29 de outubro de 2025

Ordem, incerteza e capitalismo


Primeira hipótese
. Só há uma ação primeira. Todo o demais é um desenrolar inevitável, mesmo que quântico, sem arbítrio. O indivíduo é mais uma peça nessa grande sequência de queda de dominós. Somente o primeiro dominó é derrubado.

Segunda hipótese. Há várias ações primeiras porque há escolhas, que são alimentadas pela Fonte e realizadas pelo organismo. O indivíduo é uma peça que escolhe cair e iniciar uma nova sequência de quedas em meio a inúmeras outras quedas em andamento.

Terceira hipótese. Há ordem e aleatoriedade nas quedas dos dominós.

Eduardo Moreira entende que vivemos sob uma “ditadura da ordem”, ou seja, sob uma ditadura da necessidade de tentar prever o futuro, sob uma ditadura da necessidade não só de explicar o cosmo, mas prever o cosmo. Somos impelidos a criar uma história para que nos sintamos capazes de prever eventos futuros. Ele cita a mecânica quântica, em especial a dicotomia onda-partícula, como uma evidência de que continuamos a nos apegar a uma explicação ordenada da realidade.

A ciência nos escraviza, acredita Moreira, ao impor-nos uma ordem, e nos afasta da conexão com o que não pode ser medido. “Há uma fissura existencial profunda no ser humano” com a morte de Deus, com a morte da Fonte de infinitas possibilidades, com a morte da Pura Incerteza. Moreira estende sua crítica à ditadura da ordem ao capitalismo: haveria no capitalismo um caminho certo para a felicidade, qual seja, a aquisição de bens de consumo e acúmulo de dinheiro para eliminar toda e qualquer incerteza. Um caminho impossível porque, afinal, a felicidade só é possível na incerteza.

Moreira propõe que devemos subverter a ordem para sermos a Paz.

Fonte: Eduardo Moreira, A Intenção Primeira, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Brasil, 2023.

28 de outubro de 2025

A elite, a classe média e a ralé


O público leigo, ou seja, o público não intelectualizado, precisa de uma interpretação totalizadora – uma identidade nacional – que lhe explique o mundo social. Há muitos séculos a religião deixou de fazê-lo, seja por incompetência, seja por inapetência. Para Jessé Souza, assim como para Max Weber e Pierre Bourdieu, nosso mundo social é explicado por dois fatores: (1) a legitimação da ordem e (2) a reprodução dos privilégios de classe.

E o aspecto nuclear da legitimação e da reprodução da ordem social brasileira é a escravidão. É a escravidão que fomentou, e continua fomentando, a separação ontológica entre seres humanos de primeira e segunda classe que chamamos de “racismo”. O termo racismo, embora originalmente usado no contexto da “pureza racial”, continua sendo usado por Jessé Souza como o elemento que explica a distinção ontológica no Brasil. A diferença, agora, é que a “raça” dá lugar à “cultura”, o que confere ares de cientificidade a algo que, em verdade, oculta os verdadeiros processos históricos de aprendizado coletivo que estão por trás da ordem social vigente. Curiosamente, o próprio esforço do discurso politicamente correto é uma evidência da desigualdade ontológica a ser negada.

Segundo Jessé Souza, o principal intelectual, ou “figura demiúrgica”, por trás do racismo cultural é Gilberto Freyre. Foi ele quem levou o culturalismo vira-lata à condição científica por excelência. Foi ele quem relegou a identidade nacional não às virtudes espirituais, mas a meras virtudes corporais: sexualidade, emotividade, “calor humano”, “ginga”, hospitalidade etc. Freyre enxergava esses traços como algo essencialmente positivo, mas foi Sérgio Buarque de Holanda que os transformou em traços negativos.

Para o autor, o núcleo da desigualdade social é a socialização familiar. Nas classes média e alta, os pais, de maneira geral, são bem-sucedidos, ou pelos menos mais bem-sucedidos do que as classes baixas, na tarefa de transmitir aos filhos disciplina, pensamento prospectivo e capacidade de concentração. Sem estas qualidades, o melhor que os pais conseguem fazer é que seus filhos sejam analfabetos funcionais. Sem o hábito da leitura, o estímulo para a imaginação, o reforço da capacidade e da autoestima, a criança crescerá afetivamente ligada à ideia de que está destinada a ser trabalhadora desqualificada. Todos esses são hábitos silenciosos e invisíveis, mas que formam a condução racional da vida. “A prisão no aqui e agora tende a reproduzir no tempo a carência do hoje, e não a saída para um futuro melhor. São produzidos, nesse contexto, seres humanos com carências cognitivas, afetivas e morais, advindo daí sua inaptidão para a competição social”.

A saída desse ciclo só pode ser dada pela sociedade, que tem de se responsabilizar pelas classes esquecidas, abandonadas e humilhadas. Urge desmantelar a existência de uma classe de “sub-humanos”, a “ralé de novos escravos”, sobre as quais as demais classes podem se diferenciar positivamente. É a lógica do sistema de castas hindu, como mostrou Max Weber, e é a lógica da ralé brasileira. Não há um sentimento de culpa no exercício da violência material e simbólica contra os mais frágeis porque, afinal, são sub-humanos, escravos, indignos. Uma herança invisível do sistema de castas da escravidão. Segundo Jessé Souza, há quatro grandes classes sociais no Brasil:

(1) A elite dos proprietários

(2) A classe média (uma esfera composta de sujeitos privados com opinião própria e que pretendem vincular verdade e justiça)

(3) A classe trabalhadora semiqualificada

(4) A ralé de novos escravos

E há três capitais cujo acesso explicam as classes sociais: o capital econômico, o capital cultural e o capital social de relações pessoais. Para a classe média, cujo capital econômico é limitado e, ademais, externo, é necessário que ela desenvolva alguma virtude interior que justifique sua posição superior em relação às classes baixas: é a meritocracia. O membro da classe média não seria um privilegiado pela vantagem em que parte na competição social, mas ele supostamente “merece” a posição que ocupa. Ademais, como o capital cultural, essencialmente simbólico, é ele mesmo tratado como uma mercadoria, ou seja, de maneira rasteira e distorcida, isso por outro lado impede que a classe média estabeleça a união entre verdade e justiça que originalmente busca.

Eis o papel que desempenham as ideias de patrimonialismo (Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro, Francisco Weffort) e o populismo. A classe média acredita que o Estado é um patrimônio “público” e que o “privado” o usurpa pela “corrupção”. Por outro lado, acredita também que as ações assistencialistas são populistas porque manipulam as massas ao minar sua iniciativa e força de vontade. Mediante ambas as ideias, a classe média funciona como cadeia de transmissão – o capataz e marionete – da elite sobre as classes baixas. Sem acesso aos esquemas de pilhagem da elite, a classe média se vê como “virgem imaculada” e moralmente perfeita ao defender a classe alta, ao mesmo tempo que nutre ódio secular às classes populares.

As formas da classe média de perceber virtude são duas: (1) a dignidade do trabalhador útil e produtivo e (2) sensibilidade da personalidade expressiva. A meritocracia e o “vestir a camisa da empresa” (cujo expoente é o toyotismo japonês) nasce do ponto (1), e as expressões literárias e intelectuais, massificadas nas pautas dos anos 1960 (liberdade sexual, feminismo, casamento gay, aborto livre, consumo de drogas recreativas), nasce do ponto (2).

Como escapar das falsas certezas da classe média (seja ela de esquerda ou direita, não importa)? Jessé Souza explica:

[A classe média tradicional] tem menos contribuição para uma transformação da própria personalidade. Esta inclusive, a própria personalidade, não é vista como um processo de descoberta e criação. O distanciamento em relação a si mesmo e o distanciamento reflexivo em relação à sociedade exigem pressupostos improváveis. Daí que sejam raros, mesmo na classe média privilegiada.

Para que se perceba a vida como invenção, é necessário saber conviver com a incerteza e a dúvida, duas das coisas que a personalidade tradicional e adaptativa mais odeia. A convivência com a dúvida é afetivamente arriscada e demanda enorme energia pessoal. O maior desafio aqui não é simplesmente cognitivo, mas de natureza emocional. Procura-se, para evitar a incerteza e o risco, a segurança das certezas compartilhadas. São elas que dão a sensação de tranquilidade e certeza da própria justeza e correção. Andar na corrente de opinião dominante com a maioria das outras pessoas confere a sensação de que o mundo social compartilhado é sua casa.

Fonte: Jessé Souza, A elite do atraso, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Brasil, 2025.

17 de outubro de 2025

Os graus do saber


Introdução geral

Falar de “graus do saber” implica falar em ciência. E ciência não tem a ver com a realidade em si, que é contingente (como esta mesa, que poderia não estar aqui). A ciência expressa as propriedades (ou “exigências”) de um indivisível ontológico. Em outras palavras, ela expressa a natureza ou essência de uma coisa. O mundo da história, o mundo das coisas concretas, o mundo do devir, o mundo “aqui embaixo”, não tem essência, mas apenas “ocorrência”. Portanto, a realidade necessariamente é composta de essência e ocorrência: essência porque tem orientação, ocorrência porque tem movimento (tempo).

É falso, no entanto, dizer que a ciência não versa sobre o mundo contingente. Versa, mas per accidens, ou seja, quando a ciência “retorna” ao singular ao aplicar nele verdades universais. Por outro lado, que não se pense que a abstração seja capaz, em um só golpe, de apresentar a essência das coisas. Não é assim tão fácil. A abstração, sim, nos introduz na ordem do ser inteligível, mas em princípio percebe apenas os aspectos mais comuns e pobres desse inteligível. A essência mesma das coisas só apreendemos, quando apreendemos, à custa de muito esforço. A abstração nos apresenta apenas signos exteriores da essência.

Há as ciências da explicação (ou “ciências verticais” propter quid est), que tratam das essências como se fossem cognoscíveis: estamos falando das ciências dedutivas, filosóficas e matemáticas. Elas revelam as causas em si mesmas do objeto, apresentando inteligíveis despojados da existência concreta temporal. Há as ciências da verificação (ou “ciências horizontais” quia est), que tratam das essências como se fossem incognoscíveis: estamos falando das ciências indutivas. Elas revelam as causas dos objetos a partir de seus signos, e não as causas em si mesmas, não apresentando inteligíveis que transcendam a existência concreta temporal.

No entanto, é como se as ciências da verificação “se sentissem” necessariamente atraídas às ciências da explicação. Em outras palavras, a inteligibilidade é paralela à imaterialidade. A partir daí, pode-se estabelecer três graus de abstração e as respectivas ciências que os estudam: (1) conhecimento da natureza sensível, ou seja, uma intelecção perinoética (a lei científica está nos signos, como que “girando em torno” da essência) ou uma intelecção dianoética (a lei filosófica está na essência dos fatos); o objeto permanece impregnado de todas as notas provenientes da matéria exceto as particularidades contingentes e estritamente individuais; esse objeto não pode existir sem a matéria e não pode ser concebido sem a matéria; a ciência que o estuda é o que os antigos chamavam de physica; (2) conhecimento da quantidade, ou seja, a intelecção se dá na imaginação e na própria imaginação tem que verificar-se diretamente ou analogicamente; o objeto permanece apenas com o número/extensão em si mesmo; esse objeto não pode existir sem a matéria, mas pode ser concebido sem a matéria; a ciência que o estuda é o que os antigos chamavam de mathematica; (3) conhecimento do ser, ou seja, uma intelecção ananoética; o objeto retém apenas o ser embebido nele mesmo, isto é, o ser e suas leis; esse objeto pode existir sem a matéria e pode ser concebido sem a matéria; a ciência que o estuda é o que os antigos chamavam de metaphysica.

Vê-se desde logo que a physica divide-se em (1a) ciências da comprovação (todas as ciências da natureza sensível, que são ciências da verificação) e (1b) ciências do ser corporal (filosofia da natureza sensível, que é ciência da explicação). A physica e a metaphysica se dirigem a seres reais, enquanto a mathematica se dirige a seres reais e seres de razão. A luz da physica é como uma participação da luz da metaphysica.

A diagram of mathematics

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A física-matemática, um desenvolvimento moderno, é uma ciência materialmente física e formalmente matemática. Embora seja uma ciência dos fenômenos enquanto tais, as conexões sobre as quais se baseia não são conexões inteligíveis, mas conexões meramente formais, restritas às relações matemáticas. É uma ciência interessante e frutífera sem dúvida, mas apenas uma scientia media.

A filosofia, aqui abrangendo a metafísica e a filosofia da natureza, é quem justifica e defende os princípios das ciências. “É a filosofia, por exemplo, e não a matemática, que nos dirá se o número irracional e o número transfinito são seres reais ou seres de razão, se as geometrias não-euclidianas são construções de razão que se fundam na geometria euclidiana e atribuem a esta um valor privilegiado, ou se, ao contrário, constituem um conjunto mais vasto, do qual a geometria euclidiana não passa de uma espécie; ela nos ensinará se a matemática e a lógica tem ou não fronteiras imutavelmente traçadas etc. Em suma, é a filosofia que confere a ordem que reina entre as ciências: sapientis est ordinare (‘é próprio do sábio ordenar’).”

Uma crítica ao idealismo

Kant recusou-se a conceder à metafísica o status de ciência porque para ele a experiência era o produto e o fim da ciência, que ela constitui ao aplicar aos dados sensíveis necessidades que são formas puras do espírito. Mas Santo Tomás reconhece na metafísica a ciência suprema da ordem natural, porque para ele a experiência é o ponto de partida da ciência, que, ao ler nos dados sensíveis necessidades inteligíveis que a transcendem, pode ir além, seguindo essas necessidades, e assim chegar a um conhecimento supraexperimental absolutamente certo. O ser é, de fato, o objeto próprio do entendimento, em cujos conceitos está incorporado; é a ele, portanto, como contido sob os dados dos sentidos, que nossa inteligência se dirige em primeiro lugar. Uma vez que tenha extraído esse objeto de conceito para considerá-lo em si mesmo, como ser, ela então compreende que tal objeto não se reduz às realidades sensíveis nas quais foi inicialmente descoberto; mas, ao contrário, possui um valor supraexperimental, assim como os princípios que nele residem. É por isso que a inteligência fecha o circuito, por assim dizer, retornando àquele mesmo ser — que contemplou desde o princípio, desde a sua primeira intelecção do sensível — para apreendê-lo metafísica e transcendentalmente. E assim, tendo em seus conceitos metafísicos a percepção intelectual de objetos, como o ser e os transcendentais, que podem ser realizados para além da matéria na qual os percebe, a metafísica também apreenderá esses objetos — sem percebê-los diretamente desta vez e como que no espelho das coisas sensíveis — onde eles são realizados sem matéria, como os fatos verificados no mundo da experiência nos forçam a inferir. O suprassensível não poderia, consequentemente, pelo menos na ordem natural, ser objeto de uma ciência experimental; é, no entanto, objeto de uma ciência propriamente dita e da ciência por excelência; porque se o mundo do ser enquanto ser, desvendado pelo espírito quando liberta seus objetos de toda materialidade, não cai sob os sentidos, por outro lado, as necessidades inteligíveis são descobertas ali da maneira mais perfeita, de modo que o conhecimento ordenado a tal universo de inteligibilidade é em si mesmo o mais certo, mesmo que o alcancemos com mais dificuldade; porque somos uma raça ingrata e medíocre, que só aspira a carecer do que de mais sublime poderia possuir, e que por si só, mesmo quando certos dons superiores lhe fortaleceram os olhos, terá sempre preferência pela escuridão.

* * *

Maritain critica o idealismo apoiando-se em três razões centrais:

(a) É incoerente que o puro cogito possa servir de ponto de partida de uma teoria do conhecimento. O famoso cogito ergo sum [“penso logo sou”] é ambíguo pois pretende ser o ponto de partida e ponto de chegada do conhecimento. Maritain propõe uma alternativa: scio aliquid esse [“sei que algo existe”].  Nesta fórmula, o ser inteligível e o eu são dados conjuntamente desde o primeiro momento, mas o ser vai em primeiro plano e o eu como que “nos bastidores”.

(b) Uma verdadeira teoria do conhecimento não pode apresentar nenhum tipo e duvida real universal porque encerraria um círculo vicioso. Sim, pois ignora-se até mesmo a ordenação essencial da inteligência ao ser, o que põe em suspenso a própria suspensão de qualquer certeza.  Ademais, citando a Du Rossaux: “Não se pode duvidar, de maneira reflexiva, do valor de toda certeza sem referir-se de maneira expressa a um ideal absoluto e incontestável de certeza. [...] Pois bem, tal certeza implica todos os elementos da filosofia crítica: noções da verdade, da realidade, da objetividade etc.; a filosofia crítica começou antes do começo que se assigna a si mesma”. Em todo juízo a inteligência se conhece tácita e virtualmente a si mesma; o realismo é vivido pela inteligência antes de ser reconhecido por ela.

(c) A epistemologia não pode ser condição prévia da filosofia. É absurda a pretensão de fazer do retorno sobre seus próprios passos o primeiro passo de uma corrida. De acordo com Étienne Gilson: “É preciso que a epistemologia, ao invés de ser uma condição da ontologia, cresça nela e com ela: a epistemologia deve explicar e ao mesmo tempo ser explicada; deve sustentar-se e ser sustentada, como se sustentam mutuamente as partes de uma verdadeira filosofia”. Comenta Maritain, não sem sarcasmo: “Todos os esforços demonstrativos do idealismo se reduzem a declarar que uma coisa não pode ser conhecida sem ser conhecida, coisa que todo mundo já suspeitava”.

O realismo, por outro lado, alega que o ato de conhecer, a coisa e o pensamento constituem estritamente uma unidade: a inteligência em ato é, segundo Aristóteles, o inteligível em ato. É isso que Tomás de Aquino quer dizer com adaequatio rei et intellectus: a adequação, ou melhor, conformidade, entre a inteligência e a coisa.

A ingenuidade [dos filósofos imbuídos nos princípios cartesianos] consiste em começar por um ato de conhecimento das coisas e não por um ato de conhecimento do conhecimento. O espírito deve efetivamente escolher seu caminho desde o começo; se requer dele uma decisão primeira, ordenada a governar todo seu destino. Mas o primeiro ato de reflexão ensina que quem escolheu segundo a natureza e sem recusar a primeira luz acesa em seu coração, ou seja, a primeira evidência objetiva, escolheu sabiamente; e aquele que escolheu contra a natureza, exigindo uma segunda lei antes de seguir a primeira, escolheu um absurdo; quis começar pelo que está em segundo lugar.

Pensa-se o pensado somente depois de se ter pensado o pensável “apto para existir” (o real ao menos possível); o primeiro que se pensa é o ser independente do pensamento. O cogitatum [“o pensado”] do primeiro cogito não é o cogitatum, mas o ens. Não se come o comido, se come pão. Separa o objeto da coisa, o logos objetivo do ser metalógico, é violar a natureza da inteligência, é desviar-se da primeira evidência da intuição direta e mutilar a intuição reflexiva (essa mesma intuição reflexiva sobre a qual se pretender cimentar tudo) no primeiro de seus dados imediatos. O idealismo começa a levantar o edifício filosófico com um pecado inicial contra a luz.

[...]

Se desde o começo se recusam com tanto cuidado as coisas e sua consistência extramental reguladora de nosso pensamento é porque antes de mais nada se busca, por um instinto secreto tanto mais imperioso quanto permanece mais oculto, não se ver obrigado a encontrar-se afinal na presença de uma suprema realidade transcendente, de um abismo de personalidade ante o qual todo o coração está a descoberto e que nosso pensamento deve adorar. Os baluartes e as fortalezas da filosofia idealista são, no final das contas, descomunais obras de proteção contra a personalidade divina.

Basta que haja coisas para que Deus seja inevitável. Outorguemos a uma folha de grama, à mais diminuta formiga, seu valor de realidade ontológica e não poderemos escapar à terrível mão que nos criou.

[...]

Assim, o mundo do realismo autêntico é um mundo de coisas que existem em si mesmas, um mundo, uma imensa família, um symposium [uma "conversa"] de indivíduos e pessoas em interação, assim como a coisa que conhece é em si mesma um indivíduo ou uma pessoa, e essa coisa que conhece está lá no meio das outras para atraí-las de certa forma para seu seio e para se nutrir da mesma coisa que elas são.

Santo Tomás diz sobre isso: “Qualquer coisa pode ser perfeita de duas maneiras. Primeiro, de acordo com a perfeição de seu próprio ser, que lhe é apropriada de acordo com sua própria espécie. Mas, como o ser específico de uma coisa é distinto do ser específico de outra, segue-se que, em toda coisa criada, a perfeição que ela possui carece daquilo que possui, tanto quanto todas as outras espécies; de modo que a perfeição de uma coisa considerada em si mesma é imperfeita, visto que faz parte da perfeição total do universo, que nasce da união de todas as perfeições particulares. Portanto, como remédio para essa imperfeição, há nas coisas criadas outro meio de perfeição, segundo o qual a mesma perfeição que é propriedade de uma coisa é encontrada em outra. Tal é a perfeição do conhecedor como tal, porque, na medida em que ele conhece, o que é conhecido existe de certa maneira nele... E de acordo com esse modo de perfeição, é possível que em uma única coisa particular exista a perfeição de todo o universo.”

Para Tomás de Aquino e seus seguidores, conhecer significa ser algo distinto do que se é, ou seja, é chegar a ser algo diverso de si mesmo, é chegar a ser o outro enquanto outro. O cognoscente chega a ser mais um com o conhecido do que a matéria com a forma. O conhecimento não é o verbo mental, muito embora ele seja uma expressão do ato de conhecimento. Em suma, o conceito (verbo mental) é um signo, que existe somente no espírito, enquanto o objeto é o significado, que existe tanto no espírito quanto na coisa. Para Descartes não existe ser intencional, ou seja, o verbo mental; para ele, o conceito é um mero signo instrumental. Ora, uma vez que desaparece a função intencional, o conhecimento passa a ser perfeitamente ininteligível.

O saber da natureza sensível

Maritain chama o conjunto do que o sujeito cognoscente pode conhecer de transobjetivo inteligível. A primeira zona do transobjetivo inteligível com a qual a inteligência humana entra em contato é um universo de objetos que se manifestam (“realizam”) somente na existência sensível ou empírica: eis o universo da realidade sensível. Há uma segunda zona, que é a preterrealidade, ou seja, o universo matemático. Por fim, há uma terceira zona do transobjetivo inteligível, que é o transsensível, ou seja, o universo do metafísico, o qual termina em um ser que, para nós, é transinteligível, que somente é cognoscível mediante por meio da analogia.

A diagram of a person's relationship

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Quanto à realidade sensível (a primeira zona do transobjetivo), há dois saberes, como vimos no quadro acima: a filosofia da natureza (um saber de ordem ontológica) e as ciências experimentais (aquilo que chamamos coloquialmente de “ciência”).

É nas ciências experimentais que se comprova a enorme relevância e utilidade das matemáticas, em especial seu uso no que modernamente chamamos de “física”, embora tal disciplina, para não ser confundida com a filosofia da natureza, deva ser chamada de “física-matemática”, ou seja, a porção matematizável da física geral (filosofia da natureza).  A matemática fornece os entes de razão necessários para que os entes reais e suas imagens aproximativas (como “elétron”, por exemplo) possam ser relacionadas. E aqui o leitor pode se perguntar como diabos um ente de razão, que não é real, relaciona-se com os entes reais? Onde se dá o “contato” entre tais entes?

O contato se dá na categoria da “quantidade”. A quantidade é extraída do sujeito (lembre-se que na filosofia medieval “sujeito” e “objeto” são entendidos inversamente ao que modernamente se entende) pela abstractio formalis, constituindo em si um universo de conhecimento separado, que é o universo de preterrealidade, que é o objeto da matemática. Os entes de razão matemáticos, a despeito de não serem entes reais, se comunicam com a física experimental mediante medições, isto é, quantidades. Por mais complexa e abstrata que se apresente a física teórica e suas complicadas relações matemáticas, o litmus test serão as medições quantitativas da física experimental.

Por mais que o léxico conceitual da física-matemática seja complexo, sua base é empiriológica. No entanto, lhe falta à física-matemática o léxico de base ontológica. O léxico empiriológico da física-matemática atinge o ser das coisas apenas obliquamente. Sim, é verdade, tal léxico toca as essências do mundo corporal (é a categoria da quantidade), mas não são elas seu objeto próprio. Ainda mais nos últimos cem anos, com o desenvolvimento da física quântica, é impossível que a física-matemática progrida fingindo que há um pano ontológico de fundo. Não se trata de mero “arcaísmo”, portanto. Em suma, o saber da física-matemática não é de conhecimento da realidade dado pela realidade, mas um conhecimento da realidade dado pela preterrealidade. É um conhecimento da realidade física por meio de mitos, isto é, de mitos verificados, ou seja, que concordam com as “aparências” mensuráveis e que as “salvam”: uma ciência experimental e mito-poética da realidade física.

Quanto à filosofia da natureza, ela não se interessa pelas condições empíricas, mas pelas razões de ser e pelas causas propriamente ditas; em outras palavras, ela procura a essência das coisas. Embora se volte ao mundo sensível, ou seja, ao mundo da mutabilidade, o que a filosofia da natureza procura descobrir são os princípios ontológicos que dão razão à mutabilidade do mundo. É essencialmente uma filosofia da mutabilidade.

No entanto, a essência das coisas permanece como que sepultada por detrás da matéria. O que a filosofia da natureza é capaz de fazer é captar, mediante as grandes diferenças entre matéria inanimada, vegetais e animais, certas propriedades essenciais. No mais, para além destas elevadas certezas universais, resta o conhecimento que Leibniz chamava de “simbólico” ou “cego”, e que nós atualmente chamamos de conhecimento empírico ou “científico”. Este conhecimento é muitíssimo detalhado, mas a essência lhe escapa.

O saber metafísico

Vimos acima que a intelecção dianoética é aquela própria das ciências experimentais. É quando o intelecto agente, alimentado pelos nove sentidos, consegue conhecer as coisas por si mesmas. Mas a intelecção dianoética nunca alcança o que quer que seja desde o íntimo das coisas, desde o “coração” do ser, digamos. A intelecção dianoética leva à essência, mas como que “por fora”, como um cego que caminha a apalpadelas, sem poder discernir a própria essência nem suas propriedades essenciais ontologicamente falando. No caso das ciências experimentais, a intelecção é perinoética, ou seja, o conhecimento é periférico, “circunferencial”: os minerais, vegetais, animais se negam a mostrar suas determinações específicas.

Em suma, como ensinava Cardeal Caetano, a inteligência humana tem por objeto conatural a essência ou quididade das coisas, mas nunca conhece as coisas essencialmente ou “quiditativamente”.

Antes de saber que Pedro é um homem já o percebi como alguma coisa, como um ser. E esse objeto inteligível “ser” é universalmente comunicável, ou seja, me deparo com ele em todo lugar: em todo lugar o ser é o mesmo e em todo lugar o ser é distinto; não consigo pensar nada sem tê-lo presente diante de meu espírito pois ele está impregnado todas as coisas. A isso os escolásticos chamavam de objeto de pensamento transcendental. Há uma trindade que se destaca nos transcendentais: o ser em si mesmo, o verdadeiro (ontológico) e o bem (metafísico). O ser é percebido dianoeticamente de imediato, sem ter por espelho nenhum tipo de objeto conhecido antecipadamente. A primeira lei do ser (“o ser não é o não-ser”) é nossa intuição filosófica primordial, é o princípio ontológico (metalógico), e não lógico.

Mas se o conhecimento do ser realiza-se por intelecção dianoética, o mesmo não ocorre com os seres analogados a ele. O analogado transinteligível (decifrar o invisível no visível) é conhecido no analogado proporcionado à nossa inteligência mediante a abstração do análogo transcendental (Maurílio Teixeira Leite Penido). Aqui falamos, por exemplo, das perfeições divinas, que são encontradas analogamente no ser. Não se trata de intelecção perinoética ou dianoética, mas ananoética. É penetrando nestes transinteligíveis que nossa inteligência encontrará seu repouso.

A partir daí, toda e qualquer intelecção a respeito da Divindade (se é trina, se sua natureza se une à dos homens na encarnação etc.) é uma sobreanalogia.

O saber místico

O saber metafísico, para Maritain, não é o grau mais superior dos saberes. Há ainda dois graus acima. Mas antes de versar um pouco sobre eles, é interessante notar que Maritain considera que o ser, embora detectável nas coisas sensíveis, é ele mesmo algo que transcende o sensível, e mais: o noûs é com que impelido a buscar nas regiões suprassensíveis mais e novas verdades. O ser é, portanto, uma “isca” que captura o noûs para regiões mais elevadas. A novidade aqui, o leitor verá, é que o mundo sensível, mesmo nesta vida, não é imprescindível para a comunicação das verdades transcendentais por parte do Ser Supremo ou de anjos.

“É preciso dizer que Santo Tomás nunca considerou a inteligência humana reduzida à ciência do sensível, à qual se acrescentaria, como extensão ilusória, um conhecimento metafórico das coisas individuais e espirituais. Essa interpretação irrisória, que às vezes se ouve — porque os vocábulos suportam tudo — é uma distorção radical de seu pensamento. Se nossa inteligência está diretamente ordenada, como humana, ao ser tal como se concretiza nas coisas sensíveis, ela permanece, como inteligência, ordenada ao ser em toda a sua amplitude; e o ser percebido nas coisas sensíveis já é um objeto de pensamento que transcende o sensível e obriga o espírito a conceber uma zona do ser desvinculada dos limites do sensível e a buscar nessa zona as razões supremas de todo o resto. Desse modo, nossa ordenação natural das coisas situadas no mesmo plano que nós em relação ao ser é como uma isca, uma armadilha que nos atrai para um plano superior; do ponto de vista da ética, é necessário dizer com Aristóteles que a natureza humana exige, pelo que há de principal nela, ou seja, pelo noûs, ir em direção ao que está acima do homem.

A seguir, um quadro-resumo dos saberes superiores:

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É mediante a graça, implantada nos homens como uma semente de Deus (semen Dei). É uma realidade “física”, ou seja, ontológica, algo positivo e eficiente, a mais sólida das realidades. É nesta ordem espiritual que vive o metafísico e o poeta, e esta ordem está acima de todas as leis do universo corporal. Esta graça, o próprio Deus, explica Maritain, habita não como simples causa primeira eficiente. O que ele quer dizer é que a graça se torna “objeto”, ou seja, uma causa última final, um objeto de conhecimento e de amor.

Assim, a graça tem como fim a experiência mística e a contemplação infusa, cujo alcance pode dispensar a ação intermediária das coisas sensíveis. Mas é claro que a experiência mística exige consequentemente um conhecimento sobrenaturalmente inspirado. Ademais, embora o conhecimento metafísico aponte para o Alto, tal conhecimento implica em uma distância. Tal distância é engendrada pelos conceitos formados naturalmente. Para o conhecimento sobrenatural, tal distância tem de ser vencida, ou “anulada”, e é precisamente isso que faz a experiência mística: ela “une”, mediante a visão beatífica, homem e Deus. Há, portanto, certa conaturalidade entre ambos, homem e Deus, cuja “ponte” ou “acesso” se dá mediante a graça por inspiração do Espírito.

Eis aqui um quadro-resumo de como o espírito humano é movido natural e sobrenaturalmente por Deus.

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Por fim, cabe lembrar que existe a possibilidade de um esboço de semelhança natural de da experiência mística pela via do amor natural de Deus: tal amor, de fato, por insuficiente que seja para nos fazer preferir eficazmente a Deus sobre todas as coisas, pode, no entanto, ser intenso e profundo e até eficaz sobre o governo de nossos impulsos teóricos, se não sobre nossa própria vida; tal amor poderia, por conseguinte, esboçar na alma um grau mais puro de inspiração e espiritualidade natural às analogias naturais da contemplação.

Fonte: Jacques Maritain, Los grados del saber, Ediciones Desclee de Brouwer, Buenos Aires, Argentina, 1947.

6 de outubro de 2025

Quem é aceito por Jesus Cristo?


É aquela pessoa que faz tudo por amor, não por barganha, não por troca, não por negociação. A maior demonstração disso é o aspecto “Ômega” do juízo segundo Jesus, encontrado em Mateus 25.

Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo; porque tive fome, e destes-me de comer; tive sede, e destes-me de beber; era estrangeiro, e hospedastes-me; estava nu, e vestistes-me; adoeci, e visitastes-me; estive na prisão, e fostes me ver. Então os justos lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, e te demos de comer? Ou com sede, e te demos de beber? E quando te vimos estrangeiro, e te hospedamos? Ou nu, e te vestimos? E quando te vimos enfermo, ou na prisão, e fomos ver-te? E, respondendo o Rei, lhes dirá: Em verdade vos digo que quando o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes. Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos; porque tive fome, e não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; sendo estrangeiro, não me hospedastes; estando nu, não me vestistes; e enfermo, e na prisão, não me visitastes. Então eles também lhe responderão, dizendo: Senhor, quando te vimos com fome, ou com sede, ou estrangeiro, ou nu, ou enfermo, ou na prisão, e não te servimos? Então lhes responderá, dizendo: Em verdade vos digo que, quando a um destes pequeninos o não fizestes, não o fizestes a mim. E irão estes para o tormento eterno, mas os justos para a vida eterna.  (Mateus 25:34-46)

Essas pessoas [à esquerda] achavam que sabiam quem Jesus era, achavam que tinham um pré-conhecimento acerca de Jesus. Em geral esta é a característica do espírito da religião, da doutrinação, da teologia: “Eu sei de Deus, você não; eu aprendi de Deus, você não; eu entendi Deus, você não”. Essas pessoas [à direita] não tinham a menor ideia de quem Jesus era, mas elas trataram com espontaneidade simples de acolhimento ao próximo, ao diferente, ao irmão, ao despojado, ao marginalizado; em suma, aos “pequeninos”. Jesus deixa claro que sempre que [essas pessoas à direita] fizeram isso em verdade foi a Ele que o fizeram. O ponto central do Evangelho é fazer isso a qualquer um.

Fonte: Caio Fábio, Evangelho de Jesus, YouTube, 2024.

9 de setembro de 2025

O racismo cultural


O fator central do domínio da elite brasileira sobre a população pobre é a humilhação. É o sentimento de humilhação que faz com que o pobre concorde, admire e ame o humilhador. 

De maneira mais ampla, o principal combustível da humilhação é a escravidão. No entanto, não se trata de meramente atribuir importância histórica à escravidão conforme praticada no período colonial e imperial, mas destacar o papel interpretativo que a escravidão tem nos dias de hoje. 

Em outras palavras, a maneira como a sociedade brasileira é interpretada revela que a escravidão racial, outrora vigente de maneira ostensiva até a República Velha, passa a assumir a forma de um racismo cultural. É importante que a escravidão se mantenha para que o prazer em humilhar se mantenha. A humilhação não precisa ser algo consciente e articulado porque, afinal, trata-se de um sentimento. Negar à população cultura, saúde e educação é o veículo da humilhação, é a maneira da elite olhar o povo “de cima para baixo”.

Esse racismo cultural é produto de uma narrativa interpretativa singular: o Brasil vem de Portugal, e com os portugueses teria vindo uma herança de corrupção, crime e miséria medievais. Por isso, o que faz do Brasil um país rico com um povo pobre seria o patrimonialismo e a corrupção populares, que perpetuariam essa herança portuguesa. O Brasil é pobre porque, segundo esta linha interpretativa, o povo é corrupto. Eis que o racismo passa a ser algo moral, não mais racial.

É dessa forma que a elite brasileira se oculta. A educação e a imprensa fomentam a ideia de que o verdadeiro inimigo dos brasileiros – a elite econômica que hoje se oculta no sistema especulativo que atende pelo nome de “Faria Lima” – não rouba, mas “negocia”. Eis em poucas palavras como os inimigos do Brasil operam: a elite rouba, a imprensa mente. As demais instituições – câmaras legislativas, sistema judiciário, aparelho policial, forças armadas, universidades, igrejas evangélicas etc. – procuram garantir que nenhum elemento externo seja capaz de furar a bolha da narrativa interpretativa.

Racismo não tem a ver com raça porque o racismo hoje em dia se mostra em máscaras que moralizam o racista. Eis o racismo cultural.

Fonte: Jessé Souza, Exploração, história e injustiça, YouTube, 2025.

18 de agosto de 2025

As três rebeliões, a geografia cósmica e a nova aliança


1. A primeira rebelião

Deus preside uma assembleia divina composta por deuses. Tais deuses são espíritos (elohim) sendo Deus/Jeová o Elohim acima de todos os elohim. Tanto os homens quanto o exército do céu imageiam a Deus, ou seja, são Sua família. Ambos – homens e deuses – representam a Deus, são filhos de Deus, compartilham os atributos de Deus. Ocorre que nós, homens, devemos representar a Deus na terra. Mas um querubim guardião ( “serpente” ou “dragão”, segundo antigas tábuas mesopotâmicas) rebelou-se contra Javé e foi expulso do Éden. Adão e Eva também se rebelaram, e a morte foi trazida à terra. Agora todos os homens morreriam.

Deus está na assembleia divina; julga no meio dos deuses. [...] Eu disse: Vós sois deuses, e todos vós filhos do Altíssimo. (Salmos 82:1,6)

Terrível é Deus na assembleia dos santos. (Salmos 89:7)

Então ele [Miqueias] disse: Ouve, pois, a palavra de Javé: Vi a Javé assentado sobre o seu trono, e todo o exército do céu estava junto a ele, à sua mão direita e à sua esquerda. E disse Javé: Quem induzirá Acabe, para que suba, e caia em Ramote de Gileade? E um dizia desta maneira e outro de outra. Então saiu um espírito, e se apresentou diante de Javé, e disse: Eu o induzirei. E Javé lhe disse: Com quê? E disse ele: Eu sairei, e serei um espírito de mentira na boca de todos os seus profetas. E ele disse: Tu o induzirás, e ainda prevalecerás; sai e faze assim. Agora, pois, eis que Javé pôs o espírito de mentira na boca de todos estes teus profetas, e Javé falou o mal contra ti.  (1 Reis 22:19-23)

Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito [único, exclusivo, ímpar, incomparável, sem igual], para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. (João 3:16)

E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (Gênesis 1:27)

Onde estavas tu quando lancei os fundamentos da terra? Quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus jubilavam? (Jó 38:4,7)

Nem mesmo de seus santos Deus se fia, e os céus não são puros a seus olhos. (Jó 15:15)

Tu dizias: Escalarei os céus e erigirei meu trono acima das estrelas. Assentar-me-ei no monte da assembleia, no extremo norte. Subirei sobre as nuvens mais altas e me tornarei igual ao Altíssimo. (Isaías 14:13-14)

Tu eras o querubim, ungido para proteger, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas. (Ezequiel 28:14)

2. A segunda rebelião

Alguns filhos de Deus, ou seja, membros da assembleia divina, transgrediram a fronteira entre o céu e a terra. Por isso Deus os lançou no Tártaro (reino dos mortos) e ali permanecerão até o dia do Senhor, o fim dos dias. Por isso, os demônios que Jesus Cristo encontrou não podem ser os filhos de Deus que estão presos no Tártaro. Esses demônios são a prole formada pelo cruzamento dos filhos de Deus com as mulheres, ou seja, são os nefilins, os gigantes, cujos clãs foram combatidos por Moisés e Josué. Os descendentes dos nefilins são também chamados de “anakins” e “refains”. Autores judaicos extra-bíblicos acreditavam que os demônios, como aqueles descritos nos evangelhos, eram espíritos desencarnados dos gigantes. Eles tomavam como base a menção que se faz na Bílbia aos refrains mortos no submundo e em livros judaicos como 1 Enoque e  o Livro dos Gigantes (Manuscritos do Mar Morto)

Viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas. [...] Havia naqueles dias nefilins na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos. (Gênesis 6:2,4)

Deus não poupou aos anjos que pecaram, mas, havendo-os lançado no Tártaro, os entregou às cadeias da escuridão, ficando reservados para o juízo; e não perdoou ao mundo antigo, mas guardou a Noé. (2 Pedro 2:4-5)

Aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, [o Senhor] reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia. (Judas 1:6)

Eu destruí diante dele o amorreu, cuja altura era como a altura dos cedros, e que era forte como os carvalhos. (Amós 2:9)

3. A terceira rebelião

Os filhos de Adão, a humanidade, rebelou-se contra Deus e procurou atingir os céus por meio de uma torre. Deus confundiu sua língua e, em Babel, dividiu a humanidade em nações. Em resposta a tal rebelião, essas nações foram entregues aos membros da assembleia divina para que as governassem, e é por isso que as antigas nações adoravam a outros deuses. Mas esses deuses falharam e não governaram com a devida justiça, e por isso Deus também os condenará à morte. Os estudiosos chamam este fenômeno de “geografia cósmica”, ou seja, as nações em torno de Israel, dominada por deuses hostis (ou “príncipes”) que influenciavam a geopolítica dessas nações. O príncipe de Israel é Miguel, e é notável que há, por trás dos impérios visíveis uma batalha invisível em andamento. No entanto, Israel era a terra santa, o local designado para que Javé vivesse com seu povo, como era no Éden. Mas este local, esta relação, estava perdida. Deus não mais tinha relação com os homens.

Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus. [...] E o Senhor disse [...] “Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro”. Por isso se chamou o seu nome Babel. (Gênesis 11:4,6-7,9)

Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, estabeleceu os termos dos povos, conforme o número dos filhos de Israel. Porque a porção do Senhor é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança. (Deuteronômio 32:8,9)

Deus está na assembleia divina; julga no meio dos deuses. “Até quando julgareis iniquamente, favorecendo a causa dos ímpios?” (Salmos 82:1,2)

Eu disse: Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo. Contudo, morrereis como simples homens e, como qualquer príncipe, caireis. (Salmos 82:6,7)

Porque a indignação de Javé está sobre todas as nações, e o seu furor sobre todo o exército delas. [...] E todo o exército dos céus se dissolverá; e todo o seu exército cairá. (Isaías 34:2,4)

E será que naquele dia o Senhor castigará os exércitos do alto nas alturas, e os reis da terra sobre a terra. (Isaías 24:21)

Mas o príncipe do reino da Pérsia me resistiu vinte e um dias, e eis que Miguel, um dos primeiros príncipes, veio para ajudar-me. (Daniel 10:13)

Agora, pois, tornarei a pelejar contra o príncipe da Pérsia; ...eis que virá o príncipe de Javã [Grécia]...e ninguém há que me anime contra aqueles, senão Miguel, vosso príncipe. (Daniel 10:20,21)

E disse Naamã: Se não queres, dê-se a este teu servo uma carga de terra que baste para carregar duas mulas; porque nunca mais oferecerá este teu servo holocausto nem sacrifício a outros deuses, senão a Javé. (2 Reis 5:17)

4. A velha aliança

Para restaurar a relação com os homens, Javé a lançou com um homem chamado Abraão. No entanto desta vez Javé não se limitou a falar desde os céus, mas apareceu fisicamente a Abraão (e a Isaque e a Jacó) como homem. Visões não são apenas “miragens” ou “alucinações”, mas coisas reais que se veem: elas se sentavam, falavam, andavam. Javé aparecia frequentemente como o “anjo de Javé” (anjo do Senhor). Há ainda dois conceitos que são associados ao anjo: a palavra e o nome. Ambos são descritos como pessoas, ou seja, como a presença do próprio Javé. O fato de Javé ter aparecido como homem aos judeus os preparou para receber Javé como homem em Jesus Cristo.

Deus lhes deu uma lei (613 leis na verdade), mas não era através da lei que obtinham a salvação. A lei os ajudava a viver em harmonia com Deus e entre si. A salvação, entretanto, era obtida mediante a crença de que Javé era o Deus de todos os deuses. Os judeus tinham de negar a adoração a qualquer outro deus que não fosse Javé.

Em especial, nesses tempos de geografia cósmica, Javé estabeleceu nas leis um espaço santo, que deveria ser especialmente preparado e purificado para distingui-lo de um espaço normal. Esse espaço santo deveria lembrar aos israelitas do Jardim do Éden.

O Deus, em cuja presença andaram os meus pais Abraão e Isaque, o Deus que me sustentou, desde que eu nasci até este dia; o anjo que me livrou de todo o mal, abençoe estes rapazes. (Gênesis 48:15,16)

Eis que eu envio um anjo diante de ti, para que te guarde pelo caminho, e te leve ao lugar que te tenho preparado... Não o provoques à ira; porque não perdoará a vossa rebeldia; porque o meu nome está nele. (Êxodo 23:20,21)

Eis que o nome de Javé vem de longe, ardendo a sua ira, sendo pesada a sua carga. (Isaías 30:27)

E Moisés...chegou ao monte..e apareceu-lhe o anjo de Javé em uma chama de fogo do meio de uma sarça; e vendo Javé que se virava para ver, bradou Deus a ele do meio da sarça. (Êxodo 3:1-2,4)

Manifestei o teu nome aos homens. (João 17:6)

E Arão lançará sortes sobre os dois bodes; uma sorte por Javé, e a outra sorte por Azazel. Mas o bode, sobre que cair a sorte por Azazel, apresentar-se-á vivo perante Javé, para fazer expiação com ele, a fim de enviá-lo ao deserto como Azazel. (Levítico 16:8,10)

5. A nova aliança

No novo testamento ocorrerá o mesmo: os homens deverão crer que Jesus Cristo é o Senhor dos senhores e que morreu na cruz para que os homens possam voltar a unir-se a Ele. Porém, tal estratégia divina era desconhecida dos “príncipes deste mundo”, ou seja, dos deuses inferiores de Babel, e até mesmo dos apóstolos. E o mais importante: a salvação agora não deveria estar à disposição somente do “povo de Javé”, mas a toda a humanidade, a todos os que estavam sob o domínio de Satanás e dos deuses das nações.

Aos apóstolos, no entanto, houve um evento específico no qual Jesus Cristo revelou quem Ele realmente era. Trata-se da transfiguração no Monte Hermon, numa região conhecida no VT como Bashan. Os cananeus acreditavam que nesta montanha ou “rocha” havia portais para o submundo, as tais “portas do inferno”. Em alguns dos manuscritos do Mar Morto, que datam dos tempos de Jesus Cristo, o Monte Hermon era o local onde os filhos de Deus desceram à terra antes do dilúvio. Bashan e Hermon eram, portanto, o “marco zero” dos poderes cósmicos malignos, e obviamente muito significativo o fato de Jesus estar literalmente às portas do inferno declarando que não prevalecerão sobre a ecclesia.

Em seguida Jesus disse a seus discípulos que precisava ir a Jerusalém para morrer. Os discípulos não entenderam, mas era hora de cumprir o plano de Deus. Diante de Caifás, Jesus Cristo declarou que Ele era quem haviam dito dEle: o Cristo, o Filho de Deus e que, ademais, o viriam sobre as nuvens do céu. Para Caifás tal declaração era uma blasfêmia porque Jesus estava citando uma expressão do Velho Testamento (“nuvens do céu”) que era usada apenas em alusão ao próprio Deus (por exemplo, no salmo 104:3). Ademais, no VT a chegada de Deus era associada ao fogo, ao vento violento. Foi precisamente o que se viu em Pentecostes. E também em Pentecostes ficou claro, com o fenômeno dos vários povos entenderem em suas línguas, que a salvação agora estava disponível a todos porque a soberania de Jesus Cristo, após vencer a morte, recaía sobre todas as nações. As línguas que antes dividiam as nações agora estavam formalmente superadas. Pentecostes foi como um “tapa na cara” nos deuses das nações porque sua autoridade foi anulada.

O Apóstolo Paulo, sabendo agora que todas as nações deveriam receber o evangelho, fez questão de dirigir-se até os confins do Império Romano: a Espanha. Este fato foi esclarecido por São Clemente de Roma (5:7), ainda no século I, quando disse que São Paulo dirigiu-se até os limites do ocidente. O espaço sagrado de Deus, antes algo geográfico, agora está no corpo de cada homem. Todo crente em Jesus Cristo é espaço sagrado agora.

Mediante a fé em Jesus Cristo somos levados à salvação: compartilharemos a natureza divina e escapamos da corrupção que existe no mundo. Seremos como deuses, teremos um corpo como o que Jesus teve após a ressurreição e, com os membros fiéis do exército do céu, faremos parte da família de Deus e o adoraremos para sempre.  Uma nova terra será erigida na qual os novos deuses, em substituição aos deuses caídos, seremos nós, os fiéis em Jesus Cristo. O céu voltará à terra, e uma sociedade entre Deus e os homens será restaurada, o próprio Éden.

Mas falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória; a qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória. (1 Coríntios 2:7,8)

E Pedro, tomando-o de parte, começou a repreendê-lo, dizendo: Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te acontecerá isso. Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: Para trás de mim, Satanás! (Mateus 16:22,23)

Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que creem no seu nome. (João 1:12)

Agora é o juízo deste mundo; agora será expulso o príncipe deste mundo. E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim. (João 12:31,32)

Jesus tomou consigo a Pedro, a Tiago, e a João, e os levou sós, em particular, a um alto monte; e transfigurou-se diante deles... E desceu uma nuvem que os cobriu com a sua sombra, e saiu da nuvem uma voz que dizia: Este é o meu filho amado; a ele ouvi. (Marcos 9:2,7)

Disse-lhe o sumo sacerdote: Conjuro-te pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus. Disse-lhe Jesus: Tu o disseste; digo-vos, porém, que vereis em breve o Filho do homem assentado à direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu. (Mateus 26:63,64)

Um ancião de dias se assentou; a sua veste era branca como a neve, e o cabelo da sua cabeça como a pura lã... e eis que vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem; e dirigiu-se ao ancião de dias, e o fizeram chegar até ele. E foi-lhe dado o domínio, e a honra, e o reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno. (Daniel 7:9,14)

E de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas. (Atos 2:2-4)

Se abriram os céus, e eu tive visões de Deus... Um vento tempestuoso vinha do norte, uma grande nuvem, com um fogo revolvendo-se nela. (Ezequiel 1:1,4)

É-me dado todo o poder no céu e na terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações. (Mateus 28:18,19)

Assim que, concluído isto, e havendo-lhes consignado este fruto, de lá, passando por vós, irei à Espanha. (Romanos 15:28)

O vosso corpo é o templo do Espírito Santo. (1 Coríntios 6:19)

Ele [Jesus Cristo] não se envergonha de lhes chamar irmãos, dizendo: Anunciarei o teu nome a meus irmãos, cantar-te-ei louvores no meio da assembleia. E outra vez: Eis-me aqui a mim, e aos filhos que Deus me deu. (Hebreus 2:11-13)

Fonte: Michael Heiser, The Unseen Realm - documentary film with Dr. Michael S. Heiser, YouTube, 2022.

12 de agosto de 2025

Batismo


No qual também estais circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo dos pecados da carne, pela circuncisão de Cristo; sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos. (Colossenses 2:11-12)

Mas também, se padecerdes por amor da justiça, sois bem-aventurados. E não temais com medo deles, nem vos turbeis; antes, santificai ao Senhor Deus em vossos corações; e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós, tendo uma boa consciência, para que, naquilo em que falam mal de vós, como de malfeitores, fiquem confundidos os que blasfemam da vossa boa conduta em Cristo. Porque melhor é que padeçais fazendo bem (se a vontade de Deus assim o quer), do que fazendo mal. Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; mortificado, na verdade, na carne, mas vivificado pelo Espírito; no qual também foi, e pregou aos espíritos em prisão; os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água; que também, como uma verdadeira figura, agora vos salva, o batismo, não do despojamento da imundícia da carne, mas da indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo; o qual está à destra de Deus, tendo subido ao céu, havendo-se-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as potências. (1 Pedro 3:14-22)

E um certo Ananias, homem piedoso conforme a lei, que tinha bom testemunho de todos os judeus que ali moravam, vindo ter comigo, e apresentando-se, disse-me: Saulo, irmão, recobra a vista. E naquela mesma hora o vi. E ele disse: O Deus de nossos pais de antemão te designou para que conheças a sua vontade, e vejas aquele Justo e ouças a voz da sua boca. Porque hás de ser sua testemunha para com todos os homens do que tens visto e ouvido. E agora por que te deténs? Levanta-te, e batiza-te, e lava os teus pecados, invocando o nome do Senhor. (Atos 22:12-16)

E disse-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, em remissão de pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. (Atos 2:38)

Vê-se que batismo e circuncisão estão intimamente interligados. O que se diz da circuncisão tem de ser dito do batismo. No entanto, a circuncisão em momento algum do VT tem a ver com “renascimento”, “remissão dos pecados”, “garantia da fé” etc. Aliás, as pessoas circuncidadas nem mesmo eram questionadas a respeito de sua fé, ou da falta dela.

A circuncisão era apenas e tão-somente um sinal visível que servia de lembrança de que a graça de Deus foi concedida a Abraão e à sua descendência. Ela não garantia, nem tinha nada a ver com, “salvação”. A circuncisão era uma maneira de admitir os homens à comunidade daqueles que conheciam a verdade sobre Javé, o único e verdadeiro Deus. Era um sinal visível, mas que em momento algum poderia substituir o “coração circuncidado”, ou seja, um coração crente nas promessas de Javé e na adoração que lhe era devida. Em suma, a circuncisão era importante porque somente essa comunidade, a dos israelitas, possuía a verdade, aquilo que São Paulo chamava de “oráculos de Deus”, o caminho para a salvação, e era mediante a circuncisão que o membro poderia ter acesso a tais oráculos. (Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou qual a utilidade da circuncisão? Muita, em toda a maneira, porque, primeiramente, os oráculos de Deus lhe foram confiados. Romanos 3:1-2).

O batismo tem, ou deveria ter, a mesmíssima função: um sinal visível de inclusão. A pessoa sendo batizada poderá ter acesso aos oráculos de Deus e ouvir a verdade naquela ecclesia. Em 1 Pedro citada acima, o batismo é apresentado como um juramento de lealdade a Jesus Cristo na batalha cósmica. Nesse trecho, São Pedro faz uma alusão tipológica (analógica) com os anjos caídos relatados em Gênesis 6: eis por que as antigas fórmulas batismais incluíam a renúncia a Satanás e seus anjos caídos.

De qualquer forma, o batismo nunca foi entendido como um ritual que predispõe ou inclina a pessoa à salvação. Pelo contrário, o que é realmente central à salvação é a fé, o arrependimento, a decisão de fazer parte do exército de Jesus Cristo, e todos os demais elementos (como se pode ver em Atos 2:38) se conectam perifericamente a tal postura.

Fonte: Michael Heiser, Baptism, YouTube, 2016.