9 de agosto de 2021

O misticismo do templo


Nesta obra a pesquisadora Margaret Barker apresenta um conjunto de análises e interpretações, baseados em uma grande coleção de escritos antigos, que apontam à hipótese de que o objetivo principal da ecclesia, tal como apresentada não somente por Jesus Cristo e seus apóstolos, mas pelos Padres, historiadores, fiéis e cronistas das primeiras décadas e séculos da era cristã, é retomar o misticismo do templo, vigente durante o período do Primeiro Templo e abandonado no Segundo Templo. Em outras palavras, o Cristianismo seria uma "religião de mistério", um herdeiro do templo original. “Misticismo do templo” é aqui usado uma expressão sinônima de “ver o Senhor”. No caso do Cristianismo, segundo a interpretação de Barker às palavras do Apóstolo João, o templo não é mais necessário para o vero o Senhor porque o próprio Senhor veio ao mudo. Cristo, portanto, teria abolido a necessidade de um templo. 

A principal fonte de Barker é, claro, a Bíblia. No entanto, muitos trechos utilizados por Cristo e os apóstolos correspondem à versão Septuaginta do VT da Bíblia, que embora outrora considerada insubstituível foi posteriormente condenada pelos judeus no século II d.C. e substituída por uma versão editada para justamente suprimir e/ou alterar trechos que mencionavam explicitamente o misticismo do templo bem como o papel central de Jesus Cristo nele. Mais tarde a tradução latina de São Jerônimo, feita com base no VT alterado, acabou por contribuir ao ocultamento do misticismo do templo, e evidentemente os reformadores protestantes, ao assumirem tal versão como base de suas doutrinas, igualmente sufocaram a verdade do misticismo do templo. No entanto, Barker entende que o que os primeiros cristãos chamavam de “mistérios” é uma referência à tradição do templo. Isso se pode ver, por exemplo, em Santo Ignácio de Antioquia, Clemente de Alexandria, Orígenes e outros já nas primeiras gerações de cristãos. Há menções explícitas de Cristo como o Sumo Sacerdote que assumiu o santo dos santos, por exemplo. Ou declarações de Orígenes de que os mistérios foram transmitidos aos sumos sacerdotes e ficaram registrados sobretudo nas liturgias, não em escrituras. O mesmo se pode dizer das cartas do Apóstolo Paulo: seu conteúdo esclarecia questões pontuais, temas gerais que poderiam ser tratados à distância. Barker entende que a religião não se registrava nas cartas, mas nas liturgias.

Há alguns conceitos que Barker considera fundamentais para que se compreenda a religião do templo e seu misticismo:

(1) Um. Em outras palavras, Unidade. Quando o Um se manifestava, tal manifestação a chamavam de “reino” ou “santo dos santos”, no sentido de que se transmitia a santidade. Portanto, os místicos que adentravam o santo dos santos se tornavam santos, também chamados “anjos”.

(2) Muitos. Em outras palavras, Pluralidade. A unidade e a pluralidade se expressam na literatura do misticismo do templo, bem como no Cristianismo primitivo, como fogo e luz. Os místicos viam a luz invisível. E também ouviam a música inaudível. Aliás, a capacidade de ouvir a música celestial teria sido perdida por Adão, e eis que os pastores de Belém puderam ouvi-la outra vez quando do nascimento de Jesus. Na Igreja a ideia de restaurar a música angelical era algo muito importante (p.ex.: São João Crisóstomo, São Basílio, São Gregório de Nissa, São Dionísio Areopagita). Infelizmente os elementos-chave da música angélica e seu significado - a visão de Deus, o trono, as hostes, a música e o chamado do Senhor ao templo, a expiação - estão ausentes dos escritos deuteronômicos. Seus relatos acerca de Moisés recebendo os mandamentos nega que o Senhor tenha sido visto (Deuteronômio 4.12); sua descrição do templo em 1 Reis nada diz sobre o trono (cf. 1 Crônicas 28.18); eles nada falam sobre os levitas e sua música; eles negaram que o Senhor pudesse habitar no templo (1 Reis 8.27); eles removeram os 'Exércitos' do título “Senhor dos Exércitos” (Is 37.16, cf. 2 Reis 19.15); não havia dia de expiação em seu calendário (Deut. 16); e eles negaram que alguém pudesse expiar os pecados de Israel (Êxodo 32,31-33). Os primeiros cristãos, por outro lado, guardavam todas essas coisas e adoravam como os levitas. Com sua música eles louvaram ao Senhor, deram graças (‘eucaristia’) e clamaram ao Senhor para que viesse.

(3) Trono. Representa a Senhora. Não é possível dizer se a Senhora do templo de Jerusalém era a personificação do trono ou se o trono era seu símbolo. O que se tem certeza é que quando Ezequiel descreveu o trono da carruagem partindo de Jerusalém, ele descreveu a partida de uma figura feminina na qual a glória do Senhor estava entronizada. A Senhora não é algo que apareça nas traduções porque os tradutores não esperavam encontrá-la e, quando tiveram que escolher entre várias possibilidades para palavras difíceis, o fizeram sabendo o que o texto deveria dizer e o que não. O trono como a Mãe do Senhor é um elemento que aparece no Cristianismo também, e por todas as partes, o que sugere que se trata de algo original, não local.

(4) Servos. Eram os místicos propriamente. Em inúmeros trechos do VT os homens de Deus, os grandes em honra e glória, os homens que viram a Deus, são chamados de “servos”. Não por acaso “servo” era o título preferido da Igreja primitiva de Jerusalém para se referir a Jesus. Isso pode ser visto nos Atos dos Apóstolos, na carta do Apóstolo Paulo aos Filipenses e no Didaquê, por exemplo.

Em suma, Barker conclui que o misticismo do templo foi ocultado por quatro grandes movimentos ou fenômenos: (a) pelos deuteronomistas, (b) pela necessidade de distinguir a ecclesia da gnose, o que acabou por jogar a água do banho fora com a criança, (c) pela pressão da ecclesia para que os cristãos não praticassem os costumes judaicos, e (d) por muitos Bible scholars modernos que insistem, movidos por seu preconceito classicista, em purgar elementos “neoplatônicos” ao invés de identificá-los como elementos próprios da tradição do templo e, portanto, do Cristianismo.

Por fim, cabe mencionar alguns conceitos interessantes expostos por Barker:

Adão significa “o Homem”, no sentido de ser humano. Ele era o sumo sacerdote original, o Filho de Deus. Portanto, são “Filhos do Homem” todos aqueles que alcançam a theosis, ou seja, todos aqueles que alcançam a mesma condição do Homem, todos aqueles que se tornam Adão antes da queda, que se tornam servos (místicos). Enoque, por exemplo, descreve sua transformação em um Filho do Homem, ou seja, descreve sua theosis.

Quando lhe é dito a Adão para dominar o mundo, animais etc., isso não significa dominar a natureza, domar animais, praticar agricultura nem nada do gênero. O que se quer dizer é que Adão deve expiar, ou seja, restaurar os laços rompidos da aliança, ou seja, que Adão deve reatar a terra. Aliás, este mesmo entendimento é usado pelo Apóstolo Paulo para se referir a Jesus Cristo.

Quando lhe é dito a Adão e Eva “frutificai e multiplicai-vos” o que se quer dizer é que o casal deve buscar a glorificação (frutificai) e que sejam grandes (multiplicação). Multiplicar aí não tem sentido aritmético, mas espiritual.

Fonte: Margaret Barker, Temple Mysticism, SPCK Publishing, Londres, Reino Unido, 2011.