9 de setembro de 2025
O racismo cultural
18 de agosto de 2025
As três rebeliões, a geografia cósmica e a nova aliança
Deus preside uma assembleia divina composta
por deuses. Tais deuses são espíritos (elohim) sendo Deus/Jeová o Elohim acima de todos os elohim. Tanto
os homens quanto o exército do céu imageiam a Deus, ou seja, são Sua família.
Ambos – homens e deuses – representam a Deus, são filhos de Deus, compartilham
os atributos de Deus. Ocorre que nós, homens, devemos representar a Deus na
terra. Mas um querubim guardião ( “serpente” ou “dragão”, segundo antigas
tábuas mesopotâmicas) rebelou-se contra Javé e foi expulso do Éden. Adão e Eva
também se rebelaram, e a morte foi trazida à terra. Agora todos os homens morreriam.
Deus está na assembleia divina; julga no meio dos deuses. [...] Eu disse: Vós sois deuses, e todos vós filhos do Altíssimo. (Salmos 82:1,6)
Terrível é Deus na assembleia dos santos. (Salmos 89:7)
Então ele [Miqueias] disse: Ouve, pois, a palavra de Javé: Vi a Javé assentado sobre o seu trono, e todo o exército do céu estava junto a ele, à sua mão direita e à sua esquerda. E disse Javé: Quem induzirá Acabe, para que suba, e caia em Ramote de Gileade? E um dizia desta maneira e outro de outra. Então saiu um espírito, e se apresentou diante de Javé, e disse: Eu o induzirei. E Javé lhe disse: Com quê? E disse ele: Eu sairei, e serei um espírito de mentira na boca de todos os seus profetas. E ele disse: Tu o induzirás, e ainda prevalecerás; sai e faze assim. Agora, pois, eis que Javé pôs o espírito de mentira na boca de todos estes teus profetas, e Javé falou o mal contra ti. (1 Reis 22:19-23)
Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito [único, exclusivo, ímpar, incomparável, sem igual], para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. (João 3:16)
E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. (Gênesis 1:27)
Onde estavas tu quando lancei os fundamentos da terra? Quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e todos os filhos de Deus jubilavam? (Jó 38:4,7)
Nem mesmo de seus santos Deus se fia, e os céus não são puros a seus olhos. (Jó 15:15)
Tu dizias: Escalarei os céus e erigirei meu trono acima das estrelas. Assentar-me-ei no monte da assembleia, no extremo norte. Subirei sobre as nuvens mais altas e me tornarei igual ao Altíssimo. (Isaías 14:13-14)
Tu eras o querubim, ungido para proteger, e te estabeleci; no monte santo de Deus estavas, no meio das pedras afogueadas andavas. (Ezequiel 28:14)
2. A segunda rebelião
Alguns filhos de Deus, ou seja, membros da assembleia
divina, transgrediram a fronteira entre o céu e a terra. Por isso Deus os
lançou no Tártaro (reino dos mortos) e ali permanecerão até o dia do Senhor, o
fim dos dias. Por isso, os demônios que Jesus Cristo encontrou não podem ser os
filhos de Deus que estão presos no Tártaro. Esses demônios são a prole formada
pelo cruzamento dos filhos de Deus com as mulheres, ou seja, são os nefilins,
os gigantes, cujos clãs foram combatidos por Moisés e Josué. Os descendentes
dos nefilins são também chamados de “anakins” e “refains”. Autores judaicos
extra-bíblicos acreditavam que os demônios, como aqueles descritos nos
evangelhos, eram espíritos desencarnados dos gigantes. Eles tomavam como base a
menção que se faz na Bílbia aos refrains mortos no submundo e em livros judaicos
como 1 Enoque e o Livro dos Gigantes (Manuscritos
do Mar Morto)
Viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas. [...] Havia naqueles dias nefilins na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos. (Gênesis 6:2,4)
Deus não poupou aos anjos que pecaram, mas, havendo-os lançado no Tártaro, os entregou às cadeias da escuridão, ficando reservados para o juízo; e não perdoou ao mundo antigo, mas guardou a Noé. (2 Pedro 2:4-5)
Aos anjos que não guardaram o seu principado, mas deixaram a sua própria habitação, [o Senhor] reservou na escuridão e em prisões eternas até ao juízo daquele grande dia. (Judas 1:6)
Eu destruí diante dele o amorreu, cuja altura era como a altura dos cedros, e que era forte como os carvalhos. (Amós 2:9)
3. A terceira rebelião
Os filhos de Adão, a humanidade, rebelou-se
contra Deus e procurou atingir os céus por meio de uma torre. Deus confundiu
sua língua e, em Babel, dividiu a humanidade em nações. Em resposta a tal
rebelião, essas nações foram entregues aos membros da assembleia divina para
que as governassem, e é por isso que as antigas nações adoravam a outros
deuses. Mas esses deuses falharam e não governaram com a devida justiça, e por isso
Deus também os condenará à morte. Os estudiosos chamam este fenômeno de “geografia
cósmica”, ou seja, as nações em torno de Israel, dominada por deuses hostis (ou
“príncipes”) que influenciavam a geopolítica dessas nações. O príncipe de
Israel é Miguel, e é notável que há, por trás dos impérios visíveis uma batalha
invisível em andamento. No entanto, Israel era a terra santa, o local designado
para que Javé vivesse com seu povo, como era no Éden. Mas este local, esta
relação, estava perdida. Deus não mais tinha relação com os homens.
Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre cujo cume toque nos céus. [...] E o Senhor disse [...] “Eia, desçamos e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua do outro”. Por isso se chamou o seu nome Babel. (Gênesis 11:4,6-7,9)
Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, estabeleceu os termos dos povos, conforme o número dos filhos de Israel. Porque a porção do Senhor é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança. (Deuteronômio 32:8,9)
Deus está na assembleia divina; julga no meio dos deuses. “Até quando julgareis iniquamente, favorecendo a causa dos ímpios?” (Salmos 82:1,2)
Eu disse: Sois deuses, sois todos filhos do Altíssimo. Contudo, morrereis como simples homens e, como qualquer príncipe, caireis. (Salmos 82:6,7)
Porque a indignação de Javé está sobre todas as nações, e o seu furor sobre todo o exército delas. [...] E todo o exército dos céus se dissolverá; e todo o seu exército cairá. (Isaías 34:2,4)
E será que naquele dia o Senhor castigará os exércitos do alto nas alturas, e os reis da terra sobre a terra. (Isaías 24:21)
Mas o príncipe do reino da Pérsia me resistiu vinte e um dias, e eis que Miguel, um dos primeiros príncipes, veio para ajudar-me. (Daniel 10:13)
Agora, pois, tornarei a pelejar contra o príncipe da Pérsia; ...eis que virá o príncipe de Javã [Grécia]...e ninguém há que me anime contra aqueles, senão Miguel, vosso príncipe. (Daniel 10:20,21)
E disse Naamã: Se não queres, dê-se a este teu servo uma carga de terra que baste para carregar duas mulas; porque nunca mais oferecerá este teu servo holocausto nem sacrifício a outros deuses, senão a Javé. (2 Reis 5:17)
4. A velha aliança
Para restaurar a relação com os homens,
Javé a lançou com um homem chamado Abraão. No entanto desta vez Javé não se
limitou a falar desde os céus, mas apareceu fisicamente a Abraão (e a Isaque e a
Jacó) como homem. Visões não são apenas “miragens” ou “alucinações”, mas coisas
reais que se veem: elas se sentavam, falavam, andavam. Javé aparecia frequentemente
como o “anjo de Javé” (anjo do Senhor). Há ainda dois conceitos que são
associados ao anjo: a palavra e o nome. Ambos são descritos como pessoas, ou
seja, como a presença do próprio Javé. O fato de Javé ter aparecido como homem
aos judeus os preparou para receber Javé como homem em Jesus Cristo.
Deus lhes deu uma lei (613 leis na verdade),
mas não era através da lei que obtinham a salvação. A lei os ajudava a viver em
harmonia com Deus e entre si. A salvação, entretanto, era obtida mediante a
crença de que Javé era o Deus de todos os deuses. Os judeus tinham de negar a
adoração a qualquer outro deus que não fosse Javé.
Em especial, nesses tempos de geografia
cósmica, Javé estabeleceu nas leis um espaço santo, que deveria ser
especialmente preparado e purificado para distingui-lo de um espaço normal. Esse
espaço santo deveria lembrar aos israelitas do Jardim do Éden.
O Deus, em cuja presença andaram os meus pais Abraão e Isaque, o Deus que me sustentou, desde que eu nasci até este dia; o anjo que me livrou de todo o mal, abençoe estes rapazes. (Gênesis 48:15,16)
Eis que eu envio um anjo diante de ti, para que te guarde pelo caminho, e te leve ao lugar que te tenho preparado... Não o provoques à ira; porque não perdoará a vossa rebeldia; porque o meu nome está nele. (Êxodo 23:20,21)
Eis que o nome de Javé vem de longe, ardendo a sua ira, sendo pesada a sua carga. (Isaías 30:27)
E Moisés...chegou ao monte..e apareceu-lhe o anjo de Javé em uma chama de fogo do meio de uma sarça; e vendo Javé que se virava para ver, bradou Deus a ele do meio da sarça. (Êxodo 3:1-2,4)
Manifestei o teu nome aos homens. (João 17:6)
E Arão lançará sortes sobre os dois bodes; uma sorte por Javé, e a outra sorte por Azazel. Mas o bode, sobre que cair a sorte por Azazel, apresentar-se-á vivo perante Javé, para fazer expiação com ele, a fim de enviá-lo ao deserto como Azazel. (Levítico 16:8,10)
5. A nova aliança
No novo testamento ocorrerá o mesmo: os
homens deverão crer que Jesus Cristo é o Senhor dos senhores e que morreu na
cruz para que os homens possam voltar a unir-se a Ele. Porém, tal estratégia
divina era desconhecida dos “príncipes deste mundo”, ou seja, dos deuses
inferiores de Babel, e até mesmo dos apóstolos. E o mais importante: a salvação
agora não deveria estar à disposição somente do “povo de Javé”, mas a toda a
humanidade, a todos os que estavam sob o domínio de Satanás e dos deuses das
nações.
Aos apóstolos, no entanto, houve um evento
específico no qual Jesus Cristo revelou quem Ele realmente era. Trata-se da transfiguração
no Monte Hermon, numa região conhecida no VT como Bashan. Os cananeus
acreditavam que nesta montanha ou “rocha” havia portais para o submundo, as
tais “portas do inferno”. Em alguns dos manuscritos do Mar Morto, que datam dos
tempos de Jesus Cristo, o Monte Hermon era o local onde os filhos de Deus
desceram à terra antes do dilúvio. Bashan e Hermon eram, portanto, o “marco
zero” dos poderes cósmicos malignos, e obviamente muito significativo o fato de
Jesus estar literalmente às portas do inferno declarando que não prevalecerão
sobre a ecclesia.
Em seguida Jesus disse a seus discípulos que
precisava ir a Jerusalém para morrer. Os discípulos não entenderam, mas era
hora de cumprir o plano de Deus. Diante de Caifás, Jesus Cristo declarou que Ele
era quem haviam dito dEle: o Cristo, o Filho de Deus e que, ademais, o viriam sobre
as nuvens do céu. Para Caifás tal declaração era uma blasfêmia porque Jesus
estava citando uma expressão do Velho Testamento (“nuvens do céu”) que era usada
apenas em alusão ao próprio Deus (por exemplo, no salmo 104:3). Ademais, no VT
a chegada de Deus era associada ao fogo, ao vento violento. Foi precisamente o
que se viu em Pentecostes. E também em Pentecostes ficou claro, com o fenômeno
dos vários povos entenderem em suas línguas, que a salvação agora estava
disponível a todos porque a soberania de Jesus Cristo, após vencer a morte,
recaía sobre todas as nações. As línguas que antes dividiam as nações agora
estavam formalmente superadas. Pentecostes foi como um “tapa na cara” nos
deuses das nações porque sua autoridade foi anulada.
O Apóstolo Paulo, sabendo agora que todas
as nações deveriam receber o evangelho, fez questão de dirigir-se até os
confins do Império Romano: a Espanha. Este fato foi esclarecido por São
Clemente de Roma (5:7), ainda no século I, quando disse que São Paulo
dirigiu-se até os limites do ocidente. O espaço sagrado de Deus, antes algo
geográfico, agora está no corpo de cada homem. Todo crente em Jesus Cristo é
espaço sagrado agora.
Mediante a fé em Jesus Cristo somos levados
à salvação: compartilharemos a natureza divina e escapamos da corrupção que existe
no mundo. Seremos como deuses, teremos um corpo como o que Jesus teve após a
ressurreição e, com os membros fiéis do exército do céu, faremos parte da
família de Deus e o adoraremos para sempre. Uma nova terra será erigida na qual os novos
deuses, em substituição aos deuses caídos, seremos nós, os fiéis em Jesus
Cristo. O céu voltará à terra, e uma sociedade entre Deus e os homens será
restaurada, o próprio Éden.
Mas falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória; a qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; porque, se a conhecessem, nunca crucificariam ao Senhor da glória. (1 Coríntios 2:7,8)
E Pedro, tomando-o de parte, começou a repreendê-lo, dizendo: Senhor, tem compaixão de ti; de modo nenhum te acontecerá isso. Ele, porém, voltando-se, disse a Pedro: Para trás de mim, Satanás! (Mateus 16:22,23)
Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, aos que creem no seu nome. (João 1:12)
Agora é o juízo deste mundo; agora será expulso o príncipe deste mundo. E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim. (João 12:31,32)
Jesus tomou consigo a Pedro, a Tiago, e a João, e os levou sós, em particular, a um alto monte; e transfigurou-se diante deles... E desceu uma nuvem que os cobriu com a sua sombra, e saiu da nuvem uma voz que dizia: Este é o meu filho amado; a ele ouvi. (Marcos 9:2,7)
Disse-lhe o sumo sacerdote: Conjuro-te pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho de Deus. Disse-lhe Jesus: Tu o disseste; digo-vos, porém, que vereis em breve o Filho do homem assentado à direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu. (Mateus 26:63,64)
Um ancião de dias se assentou; a sua veste era branca como a neve, e o cabelo da sua cabeça como a pura lã... e eis que vinha nas nuvens do céu um como o filho do homem; e dirigiu-se ao ancião de dias, e o fizeram chegar até ele. E foi-lhe dado o domínio, e a honra, e o reino, para que todos os povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno. (Daniel 7:9,14)
E de repente veio do céu um som, como de um vento veemente e impetuoso, e encheu toda a casa em que estavam assentados. E foram vistas por eles línguas repartidas, como que de fogo, as quais pousaram sobre cada um deles. E todos foram cheios do Espírito Santo, e começaram a falar noutras línguas. (Atos 2:2-4)
Se abriram os céus, e eu tive visões de Deus... Um vento tempestuoso vinha do norte, uma grande nuvem, com um fogo revolvendo-se nela. (Ezequiel 1:1,4)
É-me dado todo o poder no céu e na terra. Portanto ide, fazei discípulos de todas as nações. (Mateus 28:18,19)
Assim que, concluído isto, e havendo-lhes consignado este fruto, de lá, passando por vós, irei à Espanha. (Romanos 15:28)
O vosso corpo é o templo do Espírito Santo. (1 Coríntios 6:19)
Ele [Jesus Cristo] não se envergonha de lhes chamar irmãos, dizendo: Anunciarei o teu nome a meus irmãos, cantar-te-ei louvores no meio da assembleia. E outra vez: Eis-me aqui a mim, e aos filhos que Deus me deu. (Hebreus 2:11-13)
12 de agosto de 2025
Batismo
No qual também estais circuncidados com a circuncisão não feita por mão no despojo do corpo dos pecados da carne, pela circuncisão de Cristo; sepultados com ele no batismo, nele também ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos. (Colossenses 2:11-12)Mas também, se padecerdes por amor da justiça, sois bem-aventurados. E não temais com medo deles, nem vos turbeis; antes, santificai ao Senhor Deus em vossos corações; e estai sempre preparados para responder com mansidão e temor a qualquer que vos pedir a razão da esperança que há em vós, tendo uma boa consciência, para que, naquilo em que falam mal de vós, como de malfeitores, fiquem confundidos os que blasfemam da vossa boa conduta em Cristo. Porque melhor é que padeçais fazendo bem (se a vontade de Deus assim o quer), do que fazendo mal. Porque também Cristo padeceu uma vez pelos pecados, o justo pelos injustos, para levar-nos a Deus; mortificado, na verdade, na carne, mas vivificado pelo Espírito; no qual também foi, e pregou aos espíritos em prisão; os quais noutro tempo foram rebeldes, quando a longanimidade de Deus esperava nos dias de Noé, enquanto se preparava a arca; na qual poucas (isto é, oito) almas se salvaram pela água; que também, como uma verdadeira figura, agora vos salva, o batismo, não do despojamento da imundícia da carne, mas da indagação de uma boa consciência para com Deus, pela ressurreição de Jesus Cristo; o qual está à destra de Deus, tendo subido ao céu, havendo-se-lhe sujeitado os anjos, e as autoridades, e as potências. (1 Pedro 3:14-22)
E um certo Ananias, homem piedoso conforme a lei, que tinha bom testemunho de todos os judeus que ali moravam, vindo ter comigo, e apresentando-se, disse-me: Saulo, irmão, recobra a vista. E naquela mesma hora o vi. E ele disse: O Deus de nossos pais de antemão te designou para que conheças a sua vontade, e vejas aquele Justo e ouças a voz da sua boca. Porque hás de ser sua testemunha para com todos os homens do que tens visto e ouvido. E agora por que te deténs? Levanta-te, e batiza-te, e lava os teus pecados, invocando o nome do Senhor. (Atos 22:12-16)
E disse-lhes Pedro: Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo, em remissão de pecados; e recebereis o dom do Espírito Santo. (Atos 2:38)
Vê-se que batismo e circuncisão estão intimamente
interligados. O que se diz da circuncisão tem de ser dito do batismo. No entanto,
a circuncisão em momento algum do VT tem a ver com “renascimento”, “remissão
dos pecados”, “garantia da fé” etc. Aliás, as pessoas circuncidadas nem mesmo
eram questionadas a respeito de sua fé, ou da falta dela.
A circuncisão era apenas e tão-somente um
sinal visível que servia de lembrança de que a graça de Deus foi concedida a
Abraão e à sua descendência. Ela não garantia, nem tinha nada a ver com, “salvação”.
A circuncisão era uma maneira de admitir os homens à comunidade daqueles que
conheciam a verdade sobre Javé, o único e verdadeiro Deus. Era um sinal
visível, mas que em momento algum poderia substituir o “coração circuncidado”,
ou seja, um coração crente nas promessas de Javé e na adoração que lhe era
devida. Em suma, a circuncisão era importante porque somente essa comunidade, a
dos israelitas, possuía a verdade, aquilo que São Paulo chamava de “oráculos de
Deus”, o caminho para a salvação, e era mediante a circuncisão que o membro
poderia ter acesso a tais oráculos. (Qual é, pois, a vantagem do judeu? Ou
qual a utilidade da circuncisão? Muita, em toda a maneira, porque,
primeiramente, os oráculos de Deus lhe foram confiados. Romanos 3:1-2).
O batismo tem, ou deveria ter, a mesmíssima
função: um sinal visível de inclusão. A pessoa sendo batizada poderá ter acesso
aos oráculos de Deus e ouvir a verdade naquela ecclesia. Em 1 Pedro
citada acima, o batismo é apresentado como um juramento de lealdade a Jesus
Cristo na batalha cósmica. Nesse trecho, São Pedro faz uma alusão tipológica
(analógica) com os anjos caídos relatados em Gênesis 6: eis por que as antigas
fórmulas batismais incluíam a renúncia a Satanás e seus anjos caídos.
De qualquer forma, o batismo nunca foi
entendido como um ritual que predispõe ou inclina a pessoa à salvação. Pelo
contrário, o que é realmente central à salvação é a fé, o arrependimento, a
decisão de fazer parte do exército de Jesus Cristo, e todos os demais elementos
(como se pode ver em Atos 2:38) se conectam perifericamente a tal postura.
Fonte: Michael Heiser, Baptism, YouTube, 2016.
11 de agosto de 2025
A ceia do Senhor
Nisto, porém, que vou dizer-vos não vos louvo; porquanto vos ajuntais, não para melhor, senão para pior. Porque antes de tudo ouço que, quando vos ajuntais na igreja, há entre vós dissensões; e em parte o creio. E até importa que haja entre vós heresias, para que os que são sinceros se manifestem entre vós. De sorte que, quando vos ajuntais num lugar, não é para comer a ceia do Senhor. Porque, comendo, cada um toma antecipadamente a sua própria ceia; e assim um tem fome e outro embriaga-se. Não tendes porventura casas para comer e para beber? Ou desprezais a igreja de Deus, e envergonhais os que nada têm? Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto não vos louvo. Porque eu recebi do Senhor o que também vos ensinei: que o Senhor Jesus, na noite em que foi traído, tomou o pão; e, tendo dado graças, o partiu e disse: Tomai, comei; isto é o meu corpo que é partido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente também, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue; fazei isto, todas as vezes que beberdes, em memória de mim. Porque todas as vezes que comerdes este pão e beberdes este cálice anunciais a morte do Senhor, até que venha. Portanto, qualquer que comer este pão, ou beber o cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma deste pão e beba deste cálice. Porque o que come e bebe indignamente, come e bebe para sua própria condenação, não discernindo o corpo do Senhor. Por causa disto há entre vós muitos fracos e doentes, e muitos que dormem. Porque, se nós nos julgássemos a nós mesmos, não seríamos julgados. Mas, quando somos julgados, somos repreendidos pelo Senhor, para não sermos condenados com o mundo. Portanto, meus irmãos, quando vos ajuntais para comer, esperai uns pelos outros. (I Coríntios 11:17-33)
E, quando comiam, Jesus tomou o pão, e abençoando-o, o partiu, e o deu aos discípulos, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho, dizendo: Bebei dele todos; porque isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que é derramado por muitos, para remissão dos pecados. (Mateus 26:26-28)
E, comendo eles, tomou Jesus pão e, abençoando-o, o partiu e deu-lho, e disse: Tomai, comei, isto é o meu corpo. E, tomando o cálice, e dando graças, deu-lho; e todos beberam dele. E disse-lhes: Isto é o meu sangue, o sangue do novo testamento, que por muitos é derramado. (Marcos 14:22-24)
E, tomando o pão, e havendo dado graças, partiu-o, e deu-lho, dizendo: Isto é o meu corpo, que por vós é dado; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, tomou o cálice, depois da ceia, dizendo: Este cálice é o novo testamento no meu sangue, que é derramado por vós. (Lucas 22:19-20)
No dia seguinte, a multidão que estava do outro lado do mar, vendo que não havia ali mais do que um barquinho, a não ser aquele no qual os seus discípulos haviam entrado, e que Jesus não entrara com os seus discípulos naquele barquinho, mas que os seus discípulos tinham ido sozinhos. (Contudo, outros barquinhos tinham chegado de Tiberíades, perto do lugar onde comeram o pão, havendo o Senhor dado graças). Vendo, pois, a multidão que Jesus não estava ali nem os seus discípulos, entraram eles também nos barcos, e foram a Cafarnaum, em busca de Jesus. E, achando-o no outro lado do mar, disseram-lhe: Rabi, quando chegaste aqui? Jesus respondeu-lhes, e disse: Na verdade, na verdade vos digo que me buscais, não pelos sinais que vistes, mas porque comestes do pão e vos saciastes. Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do homem vos dará; porque a este o Pai, Deus, o selou. Disseram-lhe, pois: Que faremos para executarmos as obras de Deus? Jesus respondeu, e disse-lhes: A obra de Deus é esta: Que creiais naquele que ele enviou. Disseram-lhe, pois: Que sinal, pois, fazes tu, para que o vejamos, e creiamos em ti? Que operas tu? Nossos pais comeram o maná no deserto, como está escrito: Deu-lhes a comer o pão do céu. Disse-lhes, pois, Jesus: Na verdade, na verdade vos digo: Moisés não vos deu o pão do céu; mas meu Pai vos dá o verdadeiro pão do céu. Porque o pão de Deus é aquele que desce do céu e dá vida ao mundo. Disseram-lhe, pois: Senhor, dá-nos sempre desse pão. E Jesus lhes disse: Eu sou o pão da vida; aquele que vem a mim não terá fome, e quem crê em mim nunca terá sede. Mas já vos disse que também vós me vistes, e contudo não credes. Todo o que o Pai me dá virá a mim; e o que vem a mim de maneira nenhuma o lançarei fora. Porque eu desci do céu, não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. E a vontade do Pai que me enviou é esta: Que nenhum de todos aqueles que me deu, eu perca, mas que o ressuscite no último dia. Porquanto a vontade daquele que me enviou é esta: Que todo aquele que vê o Filho, e crê nele, tenha a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia. Murmuravam, pois, dele os judeus, porque dissera: Eu sou o pão que desceu do céu. E diziam: Não é este Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe nós conhecemos? Como, pois, diz ele: Desci do céu? Respondeu, pois, Jesus, e disse-lhes: Não murmureis entre vós. Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia. Está escrito nos profetas: E serão todos ensinados por Deus. Portanto, todo aquele que do Pai ouviu e aprendeu vem a mim. Não que alguém visse ao Pai, a não ser aquele que é de Deus; este tem visto ao Pai. Na verdade, na verdade vos digo que aquele que crê em mim tem a vida eterna. Eu sou o pão da vida. Vossos pais comeram o maná no deserto, e morreram. Este é o pão que desce do céu, para que o que dele comer não morra. Eu sou o pão vivo que desceu do céu; se alguém comer deste pão, viverá para sempre; e o pão que eu der é a minha carne, que eu darei pela vida do mundo. Disputavam, pois, os judeus entre si, dizendo: Como nos pode dar este a sua carne a comer? Jesus, pois, lhes disse: Na verdade, na verdade vos digo que, se não comerdes a carne do Filho do homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis vida em vós mesmos. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia. Porque a minha carne verdadeiramente é comida, e o meu sangue verdadeiramente é bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim e eu nele. Assim como o Pai, que vive, me enviou, e eu vivo pelo Pai, assim, quem de mim se alimenta, também viverá por mim. Este é o pão que desceu do céu; não como de vossos pais, que comeram o maná e morreram; quem comer este pão viverá para sempre. Ele disse estas coisas na sinagoga, ensinando em Cafarnaum. Muitos, pois, dos seus discípulos, ouvindo isto, disseram: Duro é este discurso; quem o pode ouvir? Sabendo, pois, Jesus em si mesmo que os seus discípulos murmuravam disto, disse-lhes: Isto escandaliza-vos? Que seria, pois, se vísseis subir o Filho do homem para onde primeiro estava? O espírito é o que vivifica, a carne para nada aproveita; as palavras que eu vos digo são espírito e vida. Mas há alguns de vós que não creem. Porque bem sabia Jesus, desde o princípio, quem eram os que não criam, e quem era o que o havia de entregar. E dizia: Por isso eu vos disse que ninguém pode vir a mim, se por meu Pai não lhe for concedido. (João 6:22-65)
Os três evangelhos sinóticos tratam da Última
Ceia, mas o capítulo 6 do evangelho de João não trata da Útima Ceia. Boa
parte da confusão sobre transubstanciação, presença real de Cristo no pão e no
vinho etc. vem daí. Está claro, pelos trechos desse capítulo 6, que o cristão
não tem de comer Jesus Cristo, mas crer em Jesus Cristo. A crença em Jesus
Cristo era o pão e não o pão era Jesus Cristo (“A obra de Deus é esta: Que
creiais naquele que ele enviou”). Em outras palavras, o “comer” é crer, e não
comer algum alimento propriamente. A vida eterna não vem de um pão divinizado,
mas da crença em Jesus Cristo. A fome e a sede são saciados mediante a crença
em Jesus Cristo, não pelo consumo de algum alimento (a despeito de tal alimento
poder ou não ser transformado ou transubstanciado ou simbolizado ou o que quer
que seja em Jesus Cristo). O pão e o vinho são apenas analogias da fé em Jesus.
Quanto ao que diz o Apóstolo Paulo em I
Coríntios 11, o que recebemos da ceia é precisamente aquilo que os sacerdotes
do VT recebiam, aos quais o próprio apóstolo alude nos capítulos anteriores:
comunidade com Deus, o que nos causa uma grande gratidão, uma “ação de graças”
por nossos pecados terem já sido perdoados pela oferta sacrificial. Portanto, a
Santa Ceia é referida analogicamente pelo apóstolo como aquilo que não salva,
como aquilo que não contribui para a salvação, precisamente porque o que
salva é a morte e ressurreição de Jesus Cristo. Ademais, nota-se que a ceia não
era apenas um pequeno pedaço de pão ou um pequeno trago de vinho, mas uma
refeição completa, tão completa que alguns chegavam ao ponto de se empanturrarem
e se embriagarem.
Por fim, observa-se que o apóstolo conecta a comunhão à Última Ceia, e não a João 6 (lembremos que a Última Ceia é relatada por São João em seu evangelho apenas muito mais tarde, no capítulo 13) o que significa dizer que a única função da comunhão é comemorar (ou “rememorar”, ou “fazer em memória de”) a morte e ressurreição de Jesus Cristo até que Ele venha de novo (aliás, somente em Lucas ela é citada realmente). Em nenhum momento o apóstolo afirma, nem mesmo alude, a ideia de que a comunhão deva servir como veículo da graça salvífica ou qualquer outro tipo de “transubstanciação” ou “consubstanciação”. A maneira digna de se portar da ceia é não se empanturrar, não se embriagar, não provocar divisões e não humilhar os outros, sobretudo os pobres, simples assim. Quando o apóstolo diz para “discernir o corpo do Senhor” o que devemos entender é que aquela igreja, a igreja de Corinto, é o corpo do Senhor, e ninguém nela deve ser segregado, humilhado, desprezado etc. A ceia do Senhor não é para aplacar os famintos – para isso eles têm suas próprias casas –, de maneira que os menos favorecidos não sejam humilhados e escanteados por esses famintos. Eis tudo.
Fonte: Michael Heiser, The Lord's Supper, YouTube, 2016.
7 de julho de 2025
O que é o coração?
Seguem trechos selecionados de um
interessante ensaio de Echavarría sobre o tema.
* * *
Neste artigo propomos desenvolver o tema da
existência, natureza e relações da afetividade sensível e da afetividade
espiritual em Santo Tomás de Aquino.
É debatido e
discutível se Aristóteles chegou à descoberta completa da vontade como uma
potência especial e como a sede do livre-arbítrio. De qualquer forma, para Santo
Tomás a vontade abrange tanto o apetite pelo que ainda está por ser alcançado
(o que inclui, mas não se limita à vontade efetiva), quanto o afeto pelo que
está presente. Provavelmente a origem moderna da redução da vontade ao seu
aspecto efetivo e não afetivo seja Descartes.
Apetite e afeto são quase sinônimos na
linguagem de Santo Tomás. O aspecto definidor é esse caráter disposicional e
atitudinal do afeto. Afeto é uma maneira de se posicionar diante do bem, sendo
acidental à noção de apetite em geral, referindo-se a algo presente ou a algo a
ser feito ou alcançado.
O apetite é formal em relação à paixão
corporal. Isso abre a porta para a existência de movimentos verdadeiramente, e
não metaforicamente, apetitivos e afetivos em um nível não corpóreo, que é o da
afetividade espiritual. Se mais provas forem necessárias, temos a declaração de
Santo Tomás de que movimentos apetitivos negativos, como tristeza e medo,
merecem o nome de "paixão" mais do que outros movimentos apetitivos.
A razão é que nesses casos a razão da paixão no sentido estrito e
predicamental, que implica a remoção de uma forma pela introdução de outra, é
mais completamente cumprida. Em movimentos apetitivos positivos, no entanto,
como amor e alegria, parece haver uma perfeição, um aumento sem perda. Mas
ninguém pensaria que o amor ou a alegria não são afetos, ou mesmo que não são afetos
por excelência. A verdade é exatamente o oposto: o amor é afeto por excelência,
embora o nome paixão lhe seja menos apropriado do que tristeza, como já foi
dito. Portanto, “paixão” não é o mesmo que “afetividade”, e esta última pode
ocorrer de uma maneira muito específica na ordem espiritual, sem qualquer
substrato material ou paixão predicamental.
Além do apetite sensitivo, temos o apetite
intelectual. O fato de esses atos não serem paixões do corpo e, portanto, não
serem “sentidos” como movimentos do corpo, não significa que não haja
movimentos do apetite intelectual que possam ser chamados de “afetivos”. Santo
Tomás fala frequentemente de “afetos” da vontade, chamando-os mesmo pelos
mesmos nomes que as paixões do apetite sensível: amor, ódio, desejo, esperança,
medo etc.
Deus ama sem paixão. Deus ama da única
maneira que se pode amar: com afeto. Afeto é o aspecto formal das paixões como
movimentos apetitivos. Deus ama sem transmutação corporal, mas com afeto.
Embora em Santo Tomás a vontade seja a
potência que provoca o ato de livre-arbítrio, isso não significa que todo ato da
vontade seja de livre-arbítrio, nem uma escolha. O primeiro ato da vontade, que
é o fundamento até mesmo do ato de escolha, é aquele pelo qual desejamos a
felicidade (felicitas ou beatitudo). Assim como na ordem
cognitiva o primeiro conhecido é o ente e os primeiros princípios, e conhecemos
tudo através da noção de ente e dos primeiros princípios, instrumentos do
intelecto agente, na ordem apetitiva o primeiro é o apetite pela beatitude.
Ora, esse apetite não é livre, mas necessário, embora seja espontâneo e
interno, e não resultado de coerção. Isto significa que, em Santo Tomás, a
vontade não é definida pela liberdade, pelo menos não a liberdade de escolha,
mas pela referência ao bem.
Os atos da vontade relacionados ao fim são
todos de natureza claramente afetiva. Assim, para começar, a vontade simples (voluntas),
que é a reação do apetite intelectual à presença do bem, nada mais é do que um
ato de amor intelectual. A intenção do fim (intentio finis), que é o
apetite pelo bem proposto como fim, é um desejo intelectual. E, muito
claramente, a fruição ou gozo do fim (fruitio), que segundo Santo Tomás
corresponde primeiramente ao fim último e secundariamente aos outros fins, é o
mais alto tipo de alegria intelectual.
Atos de vontade que não se referem
diretamente ao fim, mas aos meios, podem parecer menos afetivos, e na realidade
o são quase por participação, na medida em que se referem ao fim. O uso, que é
o ato da vontade pelo qual os outros poderes são ativados, é certamente o menos
afetivo e o mais “eficaz” dos atos da vontade.
É o próprio Santo Tomás que chama a vontade
de “coração”.
A vontade move o apetite sensível em nós de
duas maneiras. Primeiramente, ativando os sentidos internos, para propor um
objeto atraente ao apetite sensível. Em segundo lugar, há uma influência direta
e imediata da vontade, que decorre do contato natural entre ambos os tipos de
poder: trata-se da redundantia, que pode ser traduzida como redundância,
transbordamento, superabundância, excesso. Os poderes influenciam uns aos
outros, pois compartilham a energia única da alma. Portanto, quando um deles
funciona intensamente, os outros relutam em agir, e isso se deve à redundância
de uns sobre os outros.
Quando os atos de afetividade espiritual
são muito intensos, eles afetam o apetite sensível, que acaba participando do
movimento da vontade.
A causa da redundância não reside apenas no
fato de que ambos os tipos de apetite residem na mesma alma, mas também e acima
de tudo no fato de que o apetite sensível emana da substância da alma por meio
do apetite intelectual. A afetividade sensível está enraizada no espiritual do
ponto de vista da emanação e do funcionamento integral da pessoa. Essa
conjunção é algo conhecido por um sentimento íntimo, que é a unidade radical da
consciência humana na autoposse habitual que a mente espiritual tem de si
mesma. O que nos leva de volta ao tópico da estrutura da alma à luz do modelo
trinitário: memória, inteligência e vontade. Tomada neste sentido, que inclui
radical e eminentemente o amor, a memória pode ser chamada também de “coração”
da pessoa.
Fonte: Martín Echavarría, El corazón: un
análisis de la afectividad sensitiva y la afectividad intelectiva en la
psicología de Tomás de Aquino, Revista Espíritu LXV, no. 151, p. 41-72, Barcelona,
Espanha, 2016, trechos selecionados.
26 de junho de 2025
A crítica do amor puro
Estai em mim, e eu em vós; como a vara de si mesma não pode dar fruto, se não estiver na videira, assim também vós, se não estiverdes em mim. Eu sou a videira, vós as varas; quem está em mim, e eu nele, esse dá muito fruto; porque sem mim nada podeis fazer. Se alguém não estiver em mim, será lançado fora, como a vara, e secará; e os colhem e lançam no fogo, e ardem. Se vós estiverdes em mim, e as minhas palavras estiverem em vós, pedireis tudo o que quiserdes, e vos será feito. (João 15:4-7)
Um dos temas principais, ou talvez mesmo o
principal, de Gustavo Corção é a inversão hierárquica entre otium (ócio)
e negotium (negócio). Isso porque otium remete à gratuidade, à “inutilidade”
de atos ligados às virtudes teologais. Embora devessem receber prioridade por
sua eminência e importância e, por conseguinte, as atividades ligadas ao negotium
a elas devessem se orientar, verifica-se no atual estágio civilizatório precisamente
o contrário. O ócio (atitude de contemplação e compreensão da gratuidade) está
ligado ao fim último do homem, à sua realização, à sua felicidade, ao seu
destino. Portanto, cabe ao homem entregar-se à ordem da graça calcada na experiência
de sua finitude, de seu acabamento, de seu, como diria Corção, desconcerto, “e
não tanto a conquista de uma competência ética, como queriam os estoicos e os fariseus
de todos os tempos”. O ócio seria “perda de tempo” porque não “produz” nada. Para
o homem contemporâneo, o homem do negotio, a força existencial da vida
contemplativa, o autoconhecimento, a excelência de vida, tudo isso é “inútil”.
Só aquilo que é lógico e “sério” é digno, o que é, curiosamente, rematada
loucura. Corção não deixa de denunciar que o sujeito da história, para o homem contemporâneo,
é o “homem exterior”, é a ideologia do progresso naturalista e liberal.
Já vimos essa ideia neste blog. É claro,
para a surpresa de ninguém, que Corção e a maioria dos católicos romanos
tradicionalistas culparão o nominalismo, a ausência de conteúdo ontológico, a
falta de “pertinência a um logos”. Mas é precisamente aí que reside o insight
mais interessante de Corção: pelo fato de pertencermos gratuitamente a
um fundamento metafísico, à ordem do Verbo, somente damos aquilo que recebemos.
Tal circularidade – como o filho que dá ao pai um presente comprado com o
dinheiro do próprio pai – é o senso de gratuidade ao qual Corção chama a
atenção, e eis que o “amor puro”, ou seja, o amor puramente humano, utópico,
gnóstico, nominalista, puramente agenciado pelo progresso “ao sabor do
pelagianismo moderno”, é falso.
Daí vem sua denúncia contra a moral dos pusilânimes
(“alma pequena”), que se contenta com virtudes fáceis e superficiais, com certo
comodismo ético, e aponta a necessária moral dos magnânimos (“alma grande”), a
moral dos que suportam a vocação humana à santidade. O homem contemporâneo foge
da monotonia da permanência, na qual encontra-se a liberdade espiritual e a
devida quebra do tempo produtivo, e vai ao encontro da monotonia da arte encomendada,
da monotonia funcional, maquinal, acelerada, da monotonia da indústria do
divertimento (eis a distinção que faz Roger Scruton entre arte e pseudoarte,
aquela ligada à imaginação livre e complacente, esta à fantasia para satisfazer
paixões).
Por fim, cabe citar a Chesterton, cuja
descrição da loucura talvez seja das mais sagazes:
Se alguns atos humanos podem ser considerados sem causa, são os pequeninos atos gratuitos e simples do homem normal: assobiar quando passeia, partir a grama com a ponta da bengala, bater com os calcanhares ou esfregar as mãos. É esse homem feliz que faz coisas inúteis; o doente não é bastante forte para esses desperdícios. São exatamente esses atos descuidados e sem motivos que o doido não pode compreender; porque o doido (como o determinista) vê geralmente causas demais em todas as coisas. Naquelas atividades gratuitas ele é capaz de descobrir urna significação conspiratória. Pensará que o vergastar a grama é um ataque à propriedade privada; e que o bater de calcanhares é um sinal transmitido a algum cúmplice escondido. Se o doido pudesse ficar um só instante descuidado ficaria curado. [A. Se um de nós quiser discutir com um doido, é extremamente provável que ele leve a melhor, porque em muitos pontos seu espírito é mais rápido do que o nosso, não estando preso a certas coisas que atrasam um bom julgamento. Ele não se embaraça com o senso de humour, com a caridade, ou com algumas certezas de experiência. Tornou-se mais lógico pela perda de certas fraquezas saudáveis. Realmente, a definição vulgar da insanidade mental é, nesse sentido, um equívoco. O doido é o homem que perdeu tudo, exceto a razão.
É por isso que Corção interpretava a infância,
aludida por Jesus Cristo em Mateus 18:1-4, com a integridade, não com inocência
ou castidade. É íntegra a pessoa que se abre a uma “sadia desorganização”, a
certo mistério ontológico, ao “ama e faze o que quiseres” de Santo Agostinho. O
menino humilde se submete ao mistério do “nascer da obra”, ao Logos. Ele
brinca, seus atos são gratuitos. É mais importante, portanto, chegar em casa do
que chegar no escritório, mais importante ouvir uma boa música e conversar com
amigos do que ser general do exército, engenheiro ou presidente da república. A
produtividade é uma blasfêmia contra o Logos.
Fonte:
Marcos Cotrim de Barcellos, Gustavo Corção: a crítica do amor puro,
Editora Permanência, Rio de Janeiro, RJ, Brasil, 2020.
10 de junho de 2025
Gnose, o sobrenome da rosa
Maldito o homem que confia no homem. (Jeremias 17:5)
Positivistas vs. herméticos (ou
racionalistas panteístas vs. místicos gnósticos, ou ockhamistas vs.
echartianos)
A Idade Média assistiu, em sua agonia, a um
grande debate filosófico religioso. Perdido o equilíbrio do tomismo, o homem
medieval caiu em dois extremos opostos. De um lado, estavam os humanistas
racionalistas de tendência panteísta cuja figura símbolo foi Frei Guilherme de
Ockham, um Édipo moderno. Tais humanistas cultuavam o Homem como supremo valor
e medida de um universo divino. Queriam destruir a sociedade medieval teocêntrica
e estabelecer uma nova cosmovisão antropocêntrica. Julgavam que, graças à
ciência e à técnica, o homem seria capaz de vencer todas as misérias do mundo, até criar uma era de grande prosperidade material e de completa felicidade
natural. Eles punham essa esperança no Homem, redentor de si mesmo, construtor
da Utopia. Do lado oposto, situavam-se os místicos de tendências gnósticas,
cuja figura mais característica foi, nessa época, Mestre Eckhart. Esses
místicos tinham uma visão extremamente pessimista da realidade. Para eles, o
mundo era intrinsecamente mau e irredimível por ser obra de um deus perverso,
distinto da Divindade. Entre a Divindade boa e o mundo, haveria um abismo
absoluto. Se a Divindade era o Ser, o mundo criado seria o Nada. Se o mundo das
criaturas era formado por seres, então a Divindade era o Nada absoluto.
Para estes místicos, a razão humana era má
e só seria desejável perder-se no Nada divino. O demiurgo, criador mau, dotara
o homem de razão para que esta o enganasse, apresentando-lhe o mundo como inteligível
e, portanto, como bom. A ciência e a técnica eram ilusórias. A redenção seria
obtida por uma fuga mágica do mundo real. A saída não estava numa Utopia
futura, e sim na volta ao Paraíso original. O homem não deveria pretender
construir um Reino neste mundo; pelo contrário, o Reino deveria ser o fruto do retorno
ao passado primevo. ao Éden original adâmico, o que só se poderia obter por uma
irrupção divina na História, nunca por força do intelecto.
* * *
Ser unívoco, equívoco e análogo
Com efeito, diante do ser, o espírito
humano pode adotar três posturas:
1 - Considerar que o ser é unívoco.
Quando tal ocorre, o homem cai no panteísmo, visto que, então, tanto uma pedra
quanto deus são igualmente seres. É a posição de Parmênides, na filosofia
antiga. Desta postura decorria a adoração do universo e o desprezo do
indivíduo. Tudo seria Deus. No mundo moderno, essa tendência panteísta, fruto
de uma visão unívoca e igualitária do ser, conduziu à adoração do Homem e da
Razão, último estágio da evolução. O cientificismo materialista e racionalista
do mundo atual tem aí suas raízes que historicamente principiaram com o
nominalismo de Ockham.
2 - Considerar o ser como equívoco.
Em consequência. afirma-se que o universo não tem nenhuma relação com o Ser de
Deus. Ora, como ensina São Paulo na Epístola aos Romanos (1,20), “as perfeições
invisíveis de Deus tornaram-se visíveis, depois da criação do mundo, e podem
ser compreendidas por meio das coisas criadas”. Afirmar que o ser é equivoco é
negar qualquer possibilidade de compreender algo de Deus através das criaturas.
Desemboca-se então no deísmo e. depois, no ateísmo.
Aprofundando-se essa segunda tendência,
pode-se chegar a afirmar que os seres criados são tão dissemelhantes da
Divindade que se poderia dizer que são contrários a Ela. Quando tal ocorre. o
homem cai na Gnose. Esta considera que o universo é essencialmente mau por
aprisionar as partículas da Divindade na matéria. nas malhas da Lógica e nas
cadeias da Moral. Tais partículas eram chamadas de Fünkenlein por Mestre
Eckhart, de Atmans pelos Brâmanes, de Éons pelos gnósticos dos
primeiros séculos do cristianismo.
O Deus criador do universo seria o demiurgo
mau. Ele teria dado a razão ao homem para que esta o enganasse. Compreendendo o
mundo, o homem julgá-lo-ia bom, porque inteligível. O homem quereria, por isso,
permanecer neste mundo, e não desejaria retomar à Divindade da qual procedera.
A libertação das partículas divinas aprisionadas na matéria exigiria a renúncia
à razão, além da destruição da materialidade e da violação de todas as leis
morais estabelecidas pelo Deus criador do universo. No extremo, desejar-se-ia a
destruição de todo ser, de toda existência. A Gnose é antimetafísica. Dessa
posição antirracional participam muitos e importantes movimentos do mundo
atual. Delas o nazismo irracional e antimetafísico é o exemplo mais trágico e
mais criminoso. Na chamada "Civilização Moderna", as nascentes deste
rio gnóstico se encontram em Mestre Eckhart.
3 - Considerar o ser como análogo.
Isto significa que as criaturas do universo são seres, mas não do mesmo modo
como Deus é Ser. Nas criaturas, pode haver vestígio, imagem ou semelhança de
Deus. Nas coisas materiais e irracionais, há apenas vestígio de Deus pela ordem
e bondade de seu ser; nos seres racionais e espirituais, há imagem de Deus,
porque, como o Criador, esses seres têm inteligência e vontade; neles, ainda,
pode haver semelhança, caso sejam obedientes à lei divina que os faz santos
como Deus. Tal é a explanação de São Boaventura.
* * *
O mundo para os gnósticos
Hugo de S. Victor e São Boaventura falam do
mundo como poema. São Boaventura ensina que Deus escreveu dois livros: o
primeiro foi o mundo; o segundo, a Bíblia. O mundo seria um livro porque Deus,
ao criar cada coisa, dizia uma palavra. "Faça-se a luz", disse Deus,
e a luz passou a existir. Assim, cada ser criado corresponde a uma palavra de
Deus, e o mundo é, então, um conjunto de palavras divinas encarnadas na
matéria. Ora, um conjunto tão grande de palavras forma um livro, e o Universo
é, portanto, um belíssimo poema.
A diferença entre os pensadores católicos e
os gnósticos a respeito do mundo está em que, para os gnósticos, o mundo oculta
labirinticamente a verdade e oferece mentiras enganadoras, enquanto para os
católicos, o mundo é um livro legível e facilmente inteligível. Para a Gnose, o
mundo é um livro labirinto enganador, concebido pela mente malvada e mentirosa
do demiurgo. Para o católico, o mundo não só fala, mas proclama e canta um hino
à glória de Deus. E só não ouve esse cântico, só não compreende esse poema,
quem não tem l'occhio chiaro e l'afetto puro, como diz Dante.
A questão dos universais
Desde a Grécia antiga até o fim da Idade
Média, o problema dos universais suscitou veementes polêmicas. Como se sabe, universais
são conceitos que podem ser aplicados a todos os indivíduos de uma mesma
espécie. Por exemplo, o conceito de rosa engloba todas as rosas existentes. ou
que possam existir, em qualquer tempo.
O que se tem discutido é em que sentido, ou
como existem os universais. Com relação a isso. formaram-se três correntes mais
importantes:
a) o realismo;
b) o realismo moderado;
c) o nominalismo.
Em O Nome do Rosa quase não se fala
da posição do realismo moderado. que é a posição tomista assumida pela Igreja,
face à questão dos universais. No tempo em que ocorreram os fatos na abadia do
romance de Eco, as posições filosóficas mais em voga, e que se digladiavam em
todas as universidades e mosteiros, eram a posição platonizante, do realismo, e
a do nominalismo. O realismo de tom platônico era defendido pelos místicos
gnosticizantes seguidores de Mestre Eckhart. O nominalismo era partilhado pelos
franciscanos seguidores de Guilherme de Ockham e por todos aqueles que tendiam
para posições empiristas, racionalistas e panteístas.
Eco apresenta o debate dos universais como
se houvesse apenas essas duas correntes (a mística e a racionalista) debatendo
a questão dos universais. Os tomistas nem aparecem. Eco leva o leitor comum a
julgar que a posição mística e gnóstica é a da Igreja Católica, o que é uma falsificação histórica.
Para que o leitor tenha ideia do que se
debatia e do que se trata em O nome da Rosa, a respeito dos universais,
faremos uma breve exposição dessa questão filosófica, procurando salientar a que consequências levava cada uma das soluções aventadas.
a) A doutrina do realismo filosófico
sobre os universais
Para Platão e para seus seguidores, os
universais teriam existência real fora da mente, no mundo superior das ideias.
Esse mundo das ideias seria perfeito, divino e inteiramente desprovido de
matéria. Em nosso mundo, a forma ou ideia de um ente - comum a todos os
exemplares individuais de sua espécie - estaria atualmente aprisionada nos
seres materiais individuais.
Explicavam os platonizantes que a ideia de
rosa - o universal rosa - é uma só para todas as rosas individuais. Essa ideia
não é só única e universal, como também é absolutamente perfeita, visto que os
defeitos possíveis de uma rosa existem somente na matéria. É apenas a rosa
concreta que murcha, é danificada ou morre. O conceito universal jamais se
deteriora, envelhece. murcha ou morre. O universal é perfeito e imutável. A
ideia universal goza então de uma perfeição tal que os platónicos a
consideravam divina. Enquanto a rosa individual. concreta, material fenece e
perece, o universal rosa permanece para sempre o mesmo, perfeito e imutável.
Concluíam disto os filósofos de tendência
platônica, que a matéria era a fonte de todas as imperfeições e de todo o mal.
Era na matéria, causa da individuação, que estava a origem do mal. Estar neste
mundo material era ter as ideias divinas aprisionadas no cárcere da matéria. Só
com a libertação da matéria é que seria possível fazer as ideias universais
divinas retornarem ao pleroma divino de onde tinham caído.
Essa visão platônica era gnosticizante,
como bem o demonstrou Simone de Pètrement.
Para os gnósticos, há uma oposição radical
entre espírito e matéria. O espírito é divino. A matéria, produzida pelo
demiurgo, é sempre má. Na constituição dos seres a forma ideal é, pois, divina,
enquanto a matéria é seu cárcere maléfico. Como a matéria é a causa da
individuação, para o gnóstico ser indivíduo ou pessoa é um mal. O bem está na
absorção ou perda de todo eu no Todo divino, que coincide dialeticamente com o
Nada absoluto.
Essa posição de divinização do universal e
condenação de todo ser individual foi defendida por Mestre Eckhart e por todos
os sectários gnósticos do fim da Idade Média, entre os quais os Irmãos do Livre
Espírito. Não queremos dizer que todos os filósofos que defenderam o realismo,
em qualquer tempo, tenham sido, de fato, gnósticos. Queremos dizer, isto sim,
que o realismo, levado às suas últimas consequências, chega à Gnose.
A escolástica admitia a parcela de verdade
em que Platão se fundara para cair nesse erro. Com efeito, as essências criadas
por Deus existiram primeiramente na Inteligência ou Verbo de Deus como ideias
exemplares. Assim como um artista primeiro tem ideia do que vai esculpir, e,
depois, esculpe o que ideou, assim também a Sabedoria de Deus concebeu o que ia
criar. Por isso, Deus, ao criar, dizia antes uma palavra. Por isso também se lê
em São João que “tudo foi feito pelo Verbo e sem ele nada foi feito” (Jo 1,3).
b) O nominalismo
No final da Idade Média, surgiu uma
corrente de pensamento diametralmente oposta ao realismo platônico. Roscelin e,
um tanto, Abelardo tinham-na preparado, mas ela só tomou todo o seu maior
desenvolvimento com a filosofia de Guilherme de Ockham, retratado por Eco na
figura de Frei Guilherme de Baskerville.
Para o nominalismo, os universais são meros
nomes. Nenhuma realidade corresponderia a um conceito universal, que só
existiria na mente. Os universais não se realizariam de modo algum nas coisas.
São apenas obras do espírito que as palavras exprimem. Assim, “rosa” é apenas
um nome. O nome “rosa” é um mero flatus vocis. A única realidade é a
rosa individual, diferente de todas as demais rosas existentes.
Ockham baseou-se nas ideias de Petrus
Hispanus, expostas no livro De supositionibus. Suposição é a posição que
um termo ocupa numa frase, no lugar de outras coisas, diz Ockham. Podemos distinguir
três tipos de suposição:
1 - Suposição material existe quando
o termo empregado numa frase designa apenas a própria palavra usada. Na frase: “a
rosa é uma palavra de quatro letras”, a palavra rosa é tomada em si
mesma, como termo escrito ou falado.
2 - Suposição pessoal existe quando
o termo usado numa frase designa um ente individual concreto e determinado. Por
exemplo, na sentença: “a rosa está se abrindo”, o termo rosa está no
lugar de uma determinada rosa individual concreta, à qual se faz referência.
3 - Suposição simples ocorre quando
o termo utilizado designa, não um ser individual concreto, mas o conceito
universal de um ser. É o que acontece com o termo rosa, na frase: “a rosa é uma
flor”.
Conforme essa teoria, a palavra rosa,
como universal, indica apenas um conceito mental, que não existe, de fato, na
realidade. Não existindo os universais, o homem só poderia conhecer as rosas
individuais, e, o que se conhece de uma rosa não pode ser aplicado a nenhuma
outra rosa.
Como já ensinara Abelardo, no século XII,
Ockham dizia que só o conhecimento do singular é verdadeiro, pois o homem tem
dele um conhecimento intuitivo, direto. Assim, só o particular seria real. A
essência equivaleria à existência.
Daí se concluía que o verdadeiro
conhecimento não pode ser teórico, e sim prático e experimental. É desses
pensamentos que vai nascer o experimentalismo, e o cientificismo do mundo
moderno.
Isto, a longo termo, acaba por negar não só
a existência das essências e dos universais, como também o valor de qualquer
conhecimento teórico racional, pois “é extremamente difícil para uma tal
doutrina explicar, a partir desses blocos individuais, sem nada em comum, como
o pensamento pode formar as noções de gêneros e espécies”, como diz Etienne
Gilson.
[...]
Assim, a negação das essências e dos
universais reduzia o ockhamismo a um empirismo e a um experimentalismo radicais
que comprometiam toda noção de relação.
Isto conduz ao problema da causalidade, pois
entre uma causa e um efeito o que existe é uma relação. A relação é um acidente
que não está num ser concreto, não é propriamente um ens in allio [ente
em outro]. Ela está “entre” os seres que se relacionam. Para Ockham, que só
aceitava o individual concreto, a relação não tinha nenhuma realidade, a não
ser a dos termos. Por isso ele negava a relação de causa e efeito. Argumentava dizendo
que a relação de causa e efeito não pode ser anterior ao efeito, já que a
relação supõe a existência dos dois termos; nem podia ser simultânea, porque o
efeito é consequência dela; nem podia ser posterior, pois que seria preciso
dizer então que ela se produz a si mesma. O único meio de provar que uma coisa
é causa de outra seria, portanto, a experiência, raciocinando com a presença ou
com a ausência da causa e do efeito.
[...]
Ockham em sua obra Centiloquium,
declara que a própria existência de Deus não pode ser provada. A existência de
Deus, assim como sua unicidade, sua infinitude, sua onisciência, seriam
questões às quais se deveria dar apenas uma adesão de fé. Desse modo, Ockham
cai no fideísmo, retirando à sua teologia qualquer apoio racional.
[...]
Também a existência da alma racional no
homem só poderia ser aceita pela fé, pois a razão não conseguiria prová-la. Por
onde, o ceticismo de Ockham raia pelo materialismo.
A ordem do mundo, como toda ordem, consiste
em uma relação entre seus elementos componentes. Ora, negando a existência real
das relações, Ockham não poderia aceitar a existência de ordem no mundo e muito
menos que esta ordem tivesse fundamento na própria natureza de Deus que fez o
universo à sua imagem e semelhança. Para Ockham, a suposta ordem posta por Deus
no mundo - se existe - é completamente arbitrária. Deus poderia ter feito o
universo em qualquer outra disposição. Noutras palavras, não haveria fundamento
racional objetivo para a ordem do universo.
Em consequência, a ordem moral também não
era considerada objetiva. Uma ação seria pecaminosa apenas porque Deus a
proibira, nada havendo nela de objetivamente mau. Se Deus tivesse ordenado o
pecado, ele seria bom. A ordem moral, portanto, poderia ser totalmente
invertida pelo arbítrio divino. Mais ainda. Até mesmo sob a ordem moral atual,
Deus poderia ordenar a alguém que a violasse, sendo então tal ato virtuoso. O
livre querer de Deus seria tão absoluto que poderia inverter a ordem moral.
Esse livre querer de Deus não se fundamentaria na essência divina e, por isso,
não teria nenhuma objetividade.
Desse relativismo moral os ockhamistas logo
deduziram a negação de toda ordem moral, tendo alguns chegados a dizer que a
lei de Deus era a única causa do pecado. [Aí admitiam então haver causa...]
Outros defenderam o mais radical antinomismo, muito semelhante ao da Cabala e
ao das seitas gnósticas.
c) O realismo moderado
A terceira posição da filosofia medieval
face à questão dos universais é a do realismo moderado, defendida por Santo
Tomás e adotada pela Igreja.
O universal nem é um mero nome, como
afirmavam os nominalistas, nem tem existência num mundo imaterial de puras
ideias, como diziam os platônicos e como queriam os gnósticos.
Para os defensores do realismo moderado -
em particular para Santo Tomás – é preciso distinguir, no espírito humano dois
universais, conforme o aspecto sob o qual se considera o universal:
1 - Universal direto, ou seja, um tipo de
ser atribuído de modo unívoco a muitos seres individuais. Este universal direto
é obtido pela abstração das notas individuais de cada ser concreto. O universal
então acrescenta, à ideia do tipo de ser que ele expressa, um estado de
abstração e de não individuação, de universalidade. É o universale post rem [universal
após a coisa], existente em nossa mente por abstração.
2 - Universal reflexo que tem esse nome
porque só é percebido por nossa inteligência após a comparação entre o
universal direto, que havíamos concebido, com as coisas em que o aplicamos e
nas quais ele se realiza de modo mais ou menos perfeito. A esse universal
reflexo se dá também o nome de universal formal.
O universal direto se acha nas coisas
quanto ao que ele expressa, não quanto ao modo com que o expressa.
Em cada ser concreto, há o indivíduo único,
identificado por suas notas particulares individualizantes, numa essência que
permite que se manifestem nele todas as atividades existentes em todos os seres
de sua espécie. É esta essência que é objeto de nosso espírito sob a forma de
uma mesma ideia, aplicável a todos os indivíduos da mesma espécie, e que
exprime o que eles são, independentemente de suas notas individualizantes.
Desse modo, podemos considerar uma essência
de três modos diversos: (a) em si mesma, com suas notas constitutivas, tal como
ela existe na mente divina, corno ideia exemplar, eterna em Deus. É o universale
ante rem [universal antes da coisa], isto é, o universal que Deus concebeu
antes de criar uma coisa. É a este universale ante rem que Platão deu
existência no mundo das ideias, como seres divinos, fora da Sabedoria de Deus. (b)
a essência enquanto existente em um indivíduo qualquer em estado concreto é o universale
in re [universal na coisa]. (c) a essência enquanto concebida em nosso
espírito, abstrata e universa. É o universale post rem.
O universal direto (universale post rem)
tem existência real em nossas mentes, enquanto conceito abstrato, e existe nas
coisas concretas, enquanto forma substancial (universale in re). Por
essa razão, nos é possível conhecer o que as coisas são. Tendo o homem a ideia
universal “rosa” em sua mente, ao ver uma rosa real, ele pode conhecer que o
conceito de rosa, existente em sua mente, existe também, formalmente na rosa
concreta, individual.
O universal reflexo não se encontra
realizado nem sequer nas coisas enquanto o que ele expressa, pois ele é um
simples ser de razão, que tem, entretanto, fundamento nos seres individuais
reais, isto é, a sua semelhança, que permite a nosso espírito agrupar seres
individuais em uma mesma espécie.
Esta, em termos breves, a teoria do
realismo moderado, que evita quer o materialismo, a que conduz o nominalismo,
quer a Gnose, termo final do erro do realismo.
* * *
O impulso psicológico básico da gnose e
do panteísmo
Qual é essa raiz comum da qual brotam os
sonhos racionalistas de construir a Utopia e os delírios irracionais da magia
alquímica para vencer a morte e todos os males que afligem o homem? Essa raiz é
a inconformidade com as limitações do ser humano, e particularmente com
as penas que o punem. O panteísta racionalista e o gnóstico
irracionalista desejam desesperadamente redimir o homem por seu próprio
esforço, usando de meios naturais. Esse desejo impotente e desesperado os faz
odiar a realidade tal qual ela é. Os faz odiar também o Criador e a criação
feita à sua imagem e semelhança. É no ódio a Deus criador e ordenador que a
Gnose alógica e o panteísmo racionalista comungam e dialeticamente se
identificam. O panteísmo racionalista quer construir a Utopia. A Gnose quer a
realização mágica do Milênio.
Fonte: Orlando Fedeli, Nos labirintos de Eco, Flos Carmeli Edições, São Paulo, SP, Brasil, 2023, trechos selecionados.
6 de junho de 2025
A psicologia da fé
O primeiro a notar aqui é que a fé é um ato
da inteligência. Não, não é um ato do “coração”, do “sentimento”, da
“intuição”. A fé admite um ensinamento, um fato, uma verdade com base no
testemunho de alguém.
O segundo a notar aqui é que a fé é um ato
da vontade, ou seja, é algo sob nossa responsabilidade moral.
Vejamos com alguns detalhes como opera a fé
sob ambos os pontos de vista.
Inteligência
Os preliminares lógicos da fé se sustentam
(1) na filosofia, que demonstra a existência de Deus e (2) na história, que
apresentam os fatos ligados à revelação de Jesus Cristo. São os chamados preâmbulos
da fé. A fé é, portanto, é o elemento necessário para atingir certas
realidades distantes no tempo ou estritamente sobrenaturais. É a única via que
se abre à inteligência humana durante a sua peregrinação terrena.
No entanto,
[i]nerente à nossa natureza e, por isso, sensível em todas as gerações, é esta inércia da matéria que não se eleva espontaneamente à região das realidades espirituais; é esta inclinação para a terra e os seus bens, que se nos impõem pela sua indispensável necessidade e nos atraem pela tangibilidade de suas seduções sensíveis. Toda a atividade intelectual superior encontrará sempre, neste invólucro material que é a metade menos nobre de nós mesmos, uma oposição que é possível vencer, mas não é possível eliminar. Estas dificuldades psicológicas que embaraçam o surto da inteligência para as esferas elevadas do pensamento puro, agravam-se, no caso particular da instrução religiosa, com a perspectiva do descobrimento de novos deveres, — ameaça contínua à livre e ilimitada satisfação das paixões.
Franca explica que é o próprio Deus quem
auxilia o homem na ascese intelectual – eis a virtude teologal em ação.
Vejamos:
Realizar a nossa unidade interior é realizar a nossa plenitude. Um ser vale o que vale a sua unidade; cindi-lo é destruí-lo: unificá-lo é dar-lhe o máximo de estabilidade e de perfeição. Enquanto não nos elevamos acima da multiplicidade criada, estamos divididos, dissipados, dispersos. Na ordem ontológica. Deus é o princípio de toda a unidade, como de toda a realidade. Ele, Causa Primeira de tudo o que é; Ele, Fim para o qual tudo tende; alfa e ômega do universo. Na ordem psicológica e moral, começamos o nosso trabalho de unificação quando refletimos a ordem da realidade e entramos a ver, julgar e agir através da luz que vem de Deus. Mais bem conhecido e mais amado, Deus vai aos poucos concentrando as nossas ideias e as nossas aspirações na unidade de sua paz infinita. Através das vicissitudes da multiplicidade terrena este recolhimento unificador é a melhor preparação à felicidade definitiva das inteligências fixas na intuição beatífica da Suprema Verdade, Plenitude de todas as perfeições. É o significado mais profundo da palavra divina de Cristo: haec est vita aeterna ui cognoscant te solum Deum verum et quem misisti Jesus Christum [e a vida eterna é esta: que te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste – João 17:3].
Quais as disposições que podem induzir a um
desequilíbrio no uso do intelecto? Em primeiro lugar, a unilateralidade,
ou seja, a especialização intensa e prematura a determinado objeto em
detrimento de outros. Por exemplo, alguém que se hiperespecializa em matemática
perde as delicadezas de uma fina análise psicológica. Como diz Franca, são
“olhos que vivem sempre abertos à luz meridiana e que acabam por não discernir
os objetos no claro-escuro de uma penumbra”. É por isso que muitos, ao se
depararem com os preâmbulos da fé, têm seu espírito recolhido àquilo que
transcende o domínio dos sentidos, como é o caso da existência de Deus, a
questão do ser, a analogia entis e outros temas metafísicos. A
simplicidade das deduções matemáticas e dos métodos científicos não se aplica
aqui. Como dizia Aristóteles: “É próprio de uma inteligência disciplinada não
exigir uma evidência de outra espécie que a permitida pela natureza do objeto
estudado”. A inteligência disciplinada, portanto, apresenta perfeita docilidade
ao real em toda a riqueza de sua complexidade.
Em segundo lugar, há o preconceito.
Por exemplo, quantos não partem de pressupostos cientificistas quando adentram
questões metafísicas? A ciência, em vez de servir de observação serena dos
fatos, torna-se uma ferramenta de seleção e interpretação tendenciosa imposta
pela tirania do preconceito. A negação do sobrenatural não é resultado de
nenhuma investigação científica, mas a orientação preliminar a qualquer
investigação.
Vontade
É no domínio da vontade que reside o maior
risco de cairmos em enganos. Isso ocorre porque o movimento da vontade pode
dar-se não pela evidência objetiva proporcionada, mas pela atração de um interesse.
O assentimento da vontade ao interesse figura-lhe um bem: estamos no campo das
simpatias e aversões, do orgulho, da vaidade, do respeito social, das
complacências ambiciosas, da dificuldade em romper opiniões bem acolhidas no
meio, da família, do grupo profissional etc. Como diz Leonel Franca, afirmamos
mais do que vemos.
Mas então qual a “função” da vontade no
contexto da fé (ou na adesão a qualquer verdade)? A primeira e mais simples é
determinar a inteligência ao exercício de sua atividade. Em outras palavras,
estamos falando da atenção.
No entanto, sabemos perfeitamente que há
verdade que pelo seu objeto complexo ou pelo caráter elevado e abstrato não se
apresentam ao espírito com evidência avassaladora. Se estas verdades têm
repercussões práticas importantes cumpre ainda ajuntar à boa educação do
espírito as retas disposições do coração. A influência das paixões e das más
inclinações morais podem obnubilar a luz dos argumentos e impedir a visão
serena da realidade. Eis que, além da atenção, é preciso o concurso da retidão
moral sob pena de a adesão intelectual ser sobrepujada por dúvidas
imprudentes – chamam-se assim por elas darem mostra de pouca sabedoria. A
vontade se enfraquece e a inteligência se extravia nos meandros de labirintos.
É por isso que, como diria Platão, é
preciso ir à verdade com toda a alma, pois nota-se que o principal obstáculo à
fé não está nas dificuldades intelectuais propriamente, mas nos sacrifícios que
ela impõe. Quem não ama a verdade não merece conhecê-la.
Quais as disposições que podem induzir a um
desequilíbrio no uso da vontade? Em primeiro lugar, o orgulho. Como diz
sabiamente Franca: “É através de um programa de viver que optamos por uma
fórmula de pensar”. Se Platão está certo no que disse, ou amamos a verdade
acima de tudo, inclusive da vida, ou amamos a nós mais que a verdade. Em outras
palavras, ou amamos a Deus até ao desprezo de si, ou amamos a nós até ao
desprezo de Deus. No homem observamos o orgulho de duas formas: (a) estima
excessiva do próprio valor (“dignidade pessoal”) e (b) desejo imoderado da
estima dos outros (“sociabilidade”). De qualquer forma, nota-se a intolerância
de qualquer superioridade e, por conseguinte, o desprezo de qualquer
inferioridade. Como solucionar a sensação de superioridade (ou inferioridade)
que sentimos ante o próximo? Franca propõe contemplar o ser humano não
acidentalmente, mas substancialmente, e, a partir daí, extrair seu devido
“lugar ontológico” ante o Ser. Vejamos:
Há uma ordem essencial que põe os seres em seu lugar e os liga pela necessidade de relações indestrutíveis na harmonia do Universo. Como toda a criatura, o homem é, de sua natureza, dependente. A existência não a tem ele de si mesmo, nem de si mesmo a pode conservar ou prolongar-lhe a duração; recebeu-a de outrem. A essência de ser racional, com as suas exigências e finalidades, não a construiu ele; outro é o seu Autor. O universo que o envolve com a variedade das naturezas, regidas por leis próprias e orientadas para fins determinados, tão pouco dele depende na sua existência e na sua teleologia. O homem não pode crer ou aniquilar um átomo nem alterar a menor das leis naturais; só lhe é dado utilizar as energias cósmicas para os seus fins humanos, mas ainda assim obedecendo-lhes aos princípios que regem o seu jogo natural: naturae non nisi parendo imperatur [só se governa a natureza obedecendo-a], dizia Bacon. [...] Eis o lugar essencial do homem na hierarquia dos seres. Aceitá-lo voluntariamente é ser humilde. Nos seus mais altos fundamentos ontológicos, a humildade é luz na inteligência e justiça no coração. A humildade é, pois, a expressão da verdade e da ordem.
Se Deus é o Primeiro Princípio e o Fim
Último, o Alfa e o Ômega, então fica evidente que o orgulhoso, pelo dinamismo
interno de seu próprio desregramento e cegueira, tende a subtrair-se à própria
lei e a desviar-se do próprio fim. Ele não reconhece nenhuma autoridade que não
seja seu próprio coração. Franca não deixa de notar, como o vimos em Orlando
Fedeli em algumas ocasiões (aqui e aqui),
a tendência das filosofias e religiões de separarem os seres humanos em grupos
ou extratos, dentro dos quais há um escol de iniciados detentores de uma
revelação esotérica e uma massa fraca e ignóbil condenada à ilusão e ao erro. É
assim em Plotino, Marco Aurélio, Epiteto, nos gnósticos, Voltaire, Nietzsche.
Em Cristo, no entanto, as almas se distinguem por sua elevação moral.
Lembre-se: o orgulho surge quando nos
esquecemos de que somos dependentes, na existência e na finalidade, de um
Primeiro Princípio.
Em segundo lugar, a vontade é
desequilibrada pela sensualidade. Enquanto consciência de uma harmonia
vital, o prazer em si é um bem. É como se o prazer fosse um atestado da
racionalidade que há por trás dele, mais ou menos como o perfume de uma flor que
atesta sua beleza e sua vitalidade. Mas assim como o perfume de uma flor pode
enganar ocultando uma flor doente, o desfrute dos prazeres da sensualidade pode
ocultar uma personalidade doente. A ordem normal dos valores deveria submeter a
sensualidade à potência racional do homem, mas quando o egoísmo se expressa
brutalmente se vê o contrário: a desordem se manifesta na escravização da razão
às potências sensitivas. O homem perde as prerrogativas da humanidade.
O mecanismo básico da sensualidade
desordenada é diminuir a capacidade de dedicação e estreitar os horizontes da
vida. A busca desordenada de prazeres forçosamente projeta os sentidos para
fora e acabam por projetar para dentro da alma a agitação e a instabilidade fugaz
das emoções associadas aos sentidos. O ambiente indispensável ao trabalho
intelectual fecundo e elevado é destruído pela tal agitação e instabilidade. A inteligência,
se entra em atividade, é para atender, como serva humilhada, aos ditames da
sensualidade. Hipertrofia-se o animal em detrimento do racional. É claro que indivíduos
assim podem alcançar grandes glórias em suas áreas de atuação, mas aqui não cabe
vaticinar que todo individuo centrado na sensualidade será um fracassado ou
algo assim. Mas, sim, cabe vaticinar que todo indivíduo centrado na
sensualidade terá seu potencial diminuído, minado, arruinado.
Por fim, lembremo-nos de que a experiência
de uma vida moralmente ordenada uma maior assimilação, ou seja, uma maior semelhança
natural e ontológica entre Deus e o homem.
Fonte: Leonel
Franca, A psicologia da fé, Calvariae Editorial, Sertanópolis, PR,
Brasil, 2019.