1 de abril de 2023

Que os mortos enterrem seus mortos



Há mais ou menos 15 anos tomei contato pela primeira vez com o conceito de noûs. Em seu opúsculo sobre a espiritualidade ortodoxa, o Metropolita Hierotheos definia o noûs, lembro-me bem, como a faculdade da "atenção superior".

Tornando curta uma longa história, esse conceito sempre me soou abstrato porque nunca encontrei em mim mesmo o referente que pudesse transformar o noûs de algo poético em algo concreto, real.

Pouco a pouco, de maneira incerta mas insistente, me dei conta da realidade do noûs ("espírito") em mim. Lembro-me quando no final de 2019, ao terminar a leitura de Ego, talvez a obra-prima de Kevin Fitzmaurice, finalmente ficou claro do que se tratava. Enfim encontrei em mim o que era, e o que não era, o noûs. Enfim, minha busca tinha terminado. Enfim poderia descansar. Enfim, estava enganado.

Mal sabia eu que àqueles que descobrem o noûs se descortina uma realidade ao mesmo tempo fascinante e assustadora. Uma vez descoberto o noûs, é inevitável que tudo o que sabemos, ou pensamos saber, sobre o comportamento humano em geral se redefine. Como num caleidoscópio, o conhecimento do nous provoca uma reação em série que reconfigura seu olhar sobre o mundo.

Em termos práticos, presume-se que a finalidade do homem nesta terra é ter seu noûs/espírito salvo. Como ensina Dumitru Staniloae, com a morte não morre apenas o corpo, mas o psiquismo, sua historicidade, seu inconsciente, sua memória, seus desejos, sua imaginação, seu ego. Tudo isso morre, se despedaça, literalmente se desintegra. Seu noûs/eu imortal/espírito, eis o que sobrevive. E isso é uma má notícia.

É uma má notícia porque ninguém se salva a si mesmo. Esse eu imortal, desprovido do falso eu que criamos com tanto esmero ao longo da vida, está só. É um recipiente apenas, um container, uma garrafa vazia. Se nele não há algo que lhe dê sobrevida, que lhe dê o fundamento necessário para seguir, estará ele também perdido. Também vai morrer, e essa morte será "para sempre". Para bom entendedor meia palavra basta.

Digamos logo, esse fundamento é o Espírito de Deus, é o próprio Cristo. Quem morrer com seu noûs disperso no mundo natural, quem morrer em busca de sua felicidade, em busca da "paz que vem do mundo", estará abraçando sua perdição.

Se a salvação vem de Deus, e Deus é amor, então cabe entender o que é amor. E eis que dar-se conta do que é amor, aquele amor que reflete o amor da Trindade, é dar-se conta de que o amor é uma tendência benevolente, uma relação em que a satisfação pessoal vem depois, somente depois, da entrega absolutamente livre e incondicionada de si mesmo. Assim é a Trindade, e assim nós hemos de ser se queremos encher nosso noûs com a energia, com a presença, de Deus.

Basta isso para entender que o antônimo de amar não é odiar, pois isso seria reduzir o amor a mero sentimento. O antônimo de amar é usar. Se o amor é benevolente, o contrário do amor é aquisitivo, é concupiscente, é interessado.

O amor tem a ver com o noûs, o usar tem a ver com o ego. E eis que assusta observar como alguns assim chamados "atos de amor", sejam pessoais ou alheios, estão cheios de falso carinho, falsa ternura, falso afeto. Espanta observar como alguns que dizem amar abandonam seu objeto de amor com notável facilidade e rapidez. Espanta observar como pais, filhos, irmãos, cônjuges, amigos, familiares, que de manhã dizem "eu te amo", à tarde atiram seus "amores" (objetos) pela janela.

É quando nos damos conta do perigo de romantizar o amor. É quando percebemos que não éramos uma pessoa, mas um objeto, um utensílio, um absorvente feminino que, uma vez cumprido seu objetivo, é atirado no lixo do banheiro sem cerimônia. É quando percebemos que os gestos de ternura e carinho não eram demonstrados por uma pessoa, mas por um personagem.

Portanto, cuidado. Observe sua relação com cuidado, seja ela qual for: familiar, conjugal, amigável, profissional. Observe por trás das aparências, observe sobretudo o que não se vê, as preferências silenciosas, as decisões discretas, as oportunidades aparentemente perdidas. É este pano de fundo que lhe dirá a natureza da relação, é ele que indicará o que você verdadeiramente representa para o outro.

Amar e ser amado, eis o que quer o Amor. Ame, e quem sabe o Espírito, que sopra onde quer, soprará no seu coração. Como disse o Cristo, que os mortos enterrem seus mortos, e que você busque o Reino de Deus. Que os mortos se usem para alimentar seus egos, suas historinhas carnais, com o pão do mundo. Que os vivos se amem para alimentar seus corações com o pão do céu.