25 de outubro de 2005

O Reino da Quantidade

Dando prosseguimento aos estudos de metafísica e filosofia perene, resumirei aqui os sete primeiros capítulos da obra-prima de René Guénon: El Reino de la Cantidad y los Signos de los Tiempos (1945). Mais tarde tratarei do restante.

Originalmente escrita em francês, dizem que há uma edição em língua portuguesa. Se há, é deveras difícil de encontrá-la.

PLANO GERAL

Grosso modo, Guénon retoma as idéias lançadas em A Crise do Mundo Moderno, adicionando-lhe conteúdo mais relevante, seja para lhe dar um aspecto mais doutrinal, seja porque diversos acontecimentos entre um livro e outro trouxeram novas luzes a respeito do mundo moderno e seu pensar. Em suma, Guénon pretende delinear as diferenças fundamentais entre a ciência tradicional e a ciência profana (moderna).

CAPÍTULO 1 - QUALIDADE E QUANTIDADE

Para começar, é necessário partirmos da primeira de todas as dualidades cósmicas: a da Parucha e Prakriti, segundo a doutrina hindu, ou da essência e substância. Essência e substância são, em suma, a mesma coisa que forma e matéria. Igualmente, o que chamamos de ato e potência é equivalente a essência e substância.

Diz-se então que a qualidade é o conteúdo da essência, e não está restrita exclusivamente ao nosso mundo, mas está suscetível a uma transposição que universaliza sua significação. Por exemplo: não estamos precisamente nos referindo à qualidade de Deus quando falamos de seus atributos, dado que seria manifestamente impossível atribuir-Lhe determinações quantitativas?

A quantidade, por outro lado, tende ao lado substancial da manifestação. Não seria correto, no entanto, afirmar que a quantidade tende ao lado material da manifestação porque a palavra materia não é aquilo que entendemos modernamente como matéria. Segundo os escolásticos, a matéria é a substância, ou seja, o princípio passivo da manifestação universal, a potencialidade pura (Pakriti). Eles a chamavam de materia prima.

CAPÍTULO 2 - MATERIA SIGNATA QUANTITATE

Como disse, a materia não deve ser identificada com a matéria dos modernos, mas sim com a hylé aristotélica, substância universal, potência pura. A palavra materia também pode ser usada em seu sentido relativo, ou seja, quando associada à eidos para designar as duas faces essencial e substancial das existências particulares.

Era esta a distinção que os escolásticos viam entre materia prima (substância universal) e materia secunda (substância em seu sentido relativo). A materia secunda nunca era potência pura. A substância universal é o único princípio que pode chamar-se propriamente de ininteligível, pois não há nada nela passível de ser conhecido. Portanto, não é do lado substancial que devemos buscar as explicações das coisas, mas do lado essencial.

No entanto, o homem moderno, ao mesmo tempo que atribui certas propriedades à matéria, também por vezes se refere à suposta inércia da matéria. Ora, a matéria não pode ser inerte porque apenas a materia prima é inerte. Ao confundir materia prima com materia secunda, o homem moderno acaba criando mistérios e paradoxos onde antes não havia. A materia secunda tem de conter alguma determinação porque senão confundiria-se com a materia prima. Daí que dizer que a matéria contém propriedade e é inerte é um paradoxo. Ou seja, a materia secunda não pode ser uma materia secunda qualquer. Eis que Santo Tomás chamava a materia secunda de materia signata quantitate (matéria caracterizada pela quantidade), ou seja, o que está nela inerente é a quantidade. A quantidade é uma das condições mesmas da existência do mundo sensível/corporal. A quantidade é a condição básica de nosso mundo, ou seja, aquilo que está no nível mais inferior.

CAPÍTULO 3 - MEDIDA E MANIFESTAÇÃO

A associação mais freqüente que se tem feito a respeito da origem da palavra materia é a que vincula à palavra mater. Trata-se de algo conveniente, uma vez que a matéria, efetivamente, é um princípio passivo, "feminino". Todavia, é também possível vincula-la à palavra metiri (medir). Ocorre que medição implica em determinação, e determinação é algo que não se aplica à materia prima, mas à materia secunda. Portanto, a noção de medida aplica-se à materia secunda.
A medida se refere principalmente ao domínio da quantidade contínua, ou seja, das coisas que possuem um caráter espacial, e não temporal, uma vez que o tempo não é passível de medição direta mas indireta, por meio do deslocamento (espaço). Ocorre que a quantidade contínua não pode ser quantidade pura porque não pode ser medida com exatidão. Isso acontece porque é o número a base de toda medida, mas as magnitudes contínuas não podem ser medidas com precisão pelos números. Há sempre um "arredondamento" a ser feito, por mais preciso que seja o instrumento de medida. Portanto, tomemos cuidado pois, na realidade, a quantidade não é o que se mede mas aquilo pelo qual as coisas são medidas.
A medida é portanto uma "atribuição", uma "determinação" necessariamente implícita em toda a manifestação, em qualquer ordem sob qualquer modo.
Se vê aqui que a idéia de medida está em íntima conexão com a idéia de "ordem", ou seja, àquilo que se refere à produção do universo manifestado. As tradições costumam referir-se a uma iluminação (o Fiat Lux do Gênesis) , dado que o caos é identificado simbolicamente com as trevas; o caos é a potencialidade a partir da qual se atualizará a manifestação.
A idéia de medida também implica em geometria. Claro, trata-se da geometria simbólica, iniciática, não a geometria matemática moderna. Foi Leibnitz que disse: dum Deus calculat et cogitationem exercet, fit mundus (enquanto Deus calcula e exerce seu pensamento, o mundo se faz).
CAPÍTULO 4 - QUANTIDADE ESPACIAL E ESPAÇO QUALIFICADO
Como vimos, a extensão não é pura mas simplesmente um modo da quantidade. Para que o espaço fosse puramente quantitativo, seria necessário que fosse inteiramente homogêneo, isto é, que suas partes não pudessem ser distinguidas entre si por nenhuma outra característica que não fosse suas respectivas magnitudes.
No fundo, dizer que um corpo não é mais que sua extensão, quantitativamente falando, quer dizer que sua superfíceis e seu volume são o próprio corpo, com todas as suas propriedades, o que é manifestamente absurdo.
Entre as determinações corporais que são incontestavelmente de ordem puramente espacial e que, por conseguinte, podem se considerar verdadeiramente como modificações da extensão, não há somente a magnitude dos corpos, mas também sua situação. Será essa situação algo também puramente quantitativo?
A resposta é não. Isso fica fácil de perceber, por exemplo, quando temos um triângulo e um quadrado de áreas iguais. É evidente que eles não são a mesma coisa, apesar de suas superfícies serem iguais! E mais: na teoria das figuras semelhantes, a similitude se define exclusivamente pela forma e é totalmente independente da magnitude das figuras, ou seja, é de ordem puramente qualitativa. Em essência, tais formas são conjuntos de tendências em direção.
Resumindo: a noção de direção é o verdadeiro elemento qualitativo do espaço, enquanto a noção de magnitude é o verdadeiro elemento quantitativo do espaço. Portanto, o espaço é o que poderíamos chamar de espaço qualificado.
CAPÍTULO 5 - AS DETERMINAÇÕES QUALITATIVAS DO TEMPO
O tempo está mais afastado da quantidade pura do que o espaço. Isso acontece porque enquanto o espaço pode ser medido, o tempo, pelo contrário, não pode ser medido senão reduzindo-o à dimensão espacial.
Os fenômenos corporais são os únicos que se situam tanto no espaço quanto no tempo; no entanto, os fenômenos de ordem mental não têm nenhum caráter espacial; pelo contrário, se desenvolvem no tempo. No entanto, há aqueles que tentam reduzir os fenômenos mentais à quantidade; o que os "psicofisiólogos" determinam quantitativamente não são, na realidade, os fenômenos mentais, mas apenas algumas de suas concomitâncias corporais. A idéia de uma psicologia quantitativa representa a maior aberração do cientificismo moderno.
A natureza essencial dos acontecimentos aparece como muito mais ligada ao tempo do que os corpos estão ligados ao espaço, o que serve de indício para deduzirmos que o tempo possui um caráter muito mais qualitativo do que quantitativo.
A verdade é que o tempo não é algo que se desenvolve uniformemente e, por conseguinte, sua representação geométrica por uma linha reta não passa de uma idéia excessivamente simplificada e, no fim das contas, falsa. A verdadeira representação do tempo é a dos ciclos. A representação cíclica estabelece precisamente uma correspondência entre as fases de um ciclo temporal e as direções do espaço.
Vejamos uma exposição mais ou menos completa da doutrina dos ciclos temporais:
1) Cada fase de um ciclo temporal tem sua qualidade própria, que influi sobre a determinação dos acontecimentos. Nas diferentes fases do ciclo, séries de acontecimentos comparáveis entre si não se cumprem em durações iguais. É precisamente por essa razão que os acontecimentos se desenvolvem hoje com uma velocidade sem par nas épocas anteriores, velocidade que se acelerará até o fim do ciclo.
2) A marcha do ciclo possui uma direção descendente, isto é, o processo de manifestação implica cronologicamente num afastamento gradual do princípio.
3) A manifestação se efetua desde o pólo positivo (ou essencial) da existência até o pólo negativo (ou substancial). Portanto, as coisas devem tomar um aspecto cada vez menos qualitaqtiva e cada vez mais quantitativo. Este último período é propriamente chamado de Reino da Quantidade.
CAPÍTULO 6 - O PRINCÍPIO DA INDIVIDUAÇÃO
Os escolásticos consideravam a materia como o principium individuationis. Ora, mas por que seria a matéria o princípio de individuação? Não seria melhor dizer que é a forma o aspecto da manifestação que realmente representa o princípio de individuação, já que os indivíduos são tais e quais conforme condicionados pela forma, e não pela matéria?
Na verdade, a questão do "princípio da individuação" se resume a isto: os indivíduos de uma mesma espécie participam de uma mesma natureza. Mas, mesmo assim, o que faz os indivíduos da mesma espécie serem distintos entre si? De que ordem é a determinação que se agrega à natureza específica para fazer dos indivíduos , dentro da mesma espécie, serem distintos? É a esta determinação que os escolásticos chamam de materia, isto é, a quantidade ou materia secunda de nosso mundo. Assim, materia ou quantidade aparece propriamente como um princípio de "separatividade". Além do mais, pode-se dizer que a quantidade é uma determinação que se agrega à espécie, dado que a espécie é exclusivamente qualitativa.
Chegamos agora à seguinte conclusão: nos indivíduos, a quantidade predominará tanto mais sobre a qualidade quanto mais eles estiverem reduzidos a não ser mais do que simples indivíduos. Isso quer dizer que quanto menos distinções qualitativas os indivíduos tiverem entre si, mais individuais (quantitativos) serão. A quantidade não pode fazer mais do que separar os indivíduos, e nunca uni-los.
CAPÍTULO 7 - A UNIFORMIDADE CONTRA A UNIDADE
Se considerarmos o conjunto deste domínio de manifestações que é nosso mundo, podemos dizer que, à medida que nos distanciamos da unidade principal, as existências tornam-se cada vez menos qualitativas e cada vez mais qualitativas.
Na quantidade pura, as "unidades" se distinguem entre si apenas numericamente. Aqui vislumbramos o chamado "princípio dos indiscerníveis", em virtude do qual não podem existir em nenhuma parte dois seres idênticos, isto é, semelhantes sob todos os aspectos.
A conclusão a que chegamos é que a uniformidade, para ser possível, teria de supor seres desprovidos de todas as qualidades e reduzidos a não mais que simples "unidades numéricas". Todos os esforços humanos modernos no sentido de realizar tal uniformidade não podem ter como resultado senão o despojo mais ou menos completo a todos os seres de suas qualidades próprias.
Embora seja impossível reduzir os seres à sua quantidade pura, a tentativa de fazê-lo os desproverá cada vez mais de suas qualidades distintas. Por exemplo, se a educação uniforme é incapaz de dar a alguns indivíduos qualidades que não têm, é ao contrário muito provável que asfixie em todos os outros as possibilidades que se destacam do nível comum; é assim que a "nivelação" opera sempre por baixo, nunca por cima. Mas o ocidental moderno não contenta em impor apenas essa educação; ele uniformiza também até o aspecto exterior das coisas, por meio da indústria.
Ora, dado o desejo moderno de constituir uma ciência completamente quantitativa, é inevitável que as aplicações práticas que daí derivem também conterão o mesmo caráter quantitativo.