15 de julho de 2018

Viktor Frankl e a logoterapia


Apesar da fraqueza física e mental imperantes em um campo de concentração, ainda se podia cultivar uma profunda vida espiritual. As pessoas de maior sensibilidade, acostumadas a uma ativa vida intelectual, certamente sofreram muitíssimo (frequentemente sua constituição física era frágil); no entanto, o dano infligido a seu ser íntimo foi menor pois eram capazes de se abster do terrível entorno e adentrar em seus espíritos, em um mundo interior mais rico e dotado de paz espiritual. Somente assim se explica o aparente paradoxo de que os menos dotados fisicamente suportaram melhor a vida do campo que os de constituição mais robusta.

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As tentativas de desenvolver um sentido de humor e ver a realidade sob uma luz humorística constituem uma epécie de truque que aprendemos na arte de viver. Inclusive é possível praticá-lo em um campo de concentração, embora o sofrimento humano seja onipresente. Isso se poderia explicar da seguinte forma: o sofrimento humano atua como um gás em uma câmara vazia; o gás se expande de maneira completa e uniforme no interior, independentemente do volume da câmara. De maneira análoga, o sofrimento, seja forte ou fraco, ocupa a alma e toda a consciência do homem. Daí se deduz que o "tamanho" do sofrimento humano é relativo. E, inversamente, o feito mais insignificante pode gerar as maiores alegrias.

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Esta tentativa de descrição psicológica e explicação psicopatológica das características do prisioneira do campo [de concentração] talvez induza o leitor a pensar que o homem seja um ser inevitavelmente dedterminado por seu entorno (neste caso, um entorno com uma estrutura insólita, com leis determinantes e repressivas intransponíveis, às quais se deveria submeter). Mas e quanto à liberdade humana? Não existe liberdade de ação frente ao entorno? Está correta a teoria segundo a qual o homem é um mero resultado de fatores condicionantes, sejam biológicos, psicológicos ou sociológicos? Será que o homem é realmente um produto acidental desses fatores? E, o mais importante aqui, as reações psicológicas dos reclusos no mundo do campo de concentração, demonstram que o homem pode escapar da influência do entorno? Será que o homem carece, em tais circunstâncias, de capacidade para escolher se limita ou anula sua liberdade de ação?

Podemos responder a estas perguntas sob a óptica da experiência e também apelando a certos princípios. A experiência da vida em um campo de concentração demonstra que o homem mantém sua capacidade de escolha. Os exemplos são abundantes, frequentemente heroicos, que provam que se pode superar a apatia e a irritabilidade. O homem pode conservar um reduto de liberdade espiritual, de independência mental, inclusive nos mais terríveis estados de tensão psíquica e física.

Nós, sobreviventes dos campos, ainda nos lembramos das pessoas que iam aos barracões consolar os demais, oferecendo-lhes seu último pedaço de pão. Talvez não fossem muitos, mas estes poucos são a prova irrefutável de que do homem tudo se pode extrair, menos uma coisa: a liberdade humana - a livre escolha de ação pessoal perante as circunstâncias - para escolher seu próprio caminho.

E lá sempre havia condições para escolher. Cada dia, cada hora, brindava a oportunidade de tomar uma decisão, decisão essa que estipulava se a pessoa se submeteria ou não à pressão que ameaçava arrebatar-lhe o último vestígio de sua personalidade: a liberdade interior. Uma decisão que prefixava se a pessoa se converteria - ao renunciar à liberdade e à dignidade - em joguete das circunstâncias do campo, deixando-se moldar por elas até que se convertesse em um prisioneiro ¨típico¨.

Vistas deste ângulo, as reações psicológicas dos prisioneiros de um campo de concentração vão muito além da mera expressão de determinadas condições físicas e sociológicas. Por mais que elas todas - a falta de sono, a escassíssima alimentação e as múltiplas tensões psíquicas - nos induzam a supor um comportamento estereotipado dos reclusos, se notava, em uma análise mais profunda, que o tipo de pessoa que se convertia cada prisioneira era mais o resultado de uma decisão pessoal que o produto da tirania do Lager. Assim que cada homem, inclusive em condições trágicas, pode decidir quem quer ser - espiritual e mentalmente - e conservar sua dignidade humana.

Disse Dostoyevsky: ¨Só temo uma coisa: não ser digno de meus sofrimentos¨. Estas palavras visitavam constantemente minha mente ao conhecer esses mártires cuja conduta, sofrimento e morte no campo supunham um testemunho vivo de que o reduto íntimo da liberdade nunca se perde. Eles foram dignos de seu sofrimento; a maneira em que suportaram supõe uma verdadeira façanha interior. Preciasmente esta liberdade interior, que ninguém pode arrebatar, confere à vida intenção e sentido.

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O homem que se deixava vencer pela ausência de futuro ocupava sua mente com pensamentos retrospectivos. Já mencionei aqui a tendência de refugiar-se no passado para apaziguar o horror do presente tornando-o menos real. Mas despojar o presente de sua realidade acarreta certos riscos. Aplacado por esta irrealidade, o prisioneiro deixava de ralizar ações positivas no campo de concentração, e essas oportunidades eram reais, existiam de verdade. Considerar a ¨vida provisional¨ como algo irreal constituía em si um fator primordial para que os prisioneiros desinteressassem de suas vidas, já que tudo carecia de sentido. Estas pessoas se esqueciam que, muitas vezes, as circunstâncias excepcionalmente adversas outorgam ao homem a oportunidade de crescer espiritualmente além de si mesmo. Em vez de aproveitar as dificuldades do campo para testar sua inteireza, julgavam sua situação errônea, como um parênteses inconsistente do destino. Preferiam fechar os olhos e refugiar-se no passado. Para essas pessoas a vida perdia todo seu sentido.

Evidentemente eram poucos os que conseguiam alcançar estes cumes de desenvolvimento espiritual. Mas os que os alcançavam conquistavam a grandeza humana, apesar de seu aparente fracasso ou morte; uma façanha que talvez nunca houvessem conseguido em circunstâncias ordinárias. Aos demais, os medíocres e pusilânimes, se poderia afirmar que acreditavam que as verdadeiras condições de autorrealização já haviam passado, quando na verdade consisitiam precisamente no desafio de escolher o que fazer da vida no Lager: converter esta tremenda experiência em uma vitória, transformá-la em um triunfo interior, ou desdenhar a experiência e limitar-se a vegetar, como o fizeram quase todos os prisioneiros.

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O que é urgentemente necessário em tais situações é uma mudança radical de nossa atitude frente à vida. Devemos aprender por nós mesmos, e mostrar aos homens desesperados, que na realidade não importa o que esperamos da vida, mas o que importa é o que a vida espera de nós.

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Transmitir ao leitor em um espaço tão reduzido o conteúdo da logoterapia é uma tarefa que desanima a qualquer um. Lembro-me de um colega americano que, em miha clínica em Viena, me perguntou:

-- Diga-me, doutor, o senhor é psicanalista?
-- Não exatamente, na verdade sou psicoterapeuta. -- respondi.
-- A que escola pertence?
-- Sigo minha própria teoria; se chama logoterapia.
-- O senhor poderia descrever em poucas palavras em que consiste a logoterapia?
-- Sim -- lhe disse -- mas antes o senhor poderia definir o que entende por psicanálise?

Eis sua resposta:

-- Na psicanálise o paciente se deita em um divã e conta coisas que são agradáveis de dizer.

Seu enunciado me deu oportunidade para improvisar:

-- Na logoterapia o paciente fica sentado, bem ereto, e tem que ouvir coisas que não são agradáveis de escutar.

Comparada com a psicanálise, a logoterapia é um método menos introspectivo e menos retrospectivo. A logoterapia se propõe a romper o círculo vicioso dos mecanismos de retroalimentação que tanta importância têm no desenvolvimento da neurose. Desta forma não se alimenta o típico egocentrismo do neurótico, mas o rompe.

Aquela definição improvisada é válida, pois o neurótico pretende evadir sua responsabilidade vital; por outro lado a logoterapia desperta sua consciência para que entenda que o sentido da vida é o fundamento para superar a neurose.

De acordo com a logoterapia, a primeira força motivadora do homem é a luta para encontrar un sentido em sua vida. Por isso faço alusão à vontade de sentido, em contraste tanto com o princípio do prazer (vontade de prazer) da psicanálise freudiana como com a vontade de poder que enfatiza a psicologia de Alfred Adler.

O homem é capaz de perder sua vontade de sentido, e neste caso a logoterapia fala de ¨frustração existencial¨. A frustração existencial também pode traduzir-se em neurose. A este tipo de neurose a logoterapia chama de ¨neurose noógena¨ em contraposição à neurose em sentido estrito: a neurose psicógena. A neurose noógena tem sua origem na dimensão noológica (do grego noûs, que significa ¨mente¨) da dimensão humana, não em sua dimensão psicológica. Este termo logoterápico denota sua vinculação com o núcleo ¨espiritual¨ da personalidade humana.

As neuroses noógenas não surgem do conflito entre impulsos e instintos, mas de problemas existenciais. É evidente, portanto, que a terapia mais apropriada para as neuroses noógenas não é a psicoterapia tradicional, mas a logoterapia: uma psicoterapia que adentra na dimensão espiritual.

Nego taxativamente que a busca de um sentido, ou a dúvida se existe esse sentido, proceda ou seja o resultado de uma enfermidade. A frustração existencial em si mesma não é patológica nem patogênica. A preocupação, ou a desesperação, por encontrar na vida um sentido valioso revela uma angústia espiritual, mas de modo algum supõe uma enfermidade.

A logoterapia entende que sua função é ajudar o paciente a encontrar o sentido de sua vida; portanto procede de uma modo analítico a ativar na consciência o logos oculto de sua existência.

Me atreveria a afirmar que, mesmo nas piores condições, nada no mundo ajuda a sobreviver como a consciência de que a vida esconde um sentido. Há muita sabedoria nas palavras de Nietzsche: ¨Quem tem um porquê para viver pode suportar quase qualquer como¨.

A saúde psíquica precisa de certo grau de tensão interior, a tensão entre o que se conseguiu e o que se há de conseguir; ou a distância entre o que se é e o que se deveria chegar. Esta tensão é inerente ao ser humano e, portanto, indispensável para o bem-estar psíquico. Considero errôneo e perigoso para a higiene psíquica tomar por verdade que o homem necessita antes de mais nada de equilíbrio interior ou, como se denomina em biologia, ¨homeostase¨: um estado sem tensões, em equilíbrio biológico interno. O que o homem necessita não é viver sem tensão, mas esforçar-se e lutar por uma meta que valha a pena.

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Duvido que exista algum médico que possa fornecer o sentido da vida com noções gerais, pois o sentido da vida difere de um homem a outro, de um dia a outro, de uma hora a outra. Postular a questão em termos gerais equivale à pergunta que se fez a um campeão de xadrez: ¨Qual a melhor jogada de xadrez?¨ Simplesmente não existe resposta possível; nunca existirá uma boa jogada, ou a melhor jogada, sem referência a uma determinada partida e à personalidade do oponente. Assim também acontece com a existência humana; não deveríamos buscar um sentido abstrato à vida, pois cada um tem uma missão ou um objetivo a cumprir.

Em última instância o homem não deveria questionar-se sobre o sentido da vida, mas compreender que é a ele a quem a vida interroga. Em outras palavras, a vida pergunta pelo homem, questiona ao homem, e este responde de uma única maneira: respondendo de sua própria vida e com sua própria vida. Somente com a responsabilidade pessoal se pode responder à vida.

Por isso que o logoterapeuta seja o menos indicado, entre os psicoterapeutas, para impor ao paciente algum juízo de valor, pois nunca deixará que o paciente transfira a ele a responsabilidade por julgar sua vida.

Tentarei explicar com uma ilustração. O papel do logoterapeuta é mais parecido com o de um oftalmologista do que de um pintor. O pintor oferece uma imagem ao mundo tal qual ele o vê; o oftalmologista, por outro lado, quer que vejamos o mundo tal qual ele realmente é. A função do logoterapeuta consiste em alargar o campo visual do paciente até que visualize responsavelmente o amplo espectro de valor e de sentido de seu horizonte existencial.

Quero destacar aqui que o sentido da vida se deve buscar no mundo, não dentro do ser humano ou da psique, como se fosse um mundo fechado. Por isso mesmo a verdadeira meta da existência humana não se reduz à autorrealização. A autorrealização por si mesma não pode ser uma meta. Não se deve considerar o mundo como expressão de si mesmo, nem como instrumento, nem como meio para a autorrealização.

Fonte: Viktor Frankl, El Hombre en Busca de Sentido, Herder Editorial, Barcelona, Espanha, 2016, trechos selecionados.