Este texto é a resposta de São Gregório Palamás (+1359) a um discípulo desnorteado pelos ataques de Barlaam e seus seguidores. Mais tarde, este e outros textos de São Gregório foram reunidos em famosas Tríades.
Portanto, primeiramente leremos a carta do discípulo em busca de guiamento para, em seguida, lermos a sábia resposta do santo.
* * *
Ouvi algumas pessoas afirmarem que os monges também deveriam buscar a sabedoria secular, e que se não possuíssem tal sabedoria seria impossível evitar a ignorância e as falsas opiniões, mesmo que tivessem alcançado o nível mais alto de espiritualidade; e que não conseguiriam adquirir perfeição e santidade sem buscar todo tipo de sabedoria, sobretudo a cultura grega, que também seria um dom de Deus assim como as visões concedidas aos Profetas e Apóstolos por meio de revelações. Essa educação conferiria à alma o conhecimento dos seres criados e enriqueceria a faculdade do conhecimento, que seria a maior de todas as potências da alma. Pois a educação não somente dissiparia todos os males da alma – já que toda paixão tem sua raiz e fundação na ignorância – mas também levaria o homem ao conhecimento de Deus, pois Ele seria cognoscível somente mediante Suas criaturas.
Não me deixei convencer quando ouvi essas coisas, pois minha pequena experiência na vida monástica mostrou-me exatamente o contrário; mas não consigo preparar uma defesa adequada contra essas coisas. ‘Não apenas ocupamo-nos com os mistérios da natureza’, dizem eles orgulhosamente, ‘medindo o ciclo celestial, e estudando os movimentos opostos das estrelas, suas conjunções, fases e nascentes, e calculando as conseqüências dessas coisas (nos orgulhamos de tudo isso); mas também, dado que os princípios implícitos a estes fenômenos são todos divinos e encontram-se na Mente criativa primordial, e as imagens desses princípios existem em nossa alma, somos zelosos em entendê-los, e descartamos todo tipo de ignorância a seu respeito pelos métodos da diferenciação, do raciocínio silogístico e da análise; portanto, tanto nesta vida quanto na próxima, desejamos nos conformar à semelhança do Criador’.
Senti-me incapaz de responder a esses argumentos e, portanto, calei-me diante desses homens; mas agora te imploro, Padre: ensina-me o que deve ser dito em defesa da verdade, de maneira que cumpra-se a injunção do Apóstolo e eu possa estar pronto para responder a qualquer que vos pedir a razão da fé que há em vós (1 Pedro 3:15).
* * *
Ao examinar a natureza das coisas sensíveis, essas pessoas conseguiram chegar a um conceito de Deus, mas não a um conceito verdadeiramente digno dEle e apropriado a Sua santa natureza. Pois seu coração desordenado foi obscurecido pelas maquinações dos demônios que os estavam instruindo. Pois se um conceito digno de Deus pudesse ser alcançado por meio do raciocínio, como então essas pessoas puderam tomar os demônios por deuses, e como puderam acreditar nos demônios ao ensinarem o politeísmo aos homens? Dessa maneira, enredados por essa sabedoria tola e por essa educação sem luzes, eles caluniaram tanto a Deus quanto à natureza. Eles despiram Deus de Sua soberania (pelo menos naquilo que ensinaram); eles atribuíram o Nome Divino a demônios; e eles se distanciaram tanto do conhecimento das coisas – o objeto de seu desejo e entusiasmo – que afirmaram que as coisas inanimadas têm uma alma e participam numa alma superior a si próprias. Eles também alegaram que as coisas sem razão são lógicas, uma vez que são capazes de receber uma alma humana; que os demônios são superiores a nós e que até mesmo são nossos criadores (tal é sua impiedade); eles classificaram entre as coisas incriadas e não-originadas e co-eternas com Deus não apenas a matéria, e o que eles chamam de Alma do Mundo, mas também os seres inteligíveis não vestidos na opacidade corporal, e até mesmo nossas próprias almas.
Será que aqueles que sustentam tal filosofia possuem a sabedoria de Deus, ou mesmo uma sabedoria humana em geral? Creio que nenhum de nós seria louco o bastante para afirmar isso, conforme declarou o Senhor: Não pode a árvore boa dar maus frutos (Mateus 7:18). Na minha avaliação, essa “sabedoria” não é digna nem mesmo de ser chamada de “humana”, pois sua inconsistência é tão grande que chega ao ponto de afirmar que as coisas são ao mesmo tempo animadas e inanimadas, providas e desprovidas de razão, e que as coisas sem sensibilidade por natureza, isto é, que não possuem órgãos sensoriais, podem conter nossas almas! É verdade que o Apóstolo Paulo às vezes chama isso de sabedoria humana, como quando afirma: Falamos essas coisas não com palavras de sabedoria humana (1 Coríntios 2:13). Mas, ao mesmo tempo, ele acha correto chamar aqueles que a adquiriram de sábios que se tornaram loucos (Romanos 1:22), de os inquiridores deste século (1 Coríntios 1:20), sendo que sua sabedoria é por ele qualificada em termos similares: é a sabedoria que se tornou louca (1 Coríntios 1:20), as coisas vis deste mundo (1 Coríntios 1:28), as vãs sutilezas (Colossenses 2:8), a sabedoria deste século que pertence aos príncipes desde século – que se aniquilam (1 Coríntios 2:6).
Quanto a mim, dou ouvidos ao Padre que diz, “Ai do corpo quando não consome o alimento que vem de fora, e ai da alma que não recebe a graça que vem do alto!” Ele falou com justiça – pois o corpo que passar para o mundo das coisas inanimadas perecerá e a alma que se afastar das coisas que lhe são próprias será enredada na vida demoníaca e em pensamentos demoníacos.
Mas se alguém disser que a filosofia, por ser algo natural, é um dom de Deus, então dirá a verdade, sem se contradizer e sem incorrer na acusação que recai sobre aqueles que a abusam e a pervertem para fins não-naturais. De fato, eles tornam sua condenação ainda pior por utilizarem um dom de Deus de maneira desagradável a Ele.
Além disso, a mente dos demônios, criada por Deus, possui por natureza a faculdade da razão. Mas nem por isso dizemos que sua atividade vem de Deus, mesmo que a possibilidade de sua ação venha de Deus; poderíamos dizer, com toda a propriedade, que tal razão é irrazoável. Todavia, ela foi pervertida pelos engodos do diabo, que a transformou numa sabedoria tola, maléfica e insensível por ter proposto tais doutrinas.
Mas se alguém replicar afirmando que os próprios demônios não têm desejos e conhecimentos absolutamente maus, já que desejam existir, viver e pensar, eis a resposta que eu lhe daria: não é correto discutir conosco só porque dizemos que a sabedoria grega é demoníaca (Tiago 3:15), com base no fato de que ela desperta contendas, contém todo tipo de falso ensinamento e aliena-se de seu próprio fim, isto é, o conhecimento de Deus; pois nós também reconhecemos que ela tem alguma participação no bem, de maneira incipiente e remota. É importante lembrar que nada é mal simplesmente porque existe, mas porque se aparta de sua atividade apropriada e, portanto, do fim que é designado a essa atividade.
Então, qual deveria ser a atividade e o objetivo daqueles que buscam a sabedoria de Deus nas criaturas? Não seria a aquisição da verdade e a glorificação do Criador? Isso está claro para todos. Mas o conhecimento dos filósofos pagãos se afastou de ambos os objetivos.
Haveria então alguma utilidade para essa filosofia? Sem dúvida, pois assim como há grande valor terapêutico até mesmo nas substâncias obtidas da carne das serpentes, e os médicos consideram-nas os melhores e mais úteis remédios, assim também há algo de benéfico a ser extraído dos filósofos profanos – mas é como se fosse mel misturado com cicuta. Urge, portanto, que aqueles que desejam extrair o mel da mistura não levem consigo nenhum resíduo mortal. E, se tu pensares no problema, verás que todas ou quase todas as heresias originam-se dessa maneira.
É o que ocorre com os “iconognósticos”, ou seja, aqueles que acham que o homem recebe a imagem de Deus por meio do conhecimento, e que esse conhecimento conforma a alma a Deus. Pois, como foi dito a Caim, Se bem fizeres sua oferta, sem dividir corretamente... (Gênesis 4:7). Mas dividir bem é propriedade de pouquíssimos homens. Somente aqueles cujas almas estão treinadas para distinguir o bem do mal dividem bem.
Por que correr esses perigos desnecessariamente, quando é possível contemplar a sabedoria de Deus em Suas criaturas não apenas sem riscos mas com lucro? Uma vida na qual a esperança em Deus libertou-a de toda preocupação naturalmente impele a alma para a contemplação das criaturas de Deus. Ela então se admira, aprofundando-se em entendimento, persistindo na glorificação do Criador e, por meio desse sentimento de assombro, é levada para algo maior. De acordo com Santo Isaque, Ela encontra tesouros que não podem ser expressos em palavras; e, usando a oração como uma chave, ela penetra em mistérios que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem (1 Coríntios 2:9), mistérios manifestados somente pelo Espírito àqueles que são dignos, conforme ensina São Paulo.
Vês o caminho ligeiro, cheio de lucro e sem perigo, que leva àqueles tesouros sobrenaturais e celestiais?
No caso da sabedoria secular, tu deves primeiro matar a serpente, em outras palavras, superar o orgulho que surge dessa filosofia. Como isso é difícil! A arrogância da filosofia não tem nada em comum com a humildade, diz o ditado. Tendo-a superado, então, você deve separar a cabeça da cauda, pois estas coisas são maléficas no sentido mais intenso do termo. Com cabeça quero dizer as opiniões erradas sobre as coisas inteligíveis, divinas e primordiais; e por cauda quero dizer as fábulas que se contam sobre as coisas criadas. Quanto àquilo que está entre a cabeça e a cauda, você deve separar as idéias inúteis por meio das faculdades do exame e da inspeção que a alma possui, da mesma maneira que os farmacêuticos purificam a carne da serpente com fogo e água. Mesmo que faças tudo isso, e faças bom uso daquilo que foi posto de lado, quanto trabalho e circunspeção serão necessários para executar essa tarefa!
Apesar disso, se tu fizeres bom uso daquela sabedoria profana que foi extirpada, nenhum mal lhe resultará, pois ela naturalmente foi transformada em um instrumento para o bem. Mas mesmo assim ela não pode propriamente ser chamada de dom de Deus e de algo espiritual, pois pertence à ordem da natureza e não de algo enviado do Alto. Eis por que São Paulo, que é tão sábio nas questões divinas, chama-a de carnal (2 Coríntios 1:12); pois, conforme ele diz, Vede, irmãos, entre nós que fomos chamados não são muitos os sábios segundo a carne (1 Coríntios 1:26). Pois quem poderia fazer melhor uso dessa sabedoria do que aqueles a quem São Paulo chama de sábios de fora (1 Timóteo 3:7)? Mas com essa sabedoria em mente, ele corretamente os chama de sábios segundo a carne.
Assim como o prazer da procriação no casamento não pode propriamente ser chamado de dom de Deus, uma vez que é carnal e constitui um dom da natureza e não da graça (mesmo que tal natureza tenha sido criada por Deus), assim também o conhecimento que provém da educação profana, mesmo que bem utilizado, é um dom da natureza, e não da graça – um dom que Deus concede a todos sem exceção por natureza e que pode ser desenvolvido por exercício. Esta última observação, isto é, de que ninguém o adquire sem esforço e exercício, é prova evidente de que se trata de um dom natural, e não espiritual.
É a sabedoria sagrada que deve legitimamente ser chamada de dom de Deus, e não dom natural, pois até mesmo simples pescadores que a receberam do Alto tornam-se, conforme São Gregório, o Teólogo, afirmou, filhos do Trovão, cuja expressão abrange até os confins do universo. Por meio desta graça, até mesmo publicanos tornam-se comerciantes de almas, e algozes implacáveis são transformados em Paulos ao invés de Saulos, deixando a terra para atingir o terceiro céu e ouvir coisas inefáveis. Por esta verdadeira sabedoria nós também conseguimos nos conformar à imagem de Deus, e continuar assim após a morte.
Quanto à sabedoria natural, ensina-se que até mesmo Adão a possuía em abundância, mais do que todos os seus descendentes, embora ele tivesse sido o primeiro a romper a conformidade com a imagem. A filosofia profana existia enquanto auxílio à sabedoria natural antes do advento dAquele que veio para restaurar a alma em sua antiga beleza; por que, então, não conseguimos ser restaurados por esta filosofia antes da vinda do Cristo? Por que precisamos de alguém, não para ensinar filosofia – uma arte que perecerá com este mundo, por isso chamada de sabedoria deste mundo (1 Coríntios 2:6) –, mas de Alguém que tira o pecado do mundo (João 1:29) e que nos conceda a verdadeira e eterna sabedoria – mesmo que aparente ser loucura (1 Coríntios 1:18) aos efêmeros e corruptos homens deste mundo que, todavia, são loucos por não se ligarem espiritualmente a ela? Tu não percebes que não é o estudo das ciências profanas que salva, que purifica a faculdade cognitiva da alma, que a conforma ao Arquétipo divino?
Eis, pois, minha conclusão: se o homem que busca a purificação por meio do cumprimento da Lei não receber benefício algum do Cristo – mesmo que a Lei tenha sido manifestamente promulgada por Deus – então ele também não receberá benefício algum das ciências profanas. Pois Cristo será ainda menos benevolente para com aqueles que se voltarem à filosofia alheia para purificar suas almas. É São Paulo, o porta-voz do Cristo, que nos diz isso e nos dá seu testemunho.
Portanto, primeiramente leremos a carta do discípulo em busca de guiamento para, em seguida, lermos a sábia resposta do santo.
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Ouvi algumas pessoas afirmarem que os monges também deveriam buscar a sabedoria secular, e que se não possuíssem tal sabedoria seria impossível evitar a ignorância e as falsas opiniões, mesmo que tivessem alcançado o nível mais alto de espiritualidade; e que não conseguiriam adquirir perfeição e santidade sem buscar todo tipo de sabedoria, sobretudo a cultura grega, que também seria um dom de Deus assim como as visões concedidas aos Profetas e Apóstolos por meio de revelações. Essa educação conferiria à alma o conhecimento dos seres criados e enriqueceria a faculdade do conhecimento, que seria a maior de todas as potências da alma. Pois a educação não somente dissiparia todos os males da alma – já que toda paixão tem sua raiz e fundação na ignorância – mas também levaria o homem ao conhecimento de Deus, pois Ele seria cognoscível somente mediante Suas criaturas.
Não me deixei convencer quando ouvi essas coisas, pois minha pequena experiência na vida monástica mostrou-me exatamente o contrário; mas não consigo preparar uma defesa adequada contra essas coisas. ‘Não apenas ocupamo-nos com os mistérios da natureza’, dizem eles orgulhosamente, ‘medindo o ciclo celestial, e estudando os movimentos opostos das estrelas, suas conjunções, fases e nascentes, e calculando as conseqüências dessas coisas (nos orgulhamos de tudo isso); mas também, dado que os princípios implícitos a estes fenômenos são todos divinos e encontram-se na Mente criativa primordial, e as imagens desses princípios existem em nossa alma, somos zelosos em entendê-los, e descartamos todo tipo de ignorância a seu respeito pelos métodos da diferenciação, do raciocínio silogístico e da análise; portanto, tanto nesta vida quanto na próxima, desejamos nos conformar à semelhança do Criador’.
Senti-me incapaz de responder a esses argumentos e, portanto, calei-me diante desses homens; mas agora te imploro, Padre: ensina-me o que deve ser dito em defesa da verdade, de maneira que cumpra-se a injunção do Apóstolo e eu possa estar pronto para responder a qualquer que vos pedir a razão da fé que há em vós (1 Pedro 3:15).
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Ao examinar a natureza das coisas sensíveis, essas pessoas conseguiram chegar a um conceito de Deus, mas não a um conceito verdadeiramente digno dEle e apropriado a Sua santa natureza. Pois seu coração desordenado foi obscurecido pelas maquinações dos demônios que os estavam instruindo. Pois se um conceito digno de Deus pudesse ser alcançado por meio do raciocínio, como então essas pessoas puderam tomar os demônios por deuses, e como puderam acreditar nos demônios ao ensinarem o politeísmo aos homens? Dessa maneira, enredados por essa sabedoria tola e por essa educação sem luzes, eles caluniaram tanto a Deus quanto à natureza. Eles despiram Deus de Sua soberania (pelo menos naquilo que ensinaram); eles atribuíram o Nome Divino a demônios; e eles se distanciaram tanto do conhecimento das coisas – o objeto de seu desejo e entusiasmo – que afirmaram que as coisas inanimadas têm uma alma e participam numa alma superior a si próprias. Eles também alegaram que as coisas sem razão são lógicas, uma vez que são capazes de receber uma alma humana; que os demônios são superiores a nós e que até mesmo são nossos criadores (tal é sua impiedade); eles classificaram entre as coisas incriadas e não-originadas e co-eternas com Deus não apenas a matéria, e o que eles chamam de Alma do Mundo, mas também os seres inteligíveis não vestidos na opacidade corporal, e até mesmo nossas próprias almas.
Será que aqueles que sustentam tal filosofia possuem a sabedoria de Deus, ou mesmo uma sabedoria humana em geral? Creio que nenhum de nós seria louco o bastante para afirmar isso, conforme declarou o Senhor: Não pode a árvore boa dar maus frutos (Mateus 7:18). Na minha avaliação, essa “sabedoria” não é digna nem mesmo de ser chamada de “humana”, pois sua inconsistência é tão grande que chega ao ponto de afirmar que as coisas são ao mesmo tempo animadas e inanimadas, providas e desprovidas de razão, e que as coisas sem sensibilidade por natureza, isto é, que não possuem órgãos sensoriais, podem conter nossas almas! É verdade que o Apóstolo Paulo às vezes chama isso de sabedoria humana, como quando afirma: Falamos essas coisas não com palavras de sabedoria humana (1 Coríntios 2:13). Mas, ao mesmo tempo, ele acha correto chamar aqueles que a adquiriram de sábios que se tornaram loucos (Romanos 1:22), de os inquiridores deste século (1 Coríntios 1:20), sendo que sua sabedoria é por ele qualificada em termos similares: é a sabedoria que se tornou louca (1 Coríntios 1:20), as coisas vis deste mundo (1 Coríntios 1:28), as vãs sutilezas (Colossenses 2:8), a sabedoria deste século que pertence aos príncipes desde século – que se aniquilam (1 Coríntios 2:6).
Quanto a mim, dou ouvidos ao Padre que diz, “Ai do corpo quando não consome o alimento que vem de fora, e ai da alma que não recebe a graça que vem do alto!” Ele falou com justiça – pois o corpo que passar para o mundo das coisas inanimadas perecerá e a alma que se afastar das coisas que lhe são próprias será enredada na vida demoníaca e em pensamentos demoníacos.
Mas se alguém disser que a filosofia, por ser algo natural, é um dom de Deus, então dirá a verdade, sem se contradizer e sem incorrer na acusação que recai sobre aqueles que a abusam e a pervertem para fins não-naturais. De fato, eles tornam sua condenação ainda pior por utilizarem um dom de Deus de maneira desagradável a Ele.
Além disso, a mente dos demônios, criada por Deus, possui por natureza a faculdade da razão. Mas nem por isso dizemos que sua atividade vem de Deus, mesmo que a possibilidade de sua ação venha de Deus; poderíamos dizer, com toda a propriedade, que tal razão é irrazoável. Todavia, ela foi pervertida pelos engodos do diabo, que a transformou numa sabedoria tola, maléfica e insensível por ter proposto tais doutrinas.
Mas se alguém replicar afirmando que os próprios demônios não têm desejos e conhecimentos absolutamente maus, já que desejam existir, viver e pensar, eis a resposta que eu lhe daria: não é correto discutir conosco só porque dizemos que a sabedoria grega é demoníaca (Tiago 3:15), com base no fato de que ela desperta contendas, contém todo tipo de falso ensinamento e aliena-se de seu próprio fim, isto é, o conhecimento de Deus; pois nós também reconhecemos que ela tem alguma participação no bem, de maneira incipiente e remota. É importante lembrar que nada é mal simplesmente porque existe, mas porque se aparta de sua atividade apropriada e, portanto, do fim que é designado a essa atividade.
Então, qual deveria ser a atividade e o objetivo daqueles que buscam a sabedoria de Deus nas criaturas? Não seria a aquisição da verdade e a glorificação do Criador? Isso está claro para todos. Mas o conhecimento dos filósofos pagãos se afastou de ambos os objetivos.
Haveria então alguma utilidade para essa filosofia? Sem dúvida, pois assim como há grande valor terapêutico até mesmo nas substâncias obtidas da carne das serpentes, e os médicos consideram-nas os melhores e mais úteis remédios, assim também há algo de benéfico a ser extraído dos filósofos profanos – mas é como se fosse mel misturado com cicuta. Urge, portanto, que aqueles que desejam extrair o mel da mistura não levem consigo nenhum resíduo mortal. E, se tu pensares no problema, verás que todas ou quase todas as heresias originam-se dessa maneira.
É o que ocorre com os “iconognósticos”, ou seja, aqueles que acham que o homem recebe a imagem de Deus por meio do conhecimento, e que esse conhecimento conforma a alma a Deus. Pois, como foi dito a Caim, Se bem fizeres sua oferta, sem dividir corretamente... (Gênesis 4:7). Mas dividir bem é propriedade de pouquíssimos homens. Somente aqueles cujas almas estão treinadas para distinguir o bem do mal dividem bem.
Por que correr esses perigos desnecessariamente, quando é possível contemplar a sabedoria de Deus em Suas criaturas não apenas sem riscos mas com lucro? Uma vida na qual a esperança em Deus libertou-a de toda preocupação naturalmente impele a alma para a contemplação das criaturas de Deus. Ela então se admira, aprofundando-se em entendimento, persistindo na glorificação do Criador e, por meio desse sentimento de assombro, é levada para algo maior. De acordo com Santo Isaque, Ela encontra tesouros que não podem ser expressos em palavras; e, usando a oração como uma chave, ela penetra em mistérios que o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem (1 Coríntios 2:9), mistérios manifestados somente pelo Espírito àqueles que são dignos, conforme ensina São Paulo.
Vês o caminho ligeiro, cheio de lucro e sem perigo, que leva àqueles tesouros sobrenaturais e celestiais?
No caso da sabedoria secular, tu deves primeiro matar a serpente, em outras palavras, superar o orgulho que surge dessa filosofia. Como isso é difícil! A arrogância da filosofia não tem nada em comum com a humildade, diz o ditado. Tendo-a superado, então, você deve separar a cabeça da cauda, pois estas coisas são maléficas no sentido mais intenso do termo. Com cabeça quero dizer as opiniões erradas sobre as coisas inteligíveis, divinas e primordiais; e por cauda quero dizer as fábulas que se contam sobre as coisas criadas. Quanto àquilo que está entre a cabeça e a cauda, você deve separar as idéias inúteis por meio das faculdades do exame e da inspeção que a alma possui, da mesma maneira que os farmacêuticos purificam a carne da serpente com fogo e água. Mesmo que faças tudo isso, e faças bom uso daquilo que foi posto de lado, quanto trabalho e circunspeção serão necessários para executar essa tarefa!
Apesar disso, se tu fizeres bom uso daquela sabedoria profana que foi extirpada, nenhum mal lhe resultará, pois ela naturalmente foi transformada em um instrumento para o bem. Mas mesmo assim ela não pode propriamente ser chamada de dom de Deus e de algo espiritual, pois pertence à ordem da natureza e não de algo enviado do Alto. Eis por que São Paulo, que é tão sábio nas questões divinas, chama-a de carnal (2 Coríntios 1:12); pois, conforme ele diz, Vede, irmãos, entre nós que fomos chamados não são muitos os sábios segundo a carne (1 Coríntios 1:26). Pois quem poderia fazer melhor uso dessa sabedoria do que aqueles a quem São Paulo chama de sábios de fora (1 Timóteo 3:7)? Mas com essa sabedoria em mente, ele corretamente os chama de sábios segundo a carne.
Assim como o prazer da procriação no casamento não pode propriamente ser chamado de dom de Deus, uma vez que é carnal e constitui um dom da natureza e não da graça (mesmo que tal natureza tenha sido criada por Deus), assim também o conhecimento que provém da educação profana, mesmo que bem utilizado, é um dom da natureza, e não da graça – um dom que Deus concede a todos sem exceção por natureza e que pode ser desenvolvido por exercício. Esta última observação, isto é, de que ninguém o adquire sem esforço e exercício, é prova evidente de que se trata de um dom natural, e não espiritual.
É a sabedoria sagrada que deve legitimamente ser chamada de dom de Deus, e não dom natural, pois até mesmo simples pescadores que a receberam do Alto tornam-se, conforme São Gregório, o Teólogo, afirmou, filhos do Trovão, cuja expressão abrange até os confins do universo. Por meio desta graça, até mesmo publicanos tornam-se comerciantes de almas, e algozes implacáveis são transformados em Paulos ao invés de Saulos, deixando a terra para atingir o terceiro céu e ouvir coisas inefáveis. Por esta verdadeira sabedoria nós também conseguimos nos conformar à imagem de Deus, e continuar assim após a morte.
Quanto à sabedoria natural, ensina-se que até mesmo Adão a possuía em abundância, mais do que todos os seus descendentes, embora ele tivesse sido o primeiro a romper a conformidade com a imagem. A filosofia profana existia enquanto auxílio à sabedoria natural antes do advento dAquele que veio para restaurar a alma em sua antiga beleza; por que, então, não conseguimos ser restaurados por esta filosofia antes da vinda do Cristo? Por que precisamos de alguém, não para ensinar filosofia – uma arte que perecerá com este mundo, por isso chamada de sabedoria deste mundo (1 Coríntios 2:6) –, mas de Alguém que tira o pecado do mundo (João 1:29) e que nos conceda a verdadeira e eterna sabedoria – mesmo que aparente ser loucura (1 Coríntios 1:18) aos efêmeros e corruptos homens deste mundo que, todavia, são loucos por não se ligarem espiritualmente a ela? Tu não percebes que não é o estudo das ciências profanas que salva, que purifica a faculdade cognitiva da alma, que a conforma ao Arquétipo divino?
Eis, pois, minha conclusão: se o homem que busca a purificação por meio do cumprimento da Lei não receber benefício algum do Cristo – mesmo que a Lei tenha sido manifestamente promulgada por Deus – então ele também não receberá benefício algum das ciências profanas. Pois Cristo será ainda menos benevolente para com aqueles que se voltarem à filosofia alheia para purificar suas almas. É São Paulo, o porta-voz do Cristo, que nos diz isso e nos dá seu testemunho.