28 de junho de 2008

Ortodoxia e a cultura européia

Trechos da palestra proferida pelo Pe. George Metallinos, professor da Universidade de Atenas, na Conferência Teológica de Pirgos, Grécia, 1995.

* * *

Os elementos que compõem uma cultura não são apenas folclóricos (festivais, celebrações etc.) ou artísticos. A questão também não é recordar elementos e peculiaridades de nossa cultura que podem ser facilmente encontrados em outras línguas. A questão é nos identificarmos com uma cultura de maneira que não consigamos viver sem seus elementos. Nós participamos de uma cultura na medida em que experimentamos estes elementos particulares como sendo inseparáveis de nossa própria existência.

Cultura é a manifestação da consciência na realidade histórica, é a expressão e realização do mundo da alma. A formação do ambiente dentro dos limites da consciência delimita uma cultura específica. A consciência de um grupo é o mesmo que sua cultura.

Nossa cultura, nossa existência e continuidade históricas, nossa identidade helênica e nossa fé ortodoxa estão em jogo no contexto da União Européia. Nossa identificação a priori com a Europa é um erro. É errado acreditar que a cultura européia e a cultura helênica são idênticas. Não se trata de uma aliança, de uma simples relação sócio-política mútua. É uma verdadeira congregação em um novo sistema de vida. “Europa” significa transferir nossos interesses a um campo distinto.

A mentalidade hegemônica na Europa é anti-helênica. Pode até ser que o sistema educacional e cultural europeu ostente uma inclinação favorável à antiga Grécia, mas representa também reação, resistência e hostilidade contra a nova face do helenismo.

A Europa moderna é produto de Carlos Magno, o maior inimigo do helenismo em toda a história. Ela funda-se em Carlos Magno. Ela não é produto de uma composição heleno-cristã, mas franco-germânica. Os diversos grupos francos (francos, teutões, normandos, lombardos, burgúndios etc.) ainda estão no comando da União Européia. A presença helênica da Grécia é um elemento estranho entre eles.

A essência da alienação teológica ocidental é ter se deixado capturar pelo antigo pensamento grego ao filosofar e racionalizar a fé. Os europeus preservaram essa tendência, tornando-a sua própria fé e teologia. É uma postura legalista em questões de fé.

O homem europeu não consegue interpretar corretamente o helenismo. A Europa distorceu o helenismo com base em seus próprios preconceitos. Nem mesmo o antigo helenismo foi preservado pela cultura européia. A Renascença tratou de expurgar tanto a era helênica quanto a romana, pois não houve continuidade alguma. A Renascença não foi criada pelos povos românicos do Ocidente, mas pelos conquistadores franco-germânicos. O homem europeu não guarda relação alguma com o homem antigo; ele não preservou nada dos Santos Padres da Igreja.

Possuímos uma cultura que cria pessoas santas, glorificadas. O ideal de nosso povo não é criar sábios, nem este era o ideal da antiga cultura e civilização helênicas. O humanismo antropocêntrico (centrado no homem) helênico foi transformado em teantropismo (centrado no Deus-Homem) e seu ideal, agora, é a criação de pessoas santas que alcancem o estado de theosis (deificação).

O Império da Nova Roma (Romania ou “Bizâncio”, como foi posteriormente chamada pelos acadêmicos), sendo Constantinopla a Nova Roma (330 d.C.), era o novo mundo pós-romano. Ela compunha-se do tríptico (1) estrutura estatal romana, (2) educação helênica e (3) Cristianismo.

Na mente dos cidadãos, todo o Império funcionava enquanto “Igreja” (ekklesia), ou seja, enquanto reunião dos crentes no Cristo, com a Ortodoxia servindo de elo entre eles. A Ortodoxia determinava a nacionalidade dos cidadãos, de maneira que o título civil romaios significava “cidadão da Nova Roma: ortodoxo”.

O sentimento religioso dos antigos gregos preservou-se através da Ortodoxia. Por exemplo: ao invés de Poseidon (deus dos mares), uma entidade inexistente ou até mesmo demoníaca, temos São Nicolau e as provas históricas de sua existência, de sua atividade miraculosa e de seu estado deificado. Não se trata de “outro tipo de idolatria”, já que todas as pessoas santas são do “Corpo de Jesus Cristo” e a honra a eles atribuída é sempre centrada em Cristo.

A consciência ortodoxa define-se por três pontos: (1) a melhor e mais autêntica expressão de nossa cultura é a vida dos Santos Padres; (2) consciência da superioridade da cultura ortodoxa em oposição à antiga cultura helênica (esta foi batizada e renascida); e (3) consciência da superioridade da cultura ortodoxa em relação à cultura européia.

Após os francos dominarem a Europa Ocidental, o desenvolvimento social deu-se em bases raciais. Os direitos dos conquistadores foram impostos por meio do sistema feudal, cuja base não era a propriedade da terra, como no Oriente, mas o aspecto racial. Uma classe de nobres foi criada e considerada “nobre por natureza”. Os conquistadores bárbaros se autodeclararam “nobres”. A outra classe era a dos súditos, escravizada pelos nobres. Esta pequena minoria conquistou todo o Ocidente, transformando o povo romano em escravos em sua própria terra.

Além da servidão, outra conseqüência da conquista dos francos foi o colonialismo. Colonialismo é a extensão da estrutura interna da escravidão a terras estrangeiras. O individualismo ocidental (domínio individual à custa dos outros) é completamente diferente do oriental, que possui um caráter sócio-comunal. O homem ocidental diz: “Por que não me tornam primeiro-ministro para resolver os nossos problemas?”. O homem ocidental vive em um ambiente que o motiva a sacrificar os outros em seu próprio benefício, e não a sacrificar a si próprio em benefício dos outros.

A Europa tinha uma civilização e uma cultura iguais às nossas, mas, após as invasões bárbaras dos francos, a Europa Ocidental Romana foi escravizada, perdendo sua tradição. Assim, Deus nos designou como sua guardiã.

A atual cooperação entre França e Alemanha (as duas maiores ramificações francas) em diversos campos de atuação prova que há uma tentativa de retornar à Europa unificada dos tempos de Carlos Magno.

Fonte: http://www.romanity.org/mir/me04en.htm

17 de junho de 2008

Fé e ciência na gnosiologia ortodoxa

Pe. George Metallinos

A. Problema ou pseudo-problema?

A antítese e conseqüente colisão entre fé e ciência é um problema para o pensamento ocidental (franco-latino) e um pseudo-problema para a tradição patrística ortodoxa oriental. Chegamos a tal conclusão a partir dos dados históricos destas duas regiões.

O suposto dilema entre fé e ciência surgiu na Europa Ocidental durante o século XVII, juntamente com o desenvolvimento das ciências positivas. À época, surgiram também as primeiras declarações ortodoxas sobre esta questão. É digno de nota que tais fatos aconteceram no Ocidente sem a presença da Ortodoxia. Nos últimos séculos, a diferenciação e alienação espirituais entre o Ocidente [racional] e o Oriente Ortodoxo têm sido cada vez maiores. Tal fato explica-se pela “desortodoxização” e “deseclesiasticação” do mundo europeu ocidental e pela “filosofização” e “legalização” da fé, cuja estrutura final acabou tornando-se uma religião. Assim, tal religião seria supostamente a refutação à Ortodoxia e, de acordo com o Pe. João Romanides, a doença do gênero humano. Portanto, a Ortodoxia continua historicamente a não participar na composição da atual civilização européia ocidental, que, além disso, também difere em tamanho da civilização do Oriente Ortodoxo.

Os momentos decisivos no curso da Europa Ocidental são: escolasticismo (século XIII), nominalismo (século XIV), humanismo/renascimento (século XV), Reforma (século XVI) e Iluminismo (século XVII). Esses eventos representaram uma série de revoluções e, ao mesmo tempo, brechas na estrutura da civilização européia ocidental.

O escolasticismo apóia-se na adoção da realia platônica. O mundo é concebido enquanto imagem da universalia transcendente (realismo, arquétipo). O instrumento de conhecimento seria a mente/intelecto. O conhecimento (inclusive o conhecimento de Deus) seria alcançado por meio da penetração da lógica na essência dos seres. Seria o fundamento da teologia metafísica, que pressupõe a analogia entis, a relação ontológica entre Deus e o mundo, a analogia entre o criado e o Incriado. O nominalismo afirma que a universalia não passa de nomes, e não seres como no realismo. É a batalha entre platonismo e aristotelismo no pensamento europeu. Porém, o nominalismo tornou-se, digamos, o DNA da civilização européia, cujos elementos essenciais são o dualismo filosófico e o individualismo social. A prosperidade tornar-se-á o objetivo básico do homem ocidental, fundando-se na teologia escolástica da Idade Média. O nominalismo (ou seja, o dualismo) é o fundamento do desenvolvimento científico do mundo ocidental, isto é, do desenvolvimento das ciências positivas.

O Oriente Ortodoxo passou por uma evolução espiritual diferente, sob o guiamento de seus líderes espirituais, os santos – e por aqueles que os seguiram, os verdadeiros fiéis – que permaneceram fiéis à tradição profética-apostólica-patrística. Essa tradição é oposta ao escolasticismo e seus desenvolvimentos espirituais históricos do mundo europeu. No Oriente, o hesicasmo, ou oração do coração, é a espinha dorsal da tradição patrística, sendo expressa pela participação ascética na Verdade enquanto comunhão com o Incriado. A fé na possibilidade de unir Deus e o mundo (o Incriado e o criado) na história foi preservada no Oriente Ortodoxo. No entanto, tal fé significa rejeição a qualquer forma de dualismo. A ciência, à medida que se desenvolveu em Bizâncio, desenvolveu-se dentro desta moldura.

A revolução científica na Europa Ocidental do século XVII contribuiu para a separação entre fé e ciência. Ela acarretou no seguinte princípio axiomático: A nova filosofia (positiva) somente aceita as verdades que são verificadas por meio do pensamento racional. É a autoridade absoluta do pensamento ocidental. As verdades desta nova filosofia são a existência de Deus, da alma, da virtude, da imortalidade e do julgamento. É claro que aceitá-las só seria possível com base em um iluminismo teísta, pois o ateísmo também é parte da estrutura do pensamento moderno. As doutrinas eclesiásticas rejeitadas pela razão são a natureza triuna de Deus, a Encarnação, a glorificação, a salvação etc. Essa religião natural e lógica, do ponto de vista ortodoxo, não apenas é diferente do ateísmo como é muito pior. O ateísmo é menos perigoso do que sua distorção!

B. Gnosiologia ortodoxa

Já dissemos que no Oriente a antítese entre fé e ciência é um pseudo-problema. Por quê? Porque a gnosiologia oriental é definida pelo objeto a ser conhecido, que é de dois tipos: Incriado e criado. Somente a Santíssima Trindade é Incriada. O universo (ou universos) no qual nossa existência se manifesta é criado. Fé é o conhecimento do Incriado, e ciência é o conhecimento do criado. Portanto, são dois tipos diferentes de conhecimento, cada qual com seus próprios métodos e ferramentas de investigação.

O fiel, movendo-se no território do supernatural, ou do conhecimento do Incriado, não é chamado a aprender algo metafisicamente, ou aceitar algo logicamente, mas experimentar Deus estando em comunhão com Ele. Isso é possível introduzindo-o a um tipo de vida ou método que o conduzirá ao conhecimento divino.

Diz-se corretamente que se o Cristianismo surgisse pela primeira vez em nossa época, ele assumiria a forma de uma instituição terapêutica, um hospital cujo objetivo seria reinstalar e restaurar a função psicossomática do homem. É por isso que São João Crisóstomo chama a Igreja de hospital espiritual. O conhecimento supernatural-teológico é entendido na Ortodoxia como um pathos (experiência de vida), uma participação e comunhão com o transcendente, e não uma verdade pessoal e inalcançável do Incriado muito menos um mero exercício de conhecimento. Assim, a fé cristã não é a adoção abstrata e contemplativa de verdades metafísicas, mas a experiência de contemplar o Verdadeiro Ser: a experiência da Trindade Supersubstancial (Superessencial).

A autoridade na Ortodoxia funda-se, portanto, na experiência. A experiência de participar no Incriado, de ver o Incriado (conforme os termos “theosis” e “glorificação” deixam claro) não se baseia em textos ou nas Escrituras. A tradição da Igreja não se preserva em textos, mas em pessoas. Os textos ajudam, mas não são eles os portadores da Santa Tradição. A tradição é preservada pelos santos. Os seres humanos é que são os portadores do Evangelho. Colocar os textos acima da experiência com o Incriado (um indício da “religionização” da fé) acaba levando à sua ideologização e, em verdade, à sua idolatria. Tal fenômeno leva à autoridade absoluta do texto (fundamentalismo) e às suas conhecidas conseqüências.

O conhecimento do Incriado pressupõe, na Ortodoxia, a rejeição de qualquer tipo de analogia (seja entis ou fide) entre criado e Incriado. São João Damasceno explica: “É impossível encontrar, na criação, um ícone que revele o tipo de existência da Santíssima Trindade. Pois como seria possível ao criado, que é complexo e mutável e descritível, e tem forma e é perecível, revelar a Essência Divina Superessencial, que é livre de todas estas categorias?” (P.G. 94,821/21).

Assim, fica claro por que a educação escolar, e a filosófica em particular, de acordo com a tradição patrística, não são pressupostos para o conhecimento de Deus (theognosia). Além do grande acadêmico São Basílio, o Grande, (+379), também honramos Santo Antônio (+350), que, pelos padrões mundanos, não era sábio. Ambos eram professores da fé. Ambos testemunharam o conhecimento de Deus, sendo que Santo Antônio não tinha educação formal enquanto São Basílio era extremamente educado, tido como mais inteligente que Aristóteles. Santo Agostinho (+430) difere da tradição patrística neste ponto (algo que os ocidentais dificilmente admitiriam, se soubessem disso), pois ele ignora a gnosiologia bíblica e patrística sendo, em essência, um neoplatonista! Com seu axioma credo ut intelligam (creio para entender), Santo Agostinho introduziu o princípio segundo o qual o homem é levado a uma concepção lógica da Revelação por meio da fé. Esse princípio dá prioridade ao intelecto (à mente), considerada assim como sendo o instrumento ou ferramenta para o conhecimento do natural e do sobrenatural. Após Santo Agostinho, o próximo passo nesta evolução (com a intervenção de Tomás de Aquino (+1274)) será dado por Descartes (+1650), com seu axioma cogito ergo sum (penso, logo existo), no qual o intelecto (a mente) é considerado a principal base da existência.

C. Os dois tipos de conhecimento

A tradição ortodoxa acaba com a colisão teórica no campo da gnosiologia, distinguindo dois tipos de conhecimento e sabedoria:

1. conhecimento divino, ou aquele que vem “de cima”, superior;

2. conhecimento secular (thyrathen), ou inferior.

O primeiro tipo de conhecimento é supernatural, enquanto o segundo é natural, correspondendo assim à distinção entre Incriado e criado, entre Deus e criação. Estes dois tipos de aprendizado requerem dois métodos de aprendizado. O método do conhecimento divino é a comunhão do homem com o Incriado por meio do coração. Tal comunhão se dá pela presença da energia Incriada de Deus no coração do homem. O método do conhecimento secular é a ciência, levado a cabo pelo exercício do poder intelectual e lógico do homem. A Ortodoxia estabelece uma clara hierarquia entre estes dois tipos de conhecimento e seus métodos.

O método da gnosiologia supernatural, na tradição ortodoxa, chama-se hesicasmo, e é identificada com a vigilância e a purificação (nepsis e katharsis) do coração. A Ortodoxia, patristicamente falando, é inconcebível fora da prática hesicasta. O hesicasmo, em essência, é a prática ascético-terapêutica de limpar o coração das paixões e reacender a faculdade noética dentro do coração. Note-se, porém, que o método hesicasta, enquanto prática terapêutica, também é científico e prático. Portanto, a teologia, sob condições adequadas, pertence às ciências práticas. Foi no começo do século XII, no Ocidente, que a teologia foi classificada como ciência teórica, por causa da transmutação da teologia em metafísica. Assim, os orientais que condenam nossa teologia apenas demonstram o quanto estão ocidentalizados, pois, em essência, condenam e rejeitam uma caricatura desfigurada que julgam ser teologia. Mas o que é a função noética? Nas Sagradas Escrituras já é possível encontrar a distinção entre espírito do homem (seu nous) e o intelecto (o logos ou mente). Na literatura patrística, o espírito do homem é chamado de nous, para distingui-lo do Espírito Santo. O espírito, o nous, é o olho da alma.

A faculdade noética é chamada de função do nous dentro do coração, e é a função espiritual do coração. A função paralela é o coração enquanto órgão que bombeia o sangue em todo o corpo. Tal faculdade noética é um sistema mnemônico que existe juntamente com as células cerebrais. Ambos são cognoscíveis e detectáveis pela ciência humana, porém esta mesma ciência é incapaz de conceber o nous. Quando o homem atinge a iluminação pelo Espírito Santo e se torna o templo de Deus, o amor próprio transmuta-se em amor incondicional, tornando possível ao homem construir relações sociais reais apoiadas nesta reciprocidade incondicional (isto é, na disposição em sacrificar-se pelo próximo), ao invés de relações sociais apoiadas no auto-interesse em reivindicar direitos individuais, a exemplo do espírito da sociedade européia ocidental.

Assim, ficam claras algumas importantes conseqüências: (1) o Cristianismo autêntico transcende a religião e o conceito de que a Igreja é uma mera instituição de regras e deveres e (2) a Ortodoxia não deve ser concebida como uma adoção de princípios ou verdades, impostos desde cima. Tal seria uma versão não-ortodoxa das doutrinas (princípios absolutos, verdades impostas). Conceitos e significados, na Ortodoxia, são examinados por meio das devidas verificações empíricas. O estilo dialético-intelectual de pensamento teológico e dogmático é estranho à autêntica tradição ortodoxa.

O cientista e professor do conhecimento do Incriado, na tradição ortodoxa, é o Geron/Staretz (Ancião ou Pai Espiritual), o guia ou “professor do deserto”. O registro de ambos os tipos de conhecimento pressupõe o conhecimento empírico do fenômeno.

No campo da ciência, somente o especialista entende a pesquisa de outros cientistas da mesma área. A adoção de conclusões ou descobertas de uma determinada ciência por não-especialistas (isto é, por aqueles que são incapazes de examinar experimentalmente a pesquisa dos especialistas) baseia-se na confiança na credibilidade dos especialistas. De outra maneira, não haveria progresso científico.

Vale o mesmo para a ciência da fé. O conhecimento empírico de santos, profetas, apóstolos e padres de todas as eras é absorvido com base na mesma confiança. A tradição patrística e os concílios da Igreja sustentam-se nestas experiências. Não há Concílio Ecumênico sem a presença de glorificados/deificados (theoumenoi), sem aqueles que vêem o divino (eis o problema dos atuais concílios!). A doutrina ortodoxa é resultado deste relacionamento.

Portanto, a fé ortodoxa é tão dogmática quanto a ciência. Aqueles que acusam a fé de ser enviesada não deveriam se esquecer das palavras de Marc Bloch, de que toda pesquisa científica é enviesada desde o início, pois, de outra forma, pesquisar seria algo impossível. O mesmo vale para a fé. A Ortodoxia distingue os dois tipos de conhecimento e seus métodos e ferramentas, evitando, assim, qualquer confusão ou conflito entre eles. Confusão e conflito são engendrados somente quando as condições e a essência do Cristianismo são perdidas. Porém, no meio ortodoxo, há algumas analogias ilógicas, como a possibilidade de alguém destacar-se nas ciências mas, ao mesmo tempo, ser uma criança espiritual, e, vice-versa, alguém ser majestoso em conhecimento divino e analfabeto em sabedoria humana, como o supra-citado Santo Antônio, o Grande. Nada impede, porém, a possibilidade de alguém possuir ambos os conhecimentos, como é o caso dos Santos Padres da Igreja.

D. Dialética Deus-homem

Assim sendo, o fiel ortodoxo encontra-se diante de uma dialética Deus-homem. Usando a terminologia cristológica, cada tipo de conhecimento deve permanecer e mover-se dentro de seus limites. Ultrapassar tais limites implica em confundir suas funções e, por fim, em conflito. Os Santos Padres defenderam o uso correto da ciência e da educação. São Gregório, o Teólogo, afirmou: “A educação não deve ser desonrada”. O mesmo Padre, em sua segunda Oration, estabeleceu os limites dos dois tipos de conhecimento. São Gregório diz que o antigo sábio (Platão, em Timeu) afirmou: “É difícil conhecer Deus e impossível expressá-Lo [verbalmente]”. Porém, o também grego mas cristão São Gregório conclui que é impossível expressar (descrever) Deus com palavras, quanto mais impossível é entendê-Lo! Ou seja, Platão já havia estabelecido os limites da razão humana, e é importante notar que não há racionalismo na antiga filosofia grega. São Gregório, por sua vez, também demonstra a impossibilidade de superar tais limites, bem como é impossível conceber o Incriado por meio do conhecimento do criado.

A distinção e a simultânea hierarquia dos dois tipos de conhecimento foram descritos por São Basílio, o Grande, quando afirmou que a fé deveria prevalecer em relação às palavras sobre Deus e às provas racionais. Tal fé origina-se na ação e na energia do Espírito Santo. Para São Basílio, fé é a iluminação do Espírito Santo no coração (P.G. 30,104B-105B). O santo também fornece um exemplo clássico do uso ortodoxo do conhecimento científico em seu Hexameron (P.G. 29, 3-208). Ele repudia as teorias cosmológicas dos filósofos sobre a eternidade e a auto-existência do mundo, procedendo a uma síntese dos fatos bíblicos e científicos, por meio da qual supera a ciência. Além disso, rejeitando os ensinamentos materialistas e heréticos, São Basílio fornece a interpretação teológica (mas não metafísica) da natureza da criação. Sua tese central é de que é impossível um dogma ser logicamente sustentado somente pela ciência. Os dogmas pertencem a outra esfera, estando acima da razão e da ciência, embora dentro dos limites de outro tipo de conhecimento. O uso de dogmas em conhecimentos mundanos leva à transformação da ciência em metafísica, enquanto o uso da razão no domínio da fé prova sua fraqueza e relatividade. Portanto, não há crença que não seja examinada na gnosiologia ortodoxa, mas cada campo é examinado de acordo com seus próprios critérios: a ciência com suas pressuposições e o conhecimento divino com suas pressuposições.

A expressão mais trágica da alienação cristã é a postura eclesiástica ocidental em relação a Galileu. O caso ultrapassou os limites jurisdicionais, mas o mais sério da história é a confusão entre os limites do conhecimento. Sabemos que o conhecimento que vem “de cima” e o caminho para atingi-lo perderam-se no Ocidente, cuja conseqüência é o uso do intelecto (mente) enquanto instrumento não apenas de sabedoria humana, mas de sabedoria divina também. O uso do intelecto no campo da ciência leva inevitavelmente à rejeição do supernatural enquanto algo incompreensível, e seu uso no campo da fé pode levar à rejeição da ciência quando considerada em conflito com a fé. Essa mesma mentalidade e essa mesma perda de critério se manifestou na rejeição do sistema de Copérnico no Oriente (1774-1821). Em troca, a ciência vingou-se da condenação de Galileu pela Igreja Romana na pessoa de Darwin e sua teoria da evolução.

E. Transplante do problema ocidental ao Oriente Ortodoxo

O Iluminismo europeu consistiu em uma batalha entre o empiricismo físico e a metafísica de Aristóteles. Os iluministas são filósofos e racionalistas. Os iluministas gregos, com Adamantios Korais como seu patriarca, eram metafísicos em sua teologia, e foram eles que transportaram o conflito entre empiricistas e metafísicos à Grécia. Porém, os monges ortodoxos do Monte Athos, os Kollyvades e demais padres hesicastas permaneceram empiricistas em seu método teológico. A introdução da metafísica na teologis popular e acadêmica é obra, principalmente, de Korais. É por isso que Korais tornou-se uma autoridade entre os teólogos acadêmicos, assim como nos movimentos moralistas populares. Isso quer dizer que a purificação do coração deixou de ser considerada um pressuposto da teologia, sendo substituída pela educação escolástica. O mesmo problema surgiu na Rússia durante o reinado de Pedro, o Grande (séculos XVII e XVIII). Dessa maneira, os padres passaram a ser considerados filósofos (sobretudo neoplatonistas, como Santo Agostinho) e agentes sociais. Esse padrão tornou-se o protótipo dos pietistas na Grécia. Dessa maneira, o hesicasmo foi rejeitado como sendo obscurantismo. As chamadas idéias progressistas de Korais derivam do fato de que ele é um defensor do uso calvinista da metafísica, e não do uso católico romano, e suas obras teológicas são ricas deste pietismo calvinista (moralismo).

Porém, para os Santos Padres, a Ortodoxia é anti-metafísica, pois está continuamente buscando a certeza empírica por meio do método hesicasta. Eis por que o hesicasmo dos Kollyvades é empírico e científico. A razão, de acordo com São Nicodemos, o Hagiorita, é empírica. Isso fica claro quando os hesicastas do século XVIII aceitaram o progresso científico do Ocidente. Os Kollyvades reconheceram os pontos de vista científicos como, por exemplo, São Nicodemos, o Hagiorita, em sua obra Symbouletikon, na qual ele aceita as últimas teorias de seu tempo a respeito do funcionamento do coração. Santo Atanásio Parios não combateu a ciência em si, mas seu uso pelos iluministas ocidentalizados da nação grega. Os Padres consideravam a ciência como sendo obra de Deus e uma dádiva para o melhoramento da vida. Mas o uso da ciência na batalha metafísica contra a fé, conforme praticado no Ocidente e transferido ao Oriente, foi algo explicitamente rejeitado pelos teólogos tradicionais dos séculos XVIII e XIX. O erro foi cometido pelos iluministas gregos que, desinformados quanto à visão patrística sobre o conhecimento, embora fossem eles mesmos padres e monges, transferiram o conflito europeu entre metafísicos e empiricistas à Grécia, versando sobre religião irracional. Enquanto que os Padres da Ortodoxia, diferenciando dois tipos de conhecimento, diferenciaram também o racional do super-racional.

O conflito entre fé e ciência, sem contar a confusão entre os conhecimentos, causou a idolatria destes dois tipos de conhecimento. Assim, uma apologética fraca e mórbida engendrou-se no Cristianismo (por exemplo, um professor grego de Apologética produziu uma prova matemática da existência de Deus!). Porém, na Ortodoxia, este dualismo não é auto-evidente. Nada exclui a co-existência entre fé e ciência quando a fé não for uma metafísica imaginária e a ciência não mascarar seu caráter positivo com o uso da metafísica. O entendimento mútuo entre ciência e fé é auxiliado pela atual linguagem científica.

O princípio da indeterminação (segundo o qual não há causalidade) é um tipo de apofatismo na ciência. O retorno aos Padres, portanto, ajuda a superar o conflito. A aceitação dos limites dos dois tipos de conhecimento (Incriado e criado) e o uso do órgão ou ferramenta apropriada a cada um, é o elemento da Ortodoxia e dos Padres que posiciona a sabedoria mundana abaixo do conhecimento divino.

A confusão entre os dois tipos de conhecimento no pensamento ocidental tem promovido interpretações cada vez piores. Uma Igreja que persista na teologia metafísica será sempre obrigada a pedir perdão a Galileu. Por outro lado, uma ciência que ignore seus limites se deteriorará em metafísica, e acabará tratando da existência de Deus (que não é sua responsabilidade) ou rejeitará Deus completamente.

Fonte: http://www.megarevma.net/Metallinos.htm

31 de maio de 2008

Como escolher uma esposa

Eis os trechos principais de uma homilia de São João Crisóstomo intitulada "Como escolher uma esposa", publicada na seleção On Marriage and Family Life (pág. 89-114). A tradução para o inglês é de Catherine P. Roth e David Anderson e a editora é a St. Vladimir´s Seminary Press (Crestwood, Nova York, 2003).

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1) Portanto, quando fordes escolher uma esposa, não examineis somente as leis do Estado, mas, antes, examineis as leis da Igreja. Deus não vos julgará no último dia segundo as leis do Estado, mas segundo Suas leis.

2) Não é mesmo uma tolice? Quando estamos sob ameaça de perder dinheiro, tomamos todos os cuidados possíveis, mas quando nossa alma está sob risco de ser eternamente punida, nem ao menos prestamos atenção.

3) Tu sabes que tem duas escolhas. Se tu escolheres uma má esposa, terás de enfrentar aborrecimentos. Se não aceitares enfrentá-los, serás culpado de adultério por divorciar-te dela. Se tivesses investigado as leis do Senhor e as conhecesse bem antes de te casares, terias tomado muito cuidado e escolhido uma esposa decente e compatível com teu caráter desde o início . Se tivesses te casado com uma esposa assim, terias ganhado não apenas o benefício de não te divorciares dela como o benefício de amá-la intensamente, conforme Paulo ordenou. Pois quando ele diz Maridos, amem vossas esposas, ele não pára por aí, mas fornece a medida deste amor, como Cristo amou a Igreja.

4) Vejamos, porém, se a beleza e a virtude da alma da noiva atraiu o Noivo. Não, ela não era atraente nem pura, conforme estas palavras de Paulo: Ele se entregou por ela para a santificar, purificando-a com a lavagem da água (Efésios 5:25-26). [...] Apesar disso, Ele não abominou sua feiúra, mas neutralizou sua repulsividade, remoldando-a, reformando-a e remitindo seus pecados. Tu deves imitá-Lo. Mesmo que tua esposa peque contra ti mais vezes do que podes contar, tu deves perdoá-la em tudo.

5) Quando surge uma infecção em nossos corpos, não cortamos o membro fora, mas tentamos curar a doença. Devemos fazer o mesmo com uma esposa.

6) Mesmo que ela não apresente melhoras em função de nossos ensinamentos, assim mesmo receberemos uma grande recompensa de Deus pela nossa paciência e por termos mostrado tanto auto-domínio em temor a Ele. Nós conseguimos suportar as maldades dela com nobreza, sem cortar o membro fora. Pois uma esposa é como se fosse um membro nosso, e por causa disso devemos amá-la. É precisamente isto que ensina Paulo: Assim devem os maridos amar as suas próprias mulheres, como a seus próprios corpos...Porque nunca ninguém odiou a sua própria carne; antes a alimenta e sustenta, como também o Cristo à Igreja; porque somos membros do Seu corpo, da Sua carne, e dos Seus ossos (Efésios 5:28-30).

7) Devemos amar nossa esposa também porque Deus estabeleceu uma lei a esse respeito quando disse: Por isso deixará o homem seu pai e sua mãe, e se unirá a sua mulher; e serão dois numa carne (Gênesis 2:24; Efésios 5:31).

8) Assim como o noivo deixa a casa de seu pai e junta-se à noiva, assim também Cristo deixou o trono de Seu Pai e juntou-se à Sua noiva.

9) De maneira geral, a vida é composta de duas esferas de atividade: a pública e a privada. Quando Deus a diviviu assim, Ele designou a administração da vida doméstica à mulher, mas ao homem designou todas as tarefas relativas à cidade, às questões comerciais, judiciais, políticas, militares e assim por diante. [...] De fato, o que quer que o marido pense sobre questões domésticas, a esposa o saberá melhor que ele. Ela é incapaz de administrar as questões públicas competentemente, mas ela é capaz de cuidar bem dos filhos, que é o maior dos tesouros. [...] Se Deus tivesse dotado o homem para administrar ambas as esferas de atividade, teria sido fácil aos homens dispensar o gênero feminino. [...] Por isso Deus não concedeu ambas as esferas a um sexo, para que nenhum deles pareça supérfluo. Mas Deus não designou ambas as esferas igualmente a cada sexo, para que a igualdade de honra não engendre rixas e conflitos. Deus preservou a paz reservando a cada um sua esfera adequada. Ele dividiu nossas vidas em duas partes, e deu a mais necessária e importante ao homem e a parte menor e inferior à mulher. Assim, Ele organizou a vida de maneira a que admirássemos mais o homem do que a mulher, pois seus serviços são mais necessários do que os dela, e para que a mulher tivesse uma forma mais humilde e, assim, não se rebelasse contra o marido.

10) Assim sendo, eis o que tu deves buscar em uma esposa: virtude de alma e nobreza de caráter, para que desfrutes de tranquilidade, para que luxuries em harmonia e amor duradouro.

11) O homem que se casa com uma mulher rica se casa com um chefe, e não com uma esposa. Porém, o homem que se casa com uma esposa em iguais condições ou mais pobre se casa com uma ajudante e aliada, trazendo inúmeras bênçãos para dentro de casa. Sua pobreza a força a cuidar de seu marido com muito cuidado, obedecendo-o em tudo. [...] Portanto, o dinheiro é inútil quando se trata de encontrar um parceiro de boa alma.

12) Assim sendo, deixemos de lado as riquezas da esposa, mas examinenos seu caráter e sua piedade e recato. A esposa recatada, gentil e moderada, mesmo que seja pobre, irá transformar a pobreza em algo muito melhor do que a riqueza.

13) Antes de mais nada, tu deves aprender qual o propósito do casamento, e por que ele foi introduzido em nossas vidas. Não te perguntes mais nada. Qual seria, então, o objetivo do casamento, e por que Deus o criou? Ouve o que Paulo diz: Mas, por causa da tentação à imoralidade, cada um tenha a sua própria mulher (I Coríntios 7:2). [...] Portanto, não despreza o maior nem busca o menor. A riqueza é muitíssimo inferior ao recato. É somente por este motivo que devemos buscar uma esposa: para evitarmos o pecado, para nos libertarmos de toda imoralidade.

14) A beleza do corpo, se não estiver aliada à virtuda da alma, será capaz de atrair o marido somente por uns vinte ou trinta dias, mas não conseguirá ir além disto antes que a perversidade da esposa destrua toda sua atratividade. Quanto àquelas que irradiam beleza de alma, quanto mais o tempo passsa e sua nobreza se evidencia, tanto mais aquecido será o amor do marido e tanto mais ele sentirá afeição por ela.

15) É por meio do recato que o marido conseguirá atrair à sua família a boa vontade e a proteção de Deus. É assim que os homens de bem dos velhos tempos se casavam: buscando nobreza de alma em fez de riqueza monetária.

16) Quando te decidires por uma eposa, não corre atrás de ajuda humana. Volta-te a Deus, pois Ele não se envergonhará de ser vosso casamenteiro. Foi Ele mesmo quem prometeu: Buscai primeiro o Reino de Deus, e todas estas coisas vos serão acrescentadas (Mateus 6:33). Não te perguntes: "Como posso ver a Deus? Afinal, Ele não falará nem conversará comigo de maneira explícita, e portanto não conseguirei Lhe fazer perguntas". Estas são palavras de uma alma de pouca fé. Deus pode facilmente organizar tudo da maneira que Ele quiser, sem o uso da voz.

17) A castidade é algo maravilhoso, mas é mais maravilhoso ainda quando está aliada à beleza física. As Escrituras nos falam sobre José e sua castidade, mas antes mencionam a beleza de seu corpo: José era formoso de porte, e de semblante (Gênesis 39:6). Em seguida, as Escrituras versam sobre sua castidade, deixando claro, assim, que a beleza não levou José a licenciosidade. Pois nem sempre a beleza causa imoralidade ou a feiúra causa recato. Muitas mulheres que resplandecem em beleza física resplandecem ainda mais em recato. Outras que são feias em aparência são ainda mais feias de alma, manchada por inúmeras imoralidades. Não é a natureza do corpo mas a inclinação da alma que produz recato ou imoralidade.

19 de maio de 2008

Os teólogos "científicos"

Eis um pequeno trecho de Meetings with Kontoglou, do Dr. Constantine Cavarnos. Kontoglou (1896-1965) foi um exímio iconógrafo e escritor ortodoxo grego, com quem o Dr. Cavarnos travou diversos diálogos.

* * *

Meu próximo encontro com Kontoglou deu-se em sua casa, no dia 20 de abril de 1958. Nossa conversa foi sobre os teólogos gregos contemporâneos e sobre a arte bizantina no Ocidente.

Kontoglou comentou sobre certos teólogos “científicos” (epistemones), homens que estudaram teologia na Europa e trouxeram às universidades gregas um tipo de teologia mais cerebral e “liberal”. Kontoglou observou que Theocletos Pharmakidis (1784-1862) foi o primeiro teólogo grego desse tipo. Dos mais recentes, ele citou Demetrios Balanos.

Tais teólogos, dizia-me Kontoglou, consideram a teologia ortodoxa tradicional – aquela que provém das raízes do Cristianismo e dos Padres gregos – como algo “fossilizado”, e no qual eles atuariam como agentes “renovadores”. Na verdade, faltam-lhes fé e vida espiritual interior. Eles encaram a teologia como sendo uma ciência qualquer, a exemplo da química e da física, empregando a razão discursiva como ferramenta e fornecendo explicações racionalistas.

Ao criticar esse tipo de teólogo, Kontoglou citou um trecho de São Dionísio, o Areopagita, no qual o santo afirma que não é possível tomar posse das verdades do Cristianismo de maneira puramente intelectual, pois elas devem ser experimentadas, vividas. Ele também leu o seguinte trecho de São Simeão, o Novo Teólogo, o maior místicos de Bizâncio:

Aquele que julga tudo saber porque foi instruído na sabedoria secular jamais conseguirá vislumbrar os mistérios de Deus até que, antes, ele deseje humilhar-se e tornar-se um “tolo”, despindo-se de seu orgulho e do conhecimento que adquiriu. Aquele que assim o fizer, seguindo com fé inabalável os sábios nas coisas divinas e deixando-se guiar por eles, irá com eles à cidade do Deus vivo. Iluminado pelo Espírito Santo, ele verá e será ensinado naquelas coisas que nenhum homem poderá vislumbrar ou aprender. Assim, ele será ensinado por Deus (Kontoglou, Pege Zoes, “Fonte de Vida”, 1951, pág. 82).

Em um livro publicado quatro anos antes do encontro, eis o que ele escreveu sobre tais teólogos:

Os teólogos modernos se tornaram cientistas, a exemplo dos médicos, químicos e engenheiros, pois agindo assim eles conseguem ser honrados pelo mundo. Eles vão à Europa – o lugar das trevas espirituais – para ganhar um diploma. Eles enchem suas cabeças com uma multidão de filosofias vãs e voltam à nossa terra apenas para transmitir sua descrença ao invés da fé... Eles não entram no Reino dos Céus, e impedem que os outros entrem, conforme disse nosso Senhor. Seu castigo é não ver as maravilhas vistas pelos crentes, e, assim, acaba lhes faltando a contrição e se esfriam. Eles estão separados de Deus e Seu Reino porque amam a glória dos homens ao invés da glória de Deus (Semeion Mega, “A Great Sign”, 1962, pág. 16-17).

Em outro livro, Papa-Nicholas Planas, publicado três anos antes, ele novamente enfatizou a importância da fé e da piedade:

Essa gente tenta encontrar a solução dos apuros da Igreja na educação teológica “científica”. Mas o mal só pode ser remediado pela educação na piedade (eusebeia)... Que benefício a Igreja obteria enviando estudantes a, digamos, Genebra? Eles voltarão com princípios protestantes. Essas pessoas dizem que a Igreja está atrasada em um século. Ah, como seria bom se os membros da Igreja tivessem a piedade das pessoas de um século atrás! A educação científica secular é boa quando se junta à piedade (Atenas, 1965, pág. 46).

Fonte: Orthodox Christian Information Center

16 de maio de 2008

Conservadores e liberais

Em sua imunda campanha, os opositores da renovação hesicasta estão tachando os defensores desta tradição de “conservadores”. Mas o que “conservador” significa no Ocidente? No Ocidente, um conservador é aquele que ainda identifica a Bíblia como sendo a revelação de Deus à humanidade e ao mundo, pois, nos velhos tempos, protestantes e católicos romanos acreditavam na inspiração literal das Sagradas Escrituras. Em outras palavras, eles acreditavam que o Cristo ditou a Bíblia palavra por palavra aos profetas e autores dos evangelhos por meio do Espírito Santo, ou seja, os autores da Bíblia eram como que escribas que registravam o que quer que ouvissem o Espírito Santo dizer.

Mas eis que surgiu a crítica bíblica e, no seu bojo, o descrédito à linha de pensamento vigente, dividindo o mundo protestante em duas facções: a conservadora e a liberal. Nos EUA há distintas igrejas luteranas: a liberal e a conservadora igreja do Sínodo de Missouri. A primeira não aceita a Bíblia enquanto revelação em termos absolutos, enquanto a segunda aceita. O mesmo fenômeno pode ser observado entre os batistas. Os batistas liberais não aceitam as Sagradas Escrituras enquanto revelação literalmente inspirada, enquanto os demais as aceitam enquanto revelação inspirada, palavra por palavra. A mesma divisão pode ser observada entre os metodistas. Na verdade, o racha entre liberais e conservadores pode ser observado em todas as denominações protestantes.

Ora, será que a mesma divisão se aplica à tradição ortodoxa? Será que há Santos Padres conservadores e Santos Padres liberais? Será que há um único Padre da Igreja que tenha ensinado a inspiração literal das Sagradas Escrituras? Será que há um único Padre da Igreja que tenha identificado as Sagradas Escrituras com a experiência da theosis? Não, não há, porque a revelação de Deus à humanidade é a própria experiência da theosis. Na verdade, como a revelação é a experiência da theosis – uma experiência que transcende toda expressão e conceito – a identificação das Sagradas Escrituras com a revelação é, em termos de teologia dogmática, pura heresia.

Pode alguém que aceita o ensinamento patrístico da theosis ser caracterizado como conservador, baseado no racha sobre as Escrituras do mundo protestante? Quando os protestantes liberais ouvem falar deste princípio patrístico, dizem: “Ah, sim, isso aí é liberalismo!”, enquanto os protestantes dizem: “Não, isso aí é heresia!” Em outras palavras, quando seguimos os Padres, nós, ortodoxos, somos heréticos do ponto de vista protestante conservador.

Afinal, quem são os ortodoxos liberais e quem são os ortodoxos conservadores? São aqueles que fazem teologia à moda dos teólogos protestantes liberais e conservadores. Eis a razão por que determinados teólogos gregos têm se dividido entre liberais e conservadores. Os liberais seguem os protestantes liberais enquanto os conservadores seguem os protestantes conservadores.

Porém, será que é correto classificarmos a tradição patrística nesses termos? É claro que não. Todavia, o teólogo hesicasta da Igreja Oriental será visto como um liberal no Ocidente, pois ele se recusará a identificar o texto bíblico, incluindo seus provérbios e conceitos, com a revelação.

Dado que a revelação é a própria experiência da theosis, então a revelação está além da compreensão, da expressão e da conceitualização. Isso significa dizer que os rótulos “conservador” e “liberal” não devem ser aplicados àqueles que aderem à tradição ortodoxa. Portanto, os Padres não são nem liberais, nem conservadores. Em outras palavras, há Padres da Igreja que são santos por terem atingido a iluminação e há santos da Igreja que são santos porque, além da iluminação, atingiram também a theosis e são mais gloriosos do que a primeira classe de santos.

Esta é, pois, a tradição patrística – ou você alcança a iluminação ou você alcança a theosis após ter passado pela iluminação. A tradição ortodoxa nada mais é do que esta terapia, na qual o nous é purificado, iluminado e, no final das contas, glorificado com todo o homem, se Deus assim quiser. Ora, será que existe isso de “iluminado liberal” ou “iluminado conservador”? É claro que não. Ou você está iluminado ou não está. Ou você alcançou a theosis ou não alcançou. Ou você se submeteu a esta terapia ou não se submeteu. Além destas distinções, não há outras.

15 de maio de 2008

Qual o núcleo da tradição ortodoxa?

Foi-nos confiado um grande tesouro: a teologia da tradição ortodoxa. A teologia ortodoxa é o produto de séculos de experiências que têm sido repetidas, renovadas e rememoradas por aqueles que experimentaram a theosis. Assim, temos as experiências dos patriarcas e profetas bem como as experiências posteriores dos apóstolos. Chamamos todas essas experiências de “glorificações”. Dizer que um profeta foi glorificado significa dizer que o profeta viu a glória de Deus. Dizer que um apóstolo foi glorificado significa dizer que o apóstolo viu a glória de Deus. Ao ver a glória do Cristo, o apóstolo certificou-se, pela sua experiência, que a glória do Cristo no Novo Testamento é a glória de Deus no Velho Testamento. Por conseguinte, Cristo é o Yahweh e o Elohim do Velho Testamento.

Embora não esteja claro, no Velho Testamento, quem é o Espírito Santo, os apóstolos descobriram quem Ele é por experiência. A experiência deles é uma repetição da experiência dos profetas, mas há uma diferença: os apóstolos foram glorificados após a Encarnação. O Yahweh do Velho Testamento tem, agora, a natureza humana do Cristo. Embora três apóstolos tivessem sido parcialmente glorificados durante a Transfiguração no Monte Tabor, todos os apóstolos foram plenamente glorificados no Pentecostes, durante o qual alcançaram o estado mais elevado de glorificação que qualquer ser humano pode alcançar nesta vida.

Em seguida à experiência dos apóstolos vieram as experiências dos demais glorificados: os Padres da Igreja e os santos que atingiram a theosis. E a experiência da theosis continua a se manifestar em cada geração, até hoje. [63] Esta experiência da theosis é o núcleo da tradição ortodoxa, o fundamento dos concílios locais e ecumênicos, e a base da lei canônica e da vida litúrgica da Igreja.

Se os teólogos ortodoxos contemporâneos desejam adquirir objetividade em seus estudos, eles devem confiar na experiência da theosis. Em outras palavras, podemos dizer que um estudante da tradição patrística só terá adquirido verdadeira objetividade em seu método teológico quando ele mesmo tenha passado pela purificação e pela iluminação, alcançado a theosis. É somente desta maneira que o pesquisador não apenas entenderá a tradição patrística, mas verificará, por si próprio, a verdade desta tradição por meio do Espírito Santo.

Nota:

[63] Durante as últimas décadas, muitos santos da Igreja que experimentaram a theosis se tornaram conhecidos, tais como Ancião Paísio, o Hagiorita, Ancião Sofrônio de Essex, Ancião Porfírio de Atenas, Ancião Iakovos de Evia, Ancião José, o Hesicasta e Ancião Efraim de Katounakia, entre muitos outros dentro e fora da Grécia.

9 de maio de 2008

O que é o noûs?

Eis o primeiro capítulo da recém-lançada tradução de Patristic Theology, do Pe. João Romanides.

* * *

O principal interesse da Igreja Ortodoxa é a cura da alma humana. A Igreja sempre considerou a alma como sendo a parte do ser humano que precisa de cura porque a Igreja tem observado, a partir da tradição hebraica, do próprio Cristo e dos Apóstolos, que na região física do coração opera algo que os Padres chamam de nous. Em outras palavras: os Padres usaram o termo tradicional nous, que significa tanto intelecto (dianoia) quanto palavra ou razão (logos), dando-lhe um significado diferente. Não sabemos quando esta alteração de significado ocorreu, pois há Padres que usam nous para se referir à razão assim como há Padres que usam nous para se referir a essa energia noética que descende e opera na região do coração.

Portanto, sob este ponto de vista, a atividade noética é uma atividade essencial à alma. Ela opera no cérebro enquanto razão e, simultaneamente, opera no coração enquanto nous. Em outras palavras, o mesmo órgão, o nous, reza incessantemente no coração enquanto, por exemplo, pensa em problemas matemáticos no cérebro.

É importante notar que há uma diferença terminológica entre São Paulo e os Padres. O que São Paulo chama de nous é o que os Padres chamam de dianoia. Quando o Apóstolo Paulo afirma Orarei com o espírito [1], ele quer dizer o mesmo que os Padres quando afirmam Orarei com o nous. E quando ele afirma Orarei com o nous, ele quer dizer Orarei com o intelecto (dianoia). Quando os Padres usam nous, o Apóstolo Paulo usa “espírito”. Quando ele afirma Orarei com o nous, orarei com o espírito ou quando afirma Cantarei com o nous, cantarei com o espírito, e quando afirma o Espírito de Deus testifica com nosso espírito [2], ele usa a palavra “espírito” para se referir àquilo que os Padres chamam de nous. E com a palavra nous, ele quer dizer intelecto ou razão.

Na frase o Espírito de Deus testifica com nosso espírito, São Paulo fala de dois espíritos: o Espírito de Deus e o espírito humano. Por uma estranha conjunção de circunstâncias, o que São Paulo quis dizer com espírito humano, mais tarde, durante os tempos de São Macário do Egito, reapareceu com o nome de nous, e somente as palavras logos e dianoia continuaram a significar a habilidade racional do homem. E foi assim que o nous passou a ser identificado com o espírito, isto é, com o coração, já que, de acordo com São Paulo, o coração é onde está situado o espírito do homem. [3]

Assim, segundo o Apóstolo Paulo, a adoração racional ou lógica ocorre por meio do nous (isto é, razão ou intelecto) enquanto a oração noética ocorre por meio do espírito, isto é, por meio da oração espiritual ou oração do coração. [4] Portanto, quando o Apóstolo Paulo afirma eu prefiro falar cinco palavras com meu nous, para que possa também instruir os outros, do que dez mil palavras com minha língua, [5] ele quer dizer que prefere falar cinco palavras, ou seja, falar pouco, para que outros sejam instruídos, do que orar noeticamente. Alguns monges interpretam as cinco palavras de São Paulo como sendo a Oração de Jesus [6], mas, aqui, o Apóstolo está na verdade se referindo às palavras usadas para instruir os outros. [7] Ora, como é possível ocorrer catequese com orações noéticas, já que tais orações são interiores e ninguém ao redor conseguiria ouvi-las? Porém, a catequese é possível, sim, com ensinamentos e adorações convincentes e racionais. Ensinamos e falamos usando a razão, que é o método que as pessoas usam para se comunicarem umas com as outras. [8]

Porém, aqueles que têm oração noética em seus corações conseguem se comunicar uns com os outros. Em outras palavras, eles conseguem sentar no mesmo local e se comunicar noeticamente, sem falar. Ou seja, eles são capazes de se comunicar espiritualmente. É claro que tal comunicação também ocorre quando estão afastados uns dos outros. Eles também possuem dons de clarividência e presciência. Por meio da clarividência, eles são capazes de sentir os pensamentos (logismoi) e pecados dos outros, enquanto que por meio da presciência eles conseguem ver e falar sobre assuntos, ações e eventos futuros. Tais pessoas carismáticas realmente existem. Se você se confessar com uma delas, essa pessoa saberá tudo o que você fez em vida antes mesmo que você abra a boca.

Notas

1. I Coríntios 14:15.

2. Romanos 8:16.

3. Isto significa que o Espírito de Deus fala com nosso espírito. Em outras palavras: Deus fala em nossos corações pela graça do Espírito Santo. São Gregório Palamás nota, em seu segundo discurso Em defesa dos santos hesicastas, que “o coração governa sobre todo o organismo humano... Pois o nous e todos os pensamentos (logismoi) da alma estão localizados lá”. No contexto da oração cheia de graça, fica claro que o termo “coração” não se refere ao coração físico, mas ao coração profundo, enquanto o termo nous não se refere ao intelecto (dianoia), mas à energia/atividade do coração, a atividade noética que flui da essência do nous (isto é, do coração). Por esta razão, São Gregório acrescenta que é necessário aos hesicastas que “tragam seus nous de volta, confinando-os em seus corpos e, em particular, nas profundezas de seus corpos, naquilo que chamamos de coração”. O termo “espírito” também é idêntico ao termo nous e “coração”. Philokalia, vol. IV (Londres: Faber and Faber, 1995), pág. 334.

4. O Metropolita Hierotheos Vlachos nota: “O homem tem dois centros de conhecimento: o nous, que é o órgão apropriado para receber a revelação de Deus, mais tarde traduzida em palavras pela razão, e a razão, que conhece o mundo sensível ao nosso redor”. The Person in Orthodox Tradition, tradução de Effie Mavromichali (Levadia: Monastery of the Birth of the Theotokos, 1994), pág. 24.

5. I Coríntios 14:19.

6. Em grego, a Oração de Jesus consiste de exatamente cinco palavras, em sua forma mais simples. Em português, traduz-se como “Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim”.

7. “Portanto, conforme ensina São João Damasceno, somos conduzidos como em uma escada no pensar de bons pensamentos...São Paulo também indica isso quando afirma ‘Eu prefiro falar cinco palavras com meu nous...’” São Pedro Damasceno, The Third Stage of Contemplation, Philokalia, 3, pág. 42.

8. A este respeito, São Nikitas Stithatos ensina: “[…] Se, enquanto ora e reza salmos, você fala em sua língua a Deus, você edifica a si próprio, conforme São Paulo afirma... Se não é para edificar seu rebanho que o pastor pretende ser enriquecido com a graça do ensinamento e do conhecimento do Espírito, então a ele falta fervor em sua busca pelos dons de Deus. Apenas orando e rezando salmos interiormente com sua língua, isto é, rezando na alma, você será edificado, mas seu nous estará improdutivo [ver I Coríntios 14:14], pois você não profetizará na língua do santo ensinamento nem edificará a Igreja de Deus. Se Paulo, que de todos os homens era o mais unido a Deus por meio da oração, preferia falar cinco palavras com seu fértil nous na igreja, para instruir os outros, do que dez mil palavras de salmos em privado com sua língua [ver I Coríntios 14:19], decerto os responsáveis por instruírem os outros se desviaram do caminho do amor caso tenham se limitado a pastorear somente com salmos e leituras”. São Nikitas Stithatos, On Spiritual Knowledge, Philokalia, vol. 4, pág. 169-170.

29 de abril de 2008

A antropologia e a epistemologia da filosofia de Ivan Kireyevsky

Eis alguns comentários de I.M. Kontzevitch, publicados no apêndice de seu livro The Acquisition of the Holy Spirit in Ancient Russia.

* * *

Estes ensinamentos de Kireyevsky estão diretamente relacionados ao asceticismo e devem ser examinados à luz dele. Tais ensinamentos ligam o asceticismo à filosofia, confirmando assim o sentido eterno dos esforços ascéticos.

Em sua doutrina sobre a alma, Kireyevsky destaca sua estrutura hierárquica. Ele considera o “antigo dualismo antropológico cristão” [1], isto é, a distinção entre homem “exterior” e homem “interior”, como sendo a base de sua doutrina. Usando expressões da psicologia contemporânea, ele distingue entre a “esfera empírica da psique” e seus aspectos mais profundos, situados abaixo do limiar da consciência, cujo ponto central poderíamos chamar de “eu interior”. Esses aspectos são as potências do espírito, relegadas pelo pecado às profundezas do homem, para além do limiar da consciência. É por essa razão que a integridade original foi perdida, ocultando em si a verdadeira raiz da individualidade e sua qualidade específica. Essas potências, esse homem interior, estão apartadas da consciência em função do poder do pecado. Ao superar o pecado e “concentrar” as potências da alma, o homem deve se esforçar para unir sua esfera empírica com seu centro interior, seu “eu interior”, subordinando essa esfera empírica a si próprio. Kireyevsky afirma, em um trecho notável, que “A principal característica do pensamento piedoso consiste no esforço para concentrar todas as potências distintas da alma em uma única potência, buscando a fusão do centro interior do ser em uma única unidade viva, na qual participam razão, vontade, sentimento e consciência, beleza e verdade, admirável e desejável, justo e misericordioso, e todos os aspectos da mente, restaurando, portanto, a personalidade essencial em sua individualidade original”. Nessa integridade restaurada das potências, a primazia hierárquica pertence à esfera moral do homem; e a saúde dos demais aspectos e qualidades específicas de sua alma depende da saúde da esfera moral [2].

Eis como Kireyevsky expressa o problema fundamental de sua doutrina epistemológica: “O entendimento com o qual o homem apreende o divino também lhe serve para que apreenda a verdade em geral”. Em outras palavras, “a apreensão da realidade é função do conhecimento de Deus” [3].

Este importante aspecto da cognição da alma forma a base das construções epistemológicas de Kireyevsky, fornecendo a chave para que se possa compreendê-las. “Nas profundezas da razão humana, em sua verdadeira natureza, está a possibilidade da consciência de seu relacionamento fundamental com Deus”, isto é, a fé. A fé, o conhecimento de Deus, é uma união profunda e misteriosa com Deus – a única e verdadeira realidade - e que não se restringe apenas ao espírito do homem, mas envolve toda a sua personalidade.

Similarmente, o entendimento da realidade secundária, criada, tem a ver não apenas com a razão, mas com “todo o ser e toda sua participação na realidade”. A profundidade da cognição, a possibilidade de “possuir a realidade” e a verdade que está nela oculta, é determinada não somente pela cognição, mas “pela luz do entendimento, pela sua percepção no ‘eu interior’ do homem” [4]. Isto é possível somente na integridade do espírito, na reunião de todas as suas potências.

Mas a Queda causou o debilitamento da estrutura da alma. Embora a fé também tenha sido debilitada e relegada às profundezas da alma, ela ainda preserva o poder de restaurar a integridade perdida do espírito. À medida que a fé tenha sido preservada no centro interior do espírito, ela restaurará o funcionamento natural da mente e “fará a mente entender que foi desviada de sua integridade moral; e este entendimento ajudar-nos-á a elevar-nos acima do curso ‘natural’ das atividades”, isto é, a elevar-nos acima do estado ‘natural’. “Pois o fiel ortodoxo sabe que a integridade da verdade requer a integridade da mente, e a busca por esta integridade constitui a tarefa constante de seu pensamento”. . . . “Portanto, onde a fé está presente, uma ‘atividade dual’ se dará no pensamento do fiel: ao acompanhar o desenvolvimento de seu entendimento, ele simultaneamente acompanhará o método de seu pensamento” (isto é, ele controla a exatidão de sua atividade), “esforçando-se constantemente para elevar sua razão a um nível compatível com a fé”. Por conseguinte, a corrupção da mente, cuja causa é o empobrecimento da integridade da natureza primitiva, será reparada por aquilo que a fé conseguir levar para dentro do espírito. Este processo não implica em violência para a mente, que, outrossim, minaria sua liberdade e poderes criativos, mas implica em elevar a razão a um nível superior.

“As verdades vivas não são aquelas que constituem capital morto na mente do homem, que se situam na superfície de sua mente e podem ser adquiridas por aprendizado exterior, mas são aquelas que incendeiam a alma, que podem queimar ou tornarem-se extintas, que transmitem vida a vida, que estão preservadas em segredo no coração e que não podem, por natureza, ser óbvias e comuns a todos. Quando expressa em palavras, permanecem despercebidas; quando expressa em obras, permanecem incompreensíveis àqueles que não experimentaram seu contato direto”. Conhecer a verdade implica necessariamente em habitar na verdade; em outras palavras, não apenas a mente está envolvida no processo, mas toda a vida. O conhecimento “vivo” é adquirido no mesmo grau em que se aspira interiormente à integridade e elevação moral, e desaparece quando tal aspiração cessa, deixando na alma apenas seu aspecto exterior, formal. Portanto, a “iluminação espiritual”, em contraste ao conhecimento lógico, depende do estado moral da alma e, enquanto tal, requer esforço e intensidade moral. “Ela pode extinguir-se caso o fogo que a despertou não seja continuamente alimentado”. O conhecimento abstrato implica em “desligar-se da realidade, e o próprio homem torna-se uma entidade abstrata”. A ruptura com a realidade começa na esfera da fé. A enfermidade do espírito, a desintegração de sua força, é, antes de mais nada, refletida na esfera da fé, resultando em “pensamento abstrato”. “O pensamento lógico, apartado das demais potências cognitivas, é a característica natural da mente que se apartou de sua integridade”. Este apartamento também causa a perda das cognições superiores ligadas à fé; e a “razão natural” inevitavelmente despenca para o nível de sua “natureza primária”. A ruptura com as potências espirituais, esta “amoralidade” do iluminismo ocidental, confere-lhe uma estranha estabilidade, enquanto o conhecimento espiritual é dinâmico por natureza e diretamente dependente do estado continuamente mutável da esfera moral.

Eis aí portanto a solução de Kireyevsky ao problema básico da epistemologia: a união interior da fé com a razão. Conforme mencionado acima, ele inspirou-se nos Padres da Igreja. Conforme explicada por São Dimítrio de Rostov, sua doutrina dos níveis da razão o ajudou a elucidar a doutrina da cognição.

1. A razão não cultivada e que permanece por longo tempo impura é uma razão irrazoável, uma razão iníqua e mentirosa. Há distinções na razão, assim como em todas as coisas externas. Há a razão perfeita, espiritual, há a razão média da alma e há a razão carnal e grosseira.

2. Quem não seguir o estreito caminho evangélico e não purificar sua mente estará cego de alma, mesmo que tenha se especializado em todas as sabedorias externas; ele se atém somente à letra que mata, rejeitando o espírito que dá vida.

3. A verdadeira razão não consegue penetrar fundo na alma sem grandes e prolongados esforços; pois é na medida em que as luxúrias humanas são mortificadas que a verdadeira razão crescerá e florescerá. Mas esse esforço ascético é de um tipo particular, consistindo de esforço exterior e atividade mental. Um não é eficaz sem o outro.

4. Aqueles que cumprem as exigências do esforço exterior enquanto rejeitam a atividade espiritual interior – a iluminação e a purificação da razão – encontram-se perdidos, deixando-se corromper pelas diversas paixões ou cair em perniciosas heresias. E como eles não se importaram de ter conhecimento de Deus, assim Deus os entregou a um sentimento perverso, para fazerem coisas que não convêm (Romanos 1:28).

5. A mente purificada e iluminada consegue entender tudo o que é exterior e interior, pois a pessoa é espiritual e discerne bem tudo, e ele de ninguém é discernido (I Coríntios 2:15) [5].

Filosofia é a ciência da apreensão da verdade. Mas a verdade é una. Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida, diz o Senhor (João 14:6). Este Caminho é também o único para o pensamento filosófico; quem quer que siga um caminho diferente sobe por outra parte (João 10:1).

Um camelo de carga só consegue passar pelos portões baixos e estreitos de Jerusalém – o chamado “buraco da agulha” – com muita dificuldade e de joelhos. Mas, apesar dos esforços, é ainda mais difícil um pensador rico da falsamente chamada ciência (I Timóteo 6:20) entrar no Reino da verdade e da liberdade espiritual de Deus: Ora, o Senhor é Espírito; e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade (II Coríntios 3:17). Se vós permanecerdes na minha palavra, verdadeiramente sereis meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará (João 8:31-32).

Baseando-se na lei da dinâmica do conhecimento e sua ligação com a esfera espiritual, Kireyevsky supõe que o declínio do “iluminismo russo nativo”, embora tenha ocorrido em circunstâncias externas desfavoráveis, “não estava livre de falhas humanas interiores”. “A aspiração a formalidades externas, algo que observamos entre os Velhos Crentes russos, dá a entender que a direção inicial do iluminismo russo já havia se corrompido antes das reviravoltas causadas por Pedro”. Vale a pena notar que Kireyevsky situa o início desse declínio nos séculos XV e XVI, o que coincide com o início do declínio da atividade espiritual, de acordo com nossas próprias pesquisas.

Assim, Kireyevsky marcou o início de uma nova e inspirada filosofia da “integridade do espírito”, que poderia ter formado as bases para o desenvolvimento de uma cultura russa original e nativa.

Em Kireyevsky, a autoconsciência russa já atingira sua plena revelação. O pensamento russo estava se livrando de seus longos séculos de escravidão a princípios estrangeiros e iniciando seu caminho independente, voltando às fontes primárias. Estava, pois, retornando à “casa do pai”. Mas Kireyevsky não teve tempo para completar a tarefa que deslumbrou: escrever uma filosofia. Ele apenas dera as bases e indicara sua direção. A morte o levou ao ápice de sua vida. Ele foi sepultado no Mosteiro de Optina, próximo ao Ancião Leônidas. Ancião Macário morreu logo em seguida. Tudo o que transpirou de Optina tinha um significado misterioso. O próprio Metropolita Filareto espantou-se com a honra devotada a Kireyevsky [6].

[1] Zenkovsky, History of Russian Philosophy, pág. 222.

[2] Ibid., pág. 225.

[3] Ibid., pág. 228.

[4] Ibid.

[5] The Spiritual Alphabet, St. Demetrius of Rostov, pág. 38-43. I. M. Kontzevitch escreveu um tratado completo sobre São Dimítrio de Rostov, publicado na Pravoslavny Put (The Orthodox Way – O Caminho Ortodoxo), embora não em sua totalidade (editor).

[6] A vida de Kireyevsky foi uma confirmação viva de seus ensinamentos. Eis o que disse sobre Kireyevsky seu grande amigo Khomiakov: “Um coração cheio de ternura e amor; uma mente enriquecida pela cultura de nossa época; a pureza translúcida de uma alma mansa e livre de malícia; uma suavidade de sentimentos muito particular que adicionava um charme todo especial a suas conversas; um ardente desejo pela verdade e um raro refinamento dialético em seus argumentos, acompanhado da mais alta cordialidade quando seu oponente estava certo e de tenra misericórdia quando seu oponente mostrava-se obviamente fraco; aversão a tudo o que seja grosseiro e abrasivo em vida, expressão e pensamento, ou em relação a outras pessoas; lealdade e devoção nas amizades; prontidão para perdoar seus inimigos para sinceramente se reconciliar com eles; ódio profundo contra os vícios e, finalmente, uma irrepreensível dignidade. Tais eram as raras e valiosas qualidades de Ivan Vasilievich Kireyevsky”. Russian Biographical Dictionary (São Petersburgo, 1897), pág. 695.

18 de abril de 2008

São Ticônio, Patriarca de Moscou

Eis um trecho da homilia proferida por São Ticônio (+1925), Patriarca de Moscou, no Domingo do Triunfo da Ortodoxia de 1903, na Catedral Ortodoxa Russa de San Francisco, EUA, enquanto era bispo neste país. Embora proferida para imigrantes russos nos EUA, suas palavras têm grande relevância para nós.

Fonte: Monachos.net

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Com que rapidez, neste país de tantos credos e tribos, as pessoas abandonam a fé ortodoxa! Elas começam sua apostasia com coisas que, a seus olhos, têm pouca importância. Elas julgam tais coisas como sendo “antiquadas” e “inaceitáveis para pessoas esclarecidas”: rezar antes e depois das refeições (ou mesmo de manhã e à noite), usar uma cruz, ter ícones em casa e observar os dias santos e os dias de jejum. Mas essas pessoas não param por aí. Elas vão ainda mais longe: raramente vão à igreja, se é que vão, pois acreditam que o homem tem de descansar aos domingos (...num bar); não se confessam, dispensam o casamento na igreja e demoram para batizar seus filhos.

É assim que suas ligações com a fé ortodoxa se rompem! Elas se lembram da igreja em seu leito de morte, e algumas nem mesmo assim! Para se desculparem, dizem ingenuamente: “Aqui não é a terra-natal, é a América, e, portanto, é impossível observar todas as exigências da Igreja”, como se a palavra de Cristo fosse útil somente para a terra-natal e não para todo o mundo. Como se a fé ortodoxa não fosse o fundamento do mundo!

Ai, nação pecadora, povo carregado de iniqüidade, descendência de malfeitores, filhos corruptores; deixaram ao Senhor, blasfemaram o Santo de Israel. (Isaías 1:4).

Se vocês não preservam a fé ortodoxa e os mandamentos de Deus, o mínimo que deveriam fazer é não humilhar seus corações inventando falsas desculpas pelos seus pecados!

Se vocês não honram nossas práticas, o mínimo que deveriam fazer é não rir do que desconhecem e não entendem.

Se vocês não aceitam o cuidado maternal da Santa Igreja Ortodoxa, o mínimo que deveriam fazer é confessar que agem injustamente, que estão pecando contra a Igreja e se comportando como crianças!

Se fizerem isso, talvez a Igreja Ortodoxa perdoe a frieza e o desdenho de vocês, e os receba de volta em seu seio como se fossem crianças desobedientes.

É praticando a fé ortodoxa como algo santo – amando-a de todo coração e prezando-a acima de tudo – que o povo ortodoxo poderá então se esforçar a disseminá-la entre os povos de outros credos.

Cristo Salvador disse que nem se acende a candeia e se coloca debaixo do alqueire, mas no velador, e dá luz a todos que estão na casa. (São Mateus 5:15).

A luz da Ortodoxia não foi acesa para brilhar em um número pequeno de pessoas. A Igreja Ortodoxa é universal; ela lembra as palavras de seu Fundador: Ide por todo o mundo, pregai o evangelho a toda criatura (São Marcos 16:15), portanto ide, fazei discípulos de todas as nações (São Mateus 28:19).

Devemos compartilhar nossa riqueza espiritual, nossa verdade, luz e alegria com os outros, que estão desprovidos dessas bênçãos, mas com freqüência as procuram e estão sedentas delas.

30 de janeiro de 2008

A praga do cientificismo

O físico Wolfgang Smith tem sido muito feliz ao questionar e refutar os principais postulados da ciência profana. Segundo o autor, a ciência moderna traz de maneira embutida uma crença filosófica errônea, popularizada por René Descartes e chamada de "bifurcacionismo" ou, nas suas palavras, de "reducionismo físico". Segundo Smith, a ciência moderna reduz os objetos corpóreos (por exemplo, uma maçã) a meros objetos físicos (uma maçã "molecular"), desprezando as qualidades e formas simbólicas neles existentes. Essas qualidades são tidas pelos cientistas modernos como res cogitans, ou seja, como meras interpretações subjetivas, e não como algo pertencente à realidade objetiva. Daí vem a chamada "bifurcação": o objeto corpóreo é "retirado" da realidade e realocado na mente do sujeito.

Mesmo com o advento da mecânica quântica -- que deveria ter sido encarada como uma pá de cal ao bifurcacionismo -- os cientistas modernos fingem que o mundo cartesiano ainda é válido porque, segundo Smith, é a crença filosófica em si que pretendem defender, e não propriamente os postulados da ciência empírica.

Por fim, Smith avalia os danos inconscientes que esta crença cientificista causa na vida espiritual e religiosa das pessoas, e alerta para a necessidade dos sacerdotes serem instruídos a identificarem o bifurcacionismo que vem enlatado nas explicações das descobertas científicas.

Smith nasceu em 1930 e, com pouco mais de vinte anos de idade, trabalhando para a Bell Aircraft Corporation, distinguiu-se através da pesquisa sobre a aerodinâmica dos campos de difusão, a qual deu a fundamentação teórica à solução do famoso problema da re-entrada de artefatos na atmosfera. Ele é católico romano e tem Ph.D. em Matemática pela Universidade Columbia e exerceu cargos acadêmicos no MIT, na UCLA e na Universidade do Estado de Oregon.

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A praga do cientificismo
Nada é mais incontestável e infalível para a mentalidade contemporânea do que as descobertas da física, da astronomia, da química e, ultimamente, da biologia molecular. Elas são aquelas ciências “difíceis” da era moderna, cuja abrangência e precisão deixam a imaginação estupefata; elas nos aproximam das realidades mais fundamentais que outrora jamais teríamos condições de conceber. E mais: este grupo de ciências foi de certa maneira “validado visivelmente” pelos milagres tecnológicos que nos rodeiam. Ora, quem se atreveria a duvidar – muito menos a negar – suas descobertas? Na verdade, ninguém; partículas e campos quânticos, galáxias e quasares, moléculas e códigos genéticos – são todos fatos inegáveis com os quais doravante somos obrigados a conviver.

Contudo, devemos ter em mente que um fato e sua interpretação não são a mesma coisa. E dado que, subjetivamente, os fatos são invariavelmente associados a uma interpretação, sucede que a ciência, por via de regra, nos apresenta dois fatores díspares: as descobertas positivas, de um lado, e, de outro, uma filosofia a elas implícita cujos termos servem de moldura à sua formulação e divulgação. Na verdade, a ciência nunca será esse tipo de investigação puramente empírica tal como geralmente a consideram, o que significa dizer que pressupostos ontológicos e epistemológicos sempre desempenharão um papel essencial. E mais: a comunidade científica raramente examina esses dogmas filosóficos ou os sujeitam a um escrutínio rigoroso. Esses pressupostos são as idéias fundamentais que absorvemos – quase que por osmose – no decorrer de nossa educação científica; elas pertencem ao que poderíamos chamar de inconsciente científico. E quando um desses enraizados dogmas filosóficos se torna tema de discussão, a resposta típica dos cientistas é apontar, à guisa de validação, para o sucesso das investigações científicas e dizer: “Vejam, funciona!” Ora, nenhuma crença filosófica jamais foi validada por uma descoberta empírica; o fato é que a verificação tanto quanto a falsificação por meios empíricos é algo que se aplica às proposições científicas, e não às filosóficas. Porém, é muito raro que os cientistas sequer tentem distinguir estes dois domínios; somente em tempos de crise extrema, quando os fundamentos da ciência parecem estar realmente abaladas, é possível encontrar gente fazendo esse tipo de questionamento mas, mesmo assim, em quantidade diminuta: é preciso um Einstein ou um Heisenberg para, digamos, descer até o nível fundamental dos axiomas filosóficos. Além disso, o que a maioria dos cientistas comuns absorve desses grandes físicos fica restrito aos aspectos técnicos da investigação: as equações da relatividade ou o formalismo da mecânica matricial são aceitos, enquanto o lado filosófico da moeda é ignorado. Podemos dizer que os homens e mulheres que se dedicam ao cotidiano das pesquisas científicas tendem a não se interessar pelas sutilezas filosóficas; estão, portanto, inclinados a reter os axiomas filosóficos com os quais se acostumaram ao longo dos anos, e que só deveriam ser reconhecidos como tal, para serem depois devidamente expelidos, por meio de uma investigação séria e rigorosa. Assim sendo, o resultado é que na mente dos cientistas coexistem, de maneira inextricável, boa ciência e filosofia inferior; conforme observou John Haught, da Universidade de Georgetown: “Alguns dos mais renomados cientistas são literalmente incapazes de separar a ciência de sua metafísica materialista”.

Dito isto, passo a declarar formalmente a minha tese principal: sustento que, em virtude da confusão supracitada, os cientistas têm promulgado as mais duvidosas opiniões filosóficas como se fossem sólidas verdades científicas e, em nome da ciência, têm forçado um público crédulo e impressionável a aceitar uma cosmovisão superficial que, na realidade, não tem um pingo de respaldo científico. Sustento ainda que os cientistas conseguiram ganhar a confiança e a admiração da sociedade por meio das maravilhas tecnológicas que ajudaram a engendrar e que, enquanto classe, têm usurpado dessa autoridade ao predispor o público contra as verdades religiosas. Não estou aqui sugerindo que eles estão enganando o próximo de maneira consciente, mas sim que, por via de regra, enganaram-se a si próprios em questões que pertencem à filosofia, à metafísica e à religião. Enquanto isso, esses “guias cegos” exercem uma influência incalculável sobre a educação e a opinião pública, com conseqüências desastrosas ao bem-estar humano, tanto agora como no futuro.

Aplicarei o termo “crença cientificista” às opiniões filosóficas travestidas de verdades científicas. Deixem-me dar dois exemplos. O primeiro é o princípio do mecanicismo universal ou, melhor dizendo, o axioma do determinismo físico. A idéia é simples: o princípio afirma que o universo exterior consiste de matéria cujo movimento é determinado pela interação de suas partes. Dada a configuração ou estado inicial dessa matéria, e averiguadas as leis que determinam os efeitos dessas interações sobre o movimento resultante, somos supostamente capazes de calcular a evolução futura do universo nos mínimos detalhes. Dessa maneira, o cosmo é concebido como se fosse um relógio gigante, cujas partes interagem entre si, determinando o movimento do todo. Sabemos que essa idéia começou a tomar forma no século XVI e que desempenhou um papel decisivo na evolução da ciência moderna. De fato, nos tempos no Iluminismo, a idéia chegou quase a ser considerada uma verdade científica universalmente estabelecida. Por exemplo, Hermann von Helmholtz, um dos líderes científicos do século XIX, afirmou com serena confiança: “O objetivo final de toda a ciência natural é reduzir-se à mecânica (sich in Mechanik aufzulösen)”. Porém, o quadro mudou com o advento da teoria quântica: concluiu-se que a nova física não era compatível com as premissas mecanicistas. Todavia, apesar do indeterminismo quântico, não foram poucos os cientistas que continuaram a promulgar o princípio mecanicista. O próprio Albert Einstein, longe de admitir que as descobertas da física quântica desbancassem os postulados clássicos, argumentava justamente o contrário: com efeito, é o princípio do determinismo que invalidaria a mecânica quântica enquanto teoria fundamental. Este caso ilustra muito bem a característica filosófica e a priori do princípio em questão, e o fato de que as proposições deste tipo não podem ser verificadas nem falseadas pelas descobertas empíricas. Porém, o fato permanece ignorado, e o resultado é que até hoje o postulado do mecanicismo universal retém seu status de verdade científica incontestável.

O segundo exemplo pertence a um estrato mais fundamental do pensamento filosófico e, conseqüentemente, é muito mais abrangente em suas implicações. Trata-se do “reducionismo físico” (chamo-o assim por razões que logo ficarão claras). A tese depende de uma suposição epistemológica – um postulado idealista, eu diria – que afirma que o ato da percepção sensorial se encerra numa representação subjetiva, e não num objeto externo como normalmente acreditamos. De acordo com esse critério, a maçã vermelha que percebemos existe em nossa mente ou consciência; é uma imagem subjetiva, uma fantasia que a humanidade há séculos tomou por engano como sendo um objeto exterior. Assim pensava René Descartes, a quem devemos as fundações filosóficas da ciência moderna. Descartes procurou corrigir noções sobre as entidades perceptíveis que ele julgava errôneas, distinguindo entre objeto exterior, que ele chamou de res extensa, e sua representação subjetiva, a res cogitans. O que outrora era concebido como um objeto singular (como na vida cotidiana é invariavelmente considerado) foi dividido em dois; conforme disse Whitehead: “Portanto, haveria duas naturezas: uma é a conjectura, a outra o sonho” (1). É notável que esta diferenciação cartesiana entre a “conjectura” e o “sonho” não apenas vai de encontro às intuições mais comuns da humanidade, mas é bizarra se comparada às grandes tradições filosóficas, incluindo especialmente a tradição tomista. Ora, é justamente esta questionável doutrina cartesiana – a qual Whitehead chama de “bifurcação” – que serviu desde o início como plataforma fundamental da física ou, melhor dizendo, da cosmovisão cientificista, cujos termos são habitualmente empregados para interpretar os resultados da física. E verificamos novamente que os dois fatores díspares – os fatores operacionais da física e suas interpretações usuais – tornaram-se, com efeito, um só. Ou seja, o princípio da bifurcação é realmente uma crença cientificista.

Gostaria de deixar claro que além da bifurcação ir de encontro às mais básicas intuições humanas e às mais veneráveis tradições filosóficas, não há um pingo de evidência empírica que sustente tal postura heterodoxa. E nem poderia haver, pois a física pode ser perfeitamente interpretada em bases não-bifurcacionistas, conforme pude mostrar em uma recente monografia [2]. Ocorre que no momento em que tentamos interpretar a física em termos não-bifurcacionistas, os chamados paradoxos quânticos – que motivaram os físicos a inventarem as mais bizarras ontologias – simplesmente desaparecem. Parece que a física quântica está implicitamente de acordo com a cosmovisão pré-cartesiana.

Resta explicar por que chamo a bifurcação de “reducionismo físico”. A razão se torna clara no momento que retornamos ao Weltanschauung perene. A maçã vermelha que percebemos volta a pertencer ao mundo exterior; digo que se trata de um objeto corpóreo que, por conseguinte, pode ser percebido. Por outro lado, a maçã “molecular”, com a qual os físicos se ocupam, é despojada de qualidades sensíveis, tornando-se, assim, imperceptível. Ela constitui o que chamo de objeto físico, em oposição ao objeto corpóreo. De um ponto de vista bifurcacionista, o objeto físico é tudo o que existe no mundo exterior. Portanto, o objeto corpóreo é concebido como sendo “nada mais” do que o objeto físico. A maçã vermelha – que, do ponto de vista ortodoxo, existe! – é, com efeito, “reduzida” ao físico: ela é identificada como sendo a maçã “molecular”, conforme concebida pelos físicos. O princípio da bifurcação, portanto, resulta no que chamo de reducionismo físico; e o inverso é igualmente evidente.

Em ambas as formas, a tese cartesiana tem sido considerada por cientistas e pelo público educado como um pressuposto. Ela se impregnou na mente científica a ponto de as anomalias quânticas não terem despertado a menor suspeita. Conforme admitiu em privado um filósofo da ciência: “As pessoas que trabalham no campo da física acham quase impossível eliminar o bifurcacionismo implícito em suas obras”. Ora, essa conformação acrítica e habitual à tese cartesiana pelas “pessoas que trabalham no campo da física” só desonra seu status filosófico; e, como todas as crenças cientificistas, poderíamos dizer que o princípio se tornou científico por associação.

É possível deduzir que a bifurcação – ou o reducionismo físico, tanto faz – constitui a mais básica crença cientificista contemporânea, o princípio que todas as demais crenças cientificistas pressupõem. Considere a idéia do mecanicismo universal, por exemplo: ela não depende da bifurcação? Num trecho memorável e amplamente citado, Descartes, com efeito, admite:

Podemos facilmente conceber como o movimento de um corpo pode ser causado por outro, e como pode ser diversificado em função do tamanho, da figura e da situação de suas partes, mas somos totalmente incapazes de conceber como estas mesmas coisas conseguem produzir algo de natureza inteiramente diferente de si próprias, como por exemplo as formas substanciais e as qualidades reais, que muitos filósofos supõem estarem nos corpos [3].

É claro que os filósofos aludidos são os escolásticos, a quem Descartes radicalmente se opunha. O que o sábio francês está nos dizendo – com admirável clareza! – é que a idéia do mecanicismo universal só pôde ser concebida quando o universo foi reduzido ao estado de “matéria quantificada”. E não é exatamente por esta razão que Galileu e Descartes julgaram adequado banir “as formas substanciais e as qualidades reais” do mundo exterior? A bifurcação não foi postulada precisamente para tornar viável uma física “totalista” baseada em princípios mecanicistas?

Os dois exemplos bastam para que o fenômeno da crença cientificista seja apresentado. Não é preciso muito esforço para captarmos a idéia de que se a física, a mais exata das ciências naturais, se associou a noções cientificistas – na verdade, e de um ponto de vista tradicional, ilusórias! –, o que esperar das disciplinas menos rigorosas como a biologia evolucionária, a antropologia física e a psicologia, para não mencionarmos as chamadas ciências sociais? [4] O fato olimpicamente ignorado é que a ciência contemporânea provê tanto verdades como erros: não apenas luzes, mas também trevas. No que concerne o grande público, é bem provável que o segundo efeito predomine; as verdades das ciências “difíceis” são, afinal, acessíveis somente aos especialistas, às pessoas cientificamente proficientes. Isto vale, sobretudo, no caso da física básica; quando a teoria quântica se populariza, o que resta são noções cientificistas. Podemos resumir a coisa assim: À medida que a ciência evolui, seus insights se tornam cada vez mais abstratos, matemáticos e, por conseguinte, desprovidos de imagens sensíveis; tais insights tornam-se um tipo de conhecimento esotérico, ao qual apenas os “iniciados” têm acesso. Além disso, o que é validado pelas descobertas empíricas e, de certa maneira, pelos milagres da tecnologia, é o núcleo do insight esotérico, e não as crenças cientificistas exteriores a ele.

Consideremos agora as implicações destes fatos – deste fenômeno cultural – na vida religiosa e espiritual. Conforme comentei anteriormente, considero extremamente danoso o impacto da crença cientificista sobre a religião. O problema se agravou ainda mais porque teólogos e pastores em geral estão mal guarnecidos para lidar com questões deste tipo, quando não estão completamente convencidos pelas teses cientificistas.

Alguns poderiam perguntar qual é, afinal, a importância disso tudo. E se estivermos enganados sobre a natureza da causalidade, ou sobre onde se encerra a percepção sensorial, ou mesmo sobre a tão-debatida questão da evolução – contanto que estejamos ao lado da verdade em questões religiosas? Eu diria que a questão não é tão simples assim. Não nos esqueçamos que religião – contanto que não tenha se degenerado em convenção social ou mero sentimentalismo – exige o homem por inteiro; santidade e totalidade são inseparáveis. O “primeiro e maior” de todos os mandamentos não impõe que “[Tu] amarás o Senhor teu Deus com todo teu coração, com toda tua alma e com toda tua mente”? O que pensamos do mundo – nosso Weltanschauung – não pode ser legitimamente excluído do domínio da religião. Conforme escreveu São Tomás de Aquino na Summa Contra Gentiles (Livro II, capítulo 3): “É absolutamente falso sustentar, em relação às verdades da fé, que o que acreditamos a respeito da criação não tem maiores conseqüências, contanto que se tenha uma concepção exata sobre Deus; pois um erro sobre a natureza da criação sempre engendra uma falsa idéia sobre Deus”. Eu diria que a propensão contemporânea em acomodar os ensinamentos do Cristianismo com as chamadas “verdades científicas” representa uma impressionante confirmação deste princípio tomista: um caso clássico de erros cientificistas gerando idéias teológicas falhas. [5]

Em suma: o que pensamos sobre o universo tem sim importância em nossa vida religiosa e espiritual. E, além disso, somos responsáveis pelas opiniões que sustentamos neste domínio aparentemente secular. “Com toda a tua mente”: estas quatro palavrinhas deveriam bastar para apreciarmos o fato.

Vou ainda mais longe: a religião míngua no momento em que abre mão do seu, digamos, domínio natural, que hoje é ocupado pela ciência. Creio que a atual crise da fé e a progressiva descristianização da sociedade ocidental têm muito a ver com o fato de que há séculos o mundo material tem sido deixado nas mãos dos cientistas. Isso já foi dito muitas vezes no passado (mas não o suficiente!).

Theodore Roszak, por exemplo, expressou-se sobre esta questão com especial brilhantismo: “A ciência é a nossa religião porque a maioria de nós é incapaz de convictamente enxergar em torno dela” [6]. Além disso, os únicos que têm alguma capacidade de “convictamente enxergar em torno dela” são aqueles que têm um contato mínimo com a autêntica religião. Oskar Milosz (1877-1939) é outro que tem algo notável a dizer sobre a questão: “Se o conceito de universo físico não estiver de acordo com a realidade, a vida espiritual desta pessoa será gravemente avariada, com conseqüências devastadoras em todos os aspectos de sua vida” [7]. Muito bem dito! Com respeito às implicações da cosmovisão cientificista na vida da Igreja, citarei as palavras recentemente publicadas do filósofo francês Jean Borella: “A verdade é que a Igreja Católica tem se confrontado com o mais terrível problema que uma religião poderia enfrentar: o desaparecimento cientificista (disparition scientifique) do universo de formas simbólicas, justamente aquele que lhe permite que se expresse e se manifeste, isto é, que permite que exista”. E ele continua: “Tal destruição foi levada a cabo pela física de Galileu, não, como se costuma dizer, porque destituiu o homem de sua posição central – que, para São Tomás de Aquino, é cosmologicamente a mais inferior e menos nobre – mas porque reduziu corpos, substâncias materiais, ao âmbito puramente geométrico, tornando impossível (ou desprovido de sentido), em uma só tacada, que o mundo pudesse servir como meio para a manifestação de Deus. A capacidade teofânica do mundo foi negada”. [8] Sejamos claros: Borella pôs o dedo na ferida do reducionismo físico: le problème le plus redoubtable qu’une religion puisse rencontrer. O que ele chama de “redução ao puramente geométrico” corresponde precisamente ao que chamo de redução do corpóreo ao físico: é esta disputa cientificista que obliteraria “a capacidade teofânica do mundo”.

É claro que as “formas simbólicas” às quais Borella se refere não são, como se poderia supor, imagens ou idéias subjetivas que outrora os homens projetaram sobre o universo externo até que a ciência veio para nos apresentar à verdade. O caso é exatamente o oposto: as “formas” em questão são objetivamente reais e, na verdade, essenciais ao universo. Podemos concebê-las como as “formas” no sentido aristotélico e escolástico, ou os arquétipos eternos platônicos refletidos no plano da existência corpórea. Em todo caso, constituem a essência mesma dos seres corpóreos. Remova estas “formas simbólicas” e o universo deixará de existir; pois são precisamente estas “formas” que ancoram o cosmo a Deus.

Nem é preciso dizer que a ciência não destruiu realmente estas formas, nem causou seu desaparecimento; porém, a negação cientificista dos seres corpóreos implica em uma negação das formas ou essências substanciais que constituem a ordem do ser, e das qualidades sensíveis pelas quais estas formas ou essências se manifestam ao homem. Assim, a mente cientificisticamente treinada torna-se cada vez mais insensível ao que Borella chama de “universo de formas simbólicas”, a ponto de tal universo lhe parecer praticamente invisível. É neste sentido que a “capacidade teofânica do mundo” tem diminuído a níveis nunca antes vistos.

De qualquer modo, as conseqüências desta diminuição não são outra coisa senão trágicas. Ao negar as essências, o homem cientificista destrói a própria base da vida espiritual. Conforme Borella notou, o homem cientificista obliterou o domínio “que permite à Igreja se expressar e se manifestar” e, portanto, “que permite que ela exista”. A refutação da crença cientificista não é, portanto, algo opcional à Igreja, algo do qual ela pode se privar de fazer; é, pelo contrário, uma questão de urgente necessidade, uma questão de sobrevivência.

Por fim, reflitamos novamente sobre o que São Paulo tem a dizer sobre a “capacidade teofânica do mundo” em sua carta aos romanos. Porque as suas coisas invisíveis, desde a criação do mundo, tanto o seu eterno poder, como a sua divindade, se entendem, e claramente se vêem pelas coisas que estão criadas, para que eles fiquem inescusáveis. Porquanto, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças, antes nas suas especulações se desvaneceram, e o seu coração insensato se obscureceu. Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos. (Romanos 1:20-22). Nem é preciso mencionar a enorme relevância destas palavras em tudo o que discutimos até aqui. As “coisas que estão criadas” são, sem dúvida, as de natureza corpórea, os objetos que o homem pode perceber; mas e quanto às “suas coisas invisíveis”: não seriam precisamente as essências eternas, as idéias ou arquétipos? Contanto que o coração do homem não tenha se “obscurecido”, a percepção sensorial das “coisas que estão criadas” lhe despertará uma percepção intelectual – uma “lembrança”, segundo Platão – das coisas eternas, sobre as quais o coração refletirá ou incorporará. São Paulo alude a um tempo ou estado quando o homem “conhecia Deus”, uma referência, antes de mais nada, à condição de Adão antes da queda, quando a natureza humana ainda não havia sido corrompida pelo pecado original. Porém, é preciso perceber que a queda de Adão tem se repetido, em escala menor, através dos séculos, numa série interminável de “traições”, grandes e pequenas. Mesmo hoje, neste avançado estágio da história, somos, cada um de nós, investidos de certo “conhecimento sobre Deus”, ao qual somos livres para responder de diversas maneiras. E é por isso que nós também somos “inescusáveis”, responsáveis que somos pelas opiniões que sustentamos a respeito do cosmo. Todos percebem o universo de acordo com seu estado espiritual: os “puros de coração” o percebem como uma teofania; dos demais, cujos “corações insensatos se obscureceram”, a capacidade teofânica do universo é reduzida proporcionalmente a este obscurecimento.

Quero destacar o fato de que a correspondência entre o estado espiritual e o Weltanschauung aplica-se em ambas as direções, ou seja, nosso estado espiritual afeta não somente a maneira como vemos o mundo exterior, mas, reciprocamente, nossas visões sobre o universo invariavelmente refletem-se sobre este estado espiritual. Este é meu argumento central: A cosmologia importa, e ela tem um impacto decisivo sobre nossa condição espiritual. Mesmo aquilo que pensamos sobre o mundo puramente físico mostra-se crucial; pois “se o conceito de universo físico de uma pessoa não estiver de acordo com a realidade, sua vida espiritual será gravemente avariada...”.

Estas considerações nos trazem, enfim, à questão pastoral: o que pode ser feito, pastoralmente falando, para neutralizar a influência cientificista? O problema maior está em informar os próprios pastores: alertá-los, em primeiro lugar, do fato de que há uma distinção crucial a ser feita entre ciência e cientificismo, e do fato de que a crença cientificista é antagonista de nosso bem-estar espiritual. Não será tarefa fácil, uma vez que ofende a tendência dominante, tanto na sociedade civil quanto na Igreja. Só pela graça de Deus, creio eu, conseguiremos reunir discernimento e ousadia o bastante para livrar-nos do Weltanschauung cientificista e recuperarmos uma cosmovisão cristã. E tal tarefa, esta exigência, diria eu, é em essência espiritual. Ela não pode ser cumprida simplesmente lendo livros, ou pelo processo de raciocínio, mas acima de tudo pela fé e pela oração. O ditado credo ut intelligam aplica-se a nós, e com ainda mais intensidade do que nos inocentes dias de Agostinho ou Anselmo. É imperativo que sejamos tocados e movidos pelo Espírito Santo, o Espírito da verdade, que vos guiará em toda a verdade (João 16:13). Em nossa batalha para transcendermos o cientificismo, estaremos lidando não apenas com um sistema de crenças criado pelo homem, mas com algo formidavelmente mais abrangente; pois aqui também, no fim das contas, não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas, sim, contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século, contra as hostes espirituais da maldade, nos lugares celestiais (Efésios 6:12). E não poderia ser diferente, pois é a “capacidade teofânica do mundo” que está em jogo: aquilo mesmo “que permite a Igreja se expressar e se manifestar, isto é, que permite que ela exista”. Se o cosmo for realmente aquilo que o cientificismo afirma que é, então nossa fé católica será uma zombaria e nossa sagrada liturgia uma charada vazia. Este fato não pode ser ignorado impunemente.

Notas:

[1] The Concept of Nature (Cambridge University Press, 1964), pág. 30. Embora seja um eminente filósofo e que, juntamente com Bertrand Russel, tenha sido pai da lógica matemática, as censuras de Whitehead contra os axiomas cartesianos despertaram pouco interesse por parte da comunidade científica.

[2] The Quantum Enigma (Peru, Illinois: Sherwood Sugden, 1995). Um providencial resumo do livro foi feito por William A. Wallace em “Thomism and the Quantum Enigma”, The Thomist 61 (1997), pág. 455-467. Cf. também Wolfgang Smith, From Schrödinger’s Cat to Thomistic Ontology, The Thomist 63 (1999), pág. 49-63.

[3] Citado em E. A. Burtt, The Metaphysical Principles of Modern Physical Science (New York: Humanities Press, 1951), pág. 112.

[4] Cf. Cosmos and Transcendence (Peru, Illinois: Sherwood Sugden, 1984), na qual procurei desmascarar os princípios fundamentais da crença cientificista e delinear seu impacto na sociedade contemporânea.

[5] O supremo exemplo da teologia cientificista foi dado pelas especulações de Teilhard de Chardin. Cf. minha monografia Teilhardism and the New Religion (Rockford, Illinois: TAN Books, 1988), na qual lidei amplamente com esta questão.

[6] Where the Wasteland Ends (Garden City: Doubleday, 1973), pág. 124.

[7] Citado em Seyyed Hossein Nasr, Religion and the Order of Nature (Oxford University Press, 1996), pág. 153. Sobre Oskar Milosz, cf. Philip Sherrard, Human Image: World Image (Ipswich: Golgonooza Press, 1992), pág. 131-146.

[8] Le sens du surnaturel (Geneva: Editions Ad Solem, 1996), pág. 74. Cf. também a tradução inglesa The Sense of the Supernatural (Edinburgh: T & T Clark, 1998).