27 de maio de 2016

A fé e suas virtudes


Há dois tipos de fé: a que vem pelo ouvido e a que vem pela percepção interior. O primeiro tipo de fé consiste no livre acolhimento dos dogmas verdadeiros acerca de Deus e Suas criaturas. O segundo tipo de fé é possuído apenas por aqueles que foram iluminados pela graça divina. Ela é chamada de fé "substancial" (hypostatike). Quando o autor da Epístola aos Hebreus define a fé como "o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não vêem", ele está se referindo ao segundo tipo de fé, ou seja, à fé superior. Assim também o faz São Máximo, o Confessor, (580-662), quando afirma: "A fé é o conhecimento cujos princípios são indemonstráveis e, portanto, é uma relação que transcende a natureza". Esse segundo tipo de fé engendra-se a partir do primeiro; ela não contradiz, mas confirma o primeiro. Ambas ordens de fé elevam quem as possui para além do conhecimento dado pelos sentidos físicos e pela razão discursiva; mas o segundo tipo é conhecimento, enquanto o primeiro é apenas crença. Quem se elevou até o segundo tipo conhece, em parte, a esfera transcendente dos mistérios; pois ele viu, mesmo que sombriamente, como "por espelho". O halo circular -- dourado ou ocre -- em torno da cabeça é o meio mais notável que o iconógrafo emprega para simbolizar o segundo tipo de fé. O halo é simbólico do estado de iluminação, do conhecimento superior, assim como da vitória sobre a morte e da santidade em geral. Quem apenas elevou-se à primeira ordem de fé é representado sem o halo, mas distingue-se dos infiéis pela confiança e reverência que demonstra para com o Cristo e demais pessoas santas, tudo devidamente expresso pelo olhar, postura e gestos.

É da fé que nasce a mansidão e as demais virtudes. A mansidão é o hábito da alma caracterizado pela liberdade da raiva e demais formas de agitação interior, e manifesta-se às outras pessoas como constante docilidade e suavidade. A mansidão não se deixa afetar por insultos ou elogios. A iconografia expressa essa virtude retratando as faces e gestos das pessoas santas livres de quaisquer agitações, perfeitamente calmas. Mesmo quando são representadas em situações que inevitavelmente associamos à raiva e ao excitamento, os santos portam expressões de serenidade e docilidade. Nota-se isso, por exemplo, nos ícones de São Jorge ao matar o dragão, nos santos mártires sendo torturados etc.

Estreitamente ligada à mansidão é a humildade. São João Clímaco atesta que a mansidão é a precondição da humildade: " A luz da manhã precede o sol assim como o precursor de toda humildade é a mansidão". A humildade não deve ser confundida com servilismo, a qual não tem nada de belo, sendo uma forma de covardia. A verdadeira humildade é o autoconhecimento. O homem é humilde quanto se vê como realmente é e como pode e deveria ser. Somos humildes quando estamos plenamente cientes de nossas deficiências, de como estamos longe da perfeição divina. A humildade é precisamente quando essa consciência se torna habitual, acarretando, por um lado, uma forte insatisfação consigo mesmo e, por outro, um desejo para elevar-se à perfeição infinita de Deus, segundo o preceito do Cristo: "Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus. Na verdadeira humildade está contido um sentimento de insuficiência, de indignidade, de necessidade da ajuda e misericórdia divinas para que a ascese seja engendrada. A exemplo das virtudes da fé e da mansidão, a humildade é indicada nos ícones pela expressão facial, pelas posturas e gestos das pessoas santas. Em especial é simbolizada pela cabeça e corpo arqueados e em postura reverencial. Às vezes é simbolizda mais notadamente quando o santo está ajoelhado, como no famoso mosaico da Igreja da Santa Sabedoria (Hagia Sophia) em Constantinopla, que mostra o Imperador Leão VI, o Filósofo, ajoelhado aos pés de Jesus Cristo, recebendo dEle a investidura da santa sabedoria.

A humildade prepara o cristão para o desenvolvimento do estado de desapego ou "apatia" (apatheia). Essa virtude consiste em estar livre de todas as paixões. O termo "paixões" (pathe), na literatura patrística grega, significa não apenas sentimentos como raiva, ganância e luxúria, mas todo e qualquer vício, pecado oculto e mesmo pensamentos ruins ou negativos. O estado livre de paixões é resultado de um longo e contínuo processo de purificação levado a cabo por uma vida submetida aos mandamentos divinas. Daí ser identificada com a pureza (katharotes), e eis porque os bizantinos usavam os dois termos indistintamente. Na ordem da aquisição das virtudes, a pureza vem depois das virtudes já mencionadas -- fé, mansidão, humildade.

Um elemento que invariavelmente acompanha a liberdade das paixões é a manifestação do amor espiritual, o qual se define como sendo "a última das virtudes na ordem de aquisição, mas a primeira na ordem de valor", e é "a plenitude da lei da perfeição segundo o Cristo". O amor manifesta-se em diferentes níveis: há o amor sensorial -- amor à beleza física, ao prazer corporal e às coisas materiais em geral --; o amor psíquico -- amor à honra, à fama, ao poder; e o amor espiritual -- acima de tudo e em primeiro lugar o amor a Deus, e amor ao homem enquanto imagem de Deus em segundo lugar. Mais do que as demais virtudes, o amor espiritual faz do homem semelhante a Deus e o une à Divindade. Os Padres gregos frequentemente citam a afirmação do Evangelista João de que "Deus é amor; e quem está em amor está em Deus, e Deus nele". Amar a Deus é amá-Lo enquanto o Ser supremamente belo, bom, perfeito e pessoal e aspirar a unir-se a Ele pela graça. Tal união chamamos de theosis, "deificação", e representa o fim supremo para o qual o homem foi criado. Nos ícones essa virtude não se representa com faces róseas e açucaradas ou com gestos teatrais. Em um ícone, tudo, inclusive a expressão de amor, deve ser representado com solenidade, a qual advém do sentimento de respeito, temor e certo assombro para com Deus e do sentimento de reverência para com a imagem de Deus, ou seja, o homem. Nota-se isso até mesmo quanto dois santos, tais como Paulo e Pedro, se abraçam. Quando seu objeto de amor é o Cristo, o santo que fita o Deus-Homem apresenta expressões e gestos apropriados à adoração.

Fonte: Constantine Cavarnos, Orthodox Iconography, Institute for Byzantine and Modern Greek Studies, Belmont, MA, EUA, 1977, pág. 42-45.

Imagem: Ofício fúnebre do repouso do Monge Constantine (Cavarnos) de Florence (1918-2011).