23 de maio de 2021

Contra a religião


Algumas obserevações acerca de Against Religion, de Christos Yannaras.

Religião

A religião é fruto do instinto humano de preservação de seu eu individual, de seu ego, face à ameaça do desconhecido. A partir daí se abrem três vertentes para aplacar o problema: (1) a criação de uma doutrina metafísica, ou seja, de um conjunto a priori de axiomas que explicam o mundo sobrenatural a partir de observações do mundo natural e que não podem ser questionados nem pela razão, nem pela experiência comum; e (2) a criação de um conjunto de sacrifícios, sejam eles externos (sacrifícios de coisas ou pessoas), internos (abstinência de comida ou sexo) ou expressões e cerimônias (adoração, hinos, poesia, arquitetura), cujo objetivo é em última instância subornar a Deus e colocá-Lo contra a parede; (3) a criação de um código moral, ou seja, de um conjunto de comportamentos, alguns obrigatórios, outros proibidos, que assegurem ao individuo que ele é bom aos olhos de Deus.

Todas essas vertentes refletem ao fim e ao cabo o esforço do ego em ganhar sua salvação por meio do mérito, seja por fidelidade mental a um conjunto de doutrinas e dogmas, seja como pagamento pela consecução de sacrifícios, seja como fruto da chantagem em parecer uma pessoa boazinha.

Quanto à primeira vertente (apego racional a doutrinas e dogmas), as proposições metafísicas, não importa quais sejam, estarão sempre e constantemente sob ataque de novas objeções. Portanto, o intelectualismo metafísico só poderá sustentar-se lançando mão do recurso da autoridade, ou seja, a doutrina metafísica precisa provir de uma fonte irracional ou a-racional (líderes religiosos, revelações, insights, experiencias existenciais etc.). Aqui observa-se uma vez mais o elemento da escolha individual, da preferência atomizada, típicos da vida do ego. É por isso que se observa em tais grupos o comportamento ilógico, mas perfeitamente compreensível, de se construir um cerco fechado em torno das autoridades que protegem a doutrina metafísica: em face à ameaça externa o grupo se blinda e se enrijece em torno da fonte que lhes confere a certeza.

Evento eclesial

Enquanto a religião se caracteriza por mover-se dentro das limitações impostas pela natureza, a ekkesia se caracteriza precisamente por livrar-se dessas limitações dadas pela natureza. É por isso que se diz que Cristo não veio para fundar uma nova religião, mas uma nova criatura, um novo modo de existência. A este novo modo de existência Cristo chamou amor. Amor não é, portanto, um “gostar muito”, uma afeição carinhosa, um sentimento romântico, uma virtude altruísta. Amor é livrar-se da existência individualizada e atomizada, é livrar-se da vida do ego, é livrar-se das limitações impostas pela natureza.

Quando se diz que “Deus é amor” o que se quer dizer é precisamente que Deus não está limitado pelas condições e determinações naturais. Em outras palavras, Deus não “tem” amor, mas “é” amor, ou seja, ele se define precisamente por sua ausência de individualidade, atomicidade, por Seu modo de existência. Por isso Deus não é Deus no sentido das doutrinas metafísicas (“Ser”, “Ser Supremo” etc.), que se caracterizam precisamente por tomar as definições naturais como fundamento de sua lógica interna, mas é Pai, Filho, Espírito, ou seja, hipóstases (existências reais) em livre comunhão entre si, isto é, em comunhão não imposta por nenhuma condição natural ou criada. Observe que Pai, Filho e Espírito vivem um para o outro em liberdade hipostática, ou seja, em uma liberdade que parte exclusivamente da vontade de existir em comunhão, e não de existirem de modo que se autocompletem de maneira independente, nem de existirem por uma espécie de compulsão ou predeterminação de sua “natureza divina”. Este ponto é fundamental, vale a pena insistir: Pai, Filho e Espírito não estão predeterminados por nenhuma natureza ou essência, mas se autodeterminam por sua liberdade de relação entre si. Por isso Pai, Filho e Espírito são hipóstases, não indivíduos ou “pessoas” no sentido que naturalmente atribuímos a essa palavra. O efeito de autocompletar-se, a propósito, é o típico modo de existência autista, atômico, egocêntrico. É por isso que as doutrinas metafísicas, por mais que se cerquem de certa linguagem intelectualizada, são ao fim e ao cabo produto do instinto da religião natural.

É a este modo de existência, a esta nova criação, que os sinais operados por Jesus Cristo apontam. Esses sinais não devem ser interpretados como uma demonstração espetacular do poder de Cristo para que, a partir daí, nos entreguemos de maneira submissa à autoridade. Tal seria a resposta tipicamente religiosa. O que Cristo demonstra, não somente em si mesmo, mas em muitos outros à sua volta, é um novo modo de existência, um modo de existência a qual somos chamados para superar as limitações naturais, a uma verdadeira liberdade existencial, a uma liberdade de relação. Este é o sentido do evangelho, da boa nova. É a pregação do amor, desta nova vida, dessa nova, real e verdadeira existência.

Quando a vontade gnômica se liberta dos imperativos do ego, eis quando o pecado cessa. Pecar é errar o alvo, e o alvo é o modo de existência livre das limitações da natureza. Portanto, pecar é viver de acordo com as imposições do ego, de acordo com aquilo que interessa à sobrevivência e perpetuação do ego, à autoimagem, à vida natural, não uma infração a alguma regra moral. Há de ser muito claro

Ora, mas desapegar-se do ego não é algo que possa ser levado a cabo pelo próprio ego, pelo indivíduo, de maneira autista. Por isso falamos de “evento eclesial”, ou seja, de um esforço conjunto de pessoas em direção a uma vida em comunhão de amor, ou seja, que vivam conjuntamente o esforço de livrarem-se da vida egocêntrica. Haverá altos e baixos, e assim o esforço por eliminar os impulsos de autopreservação -- da preservação do ego -- será constante. Tal impulso, se porventura prevalecer, anulará o modo de existência relacional, e regressaremos ao estágio da vida natural.

O que acontece quando o evento eclesial se transforma em uma religião

Eis aqui alguns exemplos do que a religionização do evento eclesial causa:

(1) A fé se transforma em ideologia. A originalmente é a confiança que as pessoas que amam sinceramente experimentam. É uma experiência, e a linguagem que expressa essa experiência evidentemente pressupõe a existência dessa experiência e, obviamente, essa linguagem precisa ser controlada, ponderada, dirigida pela experiência que a originou. Mas a religião, escrava do ego e, portanto, desprovida da experiência proveniente do evento eclesial, toma o produto da linguagem que expressa essa experiência e o ideologiza por meio da introdução de uma falsa experiência a fim de conferir-lhe validação: a intelecção natural. No entanto, a intelecção é incapaz de garantir a certeza de seus encadeamentos lógicos porque os axiomas sobre os quais se baseiam são necessariamente arbitrários. Para esconder a dolorosa realidade dessa falta de certeza entra em ação um curioso mecanismo de defesa: o desejo de obter a certeza busca na imaginação, em “memórias vestigiais”, experiências emocionais passadas de euforia, excitação, alegria, autossuficiência etc., e substitui o objetivo real e original do desejo, que é a certeza da validade dos axiomas das doutrinas metafísicas, por essas memórias vestigiais. Por sua vez, a experiência subjetiva das memórias vestigiais é reaplicada na linguagem das doutrinas metafísicas, de maneira que o encadeamento lógico, em lugar de buscar a garantia de sua certeza na artificialidade dos axiomas, sub-repticiamente a buscará na invocação da certeza subjetiva que lhe conferem as memórias vestigiais. A fé se transforma em uma ideologia ou, em outras palavras, em uma construção psicológica. A religião não se interessa realmente por ontologia, mas por “psicologia”.

(2) A salvação em uma nova criatura se transforma em salvação do ego. O instinto religioso nega o evento eclesial, nega o modo de existência da comunhão em amor, nega o caminho para uma nova criatura. Assim que lhe resta buscar a salvação do que já existe. Em outras palavras, lhe resta salvar o ego psicológico individual. E essa certeza de salvação será construída mediante o cumprimento da lei. A lei, da qual o evento eclesial se opõe, é uma maldição porque é uma manifestação do poder do pecado, ou seja, do poder da vida natural, psicológica, do poder da escravização ao ego e seus ditames de autoestima, autossuficiência e respeitabilidade narcisista. Quando o Apóstolo sugere que vos abstenhais das coisas sacrificadas aos ídolos, e do sangue, e da carne sufocada, e da fornicação, das quais coisas bem fazeis se vos guardardes (Atos 15:29) isso de forma alguma representa regras que, se cumpridas, farão parte da garantia da salvação do indivíduo. Tais são apenas sinais exteriores, objetivos, para distinguir os cristãos dos pagãos. Uma mera necessidade social circunscrita àquele ambiente em especial. No entanto, o instinto religioso, que sempre se espreitou e se manifestou aqui e ali na vida da ekklesia, ganhou enorme impulso a partir da proclamação da Ortodoxia em religio imperii e, em especial, ganhou forma nos cânones do Concílio Quinissexto de Constantinopla de 692, que publicou uma série de regras socias e morais, com especial ênfase à regulação da vida sexual dos fiéis. A elaboração desse e muitos outros códigos morais, e a respectiva exigência de seu cumprimento para a salvação do ego, impactou várias gerações, milhares ou milhões de seres humanos, que viveram sua única vida em um inferno de culpa imaginária, de desejos reprimidos, de ansiedade implacável, de autotortura narcisista. Gerações inteiras foram presas involuntariamente no tormento do legalismo, na existência deficiente de uma vida sem amor. Milhões de pessoas foram levadas a identificar no amor erótico o medo do pecado, na virtude a repugnância pelo próprio corpo e na expressão perceptível de afeto na repulsa. Tudo em nome da concessão humilhante à brutalidade da natureza humana.

(3) A assembleia eucarística se reduz a um ritual mágico. Jesus Cristo, na Última Ceia, apresentou uma realidade ontológica imageada no pão e no vinho. Os participantes ali presentes, assim como os participantes presentes nas subsequentes assembleias eucarísticas, devem evidentemente apresentar os mesmos pressupostos eucarísticos: a abnegação de seus egos individuais em prol da vida em comunhão amorosa. A realidade ontológica originalmente apresentada por Cristo só poderá ser “reproduzida” cumpridas tais condições. No entanto, de maneira lenta e imperceptível, o instinto religioso perverteu essa realidade em uma possessão individual do pão e do vinho que, milagrosamente, como num passe de mágica, se “transubstancia” (há outras expressões igualmente absurdas) em Corpo e Sangue de Cristo. Os participantes, agora transformados em “paroquianos”, se aproximam do pão e do vinho magicamente, como se fosse possível apossar-se do Corpo e Sangue objetivamente. O fetiche egocêntrico manifestado por esse entendimento é escandaloso: a ideia de purificar-se da culpa a fim angariar mérito para a salvação individual não tem absolutamente nenhuma relação com o modo de existência do evento eclesial. Todo o espaço eucarístico se preenche de expressões artísticas (orações, hinos, iconografia, arquitetura, idiomas eclesiásticos, indumentária) para impressionar o indivíduo, para conduzi-lo, como em uma sessão de hipnose, a sentimentos, emoções, euforias, imagens, cujo objetivo final será, evidentemente, satisfazer o ego.

(4) O sexo como fonte de alegria se transforma em sexo como fonte de neuroses. A perspectiva eclesial sobre as relações entre homens e mulheres atinge seu clímax em Paulo com a famosa passagem de sua Epístola aos Efésios onde ele vê na união amorosa de um homem e uma mulher e na “partilha de toda a vida” a imagem da relação de Cristo com a Igreja, uma imagem que não é metafórica ou intelectualmente alegorizada, mas é uma imagem/manifestação do poder dos seres humanos para realizar a relação vital do Filho Encarnado com a humanidade (vital porque é o provedor de vida ilimitada) como um evento existencial por meio de sua natureza psicossomática criada. É um poder que define aquilo que a Igreja chama de mistério, aquilo que distingue nitidamente o casamento eclesial da instituição natural/social /legal do casamento (cf. Ef 5, 21-33). Dentro do contexto do relacionamento mutuamente autotranscendente de marido e mulher, Paulo exige da esposa que ela cultive ativamente o respeito por seu marido, esteja sujeita a seu marido “em tudo”, como a Igreja o é para Cristo. Ele pede correspondentemente aos maridos que eles devem amar suas esposas “como eles amam seus próprios corpos” e muito mais, “assim como Cristo amou a igreja e se entregou por ela”. Essas demandas não constituem princípios reguladores do comportamento social; são os termos da transformação da instituição natural em mistério eclesial, em luta pela renúncia à vontade egoísta, luta de autotranscendência e oferta de si realistas. É apenas em termos de mistério (o modo de existência eclesial) que essas demandas podem ser julgadas, não de acordo com os padrões dos “direitos do indivíduo”, os padrões do moderno individualismo democrático de massa.

Há também a preferência claramente expressa de Paulo pela vida celibatária, que pode ser interpretada de várias maneiras: como um senso de reserva, depreciação e desprezo em relação à sexualidade, ou como uma busca pela liberação mais plena possível das leis naturais que regem natureza humana. O próprio Paulo não esclarece sua preferência analiticamente, mas também não pode ser discernido no que ele diz qualquer disposição ou sugestão de uma depreciação do sexo feminino - não há nada neles que nos permitiria atribuir a Paulo uma demonização das mulheres e de sexualidade.

Paralelamente a isso, podem-se discernir duas sugestões indiretas de que o instinto sexual natural pode cooperar com a meta da salvação humana (a meta de que o ser humano pode ser salvo, tornar-se sadio ou íntegro, com seus poderes existenciais totalmente integrados). A primeira sugestão diz respeito ao homem que é ajudado pela instituição natural do casamento a "deixar seu pai e sua mãe" (Ef 5:31), a romper com a garantia que reforça o ego de sua proteção, a fim de ousar aceitar o risco de atingir a vida adulta. A segunda dica diz respeito à mulher que “será salva por ter filhos” (1 Tm 2:15). A função natural da maternidade ajuda também a mulher a compartilhar seu ser, seu próprio corpo, a comunicar sua individualidade corporal, por meio da renúncia e da oferta de si que a maternidade acarreta. Ambas as dicas que encontramos em Paulo referem-se a potencialidades que são características da função generativa, não a preceitos reguladores que a "ética" de Paulo quer impor à natureza. É precisamente esse mal-entendido que causou (e ainda causa) muita desumanidade - atormentou (e ainda atormenta) gerações de seres humanos ao longo de muitos séculos.

Quando o evento eclesial é religioso, são esses textos do apóstolo Paulo que são idolatrados e proclamados (não apenas pelos protestantes) como sendo divinamente inspirados ao pé da letra. Mesmo seus elementos circunstanciais e historicamente condicionados são tratados como princípios reguladores obrigatórios para os cristãos de todas as épocas.

Leia: Christos Yannaras, Against Religion, Holy Cross Orthodox Press, Brookline, MA, EUA, 2013.