6 de julho de 2010

A antropologia escolástica


Há mais de um ano que tenho armazenado no meu computador um arquivo em formato pdf com a transcrição de uma aula do Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho Neto sobre antropologia escolástica. Eis um breve resumo dessa aula, que nunca mais encontrei na internet.

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1) A potência do sentido comum

O homem, assim como parte dos animais, possui cinco sentidos físicos: visão, audição, olfato, tato e paladar. Para captar a diferença entre o verde e o vermelho, basta a visão. Similarmente, para captar a diferença entre o amargo e o doce, basta o paladar. Mas qual o sentido que distingue entre o verde e o amargo, por exemplo? Os olhos não vêem o doce, nem a língua sente o azul, mas de alguma forma jamais confundimos o doce e o azul. Portanto, é necessário que haja um sentido que seja capaz de captar todos os sentidos. Trata-se do sentido comum.

Por intuição, sabemos que o cérebro não é o órgão do sentido comum porque a propriedade daquilo que vemos julgamos estar na coisa, e não no cérebro. O cérebro recebe apenas o significado, e não o signo. Por exemplo, a cor da mesa é bege, mas o que chega ao cérebro é um sinal do sistema nervoso, e não a luz da mesa propriamente. “Bege” se refere ao ser da mesa, e não ao ser do cérebro. O cérebro não capta o sinal da mesa, mas o sinal do sinal, ou seja, o signo do signo. Portanto, o cérebro não pode ser o órgão do sentido comum porque o cérebro não consegue comparar o significado, mas apenas um signo recebido; o cérebro não sabe a que se referem os signos. Há alguma coisa, uma intuição, que permite que saibamos que os sinais captados não são a coisa, mas apenas signos da coisa.

Os escolásticos concluíram que o órgão do sentido comum tem de ser espiritual, ou seja, ele está ao mesmo tempo no mesmo lugar que os órgãos dos sentidos orgânicos e no cérebro, que desempenham apenas um papel instrumental. Os escolásticos não possuíam, portanto, nenhum tipo de preconceito anti-intuicionista: para eles, era evidente que a cor da mesa era da mesa, e não do cérebro ou de outra coisa. Mais tarde, filósofos como Kant, motivados pela idéia de que tudo deveria ser demonstrado, tentaram provar se a cor da mesa era mesmo da mesa ou de outra coisa. Kant concluiu que não era possível saber a resposta, o que equivale a dizer que Kant provocou em si uma automutilação da intuição. Aristóteles ensinava que o preconceito contra a intuição só pode ser corrigido com punição, e nunca com instrução, pois negar a intuição é algo que pode ser falado, mas ninguém consegue realmente viver com base nessa crença. O homem que nega a intuição deve ser enjaulado, e só poderá comer caso admita que a comida é real, e não uma propriedade eletroquímica do cérebro.

A potência do sentido comum é responsável por três operações:

a) Percepção sensorial: o sentido comum é responsável pela integração dos dados dos sentidos básicos, conforme vimos acima.

b) Imaginação memorativa: o sentido comum é capaz de reter na mente as imagens que percebe.

c) Imaginação colaborativa (ou fantasia): o sentido comum é capaz de combinar imagens previamente percebidas com imagens inventadas pela própria mente.

2) A potência da estimativa

Quando um passarinho vê um graveto, ele vê nesse graveto uma tensão, uma possibilidade, de que ele se torne parte de seu ninho. Similarmente, quando uma ovelha vê um lobo, ela percebe nele uma tensão hostil, uma possibilidade hostil. O passarinho nunca viu aquele graveto antes na vida, e a ovelha nunca viu aquele lobo antes na vida. Mas ambos perceberam que uma possibilidade se destacou nesses objetos, uma possibilidade que virtualizou as demais possibilidades. Isso significa que os animais são capazes de perceber relações particulares entre as possibilidades de dois entes, de dois objetos, ou seja, são capazes de perceber como os objetos tendem a se relacionar. Chamamos esta potência de potência estimativa, porque, diferentemente do sentido comum, ela capta possibilidades inerentes aos objetos, mas não as percebe sensorialmente. É uma etapa anterior à percepção sensorial, ou seja, primeiro o passarinho detecta a intenção do graveto, e depois efetivamente o transforma em parte de seu ninho.

Os dados da estimativa podem ser retidos na memória exatamente como as imagens da percepção. A intenção de um cão específico fica retida na memória. Similarmente, a mente é capaz de combinar intenções. A intenção de um coco ficar coeso e a intenção de uma pedra em cortar podem ser combinadas para abrir o coco com a pedra. Verifica-se, portanto, que a potência estimativa é responsável por três operações, que são as operações equivalentes às operações da potência perceptiva do sentido comum.

3) A potência da concupiscibilidade (“o desejo”)

As qualidades dos objetos despertam nas pessoas uma inclinação, um desejo, para gostar ou desgostar deles, para ter simpatia ou antipatia por eles. Essa inclinação, que desta vez está na pessoa e não no objeto, é chamada de potência da concupiscibilidade. A função desta potência não é perceber, mas mover. São, portanto, duas operações:

a) Gosto/desgosto (ou simpatia/antipatia): é a inclinação pessoal pelo objeto.

b) Fruição/aversão: é o resultado do movimento, o fruto da experiência.

4) A potência da irascibilidade

Alguns eventos colocam o homem em situações contraditórias. Por exemplo, o homem movido por um grande desejo de saciar sua sede encontra um leão faminto próximo a um rio. Os desejos são contraditórios: fugir do leão e saciar a sede. Como a avaliação estimativa é limitada, um outro processo decisório tem de entrar em ação. O homem, movido pela esperança, pelo desespero, pela ira, pela audácia, pela calma etc., toma uma decisão que, se confiasse apenas nas avaliações estimativas, o paralisariam num impasse. Em suma, a irascibilidade existe porque entre o homem e o objeto de desejo existem obstáculos.

5) e 6) A potência da inteligência

Os animais, mediante a potência estimativa, são capazes de detectar as intenções (tendências) particulares dos objetos. Quando uma ovelha foge do lobo, ela estimou que o lobo quer lhe comer. No entanto, a ovelha é incapaz de perceber no lobo uma série de intenções e compará-las com as intenções de outros objetos. Assim, o homem percebe a coerência interna do ser do lobo e, por exemplo, do fogo, e compara-os: ele pode usar o fogo para afugentar o lobo.

Isso significa que o objeto da estimativa animal são as intenções particulares, mas o homem é, além disso, capaz de perceber a intenção universal dos objetos. Essa intenção universal, essa tensão permanente, essa estrutura que está sempre presente no objeto, é captada pela inteligência, mas não pela estimativa.

Vê-se, portanto, que há na inteligência, em verdade, duas potências.

a) O intelecto agente: é o que ativamente coleta notas sobre os objetos e compara-os.

b) O intelecto paciente: é o que passivamente recebe as intenções universais, cuja separação das intenções particulares já foi previamente realizada pelo intelecto agente, para entendê-los e reuni-los; é ele quem efetivamente toca o conceito.

Então:

a) Senso comum: relaciona-se com fatos.

b) Estimativa: relaciona-se com os fatos e com as possibilidades dos fatos.

c) Inteligência: relaciona-se com os fatos, com as possibilidades dos fatos e com as estruturas (relações constantes) que organizam as possibilidades.

7) A potência da vontade

A percepção das intenções universais leva a um tipo de apetite que também tem caráter universal. A vontade é um apetite determinado ou criado pelo objeto da inteligência. Se o desejo do apetite concupiscível foi gerado pelo sentido comum, se o apetite irascível foi gerado pela estimativa, a vontade foi gerada pela inteligência. A vontade estabelece normas porque ela percebe que certas relações são permanentes, a despeito do que está se sentindo no momento ou não. O homem come não apenas quando sente fome – embora possa fazê-lo também por isso –, mas porque é capaz de perceber intenções universais nos alimentos e em si próprios e compará-los. Ele come por vontade, não apenas por desejo.

A vontade, embora posterior à inteligência, exige menos esforço do que a intelecção. Depois que o homem coleta e compara as intenções universais dos objetos, resta pouco para a vontade decidir-se a favor ou contra aqueles objetos.

As operações da vontade são:

a) Volição (ou “querer”): uma vez que uma relação universal é entendida como boa, a vontade se sente empenhada a ter aquela intenção universal.

b) Intenção: é a inclinação despertada pela volição; é a inclinação que desperta as demais potências para cumprir a volição.

c) Escolha: antes da volição e da intenção, o homem é livre para escolher se atende ou não atende a vontade.

Às vezes, o desejo predomina sobre a vontade, muito embora a vontade seja estruturalmente superior ao desejo. Isso pode ocorrer por dois motivos:

a) Não está claro por que satisfazer aquele desejo não é bom.

b) O desejo corresponde a uma necessidade subjetiva desconhecida.

O apetite concupiscível funciona por analogia, ou seja, o objeto do desejo é parecido com alguma necessidade que ainda é desconhecida. Quando surge a necessidade, surge junto o desejo pelo objeto análogo à necessidade. Porém, a satisfação do desejo leva à frustração porque, no final das contas, a necessidade original não foi satisfeita. Às vezes, a pessoa demora anos, décadas, ou mesmo uma vida inteira, para descobrir qual era essa necessidade. Não raro, essa necessidade permanecerá oculta ao homem até a morte.

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A descrição matemática newtoniana sobre a posição orbital dos planetas não é um exercício da inteligência: Newton não reuniu as notas essenciais e acidentais sobre os planetas e as órbitas, nem chegou a uma intenção universal a respeito desses objetos, mas apenas apresentou uma formulação matemática que supõe que haja forças que atuem daquela forma. Mesmo que a fórmula esteja “certa”, ou seja, mesmo que ela efetivamente preveja a posição dos planetas, ela não é em si uma explicação total do movimento daqueles planetas. No final das contas, Newton tomou uma série de relações entre as posições dos planetas e as comparou com relações matemáticas ou fórmulas, criando fórmulas que têm uma relação estruturalmente semelhante com a posição dos planetas. Ele criou um símbolo matemático do movimento planetário. Mas isso é apenas um símbolo, não é um conceito. O símbolo não diz nada acerca do ser dos planetas. O simbolizado não é o símbolo. O símbolo implica em recortes baseados nos interesses do simbolista. O físico recorta o movimento planetário de acordo com interesses matemáticos. O astrólogo e o poeta também. Mas eles não são o ser do céu, mas apenas dizem alguma coisa sobre o céu: são notícias organizadas acerca do céu. Nem o físico, nem o astrólogo, nem o poeta estão autorizados a reduzir os demais recortes a produtos da fantasia. Em suma: para saber o que é céu, é preciso saber o recorte que o astrólogo faz, o recorte que Newton faz, o recorte que o poeta faz, o recorte que o casal de namorados faz, os recortes de todos eles. Porque, então, por trás desses recortes, há um objeto capaz de causar todos essas possibilidades.