ideia de "integração". Aqui, não se trata de elementos e de síntese, mas da integração do ser em uma unidade, em uma totalidade que se ordena, adquire uma significação e determina um comportamento. Quando a ação não está integrada perde seu sentido, o comportamente se torna patológico, a unidade do ser se encontra em perigo. Similarmente, a perda da "autonomia" indica que o homem é incapaz de impor-se como pessoa, como indivíduo, e não se dirige conscientemente, de acordo consigo mesmo e independentemente dos demais. Assim também a "adaptação", embora sua ausência nem sempre indique anormalidade e doença mental. Pelo contário, as neuroses e psicoses podem perfeitamente ser entendidas como uma adaptação possível às condições objetivas e subjetivas dadas. Assim, todos esses conceitos são muito relativos e, novamente, em si não dizem muita coisa.

De maneira geral, Deshaies acredita que a patologia mental é a patologia da personalidade. A psicopatologia é, portanto, uma personopatia. A personalidade é a forma mais completa da integração psíquica, e seu produto é o sentimento de "eu", de unidade e identidade. É o eu histórico, empírico. É, pois, o ego. Segundo Deshaies, "a personalidade aflora à consciência e surge do inconsciente". A personalidade, em seu estado superior, integra as aptidões intelectuais,  as tendências instintivo-afetivas e as capacidades volitivas. A coesão, a eficácia sobre o real e o valor da personalidade variam com o nível intelectual. A personalidade se constrói mediante contrações e dilatações sucessivas, como se fossem vetores que progressivamente se tornam contínuos e determinam, a certa altura, uma orientação definitiva.  A influência social, as mútiplas identificações, imitações e introjeções, introduzem e sustentam instâncias inconscientes familiares, culturais e sociais, as quais exercem uma influência modeladora e determinam certos padrões de reações. Por sua vez, o papel que a personalidade desempenha no mundo é o "personagem", ou "máscara", que subsiste de duas formas: (a) subjetivamente (ideal), ou seja, mediante o ideal de si, que expressa o que se deseja ser e consequentemente o que deve ser; e (b) objetivamente (social), ou seja, inserido na estrutura social. O personagem é uma forma de expressão da personalidade.

A personalidade se danifica na medida em que a consciência se danifica. E a consciência se danifica quando ocorre a passagem da consciência imaginante para a realizante, e vice-versa, e para isso passa a utilizar recordações delirantes (seja recordações patológicas, sejam recordações de eventos patológicos) e deformadas. A penetrabilidade do psicólogo clínico diminui na medida em que a personalidade se desorganiza e o doente vive experiências cada vez mais subjetivas. O estado mórbido se caracteriza por ser incompreensível e essencialmente "individual". Em suma, a desestruturação social e sobretudo a emergência do psíquico vivido em sua pureza individual, e como tal não integrável em um pensamento socialmente comunicavel, caracterizam a consciência mórbida e explicam sua impenetrabilidade.

Fonte: Gabriel Deshaies, Psicopatología General, Editorial Kapelusz, Buenos Aires, Argentina, 1961.