12 de outubro de 2012

Os logoi das coisas criadas



Hieromonge Damascene Christensen

O Caminho cria, mas não exige nada para si ...
Controla, mas sem compulsão.
(Tao Te Ching, cap. 51 – tradução da versão de Gi-ming Shien).

Segundo a teologia mística cristã, o Criador-Logos implantou em cada coisa criada seu próprio logos, seu próprio princípio ou essência interior, aquilo que faz a coisa ser o que propriamente é e que ao mesmo tempo direciona essa coisa a seu fim próprio, isto é, a Deus. O Criador-Logos, trazendo tudo à unidade, faz do universo um “cosmos” integrado e harmonioso. Ele atrai todos as coisas a Si (cf. João 12:32), embora domine sem compulsão, direcionando cada coisa naturalmente, segundo seu próprio logos. Conforme ensina São Máximo, o Confessor, “a Origem e Causa dos seres criados tem, enquanto Verdade, conquistado todos as coisas naturalmente, atraindo suas atividades a Si”.

Enquanto seguidores do Criador-Logos, é nosso dever discernir e identificar o logos de todas as coisas. Se somos chamados ao comando de algo, devemos exercê-lo naturalmente, sem forçar, sem agir segundo as aparências ou opiniões, mas segundo a essência interior de cada coisa. Isso vale especialmente para a relação com outros seres humanos, os quais, a despeito de suas carapaças, possuem implantados em si este princípio interior que tende a Deus.

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A doutrina de que o Cristo Logos é o Fim de todas as coisas é misteriosa e profunda. Conforme dissemos acima, todas as coisas criadas possuem seu logos, sua essência ou princípio interior. O logos de cada coisa é uma “ideia” de Deus, e é mediante o logos que a coisa passa a existir em um determinado tempo e lugar e de uma determinada forma, e é mediante o logos que ela se desenvolve. O logos é o ponto de contato da coisa com Deus, ao mesmo tempo em que é o fim ao qual ela tende. Deus introduziu nas criaturas o amor que as faz tender a Si, atraindo-as para sua realização.

As ideias ou logoi das coisas individuais estão contidas em ideias mais gerais ou superiores, como espécies contidas em um gênero. O todo, por sua vez, está contido no Criador-Logos, no Princípio Cósmico unificante. Portanto, quando buscamos penetrar nas essências ou princípios interiores (logoi ou “verbos”) das coisas criadas, somos ao cabo levados ao conhecimento do Verbo, da “causa operadora” e ao mesmo tempo Fim de todas as coisas.

O Logos é o Princípio de todas as coisas porque é dEle que fluem as emanações criativas, os logoi particulares das criaturas. Ele é o Fim de todas as coisas porque Ele é o centro para o qual todos os seres criados tendem. Eis o sentido místico por trás das palavras dEle: Eu sou o Alfa e o Omega, o Princípio e o Fim (Apocalipse 1:8).

Este entendimento ajuda a compreender a natureza da doutrina de Lao Tsé. Ao contemplar as essências interiores das coisas criadas e ao buscar penetrar-lhes em seu fim – seus logoi –, o Velho Sábio foi conduzido naturalmente ao conhecimento intuitivo do Logos. No capítulo 52 do Tao Te Ching lê-se:

Encontrada a mãe, conhecemos o filho;
Conhecendo o filho, observamos pois a mãe.
(Tradução da versão de Gi-ming Shien)

São Máximo, o Confessor, explica a coisa da seguinte forma: “Quem quer que não limite sua percepção da natureza das coisas visíveis ao que seus sentidos são capazes de observar, mas com seu espírito sabiamente busca a essência que reside no interior de cada criatura, encontrará também a Deus; pois da magnificência manifesta dos seres criados apreendemos quem é a Causa de seus princípios”.

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Quando Lao Tsé fala de retornar à Simplicidade primitiva, ele na verdade refere-se aos logoi das coisas criadas aproximando-se de seu Fim, do Logos simples e indivisível.

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Se a roda de trinta raios de Lao Tsé é uma metáfora do universo, então Cristo Tao ou Logos é o cubo da roda para onde os raios do universo convergem. Essa comparação corresponde ao ensinamento cristão de que o Logos é o centro ou ponto central ao qual todos os logoi das criaturas tendem. Situado no centro, Ele também é o ponto mais baixo.

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“O controle das paixões pela vontade é chamado de força”.
(Tao Te Ching, cap. 55 – tradução da versão de Gi-ming Shien)

Por meio do controle das paixões somos capazes de ter um insight das essências das coisas; por sua vez, esse insight nos ajuda a controlar as paixões. Tal foi a experiência de Lao Tsé, Sócrates e demais sábios pré-cristãos, e tal é a experiência dos seguidores do Caminho depois de se fazer carne. São Máximo, o Confessor, ensinava:

“Todo espírito arrebatado por Deus extirpa a energia das paixões bem como o turbilhão tosco de pensamentos. Além disso, conseguirá também cessar o uso indevido e desenfreado dos sentidos. Pois as paixões, levadas triunfalmente à sujeição ante as formas superiores de contemplação, serão destruídas pela visão sublime da natureza”.

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Quem quer que supere suas paixões, abreviando seu desejo pelas coisas criadas, conseguirá enxergar para além das realidades sensíveis e para dentro das essências interiores (logoi) das coisas, incluindo os seres humanos. “Somente a alma liberta das paixões”, ensina São Máximo, “é capaz de contemplar infalivelmente os seres criados”.

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O Pe. Seraphim [Rose] dizia que Adão, a primeiro criatura humana, encontrava-se em “estado de sobriedade: nepsis, em grego”. “Ele mirava as coisas e as enxergava como são. Não haviam ‘pensamentos duplos’” como os que temos “em nosso estado caído”, não havia isso de “olhar para uma coisa e imaginar outra”.

Por meio da graça do Cristo em Sua Igreja, os santos ortodoxos também eram capazes de retornar a esse estado pré-queda de sobriedade e vigilância. Eles possuíam consciência pura e aberta, mediante a qual apreendiam a natureza original do homem e as distintas naturezas das coisas criadas, e, para além delas, as “ideias” ou “pensamentos-vontades” (logoi) das coisas criadas que preexistem na Mente de Deus. Na teologia ortodoxa, os logoi são os princípios incriados das coisas criadas. Eles estão contidos no Logos (Verbo) e são separados das coisas criadas, assim como as ideias e vontades de um artesão estão separadas da obra nas quais se manifestam. Típicos das Energias de Deus, e não de Sua Essência, os logoi determinam as diferenças entre as coisas criadas, incluindo aí os diferentes modos segundo os quais as coisas participam nas Energias incriadas. Tudo na ordem da criação recebe sua existência segundo os logoi, e tudo tende a seu fim segundo esses mesmos logoi. Elevando-se à visão de Deus em Suas Energias, os santos também adquiriam o conhecimento dos logoi incriados. (Cf. Melchisedec Törönen, Union and Distinction in the Thought of St. Maximus the Confessor; Vladimir Lossky, The Mystical Theology of the Eastern Church, p. 94-100; Fr. Dumitru Staniloae, Orthodox Spirituality, p. 203-223. No Cristo, os santos experienciaram não apenas a proximidade com Deus a qual Adão desfrutou no princípio, mas a união espiritual com Deus (theosis) a qual Adão terial angariado se não tivesse caído em desobediência.

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São Nicodemos da Santa Montanha ensinou o seguinte acerca dos logoi: “Adão foi criado por Deus sem a faculdade da imaginação. Sua mente era pura e singular, não adquirindo nenhuma impressão ou forma sob influência dos sentidos ou de imagens das coisas sensíveis. Ao dispensar o uso da faculdade inferior da imaginação, Adão não visualizava os contornos, cores, silhuetas ou dimensões das coisas, mas com a faculdade superior de sua alma, isto é, com o intelecto, ele contemplava imaterialmente, puramente e espiritualmente somente os princípios interiores [logoi] dos seres”.


Ilustração: Adão e Eva no Paraíso, Peter Paul RUBENS, c. 1628.