24 de abril de 2024

Filioque ortodoxo


Visão convencional Ocidente-Oriente cristão

Estas tradições são, afirma ela [Catherine LaCugna em God for Us: The Trinity and Christian Life], separadas por um grande abismo: “em quase todos os pontos doutrinários significativos […] as diferenças entre o Oriente e o Ocidente são decisivas e provavelmente irreconciliáveis”. O Ocidente vê as pessoas da Trindade como relações dentro da essência, enquanto o Oriente, depois de Palamás, restringe as pessoas divinas à essência imparticipável. Em ambos os casos, a criação está separada da Trindade imanente. Ela não se interessa pelos méritos relativos do palamismo e do tomismo, permitindo que sejam “dois sistemas de pensamento legítimos, embora divergentes”. […] Não deveria ter passado despercebido que a visão de LaCugna do Oriente e do Ocidente é estranhamente semelhante à de Lossky e Meyendorff: Palamás e Tomás de Aquino apresentados como os picos gêmeosh de suas tradições mutuamente opostas, com o Ocidente contaminado pelo essencialismo e o Oriente (pelo menos até Palamás) mais sensível à distinção de pessoas.

Filioque ortodoxo

Sabe-se que Palamás foi um ferrenho oponente do Filioque latino e parece muito estranho encontrá-lo abraçando algumas das imagens-chave ou Agostinho, o principal progenitor dessa doutrina. Em seus Tratados Apodíticos distintamente antilatinos (c. 1336), Palamás de fato insiste, em termos inequívocos, na processão somente do Pai. Mas, olhando mais de perto, Palamás revela-se muito mais do que um monopatrista inflexível, incapaz de pensar além da missão puramente temporal ou do envio do Espírito pelo Filho. Perfeitamente consciente de que alguns textos patrísticos gregos, como o Thesaurus de Cirilo de Alexandria, envolvem de alguma forma o Filho na eterna processão do Espírito, Palamás apresenta uma abordagem notavelmente construtiva para o problema como um todo.

Palamás insiste que é inadmissível a processão da hipóstase do Espírito a partir da hipóstase do Filho. O Espírito tem seu modo particular de ser apenas a partir da hipóstase do Pai. Afirmar o contrário, como fazem os latinos, é fazer uma única hipóstase de Pai e Filho. Mas podemos falar que o Espírito vem do Pai e do Filho, ou do Pai através do Filho, em termos de natureza. Por causa da consubstancialidade do Pai e do Filho, pode-se dizer que o Espírito provém “naturalmente do Filho e da sua essência”, manifestando assim a própria consubstancialidade do Espírito com o Pai e o Filho. Este eterno movimento divino tem sua contraparte temporal: 'O Espírito flui eternamente do Pai para o Filho e se manifesta nos santos do Pai através do Filho.' Da mesma forma, ‘o Espírito Santo é natural e eternamente do Pai e no Filho, e é manifestado do Filho aos santos’. Palamás tem o cuidado de sublinhar que esta manifestação temporal pertence à energeia incriada do Espírito Santo, e não à sua natureza ou hipóstase.

A distinção entre essência divina e energeia divina (energia, atividade, operação) acrescenta uma dimensão importante ao que poderíamos chamar de “Filioque ortodoxo”. Visto que, para Palamás, a energeia pertence à natureza e não à hipóstase, existe necessariamente uma única energeia do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A consubstancialidade do Deus triúno é assim expressa e revelada na operação divina. Certamente podemos falar do Espírito advindo do Pai e do Filho, ou do Pai através do Filho, quando falamos da extensão aos seres humanos da graça incriada do Espírito. Há uma ordem a ser observada aqui: a energeia divina pode ser única, mas não é indiferenciada. Existe, sustenta Palamás, um sentido real em que podemos falar do Pai e do Filho “dando” o Espírito, se entendermos por isso não a natureza ou a hipóstase, mas a energeia incriada de Deus comunicada no e através do Espírito Santo.

Assim, o Espírito procede somente do Pai, segundo a hipóstase, mas está unido essencialmente ao Filho, 'repousando nele, que lhe é próprio, e permanecendo nele eternamente, porque ele é o dispensador do Espírito'. Assim, não é “nenhuma novidade” dizer que “o Espírito procede do Filho e da sua natureza”. Concomitante com esta processão a partir da natureza do Filho, o Espírito também é 'dado, enviado, derramado e sai' 'através e do' Filho para os dignos. A respeito desta missão temporal do Espírito, Palamás usará até o verbo “proceder de”. Este é, obviamente, o termo usado para o Espírito no Credo Niceno-Constantinopolitano e geralmente reservado por Palamás para a processão eterna do Espírito a partir da hipóstase somente do Pai. O facto de ele estar preparado para usar um termo tão central e “carregado” para a processão temporal do Espírito a partir do Filho serve apenas para sublinhar o fato de que, para Palamás, a processão temporal e a processão eterna estão inseparavelmente, embora inescrutavelmente, ligadas.

Embora pouco simpático (ou, na verdade, mal-informado sobre) a posição latina contemporânea sobre o Filioque, Palamás, no entanto, oferece nos seus Tratados Apodíticos uma abordagem ortodoxa muito construtiva sobre esta questão controversa. Ele permite um ‘Filioque ortodoxo’ tanto no que diz respeito à vida divina eterna quanto à manifestação da energeia divina entre as criaturas. Mas ele permanece inflexível ao afirmar que a hipóstase do Pai é o único princípio originário da divindade. Embora certamente seja inadmissível adicionar a palavra ofensiva ao Credo, ou de aceitar o Filioque em termos de origem, a capacidade de Palamás de abraçar a co-processão nos planos eterno e temporal terá preparado o terreno para a recepção notavelmente positiva do ensino trinitário de Agostinho evidente em obras subsequentes, como a Capita. O Capita 36 é, em suma, perfeitamente congruente com o corpus palamita no seu tratamento da co-processão do Espírito, apesar de ter abordado alguns temas distintamente agostinianos.

A recepção do tomismo após São Gregório Palamás

Outra forma pela qual a oposição entre Oriente e Ocidente é comumente apresentada é em termos de incompatibilidade metodológica. Esta dicotomia particular tem Gerhard Podskalsky como seu principal expoente. Para Podskalsky, o triunfo do palamismo representa o escanteamento da razão e a derrota de qualquer abordagem da teologia propriamente sistemática ou mesmo coerentemente ordenada. A teologia bizantina torna-se, na melhor das hipóteses, uma resposta ad hoc a problemas particulares baseados na experiência monástica. Mais comumente, consiste em pouco mais do que a reunião de testemunhos patrísticos, não raramente orientados para afirmações patrióticas de identidade nacional. Confrontados com a tradição teológica latina mais sofisticada, os bizantinos tinham apenas duas opções diante deles: espanto paralisante ou rejeição pura e simples.

Fonte: Marcus Plested, Orthodox Readings of Aquinas, Oxford University Press, Oxford, Reino Unido, 2012.

20 de abril de 2024

Como tirar proveito de seus inimigos



[A]penas observe seu inimigo e veja se, apesar de ser, em muitos aspectos, nocivo e difícil de manejar, ele não lhe oferece, de uma maneira ou de outra, meios de conquistá-lo e usá-lo como ninguém mais, e isso pode ser de grande proveito para você. [...] Assim, os tolos estragam até suas amizades, enquanto os sábios são capazes de fazer um uso adequado inclusive de suas inimizades.

* * *

Assim como as pólis, que são castigadas pela guerra de fronteira e pela contínua campanha, se contentam com a boa ordem e um governo sólido, também as pessoas que foram obrigadas, por causa de inimizades, a praticar uma vida sóbria, a guardar-se contra a indolência e o desprezo e a deixar algum bom propósito a cada ato, são insensivelmente levadas pela força do hábito a não cometer erros e são ordenadas em seu comportamento, mesmo que a razão venha pouco em seu auxílio. 

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Se você deseja afligir o homem que o odeia, não o insulte como lascivo, efeminado, licencioso, vulgar ou mesquinho, mas comporte-se realmente como um homem, mostre autocontrole, seja sincero e trate com bondade e justiça aqueles que têm que lidar com você. E se você for levado a injuriar, afaste-se o máximo possível das coisas pelas quais você o atribui. Entre no âmago de sua própria alma, olhe em volta para ver se há alguma podridão lá, para que algum vício dentro de você sussurre as palavras do poeta trágico: Você quer curar os outros, cheio de feridas você mesmo?

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Sempre que Platão se encontrava na companhia de pessoas cuja conduta era imprópria, ele costumava dizer a si mesmo: É possível que eu próprio seja como eles? Se o homem que insulta a vida alheia examinar cuidadosamente a sua própria vida e refletir, orientando-a e desviando-a para o caminho oposto, terá ganho algo útil com essa injúria. 

* * *

Pois há muitas coisas que um inimigo percebe mais rápido do que um amigo (pois o amor é cego em relação àquilo que ama, como diz Platão), e inerente ao ódio, junto com a curiosidade, é a incapacidade de segurar a língua.

* * *

Desta maneira, então, nos é possível mostrar as qualidades de gentileza e tolerância em nossas inimizades, e também franqueza, grandeza de espírito e bondade melhor do que em nossas amizades. Não é tão honroso fazer o bem a um amigo, mas é vergonhoso não o fazer quando ele está em necessidade; até mesmo renunciar a se vingar de um inimigo, quando ocorre uma boa oportunidade, é uma coisa bonita de se fazer. Mas no caso de um homem mostrar compaixão por um inimigo em aflição, ajudá-lo quando estiver em necessidade e mostrar alguma preocupação é zelo em favor de seus filhos e assuntos domésticos quando eles precisarem, digo que quem não sente afeição por tal homem por causa de sua bondade, ou não elogia sua bondade, tem um coração negro forjado de aço ou de ferro.

* * *

Mesmo que nossos inimigos por lisonja, artifícios, suborno ou traição pareçam colher sua recompensa na forma de influência desonrosa e sórdida na corte ou no governo, eles não serão motivo de aborrecimento, mas sim de alegria para nós, quando comparamos nossa própria liberdade e a simplicidade de nossa vida isenta de ataques indecentes. Pois todo o ouro que está sob e sobre a terra não vale tanto quanto a virtude, como diz Platão. [...] Mas como o amor é cego em relação àquilo que ama, como diz Platão, é são nossos inimigos que, por sua conduta imprópria, nos dão a oportunidade de ver as nossas condutas, não devemos deixar de lado nossa alegria por seus fracassos nem nossa tristeza por seus sucessos, pois devem ser empregados para algum propósito.

Fonte: Plutarco, Como tirar proveito dos seus inimigos, Editora Vozes, Petrópolis, Brasil, 2023.

18 de abril de 2024

Todos odeiam Tomás


Tomismo essencial

A exemplo de Mário Ferreira em suaFilosofia Concreta, o filósofo brasileiro Daniel Scherer também adota a experiência fundamental do ente como o ponto de partida para expor os elementos essenciais da filosofia de Tomás de Aquino e dos tomistas que a ele se seguiram, com especial ênfase ao filósofo argentino Álvaro Calderón.

Ente é, segundo Scherer, tudo aquilo que é ser (ou tudo aquilo que tem ser). Trate-se do primo cognitum, do princípio ontológico absoluto, e duvidar desse princípio implica forçosamente em afirmá-lo ao mesmo tempo.

No entanto, se o ente é aquilo que é ser, então poderíamos concluir, de maneira um tanto óbvia, que o ente é ser. Sim, mas a coisa não é tão simples assim. O ente é ser, é verdade, mas o ente não é o ser. O ente recebe seu ato de ser do Ser, ou seja, de Deus. Para usar os termos latinos de Tomás de Aquino, o ente recebe seu actus essendi do Ipsum Esse Subsistens (o Próprio Ser Subsistente, uma expressão tomista também usada por Edward Feser em sua quarta prova da existência de Deus). Em suma, nas palavras de Scherer, “a essência do ente é atuada por um ato de ser que lhe é participado pelo Ser”. Ao homem só lhe resta chegar ao Ser mediante o ente, e nisso reside uma das principais, senão a principal, síntese da filosofia tomista.

Quanto ao complexo tema da distinção entre ser e existência, melhor reproduzir excertos de Scherer e de Carlos Nougué, a quem, aliás, dedica sua obra:

O ser é aquilo por que algo é. A forma é aquilo por que o ente opera e que (conjugada à matéria nos entes sensíveis, e sem ela nas substâncias separadas) lhe dá seu modo específico de ser. O ser é dado ou participado à coisa por meio da forma, que é como um instrumento do ser.

[...]

A existência é o ser enquanto predicado a algo; destarte, pode ser dito que [a existência é] o ser alcançado pelo juízo, mediante “a composição de uma proposição, à qual a alma chega unindo um predicado a um sujeito” – não, por óbvio, no sentido de que a existência está apenas no juízo, dentro da mente humana, mas no sentido de que a alcançamos pelo juízo. [...] Quando dizemos, por exemplo, “este cão é”, tal “ser” que lhe predicamos é sua existência. Essa existência nós a tocamos com os dedos – é concreta – e podemos distingui-la apenas gnosiologicamente (e não in re) da essência do ente, porque quando abstraímos a essência “cão” a separamos (abstrativamente, e apenas assim) da existência sensível do animal.

[...]

O primeiro modo pelo qual se pode dizer ser significa o ser como ato de ser (actus essendi); o segundo modo significa o ser como ser em ato (in actu esse) ou fato de ser – isto é, significa aquilo a que, para todos os entes, menos (tecnicamente) Deus, também chamaríamos existência. A distinção entre essência e ser (esse) – diferentemente da distinção entre essência e existência – não é de razão, mas perfeitamente real. O ser é aquilo que, participado por Deus mesmo, à criatura, atua sua essência e lhe dá, como decorrência, existência. A essência do artefato tem ato de ser na mente de quem a pensa; este cão tem ato de ser nele mesmo – e de modo específico, dado por sua essência, mediante sua forma.

[...]

Como os entes criados variam quanto à forma (e, pois, quanto à essência, que a inclui, nos entes compostos), segue-se que os vários entes criados se distinguem quanto ao modo de ser (modus essendi). [...] Já a existência é uma decorrência indistinta para todos os entes criados de seu ato de ser. Todos os entes criados, independentemente de seu modus essendi, existem igualmente.

E de Carlos Nougué:

Pois bem, em geral, diferenciam-se o ser com ato de ser e o ser que se encontra no juízo. NOS ENTES CRIADOS, ademais, o ser com ato de ser é o que se distingue realmente da essência, distinção que não é cognoscível senão para os sapientíssimos; e o ser como ser em ato [por contraposição do ser com ato de ser] ou como fato de ser (o qual está para o ser que se encontra no juízo como a causa para o efeito) é o que não se distingue da essência senão secundum rationem (ainda que com fundamento in re), distinção que porém é evidente para todos. Em português, não é inconveniente que o segundo – ou seja, o que se encontra ao responder a questão na sit (se é) – se traduza também por existir, e seu abstrato por existência: trata-se aqui, insista-se, do fato de ser (ou seja, o fato de ser real e não irreal nem somente possível), não do ato de ser, de que decorre tal fato. Sucede porém que com respeito a Deus é sempre inconveniente usar existir ou existência: porque falando propriamente, só os entes criados ex-sistem (“provém de”), justo enquanto são ex-causas, ao passo que Deus é incausado. Em resumo, Deus é, mas não ‘existe’. – Ademais, nem sequer quanto aos entes criados se pode traduzir sempre o VERBO esse por ‘existir’. Por exemplo, o verbo ser em “ser cão é ser mais que ser erva” não é comutável por ‘existir’: com efeito, não é possível um “existir (como) cão é existir mais que existir (como) erva.

a) A essência será a resposta à pergunta inaugural da Filosofia: quid est? Essa resposta se desdobra em aspectos essenciais:

1) substância (é o ente enquanto tal, aquilo que existe em si mesmo) e acidentes (é o ente de um ente, aquilo que existe na substância e é percebido pelos sentidos). As substâncias podem ser de dois tipos: primárias (este homem) ou secundárias (gênero animal e espécie humana). Os acidentes podem ser de nove tipos: quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição/situação, hábito/estado, ação e paixão. São em total - substância mais os nove tipos de acidentes - as dez categorias aristotélicas.

2) distinção numérica

3) distinção específica

4) distinção genérica

b) A seguinte pergunta a ser lançado ao ente é quomodo est? A resposta serão os atributos ou aspectos do ente. Não estamos falando das qualidades, mas das propriedades do ente. A questão quomodo est divide-se consequentemente nas seguintes questões:

1) Quid est. Mas desta vez estamos interessados na natureza da propriedade, não na natureza do ente.

2) Quia. É a questão acerca da existência da propriedade desse ente. Chama-se assim porque, caso efetivamente pertença ao ente, diz-se quia ita est (porque é assim).

3) Propter quid. Por que razão. É a questão acerca da causa da propriedade. Este é o ponto de partida da ciência: a causa está no sujeito e a propriedade pertence a essa causa, portanto a propriedade pertence ao sujeito. A causa é um termo médio desse silogismo, ou seja, é um meio copulativo entre o sujeito e a propriedade. Como há uma relação de necessidade entre o sujeito e suas propriedades, segue-se que só pode existir a ciência do necessário.

Mas nem só de ciência vive o homem. Ele também precisa da arte, ou seja, ele também necessita manipular certas coisas para determinados usos. Aqui cabe apontarmos a diferença entre ciência e arte. A definição clássica de ciência é que ela é o conhecimento das coisas por suas causas. Em outras palavras, a ciência investiga tudo o que possa ter uma relação de necessidade na coisa, seja em suas partes e propriedades, seja em suas causas e efeitos. As ciências se dividem em dois tipos: (1) ciências especulativas (Filosofia da Natureza, Matemática e Metafísica – são as ciências propriamente ditas porque contemplam a ordem das coisas ao passo que não se preocupam em ordenar nada, ou seja, o intelecto se torna “plástico” ante o sujeito da ciência assim como a matéria é “plástica” ante a forma) e (2) ciências práticas (ciências morais e artes mecânicas).

Por outro lado, arte é “fazer” algo com retidão. Se nas ciências há uma relação matéria-forma entre o intelecto e o sujeito da ciência, nas artes a relação é mais de agente-fim entre a arte e o sujeito da arte. Elas podem ser de três tipos: (1) artes servis (ordenam os atos do corpo – são as artes propriamente ditas), (2) artes liberais (ordenam os atos da razão) e (3) prudência (ordenam os atos dos apetites).

Observa-se que há uma zona de solapamento entre ciência e arte. A Matemática, por exemplo, é uma ciência especulativa e uma arte liberal. A Engenharia Eletrônica, por outro lado, é uma ciência prática e uma arte servil. Como isso é possível? Ocorre que toda arte, embora sirva a um fim, também aplica uma forma a uma matéria. Por isso, há artes que apresentam um aspecto científico, e há ciências que apresentam um aspecto artístico, embora todas elas pendam mais para ciência ou mais para arte.

No entanto, há uma exceção: a Lógica. Ela é perfeitamente arte (porque sua matéria é universal, e não particular, como a Prudência, por exemplo) e perfeitamente ciência (porque, novamente, sua matéria é universal, e não particular, como a Metafísica, por exemplo). Tais distinções entre ciência e arte são importantes para que Scherer, com Santo Tomás e Calderón em punhos, possa traçar uma ordem das diversas disciplinas. E, claro, a primeira disciplina a ser aprendida tem de ser a Lógica, que será posteriormente encarnada, uma vez dominada, nas demais disciplinas (Filosofia Natural, Matemática, Metafísica etc.). A Lógica é a “alma das ciências”. Chama-me especial atenção a maneira como Calderón descreve a Filosofia: ela seria uma arte que “dispõe as ‘paixões da alma’”, ou seja, ela adequa as concepções do intelecto às coisas. Em outras palavras, as concepções do intelecto são “imagens” ou “representações” das coisas e, a partir daí, torna-se viável dispor (ordenar) as paixões da alma.

Dizíamos que a matéria da Lógica é universal. De fato, tal matéria não é outra coisa senão as próprias operações do intelecto. São elas: (1) intelecção ( conceito), (2) juízo (proposição) e (3) raciocínio (argumento/silogismo). As operações (1) e (2) são simples e intelectuais, enquanto a (3) é complexa e propriamente racional. Participam das operações da Lógica, além de sua matéria, os entes de razão, que são as intenções que a razão descobre nas coisas (gênero, espécie etc.) e que são propriedades não das coisas, mas dos conceitos.

Por falar em propriedades dos conceitos, há certas propriedades que designam modos ou aspectos do ente. São os famosos transcendentais. Enquanto gênero, espécie etc. são modos especiais do ente, os transcendentais são modos gerais que se aplicam a todos os entes. Chamam-se assim porque transcendem as já citadas dez categorias aristotélicas. São 5 em total, e se dividem em dois tipos (1a) transcendental negativo que se aplica ao ente em si (uno, pois não é múltiplo), (1b) transcendental positivo que se aplica ao ente em si (coisa, pois tem uma essência), (2a) transcendental negativo que se aplica ao ente em relação a outros entes (algo, pois não é outro), (2b) transcendental positivo que se aplica ao ente em relação a outros entes (verdadeiro, segundo o intelecto, e bem, segundo a vontade). Os transcendentais sublinhados são os clássicos, os mais estudados pelos filósofos.

Quanto à clássica doutrina da analogia entis, tão intensamente combatida pelo Pe. John Romanides, trata-se de um princípio basilar do tomismo. Cita Tomás de Aquino o Apóstolo Paulo nesse sentido: Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se veem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis (Romanos 1:20). Em suma, o que é por essência (i.e., Deus) é causa de tudo o que é por participação (i.e., as coisas criadas). Tomás chega a dizer que “a pedra imita Deus”.

Citamos acima a “Filosofia Natural”, às vezes também chamada de “Física Geral”. No entanto, não se trata da Física conforme a entendemos hoje. A Física moderna é uma espécie de “matematização da Cosmologia”, ou seja, uma subespecialização da Física Geral. O sujeito da Física Geral (ou Filosofia Natural) é o ente móvel, ou seja, o ente com mescla de potencialidade e atualidade. Não é o ente enquanto tal (o que os tomistas preferem chamar de ente simpliciter), cujo sujeito é próprio da Metafísica. Há 4 tipos de mudanças, de acordo com Tomás e Aristóteles, às quais correspondem as 4 partes da Filosofia Natural: (1) geração e corrupção, ou seja, criação e destruição de substâncias (→ Química), (2) alteração, ou seja, mudança na qualidade (→ Psicologia), (3) aumento e diminuição, ou seja, mudança na quantidade (→ Biologia) e (4) translação, ou seja, movimento de lugar (→ Cosmologia). A Psicologia, alerta Scherer, é uma ciência “anfíbia” e tanto faz parte da Física Geral (quando tem a ver com a “parte corporal” da alma) quanto da Metafísica (quando tem a ver com a “parte espiritual” da alma). Aqui Scherer observa que um dos traços característicos da modernidade, e que tem causado grande confusão e desperdício de tempo, é promover o divórcio radical entre as ciências modernas e a Filosofia da Natureza. Dado o que vimos acima, ou seja, que a questão propter quid do ente, ou seja, a busca de sua causa (ou de suas causas, se invocamos as famosas 4 causas aristotélicas), que inaugura a ciência, tem uma relação de necessidade e, portanto, de inerrância, em relação à essência das coisas. Negar o caráter científico à Filosofia Natural significa, ao mesmo tempo, negar cientificidade às ciências modernas. Nas palavras de Scherer: “As ciências particulares são espécies do gênero Física Geral [ou Filosofia Natural], e as espécies se seguem não per se, mas per accidens da qualidade genérica; portanto, alterações naquela não afetam esta”.

Scherer discorre sobre os elementos essenciais da psicologia tomista, mas não cabe aqui revisá-la uma vez que já temos estudos anteriores sobre isso (cf. Brennan, Ameal e Echavarría).

Cabe-me apenas citar alguns excertos que me parecem cruciais:

O conhecimento raciocinativo é incomensuravelmente menos perfeito que o conhecimento intelectivo. Santo Tomás chega a dizer que ‘a razão é algo defeituoso no intelecto’ (Summa contra Gentiles, I.1, cap. LVII, 8).

A abstração, operada pelo intelecto agente, da species intelligibilis a partir das imagens contidas na imaginação ou fantasia, fecunda o intelecto possível, que expressa interiormente, no verbum mentis ou verbum cordis, a essência da coisa conhecida – e isso nos dá o conceito. A inteligência capta a dimensão mais profunda do real, alcança aspectos absolutos e necessários da realidade, o que lhe permite transcender o imediato – o umwelt (mundo circundante) em que estão arrojados os animais – e obter uma visão desinteressada e não utilitarista das coisas. A inteligência é crucial para a felicidade.

No âmbito do intelecto possível, há três modalidades de abstração: (1) abstração do todo (típico da Filosofia Natural ou Física Geral), quando, por exemplo, abstrai a essência específica “homem” da matéria segunda, ou seja, da matéria assinalada pela quantidade, do indivíduo sensorial Sócrates; (2) abstração da forma (típico da Matemática), quando, por exemplo, abstrai “humanidade” de “homem”, ou seja, abstrai a forma da matéria sensível comum; e (3) abstração a modo de composição e divisão (típico da Metafísica), quando alcançamos a própria universalidade do ente. As abstrações (1) e (2) são negativas, no sentido de que “retiram” a concretude do ente, e por isso a Filosofia Natural e a Matemática são menos concretas do que o ente material. A abstração (3), no entanto, é positiva, no sentido de que “destacam” precisamente aquilo que de mais concreto tem o ente, e por isso a Metafísica é mais concreta do que o ente material.

Os indivíduos têm certos hábitos – que por serem disposições estáveis do indivíduo são estruturalmente de seu caráter – que desconhecem, total ou parcialmente. Quer dizer: não nos conhecemos bem à partida; podemos crescer em “autoconhecimento”. Por amor-próprio, podemos não reconhecer aspectos pouco elogiosos de nosso caráter. Santo Tomás fala mesmo de uma cegueira da mente (caetitas mentis), que se aproximaria da “repressão” ou “recalque” da psicanálise, mas com muita vantagem. Trata-se de um hábito mau causado por uma disposição contrária à verdade, uma anulação da atividade contemplativa – fruto, no fundo, da soberba (como mais tarde também Adler perceberia) e, mais particularmente, da luxúria. [...] Refletindo sobre as potências sensitivas, o intelecto ordena as paixões, que estão ligadas aos chamados “apetites”, nos quais se inclui toda a dimensão afetiva do ser humano.

O amor é a primeira e mais fundamental das paixões; mais que isso: é a causa de todas as outras. Santo Tomás o define como “o princípio do movimento que tende ao fim amado”. O amor causa o desejo, que, quando alcança o objeto e repousa, causa o gozo. Escreve Tomás: “O amor é o princípio de toda a afeição. Não há prazer e desejo senão quanto a um bem amado, como tampouco há temor e tristeza senão quanto a um mal que contraria o bem amado, e todas as afeições se originam destas.

As potências apreensivas precedem as potências apetitivas precisamente porque, como diz Santo Tomás, “a potência apreensiva apresenta à apetitiva seu objeto”. A apreensão, sensitiva ou intelectiva, de um objeto é o que fornece às potências apetitivas, sensitivas ou intelectivas, o telos em direção ao qual se movem. Isso é assim tanto para os homens como para os animais. [...] Já nos homens, a existência da vontade, que é o apetite racional, altera o quadro, porque os apetites sensitivos passam a participar da racionalidade, e são regulados por ela. Os apetites inferiores não movem se o apetite superior não consente. Nesse processo a cogitativa ou razão particular tem papel de destaque, já que é por ela que a mente regula os apetites sensitivos. Por isso, Cornelio Fabro não hesita em dizer: “A faculdade-chave da gnosiologia tomista é a cogitativa”. O apetite superior move pelos inferiores, mas estes não movem se aquele não o permite. [...] O poder que a razão e a vontade têm sobre os apetites é “político”, e não “despótico” (como o poder que a alma intelectiva tem sobre os membros do corpo, por exemplo), porque as potências apetitivas têm um poder próprio.

Sobre a questão do ordenamento de suas paixões, Scherer apresenta quatro tipos de homem: (1) O homem virtuoso, ou seja, aquele que tem virtus (força) sobre si mesmo, que tem autodomínio. As virtudes só podem ser desenvolvidas com o auxílio da graça. Sim, claro, é possível resistir aos movimentos da sensualidade de maneira isolada, mas por períodos curtos e descontínuos. (2) O homem continente é aquele que pontualmente contém uma ou outra paixão, mas a muito custo e de maneira incerta. As paixões como um todo ainda se encontram desordenadas nele. (3) O homem incontinente, ou seja, aquele que sabe o certo e o errado e, mesmo desejando o certo, não consegue conter-se. No entanto, a incontinência ainda não é vício. (4) O homem vicioso, ou seja, aquele no qual os vícios não têm conhecimento de si mesmos. Aqui cabe enumerar dois tipos de vícios: (a) vícios humanos (p.ex., desejar sexualmente uma mulher casada, que é algo natural) e (b) vícios patológicos ou “bestialidades” (p.ex., desejar sexualmente uma cabra, canibalismo, comer tijolo, roer as unhas etc.); podem ser causadas por uma constituição corporal defeituosa ou por maus costumes. É claro que todos os vícios, sejam 4a ou 4b, são redutíveis à noção de pecado. E qual a causa dos pecados? Diz Tomás: “O amor desordenado de si é a causa de todos os pecados”. No entanto, esse amor desordenado de si é, na verdade, um ódio de si mesmo porque o homem julga ser principalmente o que é segundo a natureza corporal e sensitiva. Por isso, ama-se segundo o julga ser, mas odeia-se naquilo que principalmente é, ou seja, sua mente (mens), e acaba desejando coisas contrárias à razão. O homem se esquece que não é ele quem criou sua vida e o fim último dela. A ideia tão em voga hoje em dia da educação para a responsabilidade não é senão a ideia de que a liberdade é a essência do homem. É o velho canto da sereia.

Nominalismo: os ingredientes do Modernismo e do Pós-Modernismo

Embora seja um termo muito inexato, uma das doutrinas do averroísmo é a ideia da unidade do intelecto. Criam os averroístas que o intelecto é uma substância separada do corpo segundo o ser, ou seja, que o intelecto em si é uma unidade. E, pior, que o intelecto possível é único para toda a humanidade (monopsiquismo). Há como que um “supraeu” coletivo no qual o homem individual não propriamente pensa, mas é “pensado” por ele. O dilema dos averroístas é que, se o intelecto fosse a forma do corpo, então uma vez morto o corpo, o intelecto forçosamente deveria morrer também. No entanto, o que os averroístas não captaram é que a forma é que dá o ser ao composto humano, e não o contrário. Graças à ideia central da metafísica de Tomás de que o ser é o actus essendi participado às criaturas mediante sua forma é possível compreender o intelecto como imortal.

No entanto, para harmonizar as doutrinas do averroísmo com a fé cristã, os averroístas adotaram a tese da dupla verdade, ou seja, pela razão o intelecto é uma unidade, mas pela fé o intelecto não é uma unidade.

Obviamente nada disso poderia ser tolerado pelos defensores da fé, mas ocorre que, ao reagirem em sua defesa, alguns autores jogaram a água do banho fora com criança e tudo, ou seja, acabaram abalando a doutrina tomista em seus fundamentos.

Dietrich de Freiberg: Ele negava a distinção entre ser e essência. Ele a considerava meramente gnosiológica, mas não ontológica. As consequências, à primeira vista inocentes, são gravíssimas: se a distinção é meramente gnosiológica, ou seja, se o ser apenas expressa gnosiologicamente um ato (e não é ontologicamente um ato), isso significa que o ser deixa de predicar analogicamente (ele perde a analogia entis) e passa a predicar univocamente (ele é reduzido à existência, que é algo que todo ente possui indistintamente). E mais: Dietrich esforça-se em pensar o ser como uma substância ao invés de pensá-lo como ato, ou seja, ele pensa no ser como uma “coisa”. Já vimos em Frederick Wilhelmsen as consequências de tal pensamento, embora claramente Wilhelmsen confunda ser com existência, o que tampouco corresponde à doutrina tomista padrão. Por exemplo, segundo Scherer:

O erro desse raciocínio é o seguinte: de uma essência pode deduzir-se a existência, mas não o modo de ser do ente. Dada uma essência, por óbvio não temos o nada; logo, temos um ente. Mas que tipo de ente? Qual é o modo de ser desse ente? Essa essência o é de um ente de razão, de um ente quimérico ou de um ente real, por exemplo? Está claro que não o sabemos. O ente real e o ente de razão existem igualmente (univocamente), mas não do mesmo modo.

Como Dietrich diferencia Deus e os entes criados, dado que não há diferença entre ser e essência? Em outras palavras, como é possível que Deus esteja em um “patamar” distinto do patamar dos entes criados se não há distinção entre o Ser divino (Ipsum Esse Subsistens) e o ser das criaturas (esse comum)? A saída que propõe é estabelecer uma hierarquia dos entes, ou seja, os entes se distinguem por suas relações recíprocas. Mas evidentemente isso não explica a diferença entre Ser divino e ser das criaturas. Embora Dietrich insista que Deus é o Criador, mas Ele teria criado o mundo mediante uma interior transfusio (transbordamento interior), e não ex nihilo. Em outras palavras, a criação não seria ad extra, mas faz parte de um universitas, um como que “pano de fundo metafísico”, no qual Deus e as criaturas estão inseridos. A inspiração em Plotino e Proclo parece clara.

Duns Scot. Ele negava a analogia, ou seja, para Scot somente há predicação unívoca e equívoca, e tudo que é supostamente análogo é, na verdade, “totalmente distinto”, isto é, equívoco. Na prática, Scot negava a analogia entis e o ser, para ele, é sempre unívoco. É sua famosa tese da univocatio entis. Note que negar a distinção entre ser e essência leva, inevitavelmente, à univocatio entis. Ora, se não há os dois patamares que mencionamos há pouco (Ipsum Esse Subsistens e esse comum), então não há analogia entre ambos e, portanto, “ser” teria de ser necessariamente uma predicação unívoca.

Mas, muito pior que isso: se não há nada além do ser, ou seja, não há um Ser ao qual os seres dos entes criados são análogos, então Ser e ser são unívocos: é o panteísmo. Isso ocorre porque, se o ser é unívoco, necessariamente se reduzirá a um gênero que necessita ser diferenciado por diferenças extrínsecas a ele. Lembre-se: o ser perdeu sua analogia e, portanto, não pode derivar sua diferença do Ser. Scot insiste que ente não é gênero, mas é transcategorial (Tomás também ensinava isso). Assim como o ente, há outros transcategoriais, as chamadas determinações transcendentais, que se aplicam ao ente. Entre elas estão não apenas os transcendentais convertíveis (por exemplo, o ente e o bem são convertíveis porque, para algo ser bom, é necessário antes de tudo ser), mas, segundo Scot, também os transcendentais disjuntivos (infinito/finito, necessário/possível etc.). São esses transcendentais disjuntivos que Scot aplica ao Criador e às criaturas a fim de distingui-las. E é ao estudo dos transcendentais que Scot atribui o objetivo da Metafísica. O problema, aponta Scherer, é que os transcendentais disjuntivos não fundam distinções no modo de ser dos entes (leia novamente o excerto acima em que Scherer menciona os modos de ser). Os transcendentais disjuntivos significam apenas a intensidade intrínseca do ente, ou seja, Deus se diferencia das criaturas apenas porque tem uma intensidade intrínseca específica. Há uma diferença enorme de grau entre Deus e as criaturas, mas apenas isso, de grau, e não de tipo.

Outro recurso que Scot lança mão é a distinctio formalis (distinção formal). Vimos algo sobre isso brevemente na exposiçãode Edward Feser. A ideia de Scot é que, no plano gnosiológico, há uma terceira faixa da realidade, que não é lógica nem real, mas formal. Essa realidade formal é composta de supostos “conteúdos intencionais” necessários para o conhecimento. Mas para Tomás, “a forma na mente representa a forma na coisa porque ela é uma semelhança da própria forma da coisa, que enquanto causa formal atua nossa potência cognitiva”. Em outras palavras, a forma na mente não é uma forma. “Entre o intelecto e a realidade interpõe-se o campo minado dos ‘conteúdos intencionais’, o qual deve ser palmilhado com o auxílio de uma crítica do conhecimento humano, e não sem o risco de que essas minas representacionais explodam o caráter objetivo do mesmo conhecimento. Sem o artifício da distinctio formalis, o idealismo moderno não poderia surgir”. O hilemorfismo perde força e abre espaço para a “hecceidade”, que, em lugar da matéria, é o que supostamente explicaria a individuação dos entes.

A consequência do escotismo é uma espécie de “sublimação” da fé natural e o desvanecimento da teologia racional em favor de uma teologia fideísta, ou seja, potencializa-se o voluntarismo em detrimento do intelecto. No entanto, para Tomás, Deus não quer simplesmente porque quer, mas quer porque o que quer é bom. É a própria bondade de Deus que causa Seu querer. Isso é importante entender para deixar claro que Deus difunde na criação, na medida do possível, Sua bondade por semelhança. Se Deus, como querem os escotistas, age simplesmente porque quer, então somos levados a suspeitar que neste mundo podem não ser realizados os conteúdos conhecidos por Deus, o que abre a possibilidade para mundos possíveis. Este mundo pode ser um de muitos mundos. Aliás, Deus pode não apenas querer o bem, mas querer o mal. Eis uma das chaves que abrirá a caixa do liberalismo. Scot, por exemplo, defendia que a alma de Cristo era pecável.

Guilherme de Ockham: Ele resolveu a “querela dos universais” propondo o nominalismo, ou, mais precisamente, que os universalia sunt post res. Os universais seriam meros nomina ou flatus vocis (sopros vocais). Ockham renuncia às coisas e fica apenas com os seus símbolos: não existe ser, unidade, ordem, verdade, necessidade, bondade ou justiça. Tudo isso seriam realidades criadas pelo homem. O homem passa a se ver como um ser “absoluto”, ou seja, solto e apartado da ordem real. É um ser exilado em si mesmo, como diz Scherer.

[N]esse ambiente, cresce o fenômeno do devocionalismo, de caráter sentimental e antilitúrgico. O culto tradicional consiste em aconher a intervenção salvífica de Deus que se completou em Cristo e é atualizada sacramentalmente. O devocionalismo consiste em colocar a intensidade dos próprios sentimentos como sinal de salvação, à margem da mediação sacramental. O sentimentalismo das devoções, pela sua liberdade e ruptura com o culto externo, foi uma saída atraente para muitos. Porém o devocionalismo, por sua carência teológica, era um abrigo para toda sorte de superstições.

E segundo Christopher Dawson:

[...] ’A Reforma Luterana’, escreveu Nietzsche, ‘em toda a sua extensão e em todo o seu escopo, foi a indignação do simples contra algo complicado. Foi a ‘revolta espiritual dos camponeses’. Consequentemente, o trabalho religioso de Lutero de reforma e de simplificação equivaleu à desintelectualização da tradição católica.

Racionalismo e antirracionalismo: modo de preparo da Modernidade e da pós-Modernidade

Racionalismo Modernismo

O objetivo da filosofia de Bacon, segundo o próprio, é “estender o poder e o domínio do gênero humano sobre todo o universo”. A meafísica antiga, para ele, é inútil porque é especulativa ao invés de pragmática. A experiência tem de ser substituída pelo experimento, ou seja, a experiência direta do real tem de ser substituída pelo experimento científico. Abaixo a Metafísica, viva as técnicas e as ciências. A realidade não é de confiança e, portanto, tem de ser reordenada pelo novo método que se inaugura.

Mas será Galileu Galilei o principal expoente da matematização do real. Ocorre que a medição é apenas um recorte do real e, portanto, é apenas uma ficção humana. O que Galilei chamava de “qualidades primárias” eram, na verdade, as partes mensuráveis do real e, portanto, arbitrariamente elevadas à condição de “objetivas”. A ordem se inverte: o recorte passa a ser real enquanto a realidade passa a ser mera ilusão. Eis o mito sobre o qual se assenta as ciências modernas.

Descartes, por sua vez, elevará o pensamento humano de garantidor da verdade para garantidor da existência individual. Seu pensamento é mais evidente que sua existência (cogito ergo sum). Ademais, Descartes avançou formidavelmente a matematização do real.

No entanto, será Kant que dará o golpe de misericórdia na Metafísica. Ele eleva a ciência resultante desse método à condição de imagem da realidade, mas não só: essa imagem será, em verdade, a própria realidade. Se há uma realidade para além do que se conhece cientificamente, não a conhecemos. É apenas uma hipótese. Segundo Scherer, para Kant, “O ente não se nos apresenta tal qual é, mas apenas tal qual se nos afigura depois de ser formatado pelas formas puras da intuição sensível, quais sejam, o tempo e o espaço. É nossa constituição subjetiva o que determina a forma do fenômeno; a coisa, tal qual é em si mesma, é-nos inacessível”. Ademais, “Kant estabelece que todo conhecimento depende da unificação de nossas representações feita a partir de uma esquemática racional a priori”. Tal esquemática é composta fundamentalmente por conceitos puros, isto é, as famosas categorias originárias ou primitivas do entendimento: unidade, pluralidade, totalidade, realidade, negação, limitação, substância, causa, comunidade, possibilidade, existência e necessidade. A coisa-em-si, coitada, está totalmente fora do alcance do conhecimento. O que conhecemos é o que nossa constituição subjetiva, perfazendo a unidade transcendental, fornece. A unidade do real perdeu-se nas coisas-em-si. Scherer conclui sobre Kant: “A Filosofia de Kant é um atentado ao senso comum; um ataque à tessitura da experiência humana mais básica do universo”. Somente o mundo dos fenômenos é real. A ordem do real tal como entendida pelos aristotélicos-tomistas é produto da mente humana.

A esta altura está claro que não é o intelecto que deve moldar-se docilmente à realidade (adaequatio intellectus rei), mas, agora, é o intelecto (“razão”) que tem a tarefa de ativamente ordenar a realidade que lhe é apresentada. No âmbito do racionalismo, o elemento garantidor da verdade não pode mais ser a realidade, já que a coisa-em-si é incognoscível, mas passa a ser a concordância inter pares de uma mesma fantasmagoria racional a priori.

Schopenhauer assume os postulados de Kant e chama o fenômeno de “representação” e a coisa-em-si de “vontade”. Explica Scherer:

Se o mundo do fenômeno, raciocina [Schopenhauer], é a seara da razão e da causalidade, a coisa-em-si, é claro, só pode ser o que escapa a essa dupla determinação. O noumenon, portanto, é o caldo alógico e irracional em que boiam nossas representações científicas. Enquanto não é conhecido, o mundo é uma força puramente volitiva, cega, bruta e sem finalidade, um esforço sem repouso que se revela nos corpos. A vontade é o elemento primordial de tudo, verdadeira essência do mundo, e a base do ser do homem. [...] Frágil como uma pluma, infinitamente perecível, o indivíduo importa à natureza apenas como instrumento de manutenção da espécie, por cujo serviço, ademais, só recebe, à guisa de paga, a morte certa e inevitável. A maior perfeição do homem representa apenas um aperfeiçoamento de sua capacidade de sofrer. A consequência de tais ideias só poderia ser um pessimismo tão radical que considera todo otimismo não apenas absurdo, mas ‘impiedoso’.

Antirracionalismo Pós-Modernismo

Se Francis Bacon pode ser considerado o precursor do racionalismo, Michel de Montaigne pode equivalentemente ser considerado o precursor do antirracionalismo. Diz ele que a razão é incapaz de captar a essência das coisas. Ou seja, nem os sentidos, nem a razão são capazes de garantir o que quer que seja. A Filosofia é mera poesia sofística. A saída para lidarmos com a realidade é o gesto estético, isto é, o desfrute sensualista. A virtude se alcança pela desordenação da alma. Privar-se dos prazeres é “exagerada virtude”: a receita de vida de Montaigne são o ócio e os prazeres.

No entanto, foram os três grandes empiristas que se encarregaram de sistematizar algo que pudesse se contrapor ao racionalismo: Locke, Berkeley e Hume. Este último alcançará o ápice do ceticismo ao propor que as percepções da mente humana se dividem em duas: os pensamentos (ou “ideias”) e as impressões. A diferença entre ambas é mera questão de vivacidade: as impressões são mais vívidas que as ideias. É óbvio que Hume concluirá que nenhum conhecimento é seguro. Nem mesmo o “eu” possui realidade substancial.

Rousseau aprofunda o antirracionalismo de Montaigne enquanto, na Filosofia, Fichte elege o “eu transcendental” como a suprema realidade e abole a coisa-em-si.

Liberalismo: o prato está pronto

O subjetivismo (se moderno ou pós-moderno não importa) tem uma consequência prática: o liberalismo. Mas não exatamente o que chamamos atualmente de liberalismo, aquele que grassa nos movimentos políticos – ele também está incluído aí, claro – mas um liberalismo fundamental. Esse liberalismo fundamental é a doutrina acerca dos fins do homem e da sociedade.

O liberalismo fundamental, apoiado firmemente sobre o subjetivismo do qual versamos acima, estabelece que a liberdade é a faculdade humana de eleger o bem e o mal. O liberalismo não mais é entendido como a potência para a escolha do bem, como ensinava Tomás de Aquino. Segundo a doutrina tradicional, a liberdade deve libertar o homem dos grilhões das paixões. Mas só há “grilhões” se há um mundo real no qual o Ser se atualize. Uma vez que o mundo real não existe, então o sujeito humano não vê sentido em escolher o bem. Ele precisa agora blindar sua nova liberdade de eleger para si o que é bem e o que é mal. Tal blindagem virá do capitalismo, do socialismo, do fascismo, do autoritarismo, não importa. O que verdadeiramente importa é blindar seu novo mundo subjetivo de quem quer que ameace introduzir um bem objetivo e universal ao qual terá de curvar-se necessariamente.

É possível libertar um homem das grades de uma prisão, mas não de sua forma entitativa. Isso seria como querer libertar um triângulo de sua triangularidade, o que obviamente seria destruí-lo. Só há liberdade na obediência à forma. [...] É verdadeiramente livre quem ama seus limites entitativos, porque entende que são eles os que lhe dão contornos; são eles os que o livram do caos da desumanidade.

Fonte: Daniel Scherer, A raiz antitomista da modernidade filosófica, Edições Santo Tomás, Formosa, Brasil, 2021.

4 de abril de 2024

A metafísica de boteco


De tempos em tempos encontramos entre os defensores da cultura medieval a referência a um tal “desvio moderno” que, segundo acreditam, teria sido o responsável central pelo alegado colapso civilizacional no qual nos encontramos. É provável que o principal expoente – ou pelo menos o mais popular – desse ponto de vista seja o historiador e filósofo americano Richard Weaver.

Em seu famoso panfleto conservador – pois afinal é disso que se trata, um panfleto – Weaver critica a modernidade a partir de inúmeras perspectivas e temas: filosofia, política, feminismo, tecnologia, economia, comportamento, família, ecologia etc. Para quem aprecia este tipo de crítica é uma leitura indispensável. Para quem quer apenas entender o conservadorismo político também será uma leitura útil. Para quem quer entender o mundo real, porém, a leitura será no mínimo decepcionante. Weaver salta de um tema a outro com excessiva desenvoltura e descuido. Daí seu caráter panfletário. No entanto, há aqui e ali insights interessantes. Vejamos seu tema central, que é a crítica acerca da morte da doutrina metafísica tradicional em favor do nominalismo, o que chamei aqui de "metafísica de boteco". 

* * *

No grande debate medieval entre o realismo lógico de Tomás de Aquino e o nominalismo de Guilherme de Ockham, venceu este último. O ataque aos universais, ensina Weaver, foi o elemento determinante na derrota do tomismo. Não que o tomismo tenha sido derrotado no campo propriamente filosófico, mas o desejo dos homens em melhor “compreenderem-se a si mesmos” sobrepujou a sensatez e a solidez do pensamento deste grande discípulo de Aristóteles que foi Tomás. Weaver acredita, e eis o que procura mostrar em sua obra, que a liberdade que o homem almejava não apenas não se manifestou como, pelo contrário, o aprisionou ainda mais no mundo das sensações e dos desejos e o afastou do mundo propriamente humano, qual seja, o mundo intelectual e volitivo.

O resultado prático do nominalismo é o banimento da realidade percebida pelo intelecto. Em outras palavras, o nominalismo entende que a realidade se limita àquilo que é percebido pelos sentidos. Não há universais no hiperurânio platônico, nem no hilemorfismo aristotélico, nem na mente divina dos escolásticos. Negar os universais é negar tudo aquilo que possa transcender a experiência. E, não sem surpresa, Weaver conclui que negar a transcendência é negar a verdade. As ideias foram rebaixadas a meras ficções psicológicas. Em suas palavras:

[N]ão levou muito tempo para se formar uma nova doutrina a respeito da natureza. Antigamente a natureza era considerada imitadora de um modelo transcendente e parte de uma realidade imperfeita, depois disso passou a considerar-se que ela continha em si mesma os princípios de sua própria constituição e de seu comportamento. [...] Em primeiro lugar, favoreceu um estudo cuidadoso da natureza – o qual passou a ser conhecido como ciência –, com base na suposição de que ela revela sua essência por meio de seus atos. Em segundo lugar, pôs de lado a doutrina das formas imperfeitamente realizadas. Aristóteles identificara um princípio de ininteligibilidade no mundo, mas a visão da natureza como um mecanismo racional rejeitou esse princípio. [...] Se a natureza física é a totalidade, e se o homem faz parte da natureza, é impossível pensar que ela sofra de um mal constitucional. [...] Chega-se, então, por meio de uma dedução evidente, à bondade natural do homem.

[...]

O passo seguinte consiste em elevar o racionalismo ao grau de filosofia. Já que agora o homem propunha a si mesmo não ir além do mundo, convinha que ele julgasse como sua mais elevada vocação intelectual os métodos de interpretação dos dados fornecidos pelos sentidos.

[...]

Naturalmente, isso [se o homem moderno sabe mais do que o homem medieval] depende do que queremos dizer com ‘conhecimento’. Seguirei a proposição clássica: não há conhecimento no nível da sensação, ou seja, todo conhecimento ocorre na esfera dos universais e o que quer que conheçamos nos capacitará a prever. Quanto menos particulares forem necessários para que alcancemos certo aprendizado, tanto mais alto estaremos na escada da sabedoria.

No plano verbal, substituímos “verdade” por “fato”. Quanto mais fatos acumulamos, tanto mais “verdades” acumulamos. E isso é falso. A busca pela verdade tem a ver com interpretar os fatos, dar-lhes sentido dentro da estrutura da realidade, e se nos afastamos dos primeiros princípios dessa estrutura – ou mesmo negarmos sua existência – tanto menos capazes seremos de interpretar os fatos e, portanto, menos capacidade preditiva teremos e, portanto, menos sábios seremos. O homem moderno é inimigo das ideias abstratas e da investigação especulativa. Como dizia Goethe: quem sabe muito sabe pouco. O mundo do conhecimento moderno é como o universo de Eddington: expande-se por difusão até alcançar o ponto de nulidade.

A vida humana tornou-se uma prática sem teoria, ou seja, a ausência de uma doutrina que explique a estrutura da realidade fez com que o homem se reduzisse de homo sapiens a homo faber. Isso, para Weaver, é sinal claro da decadência do gênero humano.

E o problema é pior ainda em nossos tempos. Isso porque conforme caminham em direção a uma condição inferior os homens desenvolvem uma insensibilidade cada vez mais intensa em relação ao estado degradado em que se encontram. É por isso que os pensadores medievais ficavam extremamente inquietos ante questões que para nós, hoje, não chamam a atenção. Que uma palavra seja um instrumento para designar coisas que se parecem (como “gato”, “árvore”, “casa” etc.) é algo que o homem moderno é normal, mas para o homem medieval é escandaloso. É mais fácil matar o monstro quando ele é pequeno. Depois de grande, o melhor a fazer parece ser acostumar-se à sua presença.

A crença central da era moderna é o progresso infinito. Mas Aristóteles foi quem observou que o conceito de infinitude torna impossível a noção de bem. Em outras palavras, se não há uma estrutura hierárquica na qual o progresso se dê, então não há um ponto de referência a partir do qual possamos derivar o conceito de bem. Se não há centro então tudo é periferia. E se tudo é periferia, então qualquer coisa pode ser eleita como centro.

O conhecedor moderno pode ser comparado a um bêbado que, à medida que perde o senso de equilíbrio, esforça-se para não cair concentrando-se firmemente em certos detalhes e, desse modo, exibe aquela familiar postura de positividade e arbitrariedade. Enquanto tudo a seu redor dá voltas, ele se aferra a qualquer coisa que possa ser abarcada por sua percepção limitada. O cientista, do mesmo modo, não mais se apoiando na realidade orgânica, aferra-se com ainda mais firmeza nos fatos que ele mesmo descobre, acreditando que a salvação está naquilo que pode ser comprovado objetivamente.

Por fim, a proposta de Weaver para induzir a humanidade a recuperar uma visão de mundo tradicional e, portanto, saudável, é tripla:

(1) Os defensores do mundo antigo e medieval devem se apoiar naquilo que a modernidade (ainda) não destruiu, ou seja, a propriedade privada. Mas não qualquer propriedade, mas aquela em que haja um dono, um líder, um responsável. Ele é contra, portanto, os grandes conglomerados e contra o capitalismo financeiro e a favor de distribuir a propriedade em pequenas parcelas, minimizando o risco de fraudes e falsificações de toda sorte e maximizando o livre arbítrio.

(2) A linguagem, em particular o valor simbólico dela, precisa ser restaurada através de duas vertentes: (a) Pela literatura, pois o poder sugestivo da poesia introduz o estudante no imenso poder do simbolismo e lhe desperta sentimentos que apontam para além das limitações do tempo e do espaço; ademais, Weaver entende que aprender um idioma estrangeiro força o estudante a familiarizar-se com a exatidão, necessária para apoiar o valor das palavras enquanto símbolos. (b) Pela dialética socrática, pois a razão é o meio de que dispõe o homem para lidar com os pormenores do mundo e o ensinará a pensar com retidão. Se o mundo quer permanecer sendo mais do que um mundo, mas um cosmos, então tem de pôr em prática a velha injunção de São João Teólogo: “No princípio era o Logos”.

(3) A piedade, em particular a piedade aplicada a três instâncias: (a) A piedade em relação à natureza, pois nos tempos atuais acredita-se inconscientemente que a natureza é hostil ao homem e, portanto, precisa ser “conquistada”, “moldada”, “talhada”. (b) A piedade em relação aos outros seres, pois tanto os inferiores quanto os inimigos não apenas têm o direito de existir como sua existência é parte da criação e o verdadeiro fundamento da comunidade humana. (c) A piedade em relação ao passado, pois ele tem substância e serve para refrear tanto o otimismo quanto o egoísmo; passado é sinônimo de experiência, que é algo que, num ambiente pretensamente em constante “progresso”, serve para pouca coisa.

Fonte: Richard Weaver, Ideias têm consequências, É Realizações Editora, São Paulo, Brasil, 2016.

Leia também: A metafísica do inferno

25 de março de 2024

Trechos selecionados de C. S. Lewis sobre os Salmos


Por que às vezes um colega lhe explica melhor a matéria do que o próprio professor?

O colega de classe pode ajudar mais do que o professor porque sabe menos. A dificuldade que queremos que ele nos explique é a mesma com a qual ele teve de lidar recentemente. O especialista a superou há tanto tempo que já se esqueceu. Ele agora vê o assunto de uma maneira mais genérica e sob uma luz tão diferente que não consegue perceber o que está verdadeiramente inquietando o aluno; enxerga dezenas de outras dificuldades, menos a que realmente perturba o estudante.

A imagem cristã de justiça é perfeita. Mas a imagem judaica, embora humana, é muito útil também. Ninguém é bom ante a justiça divina. Mas também ninguém é bom ante a justiça humana.

Acho que há razões muito boas para considerar a imagem cristã do juízo de Deus como muito mais profunda e muito mais segura para nossas almas do que a judaica. Mas isso não significa que a concepção judaica deva ser simplesmente descartada. Eu, pelo menos, acredito que ainda posso alimentar-me bem dela.

Ela complementa a imagem cristã de uma forma muito importante, pois o que nos amedronta na imagem cristã é a pureza infinita do padrão a partir do qual nossas ações serão julgadas. Sabemos, porém, que nenhum de nós jamais se aproximará desse padrão. Estamos todos no mesmo barco. Devemos todos concentrar as nossas esperanças na misericórdia de Des e na obra de Cristo, não em nossa bondade. A imagem judaica de uma ação civil, por sua vez, nos lembra claramente que talvez estejamos em falta não somente em relação aos padrões divinos (o que é óbvio), mas também a um padrão absolutamente humano que todas as pessoas lógicas reconhecem e que nós, em geral, desejamos impor sobre os outros. É quase certo que haja demandas não satisfeitas, demandas humanas, contra cada um de nós; afinal, quem seria capaz de acreditar que, em meio a tantas relações entre empregadores e empregados, marido e mulher, pais e filhos, entre querelas e colaborações, tenha sempre agido (excluindo-se os atos de caridade ou generosidade) com absoluta honestidade e justiça? É claro que esquecemos a maioria das injustiças que cometemos. As partes injustiçadas, no entanto, não esquecem, mesmo quando perdoam. E Deus não esquece. E mesmo o pouco que conseguimos lembrar é terrível o bastante. Poucos de nós temos, em plena medida, dado a nossos alunos, pacientes ou clientes (ou como quer que chamemos nossos “consumidores”) aquilo que recebemos. Nem sempre cumprimos com a justa parte que nos cabe em algum trabalho cansativo quando encontramos um colega ou parceiro que possa ser enganado a fim de carregar todo o fardo.

Quanto mais elevado intelectual e espiritualmente, maior o potencial para a perversidade e impiedade. Quanto mais próximo de Deus, maior o pecado. Por outro lado, a suposta inocência das pessoas ignorantes e carnais deve ser encarada com muita cautela.

Parece haver, no universo moral, uma regra geral que pode ser formulada da seguinte maneira: “Quanto mais alto se é, mais perigo se corre”. O “homem sensual comum”, eventualmente infiel à esposa, que às vezes fica embriagado e é sempre um pouco egoísta, que de vez em quanto (mesmo sem desrespeitar a lei) se revela leviano em relação aos seus ideais, certamente é, de acordo com os padrões comuns, um tipo “inferior” se comparado ao homem cuja alma está ocupada com alguma grande causa, à qual ele submeterá seus prazeres, sua riqueza e até mesmo sua segurança. Mas é o segundo homem que pode verdadeiramente fazer algo perverso – um membro da Inquisição ou do Comitê de Segurança Pública. São os grandes homens, os potenciais santos – e não os homenzinhos comuns – que se tornam fanáticos impiedosos. Os que estão mais bem preparados para morrer por uma causa podem facilmente se tornar os que estão mais preparados para matar por ela. Observa-se o mesmo princípio em ação em um campo (comparativamente) tão irrelevante como a crítica literária; a obra mais brutal, o mais irritante entre todos os críticos, odiado por quase todos os autores, talvez seja o mais honesto e desinteressado, o homem que se importa mais apaixonada e abnegadamente com a literatura. Quanto mais alta a aposta, maior a tentação de entregar-se ao jogo. Não devemos sobrevalorizar a relativa inocência das pessoas pequenas, sensuais e frívolas. Elas não estão acima, mas abaixo de algumas tentações.

[...]

Os judeus pecaram mais do que os pagãos, não porque estivesses mais longe de Deus, mas porque estavam mais próximos dele. Pois o sobrenatural, quando adentra uma alma humana, faz com que ela se abra para novas possibilidades do bem e do mal. A partir desse ponto, a estrada se divide em duas: um caminho para a santidade, o amor, a humildade, e o outro para o orgulho espiritual, a hipocrisia, o zelo perseguidor. E não há caminho de volta para as virtudes e os vícios triviais de uma alma adormecida. Se o chamado divino não nos tornar melhores, nos tornará muito piores. De todos os homens maus, os homens maus religiosos são os piores. De todos os seres criados, o mais maldoso é aquele que originalmente ficava na presença do próprio Deus. Parece não haver saída para isso.

Esvaziar a natureza (trovão, planetas etc.) de divindade a torna mais, e não menos, divina. Adorar a natureza a priva de seu caráter divino, ao contrário do que se poderia supor.

[E]mbora sutil, é significativa a diferença entre ouvir no trovão a voz de Deus ou a voz de um deus. Como vimos, mesmo nos mitos de criação, os deuses têm uma origem. A maioria deles tinha pais e mães, e nós frequentemente sabemos quais foram seus locais de nascimento. Não é uma questão de autoexistência ou de eternidade. A existência lhes é imposta, como a nós, por causas precedentes. Eles são, como nós, criaturas ou produtos, embora sejam mais afortunados que nós por serem mais fortes, mais belos e imortais. Como nós, eles são os atores do drama cósmico, e não seus autores. Platão compreendeu isso plenamente. Seu Deus cria os deuses e os preserva da morte por seu poder, então a imortalidade não é inerente a eles. Em outras palavras, a diferença entre acreditar em Deus e em muitos deuses não é uma questão puramente aritmética. Como já foi dito por alguém, a palavra “deuses” não é efetivamente o plural de Deus, pois Deus não tem plural. Assim, quando ouvimos a voz de um deus no trovão, assustamo-nos, pois a voz de um deus não é, em verdade, uma voz do além-mundo, do incriado. Vamos ainda mais longe quando abstraímos a voz desse deus – ou quando imaginamos esse deus como um anjo, como um servo do outro Deus. O trovão torna-se não menos, e sim mais divino. Ao esvaziar a natureza de um teor de divindade – ou, melhor ainda, das divindades – nós a associamos à deidade e ela passa a ser, então, a portadora das mensagens. Há um sentido no qual a adoração à natureza a silencia – como se uma criança ou um selvagem ficassem tão impressionados com o uniforme do carteiro que deixassem de receber as cartas.

Prestar louvor, agradecer e elogiar são atos típicos de pessoas humildes, equilibradas e capazes. Quem elogia e agradece pouco ou com dificuldade são pessoas potencialmente desajustadas.

Nunca havia notado que toda apreciação transborda espontaneamente em forma de louvor a não ser que (a às vezes até mesmo se) a timidez ou o medo de incomodar os outros forem deliberadamente evocados. O mundo está cercado de louvor: amantes elogiam seus amados e suas amadas; os leitores elogiam seu poeta preferido; os caminhantes elogiam o campo; os jogadores elogiam seus jogos favoritos; há o louvor ao clima, aos vinhos, às louças, aos atores, aos carros, aos cavalos, às faculdades, aos países, a personagens históricos, a crianças, flores, montanhas, selos e insetos raros e, às vezes, até mesmo a políticos e estudiosos. Eu não havia notado como as mentes mais humildes e, ao mesmo tempo, mais equilibradas e capazes prestavam mais louvores, enquanto as excêntricas, desajustadas e descontentes elogiavam menos. [...] Exceto onde as circunstâncias intoleravelmente adversas interferem, o louvor parece quase ser uma manifestação de saúde interior.

[...]

Penso que temos prazer em louvar o que apreciamos porque o louvor não somente expressa como também complementa a apreciação; ele é a própria consumação dessa apreciação. Quando amantes continuamente dizem um ao outro o quão belo ele (ou ela) é, não o fazem apenas por dever; o prazer é incompleto até que seja expresso.

Fonte: C. S. Lewis, Lendo os Salmos, Editora Ultimato, Viçosa, Brasil, 2015.

22 de março de 2024

Elementos de psicologia tomista


O que há de verdadeiramente interessante na psicologia de Tomás de Aquino, ainda que lhe falte as grandes descobertas da psicologia moderna, é seu caráter estrutural, ordenado. Ela combina aquilo que é necessário, advindo principalmente das ilações da doutrina metafísica de Aristóteles, com elementos contingentes da vida orgânica, sensorial e intelectual humanas, advindos principalmente da introspecção e da meditação. O perfil de tal psicologia é tão elevado, tão genial – no sentido de que todas as descobertas posteriores poderiam ser interpretadas à luz dessa magnífica doutrina estruturante – que talvez poderíamos estar tentados a chamá-la de noologia em vez de psicologia. Parece-me que Mário Ferreira tentou algo nessa direção, mas esta suspeita a confirmarei mais tarde. Por ora, no entanto, como veremos ao final deste artigo, a psicologia tomista apresenta um nec plus ultra que a torna, por mais interessante e útil que seja, imperdoavelmente limitada. Não obstante, vejamos o que nos ensina Tomás de Aquino antes que possamos expor o que quer que seja a título de conclusão. Assim, permitamos que um dos melhores discípulos modernos deste grande santo católico romano nos eduque: Robert Brennan.

Brennan admite que o método introspectivo utilizado por Tomás de Aquino, embora seja o mais indicado para estruturar uma doutrina psicológica digna do nome, pode, e deve, ser aperfeiçoado com as descobertas da psicologia moderna. Este é, a propósito, o principal liame entre o que se ensinava na era medieval sobre a estrutura da mente humana e as descobertas contemporâneas: a introspecção.

Os tomistas costumam dividir a vida humana em três grandes partes ou componentes:

  • Vida orgânica
  • Vida sensorial
  • Vida intelectual

Vida orgânica

Quanto à vida orgânica, há pouco que possamos acrescentar ao que as ciências biológicas nos vêm ensinando ultimamente. No entanto, apesar de nos dizerem muito como é a vida orgânica, as ciências biológicas não dizem o que é a vida orgânica. O que fazem é descrever o que é vida. A vida, dizem, é um modo de organização encontrado no que antigamente se chamava de “protoplasma” (atualmente se usa citoplasma ou citosol, embora haja uma infinidade de termos correlatos na literatura científica) que se manifesta por possuir algumas propriedades como nutrição, crescimento, desenvolvimento, reprodução, adaptação etc. Ademais, a disposição muito especial das partes do ser orgânico permite que haja uma coordenação dessas funções de modo que as torne algo uno e simples.

O psicólogo não pode se satisfazer com essa explicação, não por ser incorreta, mas por ser insuficiente. A vida não pode ser encontrada no próprio organismo, ou seja, no corpo do ser vivo, sob pena de concluirmos que as propriedades da vida orgânica sejam causadas por si mesmas. A nutrição se causaria a si mesma e produziria a nutrição. O crescimento ocorre porque supostamente ele mesmo se faz crescer. Não são explicações, mas um mero agregado de palavras sem sentido. Entretanto, se tem de haver algo “anterior” ou “acima” ou “por trás” desses processos todos, o que é? E onde está?

Não há como a explicação ser física, mas tem de ser necessariamente metafísica. E mesmo assim não será plenamente satisfatória. Não cabe aqui detalharmos o hylemorfismo aristotélico do qual Aquino lança mão (leia p.ex. estes artigos), mas basta por ora reforçarmos a ideia antiga e medieval de que o mundo real proclama a existência de duas instâncias, ou princípios, imperceptíveis, mas introspectivamente detectáveis, que explicam a causa dos seres: a forma (morphe) e a matéria (hylé). Todo ser tem uma forma (fórmula, algoritmo, estrutura ontológica, determinação...) própria na qual estão reunidas todas as possibilidades de sua manifestação, e uma matéria (indeterminação, individuação, ...) pela qual é exibida sua existência. A raça angélica é uma exceção, mas isso não importa agora. O que importa é que na forma substancial (e não na forma acidental, muito menos na matéria prima e na matéria secunda) se encontra o princípio vital (ou “força” vital) a partir do qual os processos vitais acima mencionados se efetuam. É a essa forma substancial que chamamos de alma, e é por isso que se diz que “a alma é a forma do corpo”. Estão na alma todas as possibilidades de “encarnação” do homem, o que inclui não apenas o corpo, mas tudo aquilo que é “carne”, que é individuado, como os processos mentais dos sentidos externos, sentidos internos, sentimentos, emoções, vontade, intelecto. Quanto ao “eu puro”, bem, veremos mais adiante como, e se, Aquino o trata.

Aqui é impossível não pensarmos na passagem da potência ao ato porque a alma é, para o corpo, seu “ato puro”, ou seja, o “ponto de partida” supremo antes do qual, ou acima do qual, não houve uma supra-potencialidade. [Veremos adiante se as coisas realmente são assim, mas por ora nos contentemos com o raciocínio de Brennan]. É digno de nota que a enteléquia é o que varia nos seres inanimados enquanto a matéria permanece (veja uma pedra, por exemplo), ao passo que a energia é o que permanece nos seres vivos enquanto a matéria varia (veja os processos metabólicos, por exemplo). Zubiri explicou muito bem esse processo ao notar que a energia está sempre sendo, ou seja, é uma atividade difusora, enquanto a enteléquia simplesmente é, ou seja, é uma atualidade receptora. A energia procura regular-se e, mais importante, aperfeiçoar-se; é algo intrínseco. A enteléquia não apresenta essas características; é algo meramente extrínseco.

Vida sensorial

Consciência. Brennan explica que a diferença entre os vegetais e os animais é a presença da consciência. Como a origem latina da palavra deixa transparecer (conscire), a consciência é uma atividade que dá a entender a existência de um conhecido e um conhecedor. A consciência é mais restrita que a mera vida mental. A consciência implica que o animal tem uma atenção especial aos processos mentais das sensações, sentimentos, ações etc. A vida mental inclui não apenas isso, mas também uma classe enorme de objetos que escapam à consciência, mas, assim mesmo, fazem parte do universo do animal. Ambas, vida mental e particularmente a vida consciente, são nada mais nada menos do que uma capacidade de previsão. Sim, pois elas trazem à vida animal o mundo exterior e, agora de certa forma interiorizado, podem elaborar, combinar e reagir ante ele.

Senso comum. É a capacidade da percepção propriamente, pois é a capacidade de perceber os objetos que estão presentes aqui e agora a nossos sentidos externos. O senso comum é, portanto, o princípio de todos os sentidos externos, é ele quem faz a síntese de todos os estímulos recebidos dos sentidos externos. Além disso, o senso comum é responsável por informar-nos sobre certas características: espaciais (extensão superficial, forma, solidez, distância, tamanho e movimento) e temporais (experiência de duração, experiência de ritmo). E a percepção (i.e., senso comum) apresenta algumas peculiaridades: ambiguidades (o mesmo estímulo pode produzir efeitos mentais diferentes, como percepção de proximidade, similitudes, continuidade, inclusividade, familiaridade, percepção de conjunto), ilusões (agrupamentos de linhas e ângulos, extensão interrompida, ilusões de contorno, ilusões de contraste, ilusões de perspectiva, ilusões de movimento).

Imaginação. A função da imaginação é representar – ou seja, reapresentar – coisas que já foram percebidas pelos sentidos, mas que não estão atualmente presentes. Ela complementa o senso comum. A imaginação é, portanto, uma espécie de “armazém” de impressões sensoriais e, claro, uma revivescência das experimentações prévias. Obviamente a revivescência será menos vivaz que uma percepção. Em relação à percepção, a imagem apresenta menos intensidade, estabilidade e inteireza. Ela se divide em dois tipos: (a) imaginação reprodutiva (tentativas de cópia das experiências sensoriais), (b) imaginação criativa (implica propósito, atenção e seleção a fim de recombinar imagens de impressões sensoriais prévias). Sua importância para a vida mente é: (1) prover significado à mente através de imagens para posterior elaboração de ideias, (2) auxílio à mente para resolução de problemas.

Cogitação (“instinto”). Brennan chama de “instinto” a faculdade da cogitação, às vezes também chamada por alguns medievalistas de “estimação”, embora este seja um termo mais reservado ao instinto animal. Trata-se da capacidade sensorial de reconhecer um objeto como agradável/útil/bem ou repulsivo/inútil/mal. É a cogitação que permite aos homens reagir emocionalmente aos objetos que lhe são apresentados. No entanto, o mais surpreendente da cogitação está no fato de que há uma teleologia nela, ou seja, há um caráter finalista, de finalidade, em sua operação. Isso é surpreendente porque tendemos a atribuir finalidade apenas à atividade racional e suas operações de deliberação, raciocínio, comparação etc. A razão é posta em marcha com uma finalidade, mas, estranhamente, a cogitação também, embora não consigamos conscientemente detectar quais seriam suas finalidades. Contudo, o caráter altamente plástico da cogitação faz dela alvo das intervenções da inteligência, que é capaz, ao longo da vida humana, de moldar a cogitação a ponto de alterá-la, para melhor ou pior, sua ação. Reside aí a principal diferença entre a estimação animal e a cogitação humana.

Memória. A memória complementa a cogitação e a imaginação no sentido de que ela também procura suprir a baixíssima capacidade de retenção do senso comum. A única diferença entre imaginação e memória é que a memória adiciona o caráter de preteridade, ou seja, de passado, à imagem (por “imagem” não entendamos apenas o meramente visual, mas toda uma experiência) que estamos revivescendo na consciência. Assim como na imaginação, a memória também é dividida em dois tipos, que correspondem paralelamente aos dois tipos de imaginação: (a) memória simples (um processo passivo de recordação) e (b) reminiscência (um processo dirigido pelo intelecto, a exemplo da imaginação criativa e semelhante à inferência, que é um processo mais elaborado que marca a passagem do conhecido para o desconhecido). A revivescência na memória simples e na reminiscência obedecem a três princípios básicos: semelhança, contraste e propinquidade (i.e., aproximação). De maneira geral, os três princípios são o mesmo: quando um aspecto ou pedaço de uma memória é evocado, resgata-se por associação mais aspectos ou pedaços desse passado. O papel da memória na vida mental é evidente no caso do aprendizado. Sem memória não há sobre o que aprender.

Apetência (sentimentos, emoções; “paixões”). Se todos os sentidos internos que mencionamos acima são processos cognitivos, ou seja, a consciência é informada com o que vem de fora, no caso dos sentimentos e emoções o processo cognitivo se inverte em um processo apetitivo: é o mundo exterior que é “informado” pela consciência. Os sentimentos são os dados mais elementares da apetência: trata-se de um movimento meramente agradável ou desagradável ante o que é apresentado à consciência e ao organismo como um todo. A emoção é um sentimento acompanhado de alterações fisiológicas (coração, circulação, ruborização, respiração, dilatação pupilar etc.). As emoções são cognitivas, ou seja, palavras ou gestos as podem despertar, e em seguida são apetitivas, ou seja, a consciência se adere de maneira positiva ou negativa ao objeto ou situação. As repostas motoras seguem-se a tal aderência. Eis um esquema que resume as emoções. Já o vimos antes, e melhor, em Martín Echavarría e Magda Arnold.

Vida intelectual

Há duas grandes faculdades ou operações no intelecto: a inteligência e a vontade. Inteligência significa “ler dentro”, ou seja, ler para além das aparências, dos acidentes. É uma força capaz de abstrair elementos invisíveis aos sentidos externos e internos e extrair das coisas suas substâncias, suas causas, seus fins remotos. Ela possui três elementos ou etapas: conceito, juízo e inferência.

A vontade é semelhante à apetência sensorial, mas aqui trata-se de uma apetência intelectual, ou seja, ela é movida não pelos sentidos internos apenas, mas também pelo que a inteligência lhe apresenta.

A vida intelectual é composta de 6 elementos. A tabela abaixo resume a operação do intelecto. Observe que a inteligência é chamada por Brennan de “pensamento”. São, para ele, palavras sinônimas.

Conceito. Trata-se de um conteúdo individual consciente que representa a essência de um objeto. O que o intelecto faz para extrair o conceito é agudizar uma qualidade superficial ou uma progressão do particular para o universal. Este processo de conceituação é também chamado de abstração. Na teoria tomista este processo é duplo: (1) o intelecto ativo despoja os aspectos materiais do conteúdo dos sentidos internos e revela assim a natureza desnuda que jaz em seu interior, depositado tal revelação em uma species impressa para que (2) o intelecto passivo possa propriamente concluir o trabalho da ideação ao expressar a natureza abstraída à consciência na forma de uma species expressa, ou seja, um conceito.

Importante notar que o tal “conteúdo dos sentidos internos” é provavelmente o que Tomás de Aquino quis dizer com o fantasma, ou seja, a síntese do produto perceptivo. O fantasma, no entanto, é um conceito um tanto críptico na teoria de Tomás de Aquino.

Juízo. Para abordarmos um objeto ou situação qualquer o intelecto tem de se empenhar em abstrair seus diversos aspectos. E mais: a impressão inicial produzida por um objeto é frequentemente imperfeita, o que exige esforços ainda mais intensos e prolongados do intelecto. Por sucessivos refinamentos, o intelecto começa a formar juízos. O juízo é, portanto, uma expressão consciente das relações que existem entre certos objetos. É um contínuo processo de composição e divisão mental.

Mas para que o intelecto se comprometa com o juízo é necessário um processo de consentimento, ou seja, de adesão ao juízo. Há fatores externos que podem impedir, ou compelir, o intelecto ao consentimento. E é fácil entender o porquê: ao formar o juízo, sua própria contemplação pela consciência provoca a reação da apetência sensorial, que pode, por exemplo, rejeitar esse juízo. Ou, pelo contrário, uma apreciação lógica (ou uma preferência, ou um sentimento de satisfação etc.) pode fazer o intelecto aderir ao juízo.

Inferência. Trata-se de um processo puramente intelectual de caráter, digamos, “investigativo”. Agora a percepção sensorial não desempenha mais nenhum papel. O que a inferência faz diferentemente do juízo é construir novos conteúdos mentais. Mas ela não faz isso mediante silogismos lógicos, como muitos poderiam supor. Claro, se a pessoa souber, e puder, lançar mão desse tipo de recurso, ótimo. Mas o fato é que a inferência é posta em marcha pelo intelecto de maneira automática, natural, inconsciente. Não se trata de algo calculado, mas sim espontâneo.

Vontade. Também chamada volição, trata-se da apetência intelectual. Sua manifestação característica é a motivação para uma posterior persistência de ação.

A motivação surge somente depois que o valor de um objeto ou situação – ou seja, sua vantagem ou desvantagem – for conscientemente apreciado pelo sujeito. No entanto, ocorre que mesmo que já não apreciemos um determinado valor, os sentimentos prazerosos associados a ele continuam a operar por muito tempo depois e, por isso, muitos concluam que os valores não têm papel intelectual, mas são meros sentimentos de simpatia ou antipatia. No entanto, frequentemente ocorre que o sujeito vacila em apreciar o valor de maneira positiva ou negativa, e, portanto, a necessária motivação para a ação não surge. Assim, o intelecto precisa continuar a atuar e mediante comparações, eliminações, novos enfoques etc. para que aprecie o valor com clareza. Só a partir daí a motivação necessária para inclinar-se ou afastar-se do objeto poderá concretizar-se. É claro, e veremos logo abaixo, que a força do hábito também pode desempenhar um papel central neste desenrolar.

Depois de ter se decidido por uma linha de ação, a vontade se exerce para conseguir seus objetivos, o que no seio da psicologia tomista se chama tendência determinante. Trata-se de um impulso persistente da vontade – poderíamos até mesmo chamar de um “surto” – para conseguir seus objetivos. Um exemplo um tanto surpreendente deste fenômeno da volição se verifica na hipnose: a tendência determinante se prolonga durante a vida consciente a fim de garantir o cumprimento do objetivo. Casos semelhantes observamos entre os poliglotas, que passam a falar outro idioma sem estarem conscientes de suas regras gramaticais, ou entre os músicos, que tocam seus instrumentos inconscientes dos detalhes da técnica que empregam.

Atenção. Trata-se de uma direção da consciência a algum objeto ou situação. Não basta um mero “dar-se conta”, mas uma verdadeira mudança de um estado de receptividade para um estado de reconhecimento ativo. Aqui cabe fazer uma interessante distinção entre dois tipos de atenção: (1) atenção sensorial involuntária, que é um mero dar-se conta causado pela força atrativa do objeto e (2) atenção intelectual voluntária, que é um ato da vontade propriamente, a qual procura limitar os sentidos e o intelecto a certas características particulares e apartá-las do pano de fundo da experiência. A atenção possui as seguintes características: (a) alcance (ou “amplitude”), que é o limite que acabamos de mencionar, (b) intensidade (ou “força”), pois a atenção intelectual vem também acompanhada de atividades especiais da percepção, (c) disposições temporais (“tempo”), ou seja, a atenção não é um processo perfeitamente contínuo, mas apresenta flutuações e vacilos.

Associação. Trata-se da tendência natural em agrupar em constelações os conteúdos dos pensamentos e imagens. Mas, para além de uma tendência natural e espontânea, a associação pode ser controlada pela vontade mediante a criação antecipada de esquemas que funcionem como meta, dentro dos quais o material adequado será selecionado e/ou eliminado.

Ação. A ação humana é diferente da ação animal. A ação animal é isolada, enquanto a ação humana penetra em todos os recônditos da mente e, por esforço volitivo, criar atitudes e disposições persistentes que influem em todos os movimentos exteriores. Evidentemente a ação volitiva também se deixa influenciar pelo ambiente exterior, mas seu exercício contínuo de alguma forma atenua pouco a pouco essa influência exterior a ponto de tornar-se a ação em algo “natural” ou “animal” ou “automático”. De modo muito genérico, podem-se dividir as ações em três grandes classes: (a) reações de defesa (evitar situações desagradáveis), (b) reações substitutivas (quando não é possível evitá-la, mas ao menos contorná-la ou compensar seu impacto), (c) solução de conflitos (repressão dos desejos e instintos sensoriais em favor de um ideal de vida intelectualmente superior).

Hábito. Nas palavras de Brennan, o hábito é “uma disposição que se desenvolve mediante o exercício experimental da inteligência e da vontade em virtude da qual estamos preparados a atuar de uma maneira natural, eficiente e metódica. Isso significa, naturalmente, que o hábito é um aspecto de nossa vida mental superior, dado que supõe a existência e o exercício de discernimento e controle”. A criação de um hábito permite a aquisição gradual de certa prontidão, facilidade e satisfatoriedade de resposta.

A ideia por trás da criação de hábitos é que o homem é aperfeiçoável, melhorável e, mais importante, que a mente humana é indeterminada. O homem pode eleger uma meta e concentrar seus esforços mentais e volitivos na direção de cumpri-la. As características principais dos hábitos são: (a) uniformidade (tendência a produzir as mesmas ações), (b) facilidade, (c) propensão, (d) independência da atenção.

A criação de hábitos é fundamental para o desenvolvimento da vida mental. Sem hábitos não há progresso intelectual possível.

Caráter. São os aspectos particulares de um indivíduo que o diferenciam dos demais indivíduos. Em outras palavras, o caráter é o “princípio de ação inteligentemente regida”. Os três fatores que compõem o caráter são: (1) ação (movimentos corporais, expressão facial, gestos, linguagem etc., ou seja, tudo aquilo que responsavelmente o indivíduo faz para interagir com o cosmos e com os homens), (2) reconhecimento de valores (valor é isoladamente o fator mais importante do caráter porque o valor é a verdadeira soma e substância dos motivos e é a razão por trás de toda a conduta humana) e (3) hábito (como dissemos acima, o cultivo do intelecto e da vontade, ou a falta desse cultivo, é um traço característico do caráter).

O produto típico do caráter é o ideal. A primeira fase é constituída pela emulação, ou seja, pela aprovação interior à pessoa que se erige como ideal. A segunda fase é constituída pela imitação. Em seguida a compensação, ou seja, as permutas que o homem cogita fazer em prol de seu ideal e, claro, se o ideal for impossível de cumprir deverá ser substituído por algo mais viável e prático. Por fim, o ideal se torna um motivo para agir. Aqui é notória a semelhança entre “ideal” e o conceito de “sentido” popularizado por Viktor Frankl.

Eu (“ego”). É a consciência de si mesmo, a consciência de eu. É o elemento de nossa existência que não é pensamento, nem percepção, nem imagem, nem sentimento, nem sensação. O eu é o mantenedor de todas as nossas ações. Quem nega a existência do eu nega sua própria existência.

Há três tipos ou manifestações do eu: (1) eu social (expressa as relações com o mundo, como quando dizemos “eu moro em Serra do Salitre”, por exemplo), (2) eu pessoal (designa a estrutura interna da mente e seus atributos, como quando dizemos “eu sou uma pessoa solitária”, por exemplo) e (3) eu puro (é o sujeito de toda e qualquer experiência mental, a raiz de nossas ações, como quando dizemos “eu sinto, eu vejo, eu conheço etc.”, por exemplo). O eu puro é evidentemente o eu do qual se fundam os outros dois eus. No entanto, transtornos de personalidade podem substituir os eu social e o eu pessoal, causando enormes dificuldades ao indivíduo. Cabe lembrar, por fim, que Tomás de Aquino não se refere ao eu humano dessa forma, mas o chama de persona.

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Eis um esquema no qual Brennan resume as faculdades (ou “potencialidade”, ou “capacidades”, ou “potências”) humanas.

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É notória a ausência do noûs e do coração na psicologia tomista. Para que o ser humano possa conhecer o que quer que seja acerca de Deus e do mundo transcendente, necessariamente terá de fazê-lo mediante os sentidos sensoriais e sua dominância pelo intelecto e pela vontade. Em última instância, a ideia de que Deus comunica-se diretamente com o homem sem a intermediação da criação é inconcebível no entender tomista. Do ponto de vista cristão ortodoxo, é no coração que Deus se comunica diretamente com os homens com a condição de que esteja purificado. E, uma vez que o noûs não mais esteja disperso, e imerso, nas paixões e interesses do ego, mas regresse ao coração purificado, ou seja, ao centro da afetividade humana, poderá ser iluminado pelas energias (logoi) divinas.

É claro que Deus também se comunica indiretamente por meio da criação. Mas os santos e mestres ortodoxos deixam claro que tal mediação é débil, distante, intricada e, finalmente, castrada e falível.

A psicologia tomista, portanto, é certamente interessante e verdadeira, mas imperdoavelmente limitada. Suponho que se Tomás tivesse pleno acesso às obras dos grandes santos orientais talvez sua psicologia fosse ainda mais interessante, iluminadora e verdadeira. Quem sabe alguém tome esta hercúlea tarefa para si e complete a obra tomista com os ensinamentos inerrantes dos Santos Padres.

Fonte: Robert Brennan, Psicología general, Ediciones Morata, Madrid, Espanha, 1953.