19 de maio de 2011

Filosofia bizantina III


O objetivo da terceira parte da série "Filosofia bizantina" é descrever como o conceito de livre arbítrio é analisado por São João Damasceno (+780). Esta avaliação baseia-se no capítulo 4, de autoria de Michael Frede, publicado em Byzantine Philosophy and Its Ancient Sources, editado por Katerina Ierodiakonou.

Michael Frede inicialmente traça um panorama das principais questões acerca do livre arbítrio para, em seguida, delinear o processo da vontade em passos simples.

A compreensão da ação humana exige necessariamente que compreendamos o exercício da vontade. Curiosamente, observa-se que o uso da vontade afeta a própria vontade. A vontade será livre, e por conseguinte a pessoa será livre, se a vontade não for reduzida ou restringida – se a capacidade de fazer as escolhas certas não for reduzida, por exemplo, pelo fato de habitualmente ter-se feito escolhas erradas em determinadas situações.

Aristóteles ensinava que a pessoa que chegasse à conclusão de que algo é bom ou é um bem naturalmente a quereria. No entanto, Aristóteles nunca especificou que o homem, para querer algo, possui uma capacidade especial para isso, ou seja, nunca deixou claro que o homem possui uma faculdade como a vontade. No entanto, a partir do século I d.C., a capacidade de querer coisas passou a ser pensada como uma capacidade distinta. Ademais, São João Damasceno também não advogou nada neste sentido que possa ser encontrado no pensamento antigo. Porém, os escritos de São João sobre o assunto são um excelente exemplo de filosofia bizantina que se apóia na Antiguidade, pois, apesar de diferenciar-se dela, não deixa de contar com fontes antigas como Nemésio de Emesa e Aristóteles. Assim, o que São João procura fazer é injetar a noção de vontade na psicologia moral e na teoria da ação de Aristóteles.

O termo que São João usa para “vontade” é θέλησις. Os termos que os antigos usavam eram προαίρεσις e βούλεσις. Βούλεσις significa, desde os tempos de Platão, “desejar racionalmente”, bem como a capacidade para ter e formar tais desejos. Προαίρεσις significa “escolher”, bem como a capacidade para fazer tais escolhas. Θέλησις significa um querer ou um desejar particulares, bem como a capacidade para querer coisas genericamente falando. O fato de Deus possuir uma vontade, mas não fazer escolhas, torna o termo προαίρεσις inadequado. O fato de que as criaturas racionais não apenas desejam coisas, mas possuem a capacidade de fazer escolhas que satisfaçam esses desejos racionais, torna o termo βούλεσις igualmente inadequado. Portanto, São João lançou mão do termo θέλησις, não por motivos puramente coloquiais, nem por causa da autoridade do Novo Testamento. Ele o usa porque este é o termo que julga mais adequado para expressar o conceito que tem em mente – a vontade – que não deve ser identificada meramente como a capacidade de escolher. Vejamos como isso funciona.

São João segue a velha tradição platônica de dividir a realidade em dois mundos: inteligível e sensível. O mundo inteligível é habitado por intelectos, o mundo sensível por corpos. Porém, São João ensina que os intelectos possuem vontade. Isto soa um tanto estranho para nós, filhos que somos da modernidade, pois estamos acostumados com uma visão “intelectualística” do intelecto e da razão. Pensamos na razão em termos puramente cognitivos, o que é um erro um tanto grosseiro.

Há, porém, segundo São João, uma divisão anterior e mais radical do que a platônica: a divisão entre Deus e as criaturas, ou seja, entre o Incriado e o criado. Ele enaltece esta divisão chamando os seres que detêm intelectos criados de “racionais” (λογικόν), e não propriamente “intelectuais” (νοέρον). Um ser, pelo fato de ser intelectual, possui uma vontade; um ser, pelo fato de ser racional, possui certo tipo de vontade, a saber, uma vontade capaz de fazer escolhas, escolhas essas que um ser racional tem de fazer. Eis como São João distingue racional de intelectual (Expos 2. 27):
A razão consiste em um aspecto teorético (θεωρητικόν) e outro prático (πρακτικόν); o aspecto teorético é aquele que entende como as coisas são, enquanto o aspecto prático é aquele que delibera (βουλευτικόν), que determina como devem ser as coisas a serem feitas. Chamamos o aspecto teorético de intelecto (νους) e o aspecto prático de razão (λόγος).
Parte desta explicação baseia-se na noção platônica de que o intelecto contempla a verdade eterna; ocorre que a alma racional não apenas contempla a verdade mas ocupa-se em ordenar o mundo visível de maneira a refletir a verdade eterna, cuja atividade, no caso dos seres humanos, anjos e demônios, ou seja, de todos os intelectos criados, implica em λογισμοί e deliberações.

Enquanto os objetos físicos são passíveis de corrupção pelo fato de estarem sujeitos a mudanças físicas, os seres racionais são passíveis de corrupção pela maneira como fazem escolhas (κατά προαίρεσιν, Exp. 2. 27; 960C). Se fizerem a escolha errada, manifesta-se aí a corrupção. Uma escolha errada dá origem a outra escolha errada, e rapidamente a corrupção toma conta da capacidade de fazer escolhas. Dá-se, assim, ensejo à corruptibilidade “moral” da racionalidade. Se a mudança física dos objetos é neutra, a mudança na racionalidade pode sempre ser considerada para melhor ou para pior. Ademais, ao contrário dos objetos físicos, a racionalidade não muda pó si própria, mas pela maneira como fazemos uso dela, a ponto de o hábito de fazer escolhas certas tornar-se a segunda natureza da racionalidade.

São João conecta as duas características, quais sejam, de ser racional (λογικόν) e ser mutável (τρεπτόν), com a característica de ser αυτεξούσιον, ou seja, de autodeterminar-se o que se faz. É por causa da racionalidade que a pessoa é capaz de controlar o que está fazendo. Embora saibamos que a racionalidade é mutável, ocorre que temos controle sobre a maneira como ela muda. O quê pensamos não é uma questão da coisa que pensamos e da capacidade intelectual para pensá-la, mas também é uma questão do cuidado e da atenção que dispensamos ao pensá-la. É precisamente neste sentido que, por sermos racionais, somos αυτεξούσιοι.

No entanto, cabe aqui uma observação importante. Assim como Aristóteles, São João também atribui comportamento voluntário e involuntário aos animais. Isso significa dizer que a diferença entre o comportamento humano e o comportamento animal não reside na diferença entre o comportamento ser originado em suas próprias inclinações ou ser forçado exteriormente sobre o indivíduo/animal. A verdadeira diferença está no fato dos homens exercerem algum domínio sobre suas inclinações a-racionais, enquanto os animais não exercem tal domínio precisamente por não serem racionais. Observe a sutileza do raciocínio: o comportamento animal também pode ser voluntário; mas voluntário, aqui, significa agir segundo suas inclinações em oposição a ser forçado por circunstâncias exteriores. O homem também age voluntariamente, no sentido acima indicado, mas, além disso, também é capaz de dominar suas inclinações a-racionais.

O erro, portanto, é identificar a αυτεξούσιον com a liberdade de vontade (“livre arbítrio”) ou com a liberdade de escolha. Basta observar que São João também aplica o termo αυτεξούσιος a Deus. Ora, como Deus não faz “escolhas”, o sentido fundamental de αυτεξούσιον não pode ser livre arbítrio ou livre escolha. São João explica ainda que é da própria essência de Deus ser αυτεξούσιος, não de maneira que Ele seja apenas mais um a ser αυτεξούσιος, mas de maneira que Ele seja a própria fonte e paradigma de toda αυτεξουσιότης, à exemplo da bondade de Deus.

Os seres criados racionais, por não serem naturalmente bons, já que não são Deus, nem sempre fazem o bem. No entanto, por serem criaturas de Deus, também nem sempre fazem o mal. O mais importante é o fato de eles terem controle sobre suas ações, ou seja, de terem liberdade de ação. Sim, é verdade, a liberdade de ação implica liberdade de escolha. Mas há outras coisas que os seres racionais fazem que também estão de certa forma relacionadas à liberdade de escolha. Refiro-me ao pensamento. Antes de agir, antes mesmo de escolher, as criaturas racionais pensam sobre determinada situação de uma determinada maneira/atenção/cuidado, e, não fosse assim, não fariam esta ou aquela escolha.

É verdade que nos escritos de São João a liberdade de escolha tem certa posição de destaque. Mas isso se explica pelo fato de que é a escolha que diferencia os seres intelectuais criados dos animais e de Deus. Ademais, a ação nunca é tão livre quanto a escolha, já que a ação implica sempre em algum grau de cooperação divina. Por fim, tudo o que os seres racionais fazem, à parte a contemplação teorética, tem seu fim natural em alguma ação.

O fato dos homens escolherem o mal não advém da capacidade que lhes é inata, mas da dificuldade em exercê-la, da enorme atenção e esforço necessários para a tarefa, da racionalidade estar sujeita à corrupção e à mudança, da possibilidade de serem distraídos, e de muitos outros fatores. São João, ao contrário do que comumente se pensa, não ensina que a escolha se dá entre o certo e o errado, mas que a escolha é feita mediante a deliberação acerca de uma única opção a fim de decidir-se se ela é de nosso apreço ou desapreço. Se for suficientemente de nosso apreço, escolhemos agir da forma sugerida. Se não for de nosso apreço, não escolhemos agir da forma sugerida. Observe que isto não é o mesmo que escolher não agir da forma sugerida: ou escolhemos fazer, ou não escolhemos fazer; em outras palavras, ou isto é de nosso apreço, ou isto não é de nosso apreço. A explicação de São João não deixa margem para a possibilidade de considerarmos várias opções no decurso da deliberação. Porém, no momento em que escolhemos, as demais opções já foram eliminados por alguma outra atividade racional.

Assim, o “livre arbítrio” não é propriamente a liberdade de escolher entre o certo ou errado, ou de escolher entre isto e aquilo, mas a liberdade para escolher fazer aquilo que se está inclinado a fazer, dentro da esfera de ações possíveis. Esta capacidade para escolher fazer o que se está inclinado a fazer não é impedida pelo fato de que porventura sejamos forçados a não escolher fazer. Ora, a idéia de que o livre arbítrio significa a escolha entre o certo e o errado implica necessariamente que Deus nos garante a possibilidade de sabermos o que é certo e o errado no momento de alguma decisão, o que é falso.

Não existe “escolher” sem “querer”. Portanto, se se quer algo, será necessário pensar se algo pode ser feito para alcançar o que se almeja e, caso positivo, quais são as opções disponíveis, se há mais de uma, se são aceitáveis. É com base nestas considerações que se escolhe e se age sobre a escolha. O processo inteiro de desejo racional é descrito por São João Damasceno de maneira muito semelhante à de São Máximo, o Confessor.

(i) Considera-se se o que se quer é o tipo de coisa que está ao alcance do indivíduo. (ξήτησις ou σκέψις).

(ii) Caso positivo, passa-se à deliberação (βούλευσις) se aquilo que está ao alcance deve ser perseguido.

(iii) Forma-se um julgamento (κρίσις) sobre qual das opções é a melhor.

(iv) Não é este julgamento que decide a escolha ou a ação. Para isso é necessário a γνώμη, isto é, uma disposição favorável à ação almejada. Em outras palavras, temos de amá-la. Freqüentemente julgamos determinado curso de ação como o melhor, mas não o apreciamos. Não por acaso, Burgúndio de Pisa traduziu γνώμη como sententia, no sentido de “consentimento”.

(v) Escolhe-se (προαίρεσις) adotar o curso de ação ou não se escolhe adotar o curso de ação. Os termos “seleção” e “eleição” também cabem aqui.

(vi) Feita a escolha, o indivíduo é impelido em favor da ação. Chama-se a isso de “impulso” (ορμή).

(vii) No decurso da ação, faz-se uso (χρήσις ) da capacidade de desejar coisas, como por exemplo a capacidade de ter um apetite a-racional por algo, ou a capacidade de ter aversão a algo. Assim, a ação pode aliar-se a bom ou mau uso das capacidades desiderativas.

São João ensina que a alma é dotada da capacidade de desejar aquilo que é apropriado à natureza do ser, da capacidade de ocupar-se da integridade do ser. Em suma, a vontade é a capacidade de inclinar-se para a promoção da existência e da integridade e contra o que é prejudicial à existência e à integridade, contra aquilo que leva à corrupção e à destruição. São João sugere que naturalmente desejaríamos o que é bom ser desejado. A fonte desta capacidade reside na capacidade de formar desejos racionais corretos, ou seja de formar βουλήσεις corretos. São João estava convicto de que os homens foram criados já com certa sabedoria e virtude, que foram criados já com certa inclinação para a perfeição, na qual podem prosseguir, mas também podem regredir.

Por fim, cabe reforçar que a escolha errada pode ensejar, com a repetição, uma deficiência nos βουλήσεις, o que engendrará racionalizações dos erros e fraquezas perante os desejos a-racionais. Escolhas são moldadas pelos hábitos. Mas, conforme dissemos acima, os homens permanecem αυτεξούσιος. Frede conclui que, para São João, diferentemente de Aristóteles, a ação nunca é tomada sem uma escolha anterior. A ação até pode se basear em um desejo a-racional, mas nunca sem uma escolha.