14 de maio de 2024

Para a reforma do homem interior


Porque [o homem] vendo-se abandonado a si mesmo, assim que teve a experiencia do bem e do mal, sentiu sua pobreza; e este sentimento o levou a querer imitar, mas por uma imitação desregrada e plena de cegueira, a grandeza, a ciência e a beatitude divina que tinha experimentado, às quais estava unido por aquele estado admirável de glória, de luz e de felicidade. O homem torna-se escravo destas três paixões desordenadas, que lhe inspiram sem cessar um desejo ardente de reparar o prejuízo que lhe ocorreu e de recuperar a felicidade desprezada, buscando assim o consolo de sua infelicidade na sombra destes grandes bens, nos quais ele tinha uma verdadeira e perfeita alegria. [...] Certamente não há nenhuma outra espécie de tentação que não esteja incluída dentro da extensão do orgulho, da curiosidade ou dos prazeres sensuais.

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Já que o espírito do homem, infelizmente, perdeu os sentimentos das delícias interiores, dissipou-se nas exteriores, esforçando-se para reter, ao menos pelos sentidos corporais, que são os mais baixos e mais grosseiros de suas potências, aquele prazer celeste que o abandonou, ou de recompensar a perda do prazer celeste com outros prazeres. [...] E assim este movimento desordenado forma nuvens em nosso espírito, não nos capacitando a julgar senão de modo incerto, já que é a necessidade que temos de nossos sentidos que nos conduz ou o encantamento enganador da volúpia que nos arrasta. A alma que é carnal se favorece nesta incerteza, a fim de que satisfaça a paixão pelo prazer somente sob a aparência especial da necessidade.

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É a esta curiosidade sempre inquieta, que foi chamada por este nome devido ao vão desejo que ela tem de saber, que dissimulamos com o nome de ciência. [...] [A] volúpia carnal não tem por fim senão as coisas agradáveis, ao passo que a curiosidade encaminha-se na direção daquelas que não o são, comprazendo-se em procurar, experimentar e conhecer tudo aquilo que ignora. [...] Disto veio o circo, o anfiteatro e toda a vaidade das tragédias e comédias; disto veio a investigação dos segredos da natureza, que não nos dizem respeito de modo algum, que é inútil de conhecer e que os homens só os querem saber unicamente para sabê-los. Disto veio aquela execrável curiosidade da arte mágica, da qual provêm aqueles movimentos de tentar Deus dentro da religião cristã, com os quais o diabo inspira os homens, levando, mesmo as pessoas santas, a solicitar de Deus milagres somente pelo desejo de vê-los e não pela utilidade que deles deve nascer.

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[O orgulho] acontece pelo fato de o homem comprazer-se em triunfar antes do tempo, com se a tivesse vencido plenamente, ao passo que não há nada que possa dissipar suas últimas sombras senão a luz do dia da eternidade. [...] A razão [do orgulho ser o último vício que a alma vence] é que há um desejo de independência gravado no fundo da alma e escondido nos recônditos mais ocultos da vontade, pelo qual ela se compraz de só existir para si e não estar submetida a nenhum outro, nem mesmo a Deus. [...] Sendo visível que [o homem] não desejou outra coisa ao pecar exceto não ser mais dominado por ninguém, já que a única proibição de Deus, que tinha a dominação sobre ele, devia impedi-lo de cometer o crime que cometeu. [...] E assim como os romanos quiseram libertar sua pátria, isto é, libertarem-se de si mesmos da dominação de seus primeiros reis e, em seguida, tornarem-se senhores de outros povos, não considerando ser nada tão vergonhoso quanto obedecer nem tão glorioso quanto comandar, do mesmo modo todos os homens em geral, tendo sacudido o jugo desta verdade e deta vontade onipotente, comprazem-se inicialmente de serem senhores de si mesmos e cada um deles deseja em seguida, se possível, ser o único senhor de todos. [...] É por isso também que Deus permite àqueles que se esforçam para servi-lo humildemente que não tenham sempre o poder de executar, fazer ou cumprir uma boa obra, porém, encontrando-se tanto na luz quanto nas trevas, no prazer ou no desgosto, no ardor ou no resfriamento, saibam que o conhecimento e a força que eles têm nas ações virtuosas não são um efeito de seu próprio poder, mas um dom da liberalidade de Deus, e que pela vicissitude perturbadora e pela calma do espírito eles se curem da doença da vã glória. [...]

[I]sso fez o Apóstolo dizer, com grande razão: Com dificuldade o justo será salvo. [...] O engano e o abatimento que lhes deixam as dificuldades que sentem no combate lhes servem para aspirar com mais ardor em direção à graça.

Fonte: Cornelius Jansenius, Discurso da reforma do homem interior, Editora Filocalia, São Paulo, Brasil, 2016.