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Após o terremoto que destruíra três quartos
de Lisboa, os sábios do país não encontraram meio mais eficaz para prevenir a
ruína total senão dar ao povo um belo auto de fé. Foi decidido pela
Universidade de Coimbra que o espetáculo de algumas pessoas queimadas em fogo
lento, com grande solenidade, é um segredo infalível para impedir a terra de
tremer.
[Nota: Os atos de fé são espetáculos
públicos, promovidos pela Inquisição, no qual se queimavam em fogueiras os
supostos hereges e os acusados de “prática de judaísmo”. O auto de fé descrito
por Voltaire realmente aconteceu em 20 de junho de 1756.]
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À medida que cada um contava sua história,
o barco avançava. Aportou-se em Buenos Aires. Cunegundes, o capitão Cândido e a
velha foram à casa do governador Don Fernando de Ibarra y Figueroa y Mascareñas
y Lampurdos y Souza. Este senhor tinha um orgulho compatível com um homem que
carrega tantos nomes. Falava aos homens com o desdém mais nobre, levantando tão
alto o nariz, elevando tão impiedosamente a voz, assumindo um tom tão
imponente, afetando uma postura tão altaneira, que todos os que o saudavam
ficavam tentados a surrá-lo. Amava furiosamente as mulheres. Cunegundes
pareceu-lhe o que ele jamais vira de mais belo. A primeira coisa que fez foi
perguntar se ela por acaso não era a mulher do capitão. O ar com que fez essa
pergunta alarmou Cândido: não ousou dizer que era sua mulher, porque de fato não
era; não ousava dizer que era sua irmã, porque tampouco o era; e, embora essa
mentira oficiosa tivesse estado outrora muito na moda entre os antigos e
pudesse ser útil aos modernos, sua alma era demasiado pura para trair a
verdade.
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Finalmente, avistaram-se as costas da
França.
– O senhor já esteve na França, senhor
Martinho? – perguntou Cândido.
– Sim – respondeu Martinho –, percorri
várias províncias. Há umas onde a metade dos habitantes é louca, algumas onde
são espertos demais, outras onde são normalmente bastante meigos e imbecis,
outras onde se fingem de espirituosos; e em todas a principal ocupação é o
amor; a segunda, a maledicência; e a terceira, dizer bobagens.
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O jantar foi como a maioria dos jantares de
Paris; primeiro, silêncio; em seguida, um barulho de palavras que ninguém distingue;
depois, brincadeiras das quais a maior parte é insípida, falsas novidades, más reflexões,
um pouco de política e muita maledicência. Falou-se até de livros novos.
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– O senhor é muito duro – disse Cândido.
– É porque vivi – disse Martinho.
– Mas olhe só estes gondoleiros – disse Cândido
–, não estão sempre a cantar?
– O senhor não os está vendo em seus lares,
com suas mulheres e seus fedelhos – disse Martinho. – O doge tem suas mágoas,
os gondoleiros têm as deles. É verdade que, tudo pesado, a sorte de um
gondoleiro é preferível à de um doge; mas acho a diferença tão medíocre, que
nem vale a pena ser examinada.
[Nota: Doge é o chefe ou primeiro
magistrado das antigas repúblicas de Veneza e de Gênova.]
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Depois que se despediram de Sua Excelência.
– Ora, ora – disse Cândido a Martinho –, o
senhor há de convir que ali está o mais feliz de todos os homens, pois está
acima de tudo o que possui.
– O senhor não vê – disse Martinho – que
ele se entedia com tudo quanto possui? Platão disse, há muito tempo, que os
melhores estômagos não são aqueles que rejeitam todos os alimentos.
– Mas – disse Cândido – não há prazer em
criticar tudo, em sentir os defeitos onde os outros homens acham ver belezas?
– Ou seja – retomou Martinho –, que existe
prazer em não ter prazer?
* * *
– E então, meu caro Pangloss – perguntou-lhe
Cândido –, quando foi enforcado, dissecado, moído de pancadas e teve de remar
nas galeras, o senhor continuou pensando que tudo ia no melhor dos mundos?
– Trago ainda o meu primeiro sentimento –
respondeu Pangloss –, pois afinal sou filósofo: não me convém desmentir-me,
Leibnitz não podia estar errado, e, por outro lado, a harmonia preestabelecida
é a coisa mais bela do mundo, assim como o pleno e a matéria sutil.
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E Pangloss dizia às vezes a Cândido:
– Todos os acontecimentos estão encadeados
no melhor dos mundos possíveis; pois, enfim, se o senhor não tivesse sido
expulso de um belo castelo a grandes pontapés no traseiro pelo amor da
senhorita Cunegundes, se não tivesse tido apanhado pela Inquisição, se não tivesse
corrido a América a pé, se não tivesse dado um bom golpe de espada no barão, se
não tivesse perdido todos os seus carneiros do bom país de Eldorado, não estaria
aqui comendo cidras em conserva e pistaches,
– Muito bem dito – respondeu Cândido –, mas
temos de cultivar nosso jardim.
Fonte: Voltaire, Cândido, Editora Abril, São Paulo, SP, Brasil, 2010.