Por que às vezes um colega lhe explica
melhor a matéria do que o próprio professor?
O colega de classe pode ajudar mais do que o professor porque sabe menos. A dificuldade que queremos que ele nos explique é a mesma com a qual ele teve de lidar recentemente. O especialista a superou há tanto tempo que já se esqueceu. Ele agora vê o assunto de uma maneira mais genérica e sob uma luz tão diferente que não consegue perceber o que está verdadeiramente inquietando o aluno; enxerga dezenas de outras dificuldades, menos a que realmente perturba o estudante.
A imagem cristã de justiça é perfeita. Mas
a imagem judaica, embora humana, é muito útil também. Ninguém é bom ante a
justiça divina. Mas também ninguém é bom ante a justiça humana.
Acho que há razões muito boas para considerar a imagem cristã do juízo de Deus como muito mais profunda e muito mais segura para nossas almas do que a judaica. Mas isso não significa que a concepção judaica deva ser simplesmente descartada. Eu, pelo menos, acredito que ainda posso alimentar-me bem dela.
Ela complementa a imagem cristã de uma forma muito importante, pois o que nos amedronta na imagem cristã é a pureza infinita do padrão a partir do qual nossas ações serão julgadas. Sabemos, porém, que nenhum de nós jamais se aproximará desse padrão. Estamos todos no mesmo barco. Devemos todos concentrar as nossas esperanças na misericórdia de Des e na obra de Cristo, não em nossa bondade. A imagem judaica de uma ação civil, por sua vez, nos lembra claramente que talvez estejamos em falta não somente em relação aos padrões divinos (o que é óbvio), mas também a um padrão absolutamente humano que todas as pessoas lógicas reconhecem e que nós, em geral, desejamos impor sobre os outros. É quase certo que haja demandas não satisfeitas, demandas humanas, contra cada um de nós; afinal, quem seria capaz de acreditar que, em meio a tantas relações entre empregadores e empregados, marido e mulher, pais e filhos, entre querelas e colaborações, tenha sempre agido (excluindo-se os atos de caridade ou generosidade) com absoluta honestidade e justiça? É claro que esquecemos a maioria das injustiças que cometemos. As partes injustiçadas, no entanto, não esquecem, mesmo quando perdoam. E Deus não esquece. E mesmo o pouco que conseguimos lembrar é terrível o bastante. Poucos de nós temos, em plena medida, dado a nossos alunos, pacientes ou clientes (ou como quer que chamemos nossos “consumidores”) aquilo que recebemos. Nem sempre cumprimos com a justa parte que nos cabe em algum trabalho cansativo quando encontramos um colega ou parceiro que possa ser enganado a fim de carregar todo o fardo.
Quanto mais elevado intelectual e espiritualmente,
maior o potencial para a perversidade e impiedade. Quanto mais próximo de Deus,
maior o pecado. Por outro lado, a suposta inocência das pessoas ignorantes e
carnais deve ser encarada com muita cautela.
Parece haver, no universo moral, uma regra geral que pode ser formulada da seguinte maneira: “Quanto mais alto se é, mais perigo se corre”. O “homem sensual comum”, eventualmente infiel à esposa, que às vezes fica embriagado e é sempre um pouco egoísta, que de vez em quanto (mesmo sem desrespeitar a lei) se revela leviano em relação aos seus ideais, certamente é, de acordo com os padrões comuns, um tipo “inferior” se comparado ao homem cuja alma está ocupada com alguma grande causa, à qual ele submeterá seus prazeres, sua riqueza e até mesmo sua segurança. Mas é o segundo homem que pode verdadeiramente fazer algo perverso – um membro da Inquisição ou do Comitê de Segurança Pública. São os grandes homens, os potenciais santos – e não os homenzinhos comuns – que se tornam fanáticos impiedosos. Os que estão mais bem preparados para morrer por uma causa podem facilmente se tornar os que estão mais preparados para matar por ela. Observa-se o mesmo princípio em ação em um campo (comparativamente) tão irrelevante como a crítica literária; a obra mais brutal, o mais irritante entre todos os críticos, odiado por quase todos os autores, talvez seja o mais honesto e desinteressado, o homem que se importa mais apaixonada e abnegadamente com a literatura. Quanto mais alta a aposta, maior a tentação de entregar-se ao jogo. Não devemos sobrevalorizar a relativa inocência das pessoas pequenas, sensuais e frívolas. Elas não estão acima, mas abaixo de algumas tentações.
[...]
Os judeus pecaram mais do que os pagãos, não porque estivesses mais longe de Deus, mas porque estavam mais próximos dele. Pois o sobrenatural, quando adentra uma alma humana, faz com que ela se abra para novas possibilidades do bem e do mal. A partir desse ponto, a estrada se divide em duas: um caminho para a santidade, o amor, a humildade, e o outro para o orgulho espiritual, a hipocrisia, o zelo perseguidor. E não há caminho de volta para as virtudes e os vícios triviais de uma alma adormecida. Se o chamado divino não nos tornar melhores, nos tornará muito piores. De todos os homens maus, os homens maus religiosos são os piores. De todos os seres criados, o mais maldoso é aquele que originalmente ficava na presença do próprio Deus. Parece não haver saída para isso.
Esvaziar a natureza (trovão, planetas etc.)
de divindade a torna mais, e não menos, divina. Adorar a natureza a priva de seu
caráter divino, ao contrário do que se poderia supor.
[E]mbora sutil, é significativa a diferença entre ouvir no trovão a voz de Deus ou a voz de um deus. Como vimos, mesmo nos mitos de criação, os deuses têm uma origem. A maioria deles tinha pais e mães, e nós frequentemente sabemos quais foram seus locais de nascimento. Não é uma questão de autoexistência ou de eternidade. A existência lhes é imposta, como a nós, por causas precedentes. Eles são, como nós, criaturas ou produtos, embora sejam mais afortunados que nós por serem mais fortes, mais belos e imortais. Como nós, eles são os atores do drama cósmico, e não seus autores. Platão compreendeu isso plenamente. Seu Deus cria os deuses e os preserva da morte por seu poder, então a imortalidade não é inerente a eles. Em outras palavras, a diferença entre acreditar em Deus e em muitos deuses não é uma questão puramente aritmética. Como já foi dito por alguém, a palavra “deuses” não é efetivamente o plural de Deus, pois Deus não tem plural. Assim, quando ouvimos a voz de um deus no trovão, assustamo-nos, pois a voz de um deus não é, em verdade, uma voz do além-mundo, do incriado. Vamos ainda mais longe quando abstraímos a voz desse deus – ou quando imaginamos esse deus como um anjo, como um servo do outro Deus. O trovão torna-se não menos, e sim mais divino. Ao esvaziar a natureza de um teor de divindade – ou, melhor ainda, das divindades – nós a associamos à deidade e ela passa a ser, então, a portadora das mensagens. Há um sentido no qual a adoração à natureza a silencia – como se uma criança ou um selvagem ficassem tão impressionados com o uniforme do carteiro que deixassem de receber as cartas.
Prestar louvor, agradecer e elogiar são atos
típicos de pessoas humildes, equilibradas e capazes. Quem elogia e agradece
pouco ou com dificuldade são pessoas potencialmente desajustadas.
Nunca havia notado que toda apreciação transborda espontaneamente em forma de louvor a não ser que (a às vezes até mesmo se) a timidez ou o medo de incomodar os outros forem deliberadamente evocados. O mundo está cercado de louvor: amantes elogiam seus amados e suas amadas; os leitores elogiam seu poeta preferido; os caminhantes elogiam o campo; os jogadores elogiam seus jogos favoritos; há o louvor ao clima, aos vinhos, às louças, aos atores, aos carros, aos cavalos, às faculdades, aos países, a personagens históricos, a crianças, flores, montanhas, selos e insetos raros e, às vezes, até mesmo a políticos e estudiosos. Eu não havia notado como as mentes mais humildes e, ao mesmo tempo, mais equilibradas e capazes prestavam mais louvores, enquanto as excêntricas, desajustadas e descontentes elogiavam menos. [...] Exceto onde as circunstâncias intoleravelmente adversas interferem, o louvor parece quase ser uma manifestação de saúde interior.
[...]
Penso que temos prazer em louvar o que apreciamos porque o louvor não somente expressa como também complementa a apreciação; ele é a própria consumação dessa apreciação. Quando amantes continuamente dizem um ao outro o quão belo ele (ou ela) é, não o fazem apenas por dever; o prazer é incompleto até que seja expresso.
Fonte: C. S.
Lewis, Lendo os Salmos, Editora Ultimato, Viçosa, Brasil, 2015.