Seguem trechos selecionados de um
interessante ensaio de Echavarría sobre o tema.
* * *
Neste artigo propomos desenvolver o tema da
existência, natureza e relações da afetividade sensível e da afetividade
espiritual em Santo Tomás de Aquino.
É debatido e
discutível se Aristóteles chegou à descoberta completa da vontade como uma
potência especial e como a sede do livre-arbítrio. De qualquer forma, para Santo
Tomás a vontade abrange tanto o apetite pelo que ainda está por ser alcançado
(o que inclui, mas não se limita à vontade efetiva), quanto o afeto pelo que
está presente. Provavelmente a origem moderna da redução da vontade ao seu
aspecto efetivo e não afetivo seja Descartes.
Apetite e afeto são quase sinônimos na
linguagem de Santo Tomás. O aspecto definidor é esse caráter disposicional e
atitudinal do afeto. Afeto é uma maneira de se posicionar diante do bem, sendo
acidental à noção de apetite em geral, referindo-se a algo presente ou a algo a
ser feito ou alcançado.
O apetite é formal em relação à paixão
corporal. Isso abre a porta para a existência de movimentos verdadeiramente, e
não metaforicamente, apetitivos e afetivos em um nível não corpóreo, que é o da
afetividade espiritual. Se mais provas forem necessárias, temos a declaração de
Santo Tomás de que movimentos apetitivos negativos, como tristeza e medo,
merecem o nome de "paixão" mais do que outros movimentos apetitivos.
A razão é que nesses casos a razão da paixão no sentido estrito e
predicamental, que implica a remoção de uma forma pela introdução de outra, é
mais completamente cumprida. Em movimentos apetitivos positivos, no entanto,
como amor e alegria, parece haver uma perfeição, um aumento sem perda. Mas
ninguém pensaria que o amor ou a alegria não são afetos, ou mesmo que não são afetos
por excelência. A verdade é exatamente o oposto: o amor é afeto por excelência,
embora o nome paixão lhe seja menos apropriado do que tristeza, como já foi
dito. Portanto, “paixão” não é o mesmo que “afetividade”, e esta última pode
ocorrer de uma maneira muito específica na ordem espiritual, sem qualquer
substrato material ou paixão predicamental.
Além do apetite sensitivo, temos o apetite
intelectual. O fato de esses atos não serem paixões do corpo e, portanto, não
serem “sentidos” como movimentos do corpo, não significa que não haja
movimentos do apetite intelectual que possam ser chamados de “afetivos”. Santo
Tomás fala frequentemente de “afetos” da vontade, chamando-os mesmo pelos
mesmos nomes que as paixões do apetite sensível: amor, ódio, desejo, esperança,
medo etc.
Deus ama sem paixão. Deus ama da única
maneira que se pode amar: com afeto. Afeto é o aspecto formal das paixões como
movimentos apetitivos. Deus ama sem transmutação corporal, mas com afeto.
Embora em Santo Tomás a vontade seja a
potência que provoca o ato de livre-arbítrio, isso não significa que todo ato da
vontade seja de livre-arbítrio, nem uma escolha. O primeiro ato da vontade, que
é o fundamento até mesmo do ato de escolha, é aquele pelo qual desejamos a
felicidade (felicitas ou beatitudo). Assim como na ordem
cognitiva o primeiro conhecido é o ente e os primeiros princípios, e conhecemos
tudo através da noção de ente e dos primeiros princípios, instrumentos do
intelecto agente, na ordem apetitiva o primeiro é o apetite pela beatitude.
Ora, esse apetite não é livre, mas necessário, embora seja espontâneo e
interno, e não resultado de coerção. Isto significa que, em Santo Tomás, a
vontade não é definida pela liberdade, pelo menos não a liberdade de escolha,
mas pela referência ao bem.
Os atos da vontade relacionados ao fim são
todos de natureza claramente afetiva. Assim, para começar, a vontade simples (voluntas),
que é a reação do apetite intelectual à presença do bem, nada mais é do que um
ato de amor intelectual. A intenção do fim (intentio finis), que é o
apetite pelo bem proposto como fim, é um desejo intelectual. E, muito
claramente, a fruição ou gozo do fim (fruitio), que segundo Santo Tomás
corresponde primeiramente ao fim último e secundariamente aos outros fins, é o
mais alto tipo de alegria intelectual.
Atos de vontade que não se referem
diretamente ao fim, mas aos meios, podem parecer menos afetivos, e na realidade
o são quase por participação, na medida em que se referem ao fim. O uso, que é
o ato da vontade pelo qual os outros poderes são ativados, é certamente o menos
afetivo e o mais “eficaz” dos atos da vontade.
É o próprio Santo Tomás que chama a vontade
de “coração”.
A vontade move o apetite sensível em nós de
duas maneiras. Primeiramente, ativando os sentidos internos, para propor um
objeto atraente ao apetite sensível. Em segundo lugar, há uma influência direta
e imediata da vontade, que decorre do contato natural entre ambos os tipos de
poder: trata-se da redundantia, que pode ser traduzida como redundância,
transbordamento, superabundância, excesso. Os poderes influenciam uns aos
outros, pois compartilham a energia única da alma. Portanto, quando um deles
funciona intensamente, os outros relutam em agir, e isso se deve à redundância
de uns sobre os outros.
Quando os atos de afetividade espiritual
são muito intensos, eles afetam o apetite sensível, que acaba participando do
movimento da vontade.
A causa da redundância não reside apenas no
fato de que ambos os tipos de apetite residem na mesma alma, mas também e acima
de tudo no fato de que o apetite sensível emana da substância da alma por meio
do apetite intelectual. A afetividade sensível está enraizada no espiritual do
ponto de vista da emanação e do funcionamento integral da pessoa. Essa
conjunção é algo conhecido por um sentimento íntimo, que é a unidade radical da
consciência humana na autoposse habitual que a mente espiritual tem de si
mesma. O que nos leva de volta ao tópico da estrutura da alma à luz do modelo
trinitário: memória, inteligência e vontade. Tomada neste sentido, que inclui
radical e eminentemente o amor, a memória pode ser chamada também de “coração”
da pessoa.
Fonte: Martín Echavarría, El corazón: un
análisis de la afectividad sensitiva y la afectividad intelectiva en la
psicología de Tomás de Aquino, Revista Espíritu LXV, no. 151, p. 41-72, Barcelona,
Espanha, 2016, trechos selecionados.