11 de janeiro de 2018

Os princípios de uma vida de oração



As correntes que escravizam o homem se tornaram tão comuns, tão “normais”, que já nem mais nos damos conta delas. As paixões se tornaram inimigos tão familiares e banais que o homem já não sabe mais quais são os traços característicos desses inimigos, sua natureza opressora, e daí os passa a tratar como amigos. O inimigo, que trava uma guerra incessante contra o homem, passa a fazer “parte da estrutura” e portanto já não é mais detectado; sua existência passa a ser até mesmo negada, a ser “racionalizada” em um contexto psicológico de maneira que se torna algo irreal, distante, remoto. Desta maneira, a batalha espiritual se transforma em uma não-batalha, ou seja, em derrota; ora, se não admitimos nosso estado então não nos preparamos para a luta com a devida seriedade e vigor – e eis que nossas paixões triunfam, o pecado triunfa, e o pleito do diabo torna-se cada vez mais fundamentado.

A tarefa que temos pela frente é grande: olhar para dentro, para as profundezas de nosso coração, e aí descobrir as âncoras que nos mantêm preso às partes mais profundas do mar, e pela graça de Cristo lutar contra elas. Somos chamados a trabalhar, mediante o poder redentor do Senhor encarnado, para derrotar aquilo que busca nossa destruição.

O mundo porém nos chama a uma tarefa radicalmente diferente, pois o mantra da sociedade é o da autossatisfação. Esse chamado assume diferentes formas no mundo moderno, mas em essência pode ser reduzido a duas. A primeira seria a crença simplista de que se pode, e se deve, ser o que se quiser ser, do jeito que se quiser ser, desde que o próximo não saia prejudicado.

Existe uma forma mais sutil e refinada, que é encontrada nos vários movimentos tipo “new age”e de “autoajuda”. Frequentemente esses movimentos implicam chamados a uma mudança, a uma transformação – até mesmo uma transformação do eu. Tais movimentos defendem uma distinção: a distinção entre o amor próprio falso e o amor próprio verdadeiro, sendo o falso vinculado a problemas e imperfeições, e o verdadeiro sendo autêntico e elevado.

No entanto, o “verdadeiro eu” que se ambiciona descobrir e amar ainda é auto-definido pela vontade e pelos desejos da própria pessoa. Como é grande essa tentação, e como é penetrante e universal essa visão de mundo!

O Cristianismo é a vida enraizada na vida do próprio Cristo. O fardo da vida não é vivê-la para o eu, mas para Cristo; e seu objetivo não é satisfação, mas transformação. O cristão é chamado para tornar-se, para entrar em uma vida nova, que é a de outroa vida de Cristo. Ele tem de descobrir o “eu” de sua existência atual exatamente para que possa transformá-lo em uma vida que não seja definida por sua vontade, mas definida e tornada real por outro – pelo próprio Deus.

O cristão ouve dois chamados: o de Deus e o do mundo. A tentação mais persistente é a de responder a ambos, como se tivessem igual valor, ou como se tivessem valores que pudessem andar lado a lado; mas isso seria ignorar as palavras do Senhor. Deixa os mortos sepultar os seus mortos não foi uma frase pronunciada por Cristo com o objetivo de rejeitar o mundo de maneira fria e despreocupada, mas com o objetivo de ensinar a Seus discípulos que o chamado de um mundo que leva à morte deve ser deixado por si mesmo. O chamado do Reino deve ser o único foco do coração cristão.

Ora, então como deveríamos responder de maneira autêntica ao chamado celestial da Santíssima Trindade? Como devemos proceder? A única maneira é por meio da renovação em nós mesmos da visão ascética a nós transmitida pela Igreja, e por meio da nossa conformação à vida que nos vincula à fonte da vida, ou seja, a Jesus Cristo. Em termos práticos, isso tudo pode ser realizado mediante a renovação da atenção aos contornos verdadeiras da batalha ascética: em primeiro lugar, devemos reconcentrar nossa visão no Reino. Em segundo lugar, devemos redesenvolver em nós a consciência a respeito de nossos inimigos: o diabo e os demônios. Em terceiro lugar, devemos entender de maneira mais direta a natureza das paixões. Em quarto lugar, devemos reaprender continuamente a natureza e a prática da obediência. E em quinto lugar, devemos trabalhar para prestarmos um testemunho melhor e mais forte perante o mundo.

Reconcentrando nossa visão no Reino de Deus

Embora os cristãos reconheçam a existência do Reino, e talvez até manifestem verbalmente a necessidade de obtê-lo, qual seria sua natureza etc., o fato é que o Reino de Deus frequentemente é visto como uma espécie de “pano de fundo” através do qual se possa dar um certo aroma cristão à vida cotidiana. “Eu deveria fazer isso e isso, porque este é um ato de amor e o Reino de Deus é um reino de amor”. Ou, “Eu deveria buscar este bem, e não aquele, porque o Reino de Deus tem a ver com esse tipo de coisa”. Não que não haja alguma nobreza em tais reflexões (sem dúvida são melhores do que uma visão que absolutamente não leve em conta o Reino); mas a vida cristã exige muito mais do que isso. Cristo não disse “Quando vocês refletirem sobre esta vida, lembrem-se do Reino e então deixe que ele tome parte naquilo que estiverem buscando”; ao invés disso, Ele disse: Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça. Somente depois de haver fornecido este foco único e primaz ao esforço cristão, Ele acrescenta: e todas estas coisas vos serão acrescentadas.

O chamado de Cristo não é para que o homem de vez em quando se lembre do Reino ao qual ambiciona, e que essa lembrança dê forma à sua vida cotidiana. Seu chamado é para que o homem seja totalmente moldado e formado pela busca do Reino. O foco de cada deliberação, de cada ação, de cada pensamento, de cada movimento do coração, é a justiça de Deus, a qual anuncia e torna acessível este Reino. Como ensina São João Crisóstomo: “A vocês as coisas mais importantes não são estas que estão aqui presentes. Portanto, visto que as coisas aqui são secundárias a nosso labor, que sejam elas também secundárias em suas orações”.

Ao invés de enxergarmos o contexto de nossos comportamentos, ações e decisões como sendo a vida eterna do Reino permanente de Deus, o enxergamos como o curto espaço desta vida e ajustamos nossa percepção e visão de mundo de acordo com ele.

Quando fazemos planos para o futuro, é muito comum que miremos os anos da velhice. Almejamos coisas e ações saudáveis que possam alongar, nem que seja por alguns dias, nossa vida, pois na realidade consideramos a morte como o fim de tudo. Mesmo que reconheçamos – talvez – a existência do Reino, o fazemos de tal maneira que o estabelecemos como uma “segunda coisa”, depois dos afazeres e negócios da era presente.

Ora, nesse sentido a renúncia autêntica, o verdadeiro asceticismo, auto-humilhação e o verdadeiro sacrifício não “fazem sentido”, pois não se conformam a uma visão de mundo primordialmente voltada à vida presente.

Redesenvolvendo a consciência a respeito de nossos inimigos

Que existe o diabo, que existem demônios, e que esses seres travam guerra constante contra a humanidade e sua salvação é um testemunho tão fundamental da Igreja que é chocante que isso tenha de ser explicado a cristãos. A obra de  Cristo neste mundo, durante o período de sua primeira estadia  como homem (pois Ele verá novamente como homem para julgar os vivos e os mortos), centrou-se no combate a Satanás e suas forças demoníacas. Ora, se esta é a obra de Cristo na vida humana, será que a obra dos cristãos deveria ser outra?

Se, e quando, a existência do diabo é admitida, ela o é como uma personificação genérica do mal, mas raramente se confessa que ele é um ser com identidade, vontade, intenção e que se ocupa ativamente das vidas dos seres humanos.

Eles são ativos na batalha espiritual, travam verdadeiras guerras contra aqueles que levam a vida cristã a sério. É impossível entrar na guerra se não reconhecemos a existência do inimigo. Portanto, nossa escolha não é entre “lutar e não lutar”, ou entre admitir ou não admitir sua realidade; nossa é entre lutar ou ser derrotado.

Entendendo a natureza das paixões

A orientação correta em direção ao Reino de Deus não apenas permite que o coração enxergue mais diretamente seu adversário – ou seja, o reino espiritual externo que trava batalhas contra  os justos – mas também fornece a perspectiva que permite entender suas próprias batalhas interiores.

A alma vem a ser dominada por experiências que podem, de outras formas, ter um aspecto positivo (como o amor, que pode ser divino; ou a raiva, que pode ser justa).

No entanto, “paixão” se refere especificamente à dominação passiva da pessoa pelos impulsos mal dirigidos do corpo e da alma. O pecado opera de maneira destrutiva exatamente mediante o mau uso daquilo que é bom. É o entregar-se ao domínio das nossas potências emocionais, aliado a seu mau uso, que é o mal, que é aquilo que deve ser combatido. Na visão cristão do homem, aquilo que o mundo frequentemente chama de “bom” em seu estado emocional são na verdade os engodos, armadilhas e ciladas da batalha espiritual.

Ao sucumbir aos desejos sensuais, ao invés de reinar sobre os domínios de Deus, o coração do homem se “distrai” de sua verdadeira orientação a Deus e Seu Reino. Então aquilo que parece como sendo a condição natural do homem nesta vida é, na verdade, seu estado passional: a “norma” é a dominação, a escravização, o aviltamento. A Igreja entende que esta condição “normal” da existência passional permeia-se facilmente exatamente por causa de sua aparente normalidade. No dia a dia o homem mal nota suas paixões de tão acostumado a elas que está. Isso começa a mudar quando ele começa a levar sua vida espiritual a sério. Quanto mais a sério levar esta vida, esta batalha, tanto mais as paixões serão despertas.

Nesta ascese, nesta batalha, as paixões deixam de fazer parte de um contexto completamente familiares e, portanto, praticamente despercebido, e passam a manifestações específicas da rebelião da alma e do corpo. O fato de o homem passar a focar-se no Reino tem por efeito a correspondente concentração de suas paixões. Mas isso também é condicionado pelo inimigo do  homem, o qual faz uso dessa concentração das paixões que surge em função de levar a sério a batalha espiritual como fundação a partir da qual constrói novos obstáculos ao crescimento autêntico.

Reaprendendo a natureza e a prática da obediência

Dado que o estado passional do homem é fruto da rebelião, então um guia seguro e indubitável é necessário se o homem quiser ser salvo de seu estado triste e pesaroso e renascer na vida da Santíssima Trindade.

Como as paixões são perversões dos impulsos naturais, é compreensível que tenham uma raiz nítida. Os Padres identificam esta raiz como sendo uma perversão específica da vontade: arrogância, orgulho. As demais paixões que reinam tão livremente sobre o coração humano têm sua fonte aqui. E eis por que os Padres também identificam a virtude principal para o combate desta paixão principal: a obediência, que por sua vez engendra a humildade que conquista o orgulho.

A obediência é a virtude de uma vida na qual a vontade própria é sacrificado no altar da Cruz, e a pessoa humana une-se à vontade de Deus. A vontade voluntariamente entrega-se à vontade da Igreja (que é a vontade de Cristo) por meio de suas doutrinas, pastores, professores e pais espirituais, de maneira que a pessoa possa crescer acostumando-se à obediência que a une à verdadeira Fonte da Vida.

Até que o coração venha a treinar sua vontade a conformar-se à vontade de Cristo, seus confortos definem as ações e crenças que considerarão aceitáveis. Seus pensamentos sobre verdade e sentido definem sua realidade.

Tal escravidão à vontade, no mistério da profundeza e extensão do pecado, faz do homem um demônio para si mesmo.

Quando a obediência não forma a vontade, a vontade transforma-se em ídolo de si mesma, e daí tiraniza o homem à maneira dos demônios. Se às vezes os demônios parecerem distantes, inativos, frequentemente é porque já internalizamos sua obra por meio da escravidão passional de nossas vidas. Há pouca coisa que necessitam fazer para que sua obra se cumpra.

Antes de tudo, a obediência molda-se e desenvolve-se mediante a correta relação do cristão com o ciclo litúrgico dos ofícios divinos. Depois, a Igreja promove a obediência por meio da aderência do cristão a seus cânones: confissão, comunhão, ações e posturas físicas, orações e comemorações. Frequentemente os tomamos como meras orientações” das quais extraímos aquilo que nos parece mais palatável e razoável. Mas evidentemente não é assim que o cânones terão espaço na transfiguração de nossos corações. Em terceiro lugar, a Igreja promove a obediência mediante a relação do cristão com seu pai espiritual.

Testemunho para o mundo

A batalha cristã é travada no coração. Assim que qualquer batalha que procure cristianizar o cosmos, se não começar no coração humano, opera com coisas secundárias, não primárias. Tal ação é análoga àquela que tenta consertar uma casa desmoronada reformando o madeiramento externo, enquanto suas fundações permanecem em estado de decomposição.

É exatamente mediante nossa atenção e dedicação a esta batalha e seus sadios contornos, que temos o poder de falar ao mundo a mensagem verdadeira de Cristo, do Espírito, e do Pai.

Viver a missão cristã no mundo exige uma ousadia renovada. É necessário ousadia para viver autenticamente a Vida em Cristo em um mundo que não exatamente a combate, mas a ridiculariza. É necessário ousadia para pensar, falar, agir, e orientar sua própria vida ao Reino, para reconhecer a realidade dos demônios, para buscar e proclamar a obediência.

Fonte: Archimandrite Irenei, The Beginnings of a Life of Prayer, St. Herman of Alaska Brotherhood, 2012, Platina, CA, EUA.