29 de agosto de 2008

A vida de Ivan Kireyevsky

Esta breve biografia de Ivan Kireyevsky foi originalmente publicada em russo na monumental obra de Ivan M. Kontzevitch Optina Pustyn i Eya Vremya (O Mosteiro de Optina e Sua Era) (Jordanville, Nova York: Holy Trinity Monastery, 1970), pág. 201ff. Muitos anos mais tarde, Valentina V. Lyovina traduziu-a para a língua inglesa, onde foi incluída como apêndice em Elder Macarius of Optina (Platina, Califórina: St. Herman of Alaska Brotherhood, 1995), pág. 291-307, na qual esta tradução portuguesa se baseou. Trata-se do retrato de um homem extraordinário, cuja vida foi fruto sobretudo da relação espiritual com seu staretz, São Macário de Optina, e cuja devoção à essência e à santidade do Cristianismo são particularmente notáveis.

Foto: Ivan Kireyevsky e sua esposa, Natália Kireyevsky.

Leia também: A antropologia e a epistemologia da filosofia de Ivan Kireyevsky e Da necessidade e da possibilidade de novos princípios na Filosofia.

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A iniciativa de tomar para si a tarefa de publicar as obras dos Santos Padres foi de Ivan Vasilievich Kireyevsky e do Ancião Macário de Optina. Graças a eles, academias teológicas, seminários, bispos, reitores e inspetores puderam obter esses livros, enquanto monges e todo o povo russo espiritualmente inclinado ganharam acesso a uma literatura ascética outrora indisponível. A Verdadeira Ortodoxia resplandeceu e fortaleceu-se no combate à invasão dos livros ocidentais que continham falsas orientações espirituais. O surgimento destes manuscritos para o mundo foi um evento cuja importância não pode ser expressa em palavras.

Outra realização de Kireyevsky, conforme atesta a história da filosofia russa, foi o lançamento dos fundamentos para uma filosofia russa independente. Conforme declarou o Prof. Nicholas O. Lossky [pai do eminente teólogo russo Vladimir N. Lossky – N. do T.]: “embora [Kireyevsky e Khomiakov] não tivessem criado um sistema filosófico, eles iniciaram um movimento filosófico-espiritual que produziu as mais originais e valiosas realizações do pensamento russo” [1].

O princípio básico da filosofia de Kireyevsky é o seguinte: “A doutrina da Santíssima Trindade não atrai a mente apenas porque é o foco de todas as verdades sacras que nos foram reveladas, mas porque – conforme pude concluir enquanto me ocupava de um ensaio sobre filosofia – a direção da filosofia depende, antes de qualquer coisa, do entendimento que temos sobre a Santíssima Trindade”. [2]

Ivan Vasilievich Kireyevsky foi filho de pais maravilhosos. Seu pai, Basílio Ivanovich, segundo-major da Guarda Real, era um rico proprietário de terras, dono da vila de Dolbino, a 24 milhas [38,6 km] do Mosteiro de Optina. Basílio era conhecido por ser um homem extraordinariamente gentil. Ele tinha um amor genuíno e intenso pelas pessoas, estava sempre disponível para compartilhar as dores do próximo e a ajudar quem estivesse necessitado. Ele dedicou sua vida, que infelizmente não foi longa, a atos de compaixão. Em 1812, viajando para Orel, uma cidade próxima a uma de suas vilas, ele doou suas duas casas, uma na cidade e outra no campo, para serem usadas de hospitais pelos feridos, refugiados e famílias que fugiam dos distúrbios ao longo da estrada de Smolensk. Ele visitava pessoalmente os doentes, mas acabou sendo acometido por febre tifóide e morreu em Orel em 1º de novembro de 1812, no dia em que se comemoram os Santos Médicos Anárgiros Cosme e Damião, cumprindo até o fim os mandamentos do Cristo.

Além de virtuoso, Basílio Ivanovich Kireyevsky era um sujeito original: ele era anglófilo, estudava química e medicina e comprou as obras de Voltaire só para queimá-las. Ele adorava ler deitado no chão e não ligava para sua aparência. Enquanto vivia em Moscou durante os partos de sua jovem esposa, Basílio passava dias inteiros em livrarias, e em meio às distrações acabou deixando sua esposa sem dinheiro e sem saber como prover sua grande família.

Ele punia seus servos obrigando-os a fazer prostrações. Os funcionários públicos eram punidos da mesma maneira quando Basílio assumiu o cargo de juiz. “Negligência no dever é culpa perante Deus”, dizia.

Sua esposa, Avdotia Petrovna, de família nobre, era culta e educada. Se ele era do tipo moral, ela representava o tipo estético. Dotada de talento literário, ela escrevia e traduzia. Ela adorava flores, poesia e arte, e também pintava. Ela auxiliou V. A. Zhukovsky em suas traduções. Eles eram parentes: ela era filha da irmã adotiva mais velha de Zhukovsky, a qual era também madrinha dele e, de certa maneira, tutora e amiga de infância. Quando Avdotia ficou viúva e se casou com A. A. Elagin, ela mantinha em Moscou um famoso salão onde todas as figuras famosas e de destaque se encontravam para trocar idéias. Foi assim por décadas, até sua morte.

Após a morte de Basílio Ivanovich Kireyevsky, Zhukovsky viveu mais de um ano com sua parenta. A personalidade de Zhukovsky deixou uma forte impressão na alma do jovem órfão Ivan. O relacionamento deles durou por toda a vida.

O padrasto de Ivan, A. A. Elagin, deu a seus enteados uma educação maravilhosa. Eles começaram estudando matemática, línguas estrangeiras (francês e alemão) e leram muitos livros sobre literatura, história e filosofia da biblioteca de seu falecido pai. Em 1822, toda a família viajou a Moscou a fim de que completassem sua educação, onde professores da universidade lhes aplicaram exames particulares. Além disso, Ivan assistiu a palestras sobre ciências naturais proferidas por M. G. Pavlov, um seguidor de Schelling. Seu colega de estudos era A. I. Koshelev. Por essa época, os irmãos Kireyevsky estavam estudando inglês e línguas clássicas. Porém, o conhecimento lingüístico deles não era muito amplo, de maneira que Ivan Vasilievich teve de continuar estudando quando, anos mais tarde, assumiu um papel ativo na tradução dos Santos Padres em Optina. Pouco tempo depois, Kireyevsky fez o exame nacional, como então era chamado, perante o comitê, e começou a trabalhar nos Arquivos da Faculdade para Estrangeiros. A estréia literária de Kireyevsky deu-se em um artigo sobre Pushkin, publicado no Mensageiro de Moscou em 1828, chamado “Uma Nota sobre as Características da Poesia de Pushkin”. Este ensaio foi provavelmente a primeira tentativa em russo de tecer uma crítica séria e um elogio eminentemente artístico de Pushkin, inspirado em Zhukovsky. No ano seguinte, ele publicou um artigo chamado “Uma Avaliação da Literatura Russa para 1829”, no almanaque de Maximovitch A Estrela da Manhã.

No mesmo ano, ele pediu a mão de Natália Petrovna Arbenina em casamento, sem sucesso. Doente, Kireyevsky viajou para o exterior, onde assistiu a aulas em Berlim e Munique sobre teologia, filosofia e história. Entre os professores estavam Hegel e Schelling, com quem manteve relações pessoais. Após um ano, ele retornou à sua terra-natal e começou a publicar a revista O Europeu. Duas edições foram publicadas. A revista era bem-intencionada, mas foi considerada propaganda revolucionária pelo governo. Zhukovsky não pôde salvar Ivan Vasilievich do exílio administrativo. Deste momento em diante, uma sombra negra de suspeitas políticas pairaria sobre Kireyevsky, que, ao longo de toda sua vida, não permitiu que ele demonstrasse seus talentos e potenciais. Em 1834, ele enfim casou-se com a mulher que amava.

Após o casamento de Kireyevsky e durante os próximos doze anos de sua vida em Dolbino, seus deveres civis limitavam-se aos de inspetor da escola pública de Belev, onde foi homenageado por sua postura conscienciosa para com o trabalho. Essa vida calma em uma vila pacata poderia sugerir a um “biógrafo” mal-intencionado que Kireyevsky adentrara numa espécie de sono ou inatividade. Mas estes não foram anos perdidos para Kireyevsky – pelo contrário, foram anos de grande aprofundamento mental e espiritual. Se em sua juventude ele acreditava no progresso europeu e era um ocidentalista (enquanto trabalhava de editor no Europeu), agora ele havia mudado drasticamente seus pontos de vista. Ivan Vasilievich tornou-se o “Kireyevsky” cuja imagem está estampada na história de nossa cultura espiritual. Os anos que passou estudando livros científicos alargaram seus conhecimentos. Nos anos 1840, ele novamente tentou entrar na esfera pública, mas não obteve sucesso. Ele tentou uma cadeira na Universidade de Moscou, mas foi rejeitado. Seu desejo de expressar plenamente as convicções filosóficas que amadureceram em suas contemplações no calmo interior era tão insistente que ele decidiu assumir a editoria da revista O Moscovita, publicada por Pogodin (1844). A censura e o temperamento difícil do editor, porém, compeliram Ivan Vasilievich a pedir demissão após as primeiras três edições.

Há muito o que dizer a respeito do que teria causada e auxiliado Ivan Vasilievich a formar sua visão de mundo. Por um lado, seu irmão Pedro Vasilievich, de quem era amicíssimo, e por outro, sua esposa, Natália Petrovna.

Pedro Vasilievich lutava pela preservação da “russidade” no povo russo. É nisto que residia todo o sentido de sua existência; ele não tinha vida privada. Ele colecionava antigos poemas espirituais e canções folclóricas. O poeta Yazikov o chamava de “o grande sofredor da antiga Rus” e “o iluminado asceta da herança de seu povo”.

“A plenitude da vida nacional só pode existir”, dizia Pedro Kireyevsky, “onde a tradição é respeitada; e onde a tradição encontra espaço, um espaço será dado à vida...”. “Toda imitação é uma concentração de morte. Aquilo que está vivo é original. Quanto mais plena a existência do homem, tanto mais distinta será sua face e tanto menos similar às demais. Aquilo que chamamos de fisionomia humana comum implica em nada mais do que uma face que lembra a de todo mundo, isto é, uma fisionomia vulgar”. É notável a profunda consciência de Pedro Vasilievich Kireyevsky da importância da preservação do modo de vida do povo russo, de suas características singulares, para que não acabe tendo “a mesma face de todo mundo” e não perca sua identidade nacional. Ele estava ciente do profundo trauma infligido no povo russo um século e meio atrás, quando a europeização súbita e violenta foi imposta sobre a vida de todos.

O pensamento de Pedro Vasilievich não foi desperdiçado pelo seu irmão mais velho. Mas no que concerne as questões religiosas, a influência sobre Ivan veio de sua esposa, Natália Petrovna. Ivan Kireyevsky jamais foi ateu. Mesmo durante o tempo que passou na Alemanha, em 1830, ele aconselhava sua irmã a ler o Evangelho diariamente. Mas embora fosse cristão, Ivan Vasilievich não era um membro atuante da Igreja Ortodoxa. Ele estava distante da Igreja, assim como praticamente toda a classe culta daquela época. Sua esposa era de um tipo diferente: ela era filha espiritual do Ancião Filareto do Mosteiro de Novospassky. Quando jovem, ela viajou ao Mosteiro de Sarov e conversou com São Serafim. Por causa disso, o abade da Lavra de São Sérgio-Santíssima Trindade, Arquimandrita Antônio, a chamava de “irmã” em suas cartas [porque o Arquimandrita Antônio era filho espiritual de São Serafim].

Um encontro com o Pe. Filareto de Novospassky foi decisivo na vida de Ivan Kireyevsky: Mas os dias do ancião já estavam contados. Após seu repouso, o Pe. Macário de Optina tornou-se o ancião do casal Kireyevsky.

Kireyevsky escreveu a seu amigo Koshelev: “Mais importante do que qualquer livro ou raciocínio é encontrar um santo ancião ortodoxo que possa te guiar e a quem você possa confessar cada pensamento e ouvir não exatamente sua opinião, por mais inteligente que seja, mas o julgamento dos Santos Padres”. Ele encontrou essa felicidade excepcional na figura do Pe. Macário!

De todos os leigos que freqüentavam o Mosteiro de Optina, Kireyevsky era a pessoa mais próxima a seu espírito. Como ninguém, ele entendia sua importância de pináculo espiritual, onde os maiores feitos espirituais de atividade interior, coroados com abundantes dons da graça pela aquisição do Espírito Santo, eram combinados com dedicação total ao mundo em suas necessidades espirituais e materiais. Em Optina, ele presenciou a sabedoria dos Santos Padres ao vivo. Enquanto filósofo, ele percebeu que o conhecimento superior da verdade está intimamente ligado à integridade de espírito, à restauração da harmonia de todos os poderes espirituais do homem. Essa restauração é alcançada pelo esforço ascético interior, pela atividade espiritual. Kireyevsky, em suas pesquisas filosóficas, sobretudo em seu ensinamento sobre o conhecimento (epistemologia), apontou para a dependência interior (laço funcional) entre as capacidades cognitivas do homem e os esforços espirituais, os quais transformam a condição natural e inferior do poder humano em sabedoria espiritual superior (ligando filosofia com asceticismo).

Na função editorial de Optina, Ivan Vasilievich teve a oportunidade de estudar toda a literatura patrística. Já que havia recebido uma excelente educação filosófica em casa e a havia suplementado durante sua estada na Alemanha, ele estava totalmente familiarizado com a cultura ocidental. Em Kireyevsky, a tradição filosófica ocidental encontrava-se com a tradição da Igreja Oriental. Como esse encontro de dois princípios opostos se resolveu?

A resposta a essa questão estava dada em seu ensaio “Das Características do Iluminismo Europeu e sua Relação com o Iluminismo da Rússia”, impresso em 1852 na Antologia de Moscou, a publicação de um círculo eslavófilo. Esse ensaio incorreu em censura por causa da antologia; mas não havia nada nela contra o Estado. O sentido do ensaio é o seguinte:

Já que estudara no Ocidente e o conhecera bem, Kireyevsky criticava duramente sua cultua. O Ocidente havia entrada em um beco sem saída. A doença espiritual da cultura ocidental é “o triunfo do racionalismo”. É nisto que reside sua essência, conforme testifica o Prof. V. Zenkovsky: “A acusação de racionalismo contra o Ocidente surgiu no próprio Ocidente, no século XVIII, tanto na França quanto na Alemanha”. [3]

Kireyevsky versou em detalhes sobre essa doença européia: “O iluminismo europeu atingiu a plenitude de seu desenvolvimento, mas o resultado desse desenvolvimento foi um sentimento quase universal de descontentamento e esperança traída. O próprio triunfo da mente européia revelara a unilateralidade de suas aspirações fundamentais... A vida em si foi desprovida de sentido essencial” [4]. “A análise fria de muitos séculos destruiu os fundamentos sobre os quais, desde o começo de seu desenvolvimento, o iluminismo europeu se assentou. Consequentemente, seus próprios princípios básicos (isto é, os princípios do Cristianismo) se tornaram estranhos e alheios. Essa análise que destruiu suas raízes – essa faca racional automotora, esse silogismo, que não reconhece mais nada a não ser a si próprio e suas experiências individuais, esse racionalismo despótico, essa atividade lógica – apartou-se dos demais poderes cognitivos do homem” (Vol. II, pág. 232). “O mundo ocidental, assim como o Oriente, vivia originalmente pela fé, mas a própria fé foi arruinada quando Roma colocou os silogismos acima da consciência do Cristianismo” (Vol. II, 285). Kireyevsky mostrou que essa ruína resultou em “primeiramente, no desenvolvimento da filosofia escolástica dentro da fé, depois na Reforma da fé e, finalmente, na filosofia fora da fé” (Vol. II, 284). “A Igreja Ocidental substituiu a autoridade interior da fé pela autoridade exterior de sua hierarquia (quando, arbitrariamente e sem o consentimento do Oriente, alterou o Símbolo da Fé)”. Isso “desembocou...no racionalismo, isto é, no triunfo da razão autônoma”, [5] que, por sua vez, desembocou na inevitável desintegração da unidade espiritual. “O dualismo e o racionalismo são as expressões últimas da cultura ocidental” [6].

O Ocidente negligenciou a sabedoria oriental. Seus acadêmicos tornaram-se especialistas em todas as antigas filosofias: egípcia, persa, chinesa, hindu etc. Mas eles estavam fechados ao misticismo da Igreja Ortodoxa. A Rússia, por outro lado, herdou de Bizâncio grandes tesouros da sabedoria espiritual contida nas obras dos Santos Padres. Por conseguinte, a tarefa histórica da Rússia era construir sobre a rica herança bizantina uma nova cultura espiritual, que se impregnaria em todo o mundo. Kireyevsky apresentou o problema em sua totalidade. De acordo com ele, a filosofia russa deveria ter se apoiado sobre “o profundo, vivo e puro amor à sabedoria dos Padres da Igreja, que é o embrião do princípio filosófico superior” (Vol. II, 332).

“A tarefa da filosofia russa não é rejeitar o pensamento ocidental, mas suplementá-lo com o que é revelado em visões espirituais superiores – a experiência viva do ‘conhecimento superior’ – nas quais a integridade de espírito, perdida na Queda e arruinada pelo triunfo do pensamento lógico no Cristianismo Ocidental, seja restaurada” [7].

O ensaio de Kireyevsky, conforme mencionamos, foi publicado na revista eslavófila Antologia de Moscou. Embora Ivan Vasilievich tivesse abandonando os ocidentalistas e se encontrasse em meio a eslavófilos, entre os quais seus grandes amigos A. S. Khomiakov e sobretudo Koshelev, na nossa opinião, é um erro classificá-lo como “eslavófilo”. Não há absolutamente nada em seus textos e ensaios que justifique classificá-lo dessa forma. Ele lutou, ao lado de seu irmão, pela preservação da identidade russa. Nossas raízes bizantinas, sobre as quais a Ortodoxia fundou-se, lhe eram tão caras quanto para Konstantin Leontiev. No mesmo artigo, ele diz: “Os ensinamentos dos Santos Padres da Igreja Ortodoxa chegaram à Rússia, digamos assim, juntamente com a primeira badalada do sino cristão; por meio deles a mente russa enraizou-se e nutriu-se” [9]. Em um artigo bem anterior (“Uma Resposta a Khomiakov”), ele escreveu: “Esses eremitas, trocando uma vida de confortos pela floresta, estudaram, em desfiladeiros inacessíveis, as obras dos mais profundos sábios da Grécia cristã, e retornaram para ensinar às pessoas que eram capazes de entendê-los”. Palavras semelhantes encontramos em C. N. Leontiev: “O espírito bizantino, os princípios e a influência bizantina, com uma complexidade semelhante a do sistema nervoso, penetrou o grande organismo social russo. A Rússia deve a ela [Bizâncio] seu passado...”. (Bizâncio e os Eslavos). Não é de surpreender, portanto, que os ocidentalistas considerem Kireyevsky um eslavófilo. “Respeito Kireyevsky de toda minha alma”, escreveu Granovsky, “apesar de sua total oposição às nossas convicções. Há tanta santidade, objetividade e fé nele como nunca havia visto em ninguém antes...”. A. Herzen expressou-se com pesar sobre Kireyevsky: “Entre nós encontram-se os muros da Igreja...”. Os irmãos Kireyevsky não se alistaram a uma única corrente ideológica sequer. Herzen também atestara esse fato: “Ele [Kireyevsky] não era íntimo de ninguém: nem de seus amigos, nem de nós. Ao seu lado estava seu irmão e amigo Pedro. Ambos sempre pareciam tristes nos debates e reuniões; é como se as lágrimas ainda não tivessem secado, como se uma grande desgraça tivesse lhes acometido ainda ontem”. Essa tristeza era compreensível: nem à época e nem após sua morte os Kireyevsky foram compreendidos ou valorizados. Eles ainda aguardam um pesquisador sério e desapaixonado... Ambos desejavam a renovação da vida nacional. “O que é vida nacional?”, perguntou Pedro Kireyevsky. “É como tudo o que é vivo, não cativo a qualquer fórmula. A tradição é necessária”. Eles entendiam essa tradição como o fundamento da genuína cultura russa e sua transfiguração no espírito da Ortodoxia.

Em 1856, na antologia russa Conversações Russas, o último ensaio de Kireyevsky foi publicado: “Da Possibilidade e da Necessidade de Novos Princípios na Filosofia”. Foi este o ensaio que traçou os rumos para um pensamento independente na filosofia russa. Muito antes, em 1848, o poeta Khomiakov dedicou os seguintes versos às idéias de I. V. Kireyevsky expressas nesse artigo:

Além do mar da meditação,
Além, como ondas, de teus pensamentos, de teus sonhos:
Um reino de brilhante iluminação,
Beleza transcendente, brilho radiante.

Iça tua vela, destemido viajante,
Como a asa branca de um cisne;
Prepara a jornada, e eis que,
Diante de teus olhos, um novo sol desponta.

Retorne outra vez com preciosos tesouros;
Traga alimento ao coração faminto,
Conceda descanso novo às almas enfadadas,
Transmita força às vontades esgotadas. [10]

Alguns meses após a publicação do ensaio, o autor morreu inesperadamente (11 de junho de 1856). Ivan Vasilievich morreu de cólera em Petersburgo, aonde viajara para congratular seu filho que acabava de se formar no liceu. Seus amigos ficaram chocadíssimos com sua morte. Pedro Vasilievich morreria mais tarde, no mesmo ano.

O escritor francês Gratieux, biógrafo de Khomiakov, termina seu livro com as seguintes palavras: “Ele, como Ivan Kireyevsky, morreu subitamente de cólera. Ele também deixara inacabada a obra que herdara, e esse destino duplo, interrompido pela mesma causa, em busca do mesmo fim, mostra que a verdadeira majestade do homem consiste mais em buscar do que em terminar, mais em tentar do que em alcançar, mais em começar do que em terminar. A preocupação por sua continuação é trabalho do Lavrador. E isso deve servir de consolo ao bom trabalhador que parte para dormir em paz” [9].

O corpo de Ivan Vasilievich Kireyevsky foi enterrado junto à Catholicon (igreja principal) do Mosteiro de Optina, próximo à sepultura do Ancião Leônidas. Ao ser informado disso, o Metropolita Filareto notou a grande honra que o Mosteiro de Optina havia rendido a seu devoto filho.

Notas:

[1] Nicholas O. Lossky (Londres, 1952), pág. 13.

[2] I. V. Kireyevsky, Complete Collected Works, Volume I (Moscou, 1861), pág. 100.

[3] Archpriest V. V. Zenkovsky, History of Russian Philosophy, Volume II (Paris, 1948), pág. 200.

[4] Kireyevsky, Complete Collected Works, Vol. II, pág. 231. (as demais citações serão mencionadas diretamente no texto).

[5] Zenkovsky, History of Russian Philosophy, Vol. I, pág. 230.

[6] Ibid., pág. 232.

[7] Ibid., pág. 230.

[8] “On the Character of European Enlightenment”, Complete Collected Works, Vol. II, pág. 259.

[9] A. Gratieux, A. S. Khomiakov and the Movement of the Slavophiles (Paris, 1939), pág. 194.

[10] Caso o leitor se interesse, a tradução inglesa traz os seguintes versos:

Beyond the sea of meditation,
Beyond, like waves, your thoughts, your dreams:
A realm of bright illumination,
Transcendent beauty, radiance gleams.

Unfurl thy sail, thou trav´ler bold,
Like the white wing of a swan;
Prepare to journey, and behold,
Before thine eyes, a new sun dawn.

Return again with precious treasure;
Bring nurture to the hungry heart,
Granting burdened souls new leisure,
Strength to weary wills impart.