29 de agosto de 2022

Devemos tomar as rédeas à fantasia


Devemos tomar as rédeas à fantasia em tudo o que concerne ao nosso conforto e desconforto. Logo, antes de mais nada, não devemos construir castelos no ar, porque estes são muitos caros, já que imediatamente depois temos de demoli-los com suspiros. Devemos guardar-nos mais ainda de angustiar o coração imaginando desgraças apenas possíveis. Se estas fossem infundadas por completo ou pelo menos pouco convincentes, então saberíamos de imediato, ao despertar do sonho, que tudo não passou de ilusão; por conseguinte, nos alegraríamos tanto mais com a realidade melhor e tomaríamos talvez como lição uma advertência contra desgraças futuras bastante longínquas, mas possíveis. No entanto, nossa fantasia não joga fácil com tais representações. Por puro prazer, ela só constrói castelos no ar. O material para seus sonhos sombrios são desgraças que, mesmo distantes, ameaçam-nos efetivamente em certa medida. A fantasia as amplifica, traz sua possibilidade para bem mais perto do que em verdade estão e pinta-as com as mais terríveis cores. Ao acordar, não podemos de imediato nos livrar dessa espécie de sonho, como fazemos com os agradáveis. Estes últimos são logo desmentidos pela realidade, que lhes permite no máximo uma esperança tênue de concretização. Porém, quando nos abandonamos às fantasias negras (blue devils), estas trazem imagens para perto de nós que não se afastam com facilidade. A possibilidade do evento, em geral, é estabelecida sem que estejamos sempre em condições de estimar o seu grau. Ora, tal possibilidade transforma-se facilmente em verossimilhança, fazendo com que nós mesmos nos entreguemos às mãos da angústia. Por isso, devemos considerar as coisas concernentes ao nosso conforto e desconforto só com os olhos da razão e do juízo, consequentemente, com ponderação fria e seca, operando com meros conceitos e in abstracto. A fantasia deve ficar fora de jogo, pois não sabe julgar; ao contrário, só apresenta imagens aos olhos que agitam a alma de modo desnecessário e amiúde penoso. Essa regra deveria ser observada com mais rigor à noite. Pois, assim como a escuridão nos torna temerosos e nos faz ver figuras apavorantes por toda parte, assim também a falta de clareza dos pensamentos provoca um efeito análogo, já que toda incerteza gera insegurança. Portanto, à noite, quando a fadiga envolveu tanto o entendimento quanto a razão com uma escuridão subjetiva, e o intelecto está cansado e confuso, sem forças para examinar as coisas a fundo, os objetos de nossa reflexão, caso digam respeito aos nossos interesses pessoais, assumem facilmente um aspecto ameaçador e tornam-se imagens apavorantes. É o que ocorre com frequência, à noite, na cama, quando o espírito está completamente relaxado e o juízo não desempenha mais a sua função, porém a fantasia ainda está ativa. Dessa maneira, a noite confere a tudo e a todos sua cor negra. Como consequência, antes de dormirmos, ou ao acordarmos de madrugada, os nossos pensamentos são, na maioria das vezes, deformações malignas e perversões das coisas, como nos sonhos. Se dizem respeito aos nossos assuntos pessoais, em geral parecem horrendos e até azarentos. Pela manhã, tais imagens apavorantes desaparecem, como os sonhos. É o significado do provérbio espanhol: Noche tinta, blanco el día [Noite colorida, branco o dia]. Mas já no final da tarde, quando se ascendem as velas, o entendimento, como os olhos, não vê com tanta nitidez como durante o dia. Eis por que esse período de tempo não é apropriado para a meditação e temas sérios e sobretudo desagradáveis. A manhã, sim, é o período correto. Manhã que, em geral, é adequada para todas as realizações, sem exceção, sejam as espirituais ou corporais. Em verdade, a manhã é a juventude do dia. Nela, tudo é jovial, fresco e leve; sentimo-nos fortes e temos todas as nossas capacidades à inteira disposição. Não devemos abreviá-la levantando-nos tarde, nem gastá-la em ocupações ou conversas indignas, mas considerá-la a quintessência da vida e, em certa medida, sagrada. Por outro lado, a noite é a velhice do dia: à noite ficamos abatidos, faladores e levianos. Todo dia é uma pequena vida: o acordar é o nascimento, concluído pelo sono como morte. Assim, o adormecer é uma morte diária e cada acordar é um novo nascimento. Para ser completo, poder-se-ia comparar o desconforto e a dificuldade de levantar-se com as dores do parto.

De modo geral, o estado de saúde, o sono, a alimentação, a temperatura, as condições climáticas, o ambiente e muitas outras circunstâncias exteriores exercem uma influência poderosa sobre a nossa disposição, e esta sobre os nossos pensamentos. Como consequência, nossa visão de uma questão qualquer, bem como nossa capacidade de produzir alguma coisa estão intensamente submetidas ao tempo e mesmo ao lugar. Portanto:

 

Aproveita a disposição verdadeira,

Pois ela chega raramente.

              Goethe (“Generalbeichte”) [“Confissao geral”]

 

Não é apenas em relação às concepções objetivas e aos pensamentos originais que temos de esperar se lhes agrada vir e quando. Mesmo a ponderação profunda de uma questão pessoal nem sempre dá seus resultados no tempo que estabelecemos com antecedência e para o qual nos preparamos. Ao contrário, a ponderação profunda também escolhe o seu tempo, e então a sequência dos pensamentos que se ajusta a ela se desenvolve espontaneamente e nós a seguimos com inteira atenção.

Para tomar as rédeas à fantasia, como recomendado acima, também é preciso impedir que ela evoque e ilustre as injustiças outrora sofridas, bem como os danos, as perdas, as injúrias, as preterições, as humilhações e coisas semelhantes. Do contrário, excitamos novamente a indignação, a cólera e todas as paixões odiáveis, há muito tempo adormecidas, que contaminam nossa alma. Pois, segundo uma bela comparação do neoplatônico Proclo, assim como em cada cidade, ao lado dos nobres e distintos, mora também o populacho de todo tipo, também em cada homem, mesmo o mais nobre e mais sublime, existem, segundo a sua disposição, os elementos mais diminutos e comuns da natureza humana e mesmo animal. Esse populacho não deve ser excitado ao tumulto, nem deve ter a permissão de olhar pela janela, pois sua aparência é deveras feia. Ora, esses produtos da fantasia que acabamos de descrever são os demagogos desse populacho. Além disso, a menor contrariedade, advinda seja dos homens ou das coisas, se for constantemente cogitada e repintada com cores vivas e segundo uma escala ampliada, pode transformar-se num monstro que nos coloca fora de controle. Devemos, antes, encarar de maneira bem prosaica e sóbria tudo o que for desagradável, para assim aceitarmos o que nos couber da maneira mais fácil possível.

Do mesmo modo como os objetos pequenos, mantidos na proximidade dos olhos, limitam o nosso campo de visão, encobrindo o mundo, também os homens e as coisas da nossa vizinhança mais imediata, por mais insignificantes e indiferentes que sejam, ocuparão com frequência a nossa atenção e nossos pensamentos para além do necessário, e muitas vezes de modo desagradável, reprimindo pensamentos e questões importantes. É preciso reagir contra isso.

Fonte: Arthur Schopenhauer, The Wisdom of Life and Cousels and Maxims, Pantianos Classics.